Maria Clara Fiorani Pensar a cultura caipira em documentos normativos para a Educação Básica (LDB/1996 e BNCC/2017) São José do Rio Preto 2022 Câmpus de São José do Rio Preto Maria Clara Fiorani Pensar a cultura caipira em documentos normativos para a Educação Básica (LDB/1996 e BNCC/2017) Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado como parte dos requisitos para obtenção do título de Licenciado em Pedagogia, junto ao Conselho de Curso de Licenciatura em Pedagogia, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Orientador: Prof. Dr. Humberto Perinelli Neto São José do Rio Preto 2022 F517p Fiorani, Maria Clara Pensar a cultura caipira em documentos normativos para a Educação Básica (LDB/1996 e BNCC/2017) / Maria Clara Fiorani. -- São José do Rio Preto, 2022 48 f. : fotos Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura - Pedagogia) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto Orientador: Humberto Perinelli Neto 1. Cultura Caipira. 2. Educação Básica. 3. Documentos Normativos da educação. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Maria Clara Fiorani Pensar a cultura caipira em documentos normativos para a Educação Básica (LDB/1996 e BNCC/2017) Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado como parte dos requisitos para obtenção do título de Licenciado em Pedagogia, junto ao Conselho de Curso de Licenciaturaem Pedagogia, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Comissão Examinadora Prof. Dr. Humberto Perinelli Neto UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Orientador Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Paziani UNIOESTE – Cascavel Titular Prof. Dr. Ricardo Scucuglia Rodrigues da Silva UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Titular Prof. Dr. Edilson Moreira de Oliveira UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Suplente São José do Rio Preto 26 de janeiro de 2023 À minha irmã Maria Alice, que pode traçar o caminho que quiser. AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer à minha família que me proporcionou todo o necessário para que eu esteja aqui hoje. Em especial à minha mãe e à minha avó que moldaram a mulher que eu sou, com as ferramentas que lhes foram dadas. Ao meu pai, que há vinte e tantos anos atrás instigou uma criança a ser curiosa. Às minhas amigas que sempre estiveram comigo durante a graduação: Cecília, Isabela, Gabi, Duda, Larissa, Bia, Giovana e Bárbara. À Belinha, que sempre me apoiou e motivou em tudo que faço, sem ela eu não conquistaria um terço do que conquistei. À minha amiga Ane, que não me deixava levantar da cadeira até eu escrever o que precisava. À minha psicóloga Lu que me ensinou a enxergar as ferramentas que eu já possuía e a construir as que eu não tinha. E ao meu orientador que foi um excelente professor, e com isso tornou essa trajetória infinitamente mais tranquila para mim, com seu conhecimento, disponibilidade e correções. RESUMO Ao pensarmos em inclusão e respeito a todas as crianças em sala de aula, devemos pensar em como abordar a cultura em que elas estão inseridas. Para melhores práticas em sala de aula, docentes e outros profissionais da educação utilizam os documentos norteadores para a educação, como a LDB/1996 e a BNCC/2017. Levando isso em consideração, o objetivo do presente trabalho é o de identificar possibilidades de trabalhar com o tema cultura caipira em documentos da Educação Básica. Trata-se de pesquisa exploratória, de abordagem qualitativa e que emprega estudo bibliográfico e documental. A pesquisa concluiu que apesar de não haver menções diretas ao caipira na BNCC e na LDB, em elementos indiretos podem ser observados a cultura caipira, assim como outras culturas. Palavras–chave: Cultura caipira. Educação Básica. Documentos normativos da educação. ABSTRACT When thinking about inclusion and dignity to every child in a classroom, we should consider how to approach the culture in which they are inserted in. In order to have better practices in the classroom, teachers and other professionals in the educational field use guiding documents for education, such as LDB/1996 and BNCC/2017. Considering this, the purpose of the present paper is to identify possibilities of working the subject of caipira culture in documents for Basic Education. This is an exploratory research, of qualitative approach that employs a bibliographic and documentary study. This study concludes that despite not having direct mentions to the caipira in BNCC and LDB, it’s possible to notice the caipira culture in indirect elements, the same way one could notice other cultures. Keywords: Caipira culture. Basic Education. Guiding documents for education. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Mapa com a região da Paulistânia no mapa atual do Brasil LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BNCC Base Nacional Comum Curricular LDB Lei de Diretrizes e Bases SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 1 CAIPIRA E CAIPIRAS - DEFINIÇÕES 17 1.1 Darcy Ribeiro: formação histórica 18 1.2 Carlos Rodrigues Brandão: alteridade 22 1.3 Antônio Candido: modus vivendi 25 1.4 Romildo Sant’anna: representações musicais 30 2 CULTURA CAIPIRA E DOCUMENTOS NORMATIVOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA 35 2.1 Lei de Diretrizes e Bases 36 2.2 Base Nacional Comum Curricular 37 2.2.1 A etapa da Educação Infantil 38 2.2.2 A etapa do Ensino Fundamental 41 2.2.2.1 Arte no Ensino Fundamental – Anos Iniciais 41 2.2.2.2 Geografia no Ensino Fundamental – Anos Iniciais 42 2.2.2.3 História no Ensino Fundamental – Anos Iniciais 44 CONCLUSÕES 46 REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS 48 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 48 13 INTRODUÇÃO “Há mil maneiras de se colaborar na obra da educação. Há terreno para todas as vocações. Assunto para todas as penas.” (Cecília Meireles) 14 A motivação para a presente pesquisa partiu do interesse da aluna responsável em aliar a cultura caipira paulista na qual parte de sua família está inserida e seus estudos acadêmicos na área da educação. Foi feita uma busca por trabalhos apresentados nas reuniões nacionais da Anped, entre os anos de 2000 e 2021, que trataram do tema cultura caipira. Foram encontrados apenas dois trabalhos: Campos (2006) e Campos (2008). Campos (2006) promoveu uma pesquisa de campo sobre uma escola rural na vila de Vargem Grande no Vale do Paraíba. O autor buscou entender as relações da escola em face da cultura caipira na região e em como a escola é percebida pelos moradores. Noutra pesquisa, o mesmo Campos (2008) analisou uma pesquisa feita por Emílio Willems, na década de 1940, que “foi o primeiro estudo de comunidade feito no Brasil e o primeira investigação científica a tratar com respeito a chamada ‘cultura caipira’” (CAMPOS, 2008, p.01). O autor investiga os métodos dessa pesquisa, como ela foi recebida pela comunidade científica da época e as repercussões em outras pesquisas antropológicas. As reuniões nacionais da Anped são uns dos principais eventos para divulgação de pesquisas na área da educação, por isso esse resultado se mostra tão expressivo, quando pensamos em qual a menção a cultura caipira em documentos norteadores da educação. Ao fomentar a discussão sobre o assunto, a presente pesquisa contribui para possíveis contribuições às pesquisas acadêmicas que busquem identificar as causas da presença ou falta de menção à cultura caipira em documentos da área da educação, através da interpretação dos resultados obtidos nessa pesquisa. Este trabalho pretende promover levantamento sobre o tema cultura caipira na educação. A pergunta norteadora da pesquisa é: existem possibilidades de se trabalhar a cultura caipira dentro do que trazem os documentos bases de educação (BNCC e LDB)? O objetivo geral do presente trabalho é identificar possibilidades de trabalhar com o tema cultura caipira em documentos da Educação Básica (BNCC e LDB), utilizando as palavras chaves identidade, cultura, cotidiano e realidade. Em seguida verificar como a cultura caipira pode ser entendida em referências indiretas. Trata-se de pesquisa exploratória e abordagem qualitativa cujo objetivo é “apenas levantar informações sobre um determinado objeto, delimitando assim um campo de trabalho, mapeando as condições de manifestação desse objeto.” (SEVERINO, 1979, p.107). 15 A presente pesquisa foi realizada com base em livros que abordam a história e cultura caipira, sendo assim, por isso, definida por Severino (1979) como de cunho bibliográfico. Ao analisar legislações educacionais, classifica-se também como pesquisa documental, a qual “tem-se como fonte documentos no sentido amplo, ou seja, não só de documentos impressos, mas sobretudo de outros tipos de documentos, tais como jornais, fotos, filmes, gravações, documentos legais.” (SEVERINO, 1979, p.107). A técnica de coleta utilizada é definida como “[...] de identificação, levantamento, exploração de documentos fontes do objeto pesquisado e registro das informações retiradas nessas fontes e que serão utilizadas no desenvolvimento do trabalho.” (SEVERINO, 1979, p.108). Nota-se que o entendimento de cultura caipira exige compreensão dos sentidos de cultura e de identidade. De acordo com Barros Laraia (2001), cultura é associada ao modo de ver o mundo, comportamentos sociais, modo de agir, comer, diferenças linguísticas, maneriras de efetuar ações fisiológicas entre outras. Barros Laraia (2001) ainda disserta sobre como o modo de ver o mundo produzido por uma certa cultura, nos condiciona a discriminar aquele modo de vida diferente do nosso. O autor trás alguns exemplos de como diferentes culturas carregam o etnocentrismo: os índios Akuáwa e os esquimós se intitulam “os homens”, implicando que outras comunidades não fazem parte da humanidade. Ao concluir esse pensamento, o autor trás a seguinte afirmação “Comportamentos etnocêntricos resultam também em apreciações negativas dos padrões culturais de povos diferentes” (BARROS LARAIA, 2001, p.74), veremos exemplos dessas apreciações negativas feitas pelo homem da cidade em relação ao caipira no capítulo um. Já por identidade, Hall (1992) trás três conceitos de identidade: o do sujeito do iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós moderno. O primeiro sujeito era definido como um ser marcado pela razão, consciência e ação com um “centro” que se desenvolvia mas em essência permanecia o mesmo (identidade do indivíduo) e que estava presente desde o nascimento. O segundo conceito define a identidade como algo construído pelo indivíduo e por “pessoas importantes para ele”; essa identidade seria construída através dos valores, sentidos e símbolos dessas pessoas que interagiam com esse indivíduo. Hall (1992) diz que esse conceito faz uma relação entre nós e o mundo público: ao recebermos elementos de uma determinada cultura para a construção da identidade pessoal, também projetamos nós mesmos nessa cultura. 16 Assim, relaciona-se o sujeito à estrutura. No terceiro conceito temos o sujeito pós moderno, que existe a partir das mudanças do processo de formação da identidade pessoal do sujeito sociológico. Em um mundo pós moderno, o sujeito não tem mais uma identidade fixa que foi construída ao longo da vida. O sujeito está em constante transformação ao estar em constante relação com os inúmeros sistemas culturais que lhe são apresentados, portanto, frutos de mudanças estruturais como a globalização. Hall (1992) diz que é uma fantasia pensar que possuímos uma identidade unificada e imutável do nascimento até a morte, implica em construir uma confortável “narrativa do eu”. Este trabalho está organizado em capítulo um, capítulo dois e conclusões. No primeiro capítulo, falaremos sobre a formação histórica do caipira e o conceito de caipira através dos autores Darcy Ribeiro, Carlos Rodrigues Brandão, Antonio Candido e Romildo Sant’anna. No segundo capítulo, o enfoque está nos documentos norteadores da Educação Básica: LDB e BNCC. Mais especificamente, busca-se possibilidades de trabalhar com o tema cultura caipira em documentos da Educação Básica (BNCC e LDB). Encerrando a presente pesquisa, temos as conclusões a pergunta norteadora da pesquisa: existem possibilidades de se trabalhar a cultura caipira dentro do que trazem os documentos bases de educação (BNCC e LDB)? 17 CAPÍTULO 1 Caipira e caipiras - definições “Ai, nóis não sofre amarelão, E nem estrução de maleita, Ai, nóis canta em quarqué artura Exprica as palavra direita!” (Vieira e Vieirinha) 18 1 CAIPIRA E CAIPIRAS - DEFINIÇÕES No capítulo a seguir, faremos uma contextualização da cultura caipira. Examinando como se deu a formação histórica do caipira com Ribeiro (1995), em seguida falaremos sobre a definição do caipira e sua cultura feita por outros de forma depreciativa e a ressignificação dessa definição feita por autores como Brandão (1983), até chegar em uma descrição mais detalhada sobre o caipira, seu modo de vida e costumes e como sua cultura sofreu alterações ao longo dos anos; tema este abordado por Candido (1964). Finalizaremos o capítulo com as contribuições de Sant’anna (2000) para entendermos um pouco melhor como o caipira se define através das modas de viola. 1.1 Darcy Ribeiro: formação histórica do caipira Primeiro, analisaremos o capítulo intitulado “Brasil Caipira”, da obra "O povo brasileiro”, publicada por Darcy Ribeiro, em 1995. O capítulo em questão pode ser dividido em três momentos: a formação humana do caipira, datada do início do século XVI até o final do século XVII; a formação do modo de vida caipira, através de pequenas comunidades rurais mercantis para o abastecimento com alimentos do afluxo de pessoas trazidas pela mineração no século XVIII; e, por fim, o período datado da segunda metade do século XIX até o presente, que compreende uma reorganização do modo de vida caipira, mediante uma reconexão com a cidade em acelerada expansão. No primeiro momento, Ribeiro (1995) descreve os bandeirantes e seu modo de vida, destacando como promoveram a ocupação de uma área interiorana do Brasil e a formação de uma população mestiça. No início do século XVI, os bandeirantes viviam com suas famílias em condições de pobreza. Isso os levava a saquear - junto de suas tropas de índios (que facilmente se adaptaram ao modo de vida quase tribal dos bandeirantes) - missões jesuíticas à procura de mais índios para serem comercializados aos engenhos, além de ferramentas, gado, peças valiosas de igreja, entre outros. Em um segundo momento, prossegue Ribeiro (1995), os bandeirantes entravam em quilombos a procura de negros, posto que tinham um alto valor na Bahia, dada a escassez de mão de obra nas lavouras agrícolas. Nesse processo de avanço rumo ao interior é que os bandeirantes paulistas acabaram por ocupar, junto com suas famílias, a região denominada Paulistânia e que, futuramente, após 19 a decadência da mineração e mudança cultural, poderá ser denominada por Brasil Caipira. Considerando o território brasileiro atual, essa região era formada pelos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Paraná, Rio de Janeiro e Espirito Santo. Figura 1: Mapa com a região da Paulistânia no mapa atual do Brasil Fonte: Montagem do autor com imagem retirada do site Info Escola. Disponível em: https://www.infoescola.com/geografia/mapa-do-brasil/ Os paulistas tinham a esperança de encontrar minas de ouro, prata e pedras preciosas em suas entradas. Isso finalmente ocorreu em pequenas proporções na região de Taubaté e, depois, em grandes aluviões em Minas Gerais, no final do século XVII. Desde o princípio do descobrimento das minas, um grande afluxo de gente compareceu às áreas de mineração. Essa concentração de pessoas gerou problemas sociais, fome e conflitos, mas também favoreceu o surgimento de arraiais que se tornaram pequenas cidades. Isso tudo proporcionou 20 o surgimento de vendas de pólvora, ferramentas e outros mantimentos. Logo essas vendas se tornaram vilas que também proviam as necessidades de religião e demandas por justiça. Nos núcleos mineradores, a sociedade brasileira é influenciada por brasileiros de outras regiões e as condições financeiras para uma vida urbana mais complexa (graças à riqueza gerada pela mineração) geraram uma mudança cultural. A rede de povoados e vilas intensificou a necessidade por alimentos. Explica-se, assim, a constituição de comunidades rurais mercantis para o abastecimento com alimentos. Gradativamente, essas comunidades foram se diferenciando social e culturalmente do estilo de vida que passou a ser constituídos nos espaços urbanos, delineando-se mais explicitamente o que podemos tratar como sendo a cultura caipira. Com a crise da mineração no final do século XVIII, esses brasileiros que comercializavam produtos em vendas, os trabalhadores das minas e outras classes mais pobres que compunham esse núcleo minerador migraram para pedaços de terra dispersos, se tornando sitiantes e fazendo parte também da área caipira. Eles ocupam terras inabitadas, através de concessões ou posses. Nessa época, o caipira passou a viver da própria subsistência, dado que cessou ou diminui sensivelmente a comercialização de produtos em média e grande escala. Apesar de estarem povoando terras distantes, estes moradores criaram um convívio baseado na solidariedade, este gerou os chamados bairros rurais, que se uniam pela participação coletiva em atividades de lazer e de trabalho, no chamado mutirão, que se caracteriza pela auxílio dos moradores de uma região para fazer atividades que uma só pessoa não conseguiria (como construir uma casa; em troca de comida e festas com música e bebida). A vida caipira também constitui nesse período celebrações religiosas, seguidas de festa, o que intercala períodos de trabalho à períodos de lazer. Essa intercalação faz com que o caipira seja visto como preguiçoso, ocioso e sem ambição. Ribeiro (1995) defende que, na verdade, isso é um reflexo da mentalidade do caipira, que valoriza muito mais a intercalação satisfatória de momentos de lazer e de trabalho, do que um estilo de vida voltado para o acumulo de riqueza. Passado esse período de recesso, entre o final do século XVIII até a metade do século XIX, se expandem produções de grandes lavouras agro-exportadoras, o que gera um crescimento nas pequenas vizinhanças, que se tornam distritos com a presença religiosa institucionalizada (leia-se paróquias) e do Estado, mediante estabelecimento de serviços de polícia, que age como representante da camada proprietária. Com isso, o caipira se vê forçado a estar sob a proteção de um senhorio que pudesse lhe representar e defender. Surge, então, o restabelecimento da comercialização da produção 21 agrícola e a implantação de cartórios para avaliar a posse de terras. Disso resultará, muitas vezes, a perda da terra, pois o caipira é dela desalojado, junto com sua família. Isso lhe dá duas opções: • trabalhar como assalariado rural nos colonatos rurais, na posição de meeiro, em que ele tem de cultivar uma área e entregar parte da produção ao proprietário que o financia e guardar parte da produção para consumo próprio; • trabalhar como terceiro, por conta própria e pagando um terço de sua colheita para ter o direito de usar a terra. Essa segunda opção lhe permite preservar sua autonomia e a concessão de crédito, que não é dada ao trabalhador assalariado. No entanto, a experiência do caipira o faz rejeitar o regime de trabalho da fazenda, visto que ela deprecia sua liberdade pessoal e lhe impõem o ritmo de trabalho com horário marcado. O comando de um capataz também o faz se sentir assemelhado ao escravo. Isso explica o fato de os grandes proprietários terem recorrido primeiro ao tráfico de negros escravos e depois a importação de trabalhadores europeus. E o caipira permanece na condição de parceiro sem aspiração de um dia se tornar proprietário de terras, diferente dos trabalhadores europeus. Ribeiro (1995) ainda defende que a caricatura do caipira feita por Monteiro Lobato nada mais é que um retrato feito pelo fazendeiro amargurado, por não conseguir trazer o caipira para seu trabalho, daí destacar-lhe a preguiça, as verminoses e a indolência. Desse ponto de vista, Lobato falha em compreender o caipira marginalizado, que foi retirado de suas terras e que se encontrava resistente a abandonar seu modo tradicional de vida, a contar do século XIX. Na transição do século XIX para o século XX, o caipira é marginalizado por completo, mediante a ascensão do mercado de carnes, que possibilita a exploração de terras mais remotas (até então ocupadas pelos caipiras) para criação de gado. O novo estilo de vida urbano também vai gerando um olhar pejorativo sobre o estilo de vida do caipira, tido como atrasado. Ribeiro (1995) aponta, então, que tudo isso fez com que a vida cultural caipira se desintegrasse, sem que lhe fosse oferecido um papel na nova estrutura vigente da sociedade. Com a abolição da escravatura os negros se juntam a camada marginalizada composta pelos caipiras, que rejeitam o trabalho na fazenda. Mas diferente do caipira, o negro se encontra em uma posição ainda mais miserável, buscando apenas a sobrevivência. E o preconceito racial do caipira vai impedir que juntos tomem consciência da exploração que ambos foram vítimas. Ribeiro (1995) ainda aponta que a rapidez com que os caipiras na posição de parceiros se interessaram pela sindicalização rural indica uma conscientização da sua condição de explorado, em busca de uma revolta com a situação em que ele foi colocado. 22 1.2 Carlos Rodrigues Brandão: alteridade do caipira Enquanto Ribeiro (1995) busca entender o caipira através de uma contextualização histórica, Brandão (1983) faz um apanhado de contribuições de outros autores que descrevem o caipira, para em seguida trazer relatos e observações próprias de uma comunidade em que ele esteve inserido, no papel de pesquisador. Em um primeiro momento, Brandão (1983) analisa definições e busca a etimologia da palavra “caipira”. De acordo com as análises do autor, os dicionários não fazem um retrato cuidadoso do caipira, geralmente o descrevendo como uma pessoa de pouca instrução, sem modos e tímido. Quanto a etimologia da palavra, ele traz como exemplos Augusto de Saint- Hilaire e Cornélio Pires. Saint- Hilaire acredita que a palavra seja derivada de curupira, nome usado para designar o demônio da floresta no folclore nacional. Cornélio Pires transita entre algumas palavras que se assemelham a “caipira”, na tentativa de traçar sua origem, mas acredita que a mais aceitável seja “caapiára” de origem tupi guarani significa lavrador, visto que o caipira é um trabalhador do campo. Brandão (1983) afirma que o caipira foi definido pela visão do outro e não por meio de suas próprias palavras. Mesmo em musicas o caipira raramente canta sobre si próprio, canta histórias de homens mais valentes (peões, boiadeiros) ou romances. Essa definição feita a partir do olhar do outro é construída, consequentemente, pelo que o outro não é e pelo que lhe falta. Esse outro é o homem da cidade, o que define o caipira como morador do lugar contrário a cidade (sertão), com um trabalho regrado de forma diferente (invisível) e com um modo de vida considerado contrário a civilização e aos bons costumes, portanto, tido como ignorante e sem modos. Mais à frente, Brandão (1983) analisa relatos e observações sobre o caipira feitas por Augusto de Saint-Hilaire, Oliveira Vianna, Monteiro Lobato e Cornélio Pires. Por suas andanças através de São Paulo, vindo de Minas Gerais, de acordo com Brandão, Saint- Hilaire percebeu o caipira como sendo um camponês indolente, ignorante, imundo, violento, sem alegria e grosseiro. Partindo dessa apreensão, Saint- Hilaire acredita que algumas dessas características são resultado da falta de convivência com seus pares, doenças do sertão e sua ignorância. 23 No relato de Saint-Hilaire vemos mais uma vez o caipira sendo definido a partir da comparação com o outro. Esse autor afirma que, apesar de se vestirem simploriamente, os mineiros e goianos de classes mais baixas mantem suas residências e a si próprios limpos, ao contrario do caipira paulista. Ainda registra que os mineiros são mais ativos, inteligentes e cordiais com seus pares, enquanto os caipiras paulistas praticam violência, por situações irrelevantes. Brandão (1983) defende que, por estarem em uma estrutura social na qual eram trabalhadores que se sustentavam e moravam do que a natureza lhes provia e do espaço nela em que plantavam, sem a organização dos indígenas ou a civilização dos bandeirantes, os caipiras acabavam em uma situação de miséria e sem tempo e nem condições para cuidarem de si próprios. Quanto a violência praticada, Brandão observa que é vista como honrosa e justificada quando se trata do bandeirante ou do senhor de terras, enquanto no caipira paulista é vista como destruidora da solidariedade e da honra. Depois, esse autor pontua que essa violência encontrada por Saint-Hilaire estava presente na sociedade da época, pois era um período de conquista do território paulista. Em seguida, ele defende que a violência faz parte da vida do caipira, assim como outros elementos, e que a única coisa que o caipira mantinha controle e posse era sobre sua honra, visto que posses materiais, como a terra em que trabalhava, eram constantemente tomadas dele, o tornando um trabalhador errante. Sendo assim, o que era visto por outros como um conflito descabido, para o caipira era um atentado contra a única coisa que podia defender. Brandão (1983), em seguida, analisa as contribuições de Oliveira Vianna, que descreveu quatro qualidades importantes no caipira: a probidade, a respeitabilidade, a fidelidade à palavra dada e a independência moral. Também observa que o caipira não possui compostura, como as classes mais altas. Assim como Ribeiro (1995), Brandão (1983) critica os posicionamentos de Monteiro Lobato sobre o caipira, sugerindo que ele é vitima do atraso e não produtor dele, como defende Lobato. Em seguida Brandão (1983), descreve o ciclo de trabalho do caipira, segundo os estudos de Cornélio Pires e de Alceu Maynard Araújo. Mesmo o trabalho no campo configurando uma “face negada do lavrador caipira” (BRANDÃO, 1983, p. 21), Brandão entende que esta é uma característica fundamental na definição do caipira, já que ela rege o ciclo de todas as outras 24 dimensões de sua vida. Foi a ciclicidade do trabalho rural - em tempos férteis existir muito trabalho de preparo de terra, plantio e colheita e em tempos de seca existir vacância - que gerou a associação do caipira à indolência. Brandão (1983) restabelece que o trabalho agrícola não só acontece paralelamente ao convívio social, celebrações religiosas, trabalhos artesanais e artísticos, como rege todas essas facetas da vida caipira. Em momentos de vacância, por exemplo, percebemos o convívio social do caipira amplificado, assim como os momentos de celebrações. Ainda sobre as características do trabalho, Brandão (1983) destaca que o caipira produz grande parte do que utiliza e se orgulha disso. Peças de roupas, ferramentas de trabalho e de uso pessoal, objetos e instrumentos para as festas religiosas são algumas das coisas fabricadas pelo caipira, que demandavam tempo e esforço, mesmo que em tempos de vacância. Brandão (1983) também destaca que em poucos espaços vemos pessoas que trabalham por um período tão extenso da vida. Os caipiras começam o trabalho no campo desde crianças e até uma idade mais avançada. Meninas, desde idade tenra, já começam a ajudar nos afazeres domésticos, casam-se novas e logo carregam o primeiro filho. Meninos levam comida na roça e logo começam a trabalhar no campo também. Para Brandão (1983), uma característica fundamental é que os trabalhadores fazem parte do núcleo familiar, sendo que o pai geralmente tem um papel maior a desempenhar e “é dele que a família espera mais trabalho e, não raro, um lavrador caipira diz que ele trabalha e os familiares apenas ajudam.” (BRANDÃO, 1983, p.32) Outro elemento importante para delimitar a cultura caipira é a casa e o quintal. Para Brandão, enquanto o homem domina o campo, que é lugar de trabalho e origem do sustento, a mulher domina a casa e o quintal, que são lugares de produção de itens para consumo e de uso próprio (como uma hortinha, algumas galinhas e a roupa que se veste). É na casa e no quintal que a mulher cozinha, limpa, cultiva, cria os filhos e animais e faz artesanatos, ou seja, “é o espaço onde as mulheres “cansam o corpo”, enquanto para os homens "é o lugar de cuidar dele: comendo, lavando e repousando.” (BRANDÃO, 1983, p.33). É no quintal que acontece quase todo o convívio social do caipira, sendo assim considerado por Brandão (1983) como um lugar de preservação da cultura. Assim como comentado por Ribeiro (1995), Brandão (1983) fala sobre os mutirões. Ele presenciou um mutirão, acrescentando que existiam duas situações para realizá-lo: a primeira seria quando o objetivo é construir ou reparar algo de uso comunitário, enquanto a segunda é quando um trabalhador e sua família formam mão de obra insuficiente para realização de um 25 dado trabalho nas suas terras. Brandão (1983) destaca que, muitas vezes, seria mais barato pagar pelo serviço do que arcar com comida, bebida e festa. Mas que o fazem por companheirismo e como motivo para festa, já que o cumprimento do trabalho também é momento de descontração. 1.3 Antônio Candido: modus vivendi do caipira A obra de Candido (1964), intitulada "Os parceiros do rio bonito", pode ser analisada em quatro partes. Na primeira, o autor busca definir os traços da cultura caipira. Na segunda parte faz uma análise dos moradores do município de Bofete, em São Paulo, para entender a situação presente dos caipiras dessa cidade e as mudanças culturais ocorridas com a chegada do latifundiário. Na terceira parte Candido (1964) faz uma análise das mudanças ocorridas. Na quarta e última parte, o autor traz alguns aspectos complementares ao texto. A primeira parte do livro tem como objetivo descrever os meios de vida dos caipiras, para entender se estes se classificam dentro de condições socioculturais mínimas e para usar essas reflexões nos capítulos posteriores, como fundamento para compreender as mudanças socioculturais ocorridas. Candido (1964) classifica a cultura caipira em uma subcultura da colonização portuguesa no Brasil e que tem como principais características a relação de equilíbrio entre o homem e o meio (fruto da herança cultural dos bandeirantes paulistas), a subsistência e uma vida social do tipo fechado. Candido (1964) apresenta o universo material do caipira. Sua moradia, denominada rancho, consiste em paredes de taipa ou apenas varas cobertas de palha, não se diferenciando muito das moradias dos bandeirantes, descritas por Ribeiro (1995). Como parte da cultura de subsistência, os caipiras fabricavam seus próprios utensílios, máquinas e roupas: cuia de beber, fio de algodão, colher de pau, forno de barro, máquina de tear, moedeiras, açúcar, banha de porco utilizada para iluminação e culinária. Assim como as observações de Saint-Hilaire citadas no texto de Brandão (1983), Candido (1964) descreve as relações de violência do caipira para com seus pares “[...] os homens eram irascíveis e valentes, matando-se uns aos outros com frequência atestada pelas cruzes e votivas, 26 desconfiando do estranho” (CANDIDO, 1964, p.49). Candido (1964) atribui essas características ao modo de vida seminômade e isolado do caipira, além da herança cultural dos povos indígenas. Um dos principais fatores de equilíbrio entre o caipira e o meio é a alimentação, descrita por Candido (1964) como sendo de um mínimo alimentar, para não prolongar a interrupção do trabalho: “Este mínimo alimentar corresponde a um mínimo vital, e a um mínimo social: alimentação apenas suficiente para sustentar a vida; organização social limitada à sobrevivência do grupo.” (CANDIDO, 1964, p.60). A dieta caipira consistia basicamente de feijão, milho e mandioca e é tratada por Candido (1964) como triângulo básico da alimentação caipira, fruto da influência indígena e da necessidade do caipira de se deslocar para novas terras, caracterizando-se como agricultor itinerante de subsistência. A alimentação dos caipiras também sofreu grande influencia dos portugueses, visto os modos de preparo da comida, como fubá, farinha de beiju, pães e bolos de milho. Quanto a análise dos tipos de sociabilidade do caipira, Candido (1964) o faz considerando que ele possui um povoamento disperso e que relações sociais deste tipo de povoamento diferem daquelas ocorridas em povoamentos condensados. Entretanto, o autor destaca que o caipira recebe interferência dos dois tipos de povoamento na composição das suas relações sociais. Candido (1964) classifica os caipiras em moradores transitórios e permanentes. Os moradores transitórios eram divididos em: cultivador nômade, agregado e posseiro. O nômade seria aquele que não tem posse legal de terras, se fixando em qualquer lugar e sendo assim, podendo perder essa moradia a qualquer momento. Candido (1964) destaca o nômade foragido da lei, que teria mais interesse em residir em um local isolado. O agregado seria aquele que reside e lavra em uma terra com permissão do proprietário. O posseiro também reside e lavra em uma terra a qual não possui, porém, sem a permissão do proprietário. Os moradores permanentes são divididos em sitiantes e fazendeiros, que podem vir a morar em sítios, fazendas ou sesmarias. Candido (1964) destaca que a diferença entre sitio e fazenda está no uso de mão de obra alheia ou não e que em alguns lugares a diferença de designação também envolve o tamanho da propriedade. Já as sesmaria eram terras concedidas na época colonial, para quem as reivindicasse e as lavrasse em até seis meses. 27 Para Candido (1964), a base das relações sociais do caipira são os agrupamentos, chamados de bairros. Muitas vezes compostos de propriedades bem dispersas, nas quais residem diferentes famílias, são unidas pelo “[...] sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas” (CANDIDO, 1964, p.76), mesmo que aos olhos do viajante pareça que o caipira viva em isolamento social, isso era raro de acontecer. Assim como Ribeiro (1995) e Brandão (1983), Candido (1964) discorre sobre os mutirões. Para esse autor os mutirões são uma solução para o problema de falta de mão de obra, visto que “[...] é praticamente impossível a um lavrador, que só dispõe de mão de obra doméstica, dar conta do ano agrícola sem cooperação vicinal.” (CANDIDO, 1964 p.82). Ao conversar com alguns caipiras, Candido (1964) relata que para a necessidade de responder ao chamado do mutirão é visto por eles como uma obrigação divina para com o próximo, o momento em que eles praticam a caridade. Candido (1964) destaca um tipo distinto de cooperação nos mutirões: o controle de incêndios. Neste tipo de mutirão, não há necessidade de haver um chamado, a atividade é organizada por uma pessoa de liderança, que divide o trabalho em grupos e tarefas. Segundo Candido (1964), outro tipo de ajuda, que se destaca pela organização distinta do trabalho, envolve as atividades religiosas. O autor usa como exemplo o caso da Irmandade de São Roque, que constitui um grupo de pessoas organizada para realizar festas e leilões da capela do bairro. Nesses festejos, alguns ajudantes são sorteados e o caipira designado como festeiro deve arcar com os custos da festa, caso a festa de prejuízo, além de recolher doações de leitoas, ovos, galinhas, para serem leiloados. Na segunda parte do livro, Candido (1964) começa com uma contextualização histórica da região de Bofete- SP. O autor considera como pequena propriedade terras de até 30 alqueires, média propriedade até 120 alqueires e a partir disso considera como grande propriedade. Tendo isso como base, afirma que no município de Bofete existe um número bem mais expressivo de pequenas propriedades. A fazenda analisada por Candido (1964) é uma grande propriedade fundada no século XIX, que passou por diversas mudanças, crises, abandonos, trabalho escravo, colonato português, até chegar à data do estudo analisado, em que é composta por porções de terra no regime de parceria, ocupadas por caipiras e fiscalizadas por um dos moradores, eleito pelo proprietário como fiscal, e uma autoridade policial. 28 Comenta a existência de trezes casas, ocupadas por trinta adultos e vinte crianças. Candido (1964) explica que as moradias são compostas pelas casas e apêndices externos, como o paiol para armazenamento de alimentos, o lugar do banho, os moedores e outras máquinas, a horta etc. A quantidade de plantações que uma família produzia dependia da safra e do número de trabalhadores, daí a importância de se ter uma família numerosa. Nesse sentido, segundo Candido (1964), o cuidado e os gastos na infância compensavam pela mão de obra exercida mais tarde. De acordo com Candido (1964), o ano agrícola é o que rege as relações de trabalho e as relações sociais do caipira. Começando em agosto e terminando em julho, o ano agrícola dita os períodos de descanso e os períodos de trabalho intenso, que totalizam cerca de 12 horas por dia no verão e 10 horas por dia no inverno, com uma pausa de meia hora no período da manhã e outra pausa de uma hora ao meio dia. Nos períodos de descanso, geralmente compreendendo os sábados e domingos, são feitas idas as compras, festas religiosas e visitas entre bairros. Neste mesmo capítulo, Candido (1964) diferencia a solidariedade do mutirão e faz algumas considerações. Não existe a festa após o dia de serviço e exige o retorno do dia do trabalho, computado metodicamente, como pode-se observar no relato do autor: “Ouvi certo parceiro queixar-se de outro; que fugira do bairro devendo-lhe dinheiro e um dia de serviço, além de carregar-lhe uma espingarda emprestada.” (CANDIDO, 1964, p. 144). Existe também o mutirão seco, em que a comida não é fornecida e cada um leva a sua. Candido (1964), diz que apesar de ser uma dieta pobre, a dieta do caipira da Paulistânia é bem mais nutritiva de outras populações rurais no Brasil. A fome que o caipira vive é resultado de uma carência econômica bem mais abrangente, e ao lado da fome física, Candido (1964) destaca a fome psíquica que segundo ele consiste no “[...] desejo permanente das misturas queridas: carne; em segundo lugar pão; em terceiro, leite (este, bem menos que os outros).” (CANDIDO, 1964, p. 180) Na terceira parte da obra, Candido (1964) analisa as mudanças ocorridas na vida do caipira em dois aspectos: fatores que persistem e fatores que foram alterados ou novos fatores incorporados na vida caipira. Sobre as relações de trabalho e situação econômica, o caipira foi afetado pela crescente urbanização e abertura de mercados. Tendo bens disponíveis para a compra, o caipira se 29 encontra agora a mercê da margem de lucro e a economia geral do país. O apego ao tradicionalismo resulta, muitas vezes, em queda do estilo de vida, como observado em alguns caipiras por Candido (1964): um destes de caipira por exemplo não era muito apegado às tradições religiosas e era mais adepto do trabalho sistemático, ele possuía a melhor situação econômica dentre os outros caipiras. Um outro caipira em oposição era mais inclinado a coleta e plantam bem pouco feijão e milho, com uma dificuldade para o trabalho mais sistemático, viviam em situação de extrema miséria. Candido (1964) destaca que o caipira, cada vez mais, se distancia das crenças em relação a natureza, técnicas curandeiras e superstições, devido ao prestigio crescente dos produtos e relações feitas no meio urbano. Com a inclusão do caipira no sistema capitalista, iniciou-se a distinção entre classes sociais dentro do universo caipira. A possibilidade de ser assalariado trouxe para o caipira a mobilidade social, que o leva a abandonar os modos tradicionais de vida, se juntando ao trabalho urbano ou a agricultura moderna. A partir de então, proprietários e posseiros cumprem os papeis sociais de mais prestígio e as classes sociais mais baixas ficam a cargo dos agregados e aventureiros. Para Candido (1964), o parceiro se vê em uma situação singularizada, pois possui certa liberdade. Tem uma situação melhor que a do camarada e do colono, mas pior que a do proprietário. Ao mesmo tempo, Candido (1964) diz que a mudança social e cultural se mostra mais visível e com maior intensidade para o parceiro. Candido (1964) nos mostra que essa mudança social e cultural traz consigo frustações por parte dos caipiras, que expressam isso em algumas falas, que traduzem o saudosismo dos tempos “dos antigo”. O autor observa uma valorização constante do passado, seja de forma mais discreta, seja de forma mais explicita. O caipira cita as terras que eram mais férteis, a abundância de colheitas, a facilidade na concessão de terras e da possibilidade de ser dono da sua própria terra, a solidariedade, bem como a condição de vida mais elevada. Candido (1964) diz que quando o caipira se encontra com novos valores, ele pode ou substituir os valores tradicionais pelo novo por completo, ignorar o novo valor e manter o tradicionalismo ou ajustar o tradicionalismo aos novos valores, criando uma espécie de simbiose. A decisão depende do “[…] tamanho do grupo; duração e intensidade dos contactos; utilidade dos traços propostos” (CANDIDO, 1964, p. 232). 30 Segundo Candido (1964), o caipira recorre a alguns meios de prolongação do tradicionalismo, entre eles destaca cinco: • o apego a forma de trabalho denominada parceria, por ser mais parecida a condição de sitiante que o caipira possuía anteriormente; • a mudança de fazenda a fazenda causada pela instabilidade de não ter posse de terra e que possibilita certa autonomia ao caipira, no sentido em que ele pode escolher um outro lugar com condições mais favoráveis; • a preservação da vizinhança, tanto no posicionamento das casas que estão sempre próximas para facilitar o auxílio mutuo, quanto na mudança de propriedade em que o caipira prioriza ficar perto de parentes; • a preservação dos modos de solidariedade como o mutirão; • a preservação cultural em forma de relações sociais no bairro, como festas religiosas, elementos compartilhados entre bairros como curandeiros, farinheiros, capelão com o objetivo de se manter a cultura viva. Na parte complementar do livro, Candido (1964) apresenta um trabalho sobre a vida familiar do caipira. Ele comenta que os pais geralmente escolhiam os pretendentes dos filhos e filhas, avaliando se o pretendente era ou não considerado trabalhador, respondendo algumas perguntas feitas pelo padre e/ou pelo pai, como: “Quantos botões tem o casaco de Jesus?”, domínio de conhecimentos grupais, técnicas de trabalho e outros. Não existia o costume de namorar antes do casamento, introduzido depois de forma bem recatada. Candido (1964) diz que não foi possível coletar qualquer dado sobre a vida sexual dos casais. Por fim, argumenta que o casamento representa uma importante parte da vida econômica do caipira, pois além de trazer um parceiro para o auxílio mutuo na lavoura, traz a possibilidade de ter filhos, que como visto anteriormente, constituem trabalho essencial nas lavouras. 1.4 Romildo Sant’anna: representações musicais Consideraremos a seguir, o estudo de Sant’anna (2000) sobre representações midiáticas do caipira, mais especificamente o capítulo 7 de seu livro “A moda é viola: ensaio do cantar caipira”. 31 No começo do capítulo, o autor discorre sobre a estereotipização do caipira através de descrições e representações midiáticas feitas a partir do olhar do outro, como Lobato, Saint- Hilaire entre outros. Em seguida, ele analisa modas caipiras (aqui definidas pelo autor como cantigas tradicionais) em comparação com representações do caipira feitas por outros, em uma perspectiva de investigar como o caipira se define e como ele é definido pelo outro. Sobre os costumes das modas caipiras, Sant’anna (2000) diz que o cantador-violeiro fica em posição de destaque nas rodas de viola. É considerado desrespeitoso conversar durante a cantoria e, diferente de outros tipos de socialização acompanhadas de música, a moda caipira não deve ser usada como musica de fundo, mas sim como atração central da celebração. Sant’anna (2000) destaca a presença da consciência de classe e relações de poder nas modas caipiras. A noção de injustiça e a mensagem de que a lei tende a desfavorecer os mais pobres são elementos presentes nas cantigas. Analisando a moda “Tristezas do Jeca”, o autor conclui que a passividade e preguiça negativamente representadas pelo observador alheio são reinterpretadas como uma melancolia, nostalgia, bucolismo e aceitação da sua própria condição pelo caipira, na qual ele se basta, como consta em "Tristezas do Jeca”: TRISTEZAS DO JECA toada ligeira Angelino de Oliveira Nestes verso tão singelo, Minha bela, meu amor, Pra mecê quero contá O meu sofrê e a minha dor, Eu sou como o sabiá, Quando canta é só tristeza, Desde o gaio onde ele tá. Nesta viola Eu canto e gemo de verdade... Cada quadra (toada*) Representa uma saudade... Ainda sobre a construção da imagem do caipira feita por ele próprio, Sant’anna (2000) destaca a esperteza do caipira, presente em diversas modas caipiras. Essa esperteza atribui ao caipira o respeito entre seus pares, pois demanda um certo nível intelectual enganar o patrão, o estrangeiro, os políticos e outras personalidades que desfrutam da posição de poder. Entretanto, essa sagacidade é acompanhada de um rebaixamento moral, devido a sua natureza e métodos. Essas considerações podem ser vistas na moda "O mineiro e o italiano": 32 O MINEIRO E O ITALIANO moda-de-viola Teddy Vieira / Nélson Gomes O Mineiro e o Italiano Vivia às barras dos tribunais, Numa demanda de terra Que não dexava os dois em paz. Só em pensá na derrota O pobre caboclo não dormia mais. O Italiano roncava -Nem que eu gaste arguns capitais, Quero vê esse Minero Vortá de a pé pra Minas Gerais. Vortá de a pé pro Minero Seria feio pros seus parente. Apelô pro adevogado: -Fale pro juiz pra tê dó da gente. Diga que nóis semos pobre Que meus filhinho vivem doente, Um parmo de terra a mais Para o Italiano é indiferente. Se o juiz me ajudá a ganhá Lhe dô uma leitoa de presente. Retrucô o adevogado: -O senhor num sabe o que está falando, Num caia nessa bestera Senão nóis vamo entrá pro cano. Este Juiz é uma fera Caboco sério e de tutano, Paulista da velha-guarda, Família de quatrocentos ano. Mandá a leitoa pra ele É dar a vitória pro Italiano. Porém chegô o grande dia Que o tribunal deu o veredito. Minero ganhô a demanda O adevogado achô esquisito. Minero disse ao dotor: -Eu fiz conforme lhe havia dito. Respondeu o adevogado: -Que o Juiz vendeu, eu não acredito! Jogo o meu deproma fora Se nesse angu não tiver mosquito. -De fato, falô o Minero, Nem mesmo eu tô acreditando, Ver meus filhinho de a pé Meu coração vivia sangrando. Peguei uma leitoa gorda, Foi Deus do céu!, me deu esse plano, De uma cidade vizinha Para o Juiz eu fui despachando. Só não mandei no meu nome, Mandei no nome do Italiano! (Tião Carreiro e Pardinho, Os Grandes Sucessos, 1973 33 Sant’anna (2000) diz que a ideia depreciativa que se tem do caipira só é encontrada no ponto de vista urbano, pois nas modas caipiras o personagem-cantador é o herói. Na maioria dos casos, entretanto, o herói é escrito como uma promessa a ser cumprida, como vemos a seguir na música "Em tempo de avanço”: EM TEMPO DE AVANÇO pagode de viola O destino aqui me trouxe Cantá pra vocês eu vou, Eu só truxe coisa boa Foi meu sertão quem mandou. No lugar que tem tristeza Eu vou levar alegria, Vou levar sinceridade Onde existe hipocrisia. No lugar que tem mentira Eu vou levar a verdade, Vou levar amor sincero Onde existe falsidade, Quando ieu daqui sair Vocês vão sentir saudade. A terra hoje balança Vou agüentar o balanço, Quem espera sempre alcança, Eu espero e não me canso, Cantando a gente avança Para depois ter descanso, Cheguei trazendo esperança Cantando em tempo de avanço. Vou soltar o inocente, Não tem culpa quem prendeu, Vou castigar quem matou, Vou rezar pra quem morreu. Vou defender quem apanha Batendo em quem bateu, Vou tomar de quem roubou Tirando o que não é seu, Vou jogar com quem ganhou, Vou ganhar pra quem perdeu, E para quem não tem nada Vou dar o que Deus me deu, Se eu der tudo que eu tenho Não acaba o que é meu... (Tião Carreiro e Pardinho, Pagodes, 1977) Para Sant’anna (2000), a principal característica da moda caipira são os versos que contam uma história com começo, meio e fim de forma clara. Ela também usa de uma escrita concisa, com elementos da cultura tradicional, tal qual uma Fábula. São comuns os cantadores- 34 violeiros, ou seja, o intérprete ser o narrador personagem. Outra característica muito presente nas modas caipiras é a melancolia, descrita como “uma tristeza estranha, uma vontade de chorar” (SANT’ANNA, 2000, p. 253). De acordo com Sant’anna (2000), em contraste com as representações do caipira na mídia feitas por outros, quando retratado por si próprio, o caipira é alguém animado, amoroso e inspirado. Exemplo disso é a moda “Marreta”, que também nega valores estipulados por outros ao caipira, como na frase “nóis não sofre amarelão”: MARRETA moda-de-viola Vieira / Vieirinha Ai, eu e meu companhero, Na hora que nóis despeita, Ai, quando nóis pega a cantá, Mais é uma vitrola perfeita! Ai, nóis não sofre amarelão, E nem estrução de maleita, Ai, nóis canta em quarqué artura Exprica as palavra direita! Ai, eu e o meu companhero A parada nóis não enjeita! Ai, nóis achano um truquinho, Nóis joga até na sarjeta, Eu jogo na banca de buzo, Eu jogo na banca-roleta! Ai, neste jogo de bandera Eu jogo na bandera preta! Ai, se fô pra arriscar no bicho, Eu jogo na borboleta! Nos macaco eu jogo pedra, Só pra vê fazê careta! E no campeão nóis joga moda Trovada em linha, e bem feita, Na capitar de São Paulo A violerada me respeita! (Vieira e Vieirinha, Peão Boiadeiro, 1973) Ao ler o capítulo de Sant’anna (2000), podemos concluir que ao procurar uma autodefinição sobre o caipira, as modas de viola são uma grande fonte de material. Nelas o caipira se define como alguem piedoso e justo como visto na moda “Em tempo de avanço”, astuto, bom cantador e companheiro, bucólico e nostálgico. E parece estar ciente das representações de si feitas pela mídia e demonstra certa insatisfação perante estas, como demonstrado na moda “Marreta”. 35 CAPÍTULO 2 Cultura caipira e documentos normativos da Educação Básica "Um povo sem o conhecimento de sua história passada, origem e cultura é como uma árvore sem raízes." (Marcus Garvey) 36 2 CULTURA CAIPIRA E DOCUMENTOS NORMATIVOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA No capítulo anterior, entendemos um pouco sobre a origem da cultura caipira na história do Brasil, o que é o caipira e quais elementos definem sua cultura. No capítulo a seguir, partiremos para o objetivo da presente pesquisa, que é o de verificar se existem possibilidades de trabalhar a cultura caipira na Lei de Diretrizes e Bases (1996) e na Base Nacional Comum Curricular (2017). É importante lembrar que esses documentos analisados não são neutros e envolvem certos interesses políticos, embora essa discussão fuja do escopo desse trabalho. 2.1 Lei de Diretrizes e Bases Verifica-se no início da LDB, mais especificamente no Art. 1º, o seguinte: A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. (BRASIL, 1996) Pode-se entender por “vida familiar, na convivência humana, no trabalho […] e nas manifestações culturais” (BRASIL, 1996) a cultura caipira. Isso porque, como destacam todos os autores abordados no Capítulo 1, forma a cultura caipira um estilo de vida próprio, construído desde o século XVI e existente até os dias atuais, apesar das modificações registradas. Nota-se ainda na LDB “Art. 3º II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber.” (BRASIL, 1996). Se atentarmos especialmente ao termo “cultura”, cumpre pensar na importância de tratar da cultura caipira, visto que forma um modo de viver que envolve boa parte do território brasileiro, a saber: Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Paraná, Rio de Janeiro e Espirito Santo. No capítulo II, seção I da LDB, encontra-se o seguinte: Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (BRASIL, 1996) Pensando mais especificamente no trecho “exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, [...] dos educandos” encontramos uma possibilidade de trabalhar 37 a cultura caipira, pois como visto no Capítulo 1, os habitantes da região pertencente a essa cultura possuem características próprias, oriundas da cultura caipira. Isso demanda uma parte diversificada que complemente a base. Analisamos o Art. 26, parágrafo 4º da LDB:“ O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.” (BRASIL, 1996). Podemos entender neste trecho a contribuição da cultura caipira para a formação do povo brasileiro, como nas comunidades mercantis (entendidas como sendo de cultura caipira) presentes no ciclo da mineração, durante o final do século XVII. Dentro do Art. 26-A consta:“ Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.” (BRASIL, 1996). Compreende-se nesta passagem a cultura caipira como parte da cultura afro-brasileira, assim como Pires (1921) descreveu ao dissertar sobre os tipos de caipiras “Caipiras pretos são os descendentes de africanos já desaparecidos do Brasil” (Pires, 1921, p. 25). Observa-se no capítulo II, seção I da LDB, o seguinte: Art. 26-A. § 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 1996) Uma possível interpretação para “o negro [...] na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil” envolveria a cultura caipira, pois como visto anteriormente, o negro é parte integrante da formação dessa cultura. A mesma interpretação pode ser realizada no segundo parágrafo do artigo 26-A na LDB: “Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (BRASIL, 1996). Isso porque se entende a cultura caipira como parte da cultura afro-brasileira. 2.2 Base Nacional Comum Curricular 38 A Base Nacional Comum Curricular é um documento que foi publicado em 2018 que norteia a organização curricular das escolas de Educação Básica no Brasil. Tendo em vista sua relevância para a Educação, analisaremos alguns trechos que podemos entender como menções indiretas a cultura caipira. 2.2.1 A etapa da Educação Infantil Em “Além disso, a instituição precisa conhecer e trabalhar com as culturas plurais, dialogando com a riqueza/diversidade cultural das famílias e da comunidade” (BRASIL, 2018, p.37) está incluída a cultura caipira, uma vez que esta faz parte da diversidade cultural brasileira. No trecho da BNCC “Conviver com outras crianças e adultos, em pequenos e grandes grupos, utilizando diferentes linguagens, ampliando o conhecimento de si e do outro, o respeito em relação à cultura e às diferenças entre as pessoas.” (BRASIL, 2018, p.38), e na competência (EI03EO06) “Manifestar interesse e respeito por diferentes culturas e modos de vida.” (BRASIL, 2018, p. 46) existe a possibilidade de inseir a cultura caipira dentro da noção de respeito e convivência com diferentes culturas nas crianças. Verifica-se na BNCC, mais especificamente na Etapa de Educação Infantil, o seguinte: Brincar cotidianamente de diversas formas, em diferentes espaços e tempos, com diferentes parceiros (crianças e adultos), ampliando e diversificando seu acesso a produções culturais, seus conhecimentos, sua imaginação, sua criatividade, suas experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas, cognitivas, sociais e relacionais. (BRASIL, 2018, p.38) Isolando a parte do trecho “Brincar cotidianamente de diversas formas, [...] com diferentes parceiros [...] ampliando e diversificando seu acesso a produções culturais” podemos entender a cultura caipira, já que como visto no capítulo anterior, a cultura caipira é rica em diversas formas de produções culturais como musicais, costumes, crenças, brincadeiras, artesanatos, dentre outras. Observa-se na seção sobre direitos de aprendizagem e desenvolvimento na educação infantil da BNCC o seguinte: Explorar movimentos, gestos, sons, formas, texturas, cores, palavras, emoções, transformações, relacionamentos, histórias, objetos, elementos da natureza, na escola e fora dela, ampliando seus saberes sobre a cultura, em suas diversas modalidades: as artes, a escrita, a ciência e a tecnologia. (BRASIL, 2018, p.38) 39 Esse trecho é relevante para a presente pesquisa, em uma perspectiva de trabalhar as expressões artísticas, relações com a natureza e especificidades linguisticas da cultura caipira. Nos atentemos ao trecho a seguir: Por sua vez, na Educação Infantil, é preciso criar oportunidades para que as crianças entrem em contato com outros grupos sociais e culturais, outros modos de vida, diferentes atitudes, técnicas e rituais de cuidados pessoais e do grupo, costumes, celebrações e narrativas. Nessas experiências, elas podem ampliar o modo de perceber a si mesmas e ao outro, valorizar sua identidade, respeitar os outros e reconhecer as diferenças que nos constituem como seres humanos. (BRASIL, 2018, p. 40). Como pôde ser constatado no Capítulo 1 deste trabalho, a cultura caipira é rica em celebrações únicas, costumes próprios, rituais e constituem um modo de vida particular. Sendo assim, se torna relevante utilizar o tema cultura caipira no contexto do trecho selecionado. Observando o seguinte campo de experiência, proposto pela BNCC: Corpo, gestos e movimentos – Com o corpo (por meio dos sentidos, gestos, movimentos impulsivos ou intencionais, coordenados ou espontâneos), as crianças, desde cedo, exploram o mundo, o espaço e os objetos do seu entorno, estabelecem relações, expressam- -se, brincam e produzem conhecimentos sobre si, sobre o outro, sobre o universo social e cultural, tornando-se, progressivamente, conscientes dessa corporeidade. Por meio das diferentes linguagens, como a música, a dança, o teatro, as brincadeiras de faz de conta, elas se comunicam e se expressam no entrelaçamento entre corpo, emoção e linguagem. (BRASIL, 2018, p. 40) A cultura caipira pode ser abordada tanto em suas representações artísticas, que foram vistas no capítulo anterior, mais especificamente com Sant’anna (2000), quanto em uma perspectiva de apropriação de sua própria cultura pela criança. No próximo campo de experiência, temos: Traços, sons, cores e formas – Conviver com diferentes manifestações artísticas, culturais e científicas, locais e universais, no cotidiano da instituição escolar, possibilita às crianças, por meio de experiências diversificadas, vivenciar diversas formas de expressão e linguagens, como as artes visuais (pintura, modelagem, colagem, fotografia etc.), a música, o teatro, a dança e o audiovisual, entre outras. Com base nessas experiências, elas se expressam por várias linguagens, criando suas próprias produções artísticas ou culturais, exercitando a autoria (coletiva e individual) com sons, traços, gestos, danças, mímicas, encenações, canções, desenhos, modelagens, manipulação de diversos materiais e de recursos tecnológicos. Essas experiências contribuem para que, desde muito pequenas, as crianças desenvolvam senso estético e crítico, o conhecimento de si mesmas, dos outros e da realidade que as cerca. Portanto, a Educação Infantil precisa promover a participação das crianças em 40 tempos e espaços para a produção, manifestação e apreciação artística, de modo a favorecer o desenvolvimento da sensibilidade, da criatividade e da expressão pessoal das crianças, permitindo que se apropriem e reconfigurem, permanentemente, a cultura e potencializem suas singularidades, ao ampliar repertórios e interpretar suas experiências e vivências artísticas. (BRASIL, 2018, p.41) Dentro desse campo, entendemos a cultura caipira em suas representações musicais, como a moda de viola, o uso de instrumentos musicais de sua cultura, como a viola caipira e também pelo contato da criança com produções do audiovisual que representem o caipira, como “Chico Bento”, personagem de Mauricio de Souza, abordado no trabalho desenvolvido por Sant’anna (2000). No campo de experiência “Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações”, temos o seguinte trecho: Desde muito pequenas, elas procuram se situar em diversos espaços (rua, bairro, cidade etc.) e tempos (dia e noite; hoje, ontem e amanhã etc.). Demonstram também curiosidade sobre o mundo físico (seu próprio corpo, os fenômenos atmosféricos, os animais, as plantas, as transformações da natureza, os diferentes tipos de materiais e as possibilidades de sua manipulação etc.) e o mundo sociocultural (as relações de parentesco e sociais entre as pessoas que conhece; como vivem e em que trabalham essas pessoas; quais suas tradições e seus costumes; a diversidade entre elas etc. (BRASIL, 2018, p.42) Mais especificamente em “Desde muito pequenas [...] Demonstram também curiosidade sobre [...] o mundo sociocultural (as relações de parentesco e sociais entre as pessoas que conhece [...] quais suas tradições e seus costumes; a diversidade entre elas etc” existe uma confirmação sobre a relevância da cultura caipira para a Educação, como o texto diz, desde cedo a criança tem uma curiosidade natural em aprender sobre diferentes tradições, costumes e um interesse sobre a diversidade entre pessoas. Ao analisar a competência (EI02CG01) “Apropriar-se de gestos e movimentos de sua cultura no cuidado de si e nos jogos e brincadeiras.” (BRASIL, 2018, p. 47) e o trecho: Conhecer-se e construir sua identidade pessoal, social e cultural, constituindo uma imagem positiva de si e de seus grupos de pertencimento, nas diversas experiências de cuidados, interações, brincadeiras e linguagens vivenciadas na instituição escolar e em seu contexto familiar e comunitário. (BRASIL, 2018, p.38) 41 Podemos entender que ao falar sobre apropriação de gestos de sua cultura e construção da sua identidade pessoal e cultural, essa competência e esse direito de aprendizagem e desenvolvimento proposto pela BNCC inclui a criança caipira e sua cultura. Na competência (EI03CG01) da educação infantil “Criar com o corpo formas diversificadas de expressão de sentimentos, sensações e emoções, tanto nas situações do cotidiano quanto em brincadeiras, dança, teatro, música” (BRASIL, 2018, p. 47) existe a possibilidade de trabalhar a cultura caipira dentro das modas de viola, das festas juninas e outras celebrações culturais que podem ser entendidas como representações artísticas. 2.2.2 A etapa do Ensino Fundamental Na seção a seguir, analisaremos os capítulos sobre Arte, Geografia e História nos Anos Iniciais da etapa do Ensino Fundamental propostos pela BNCC. 2.2.2.1 Arte no Ensino Fundamental – Anos Iniciais Ao lermos a competência (EF15AR03) “Reconhecer e analisar a influência de distintas matrizes estéticas e culturais das artes visuais nas manifestações artísticas das culturas locais, regionais e nacionais.” (BRASIL, 2018, p. 201) podemos pensar nas representações do caipira no cinema, como os filmes de Mazzaropi, e em como essas representações influenciam as manifestações artísticas atuais. Como elemento a ser explorado em trabalhos de improvisações teatrais dentro de matrizes culturais diferentes, podemos encontrar a cultura caipira na competência (EF15AR20) de Arte no Ensino Fundamental da BNCC “Experimentar o trabalho colaborativo, coletivo e autoral em improvisações teatrais e processos narrativos criativos em teatro, explorando desde a teatralidade dos gestos e das ações do cotidiano até elementos de diferentes matrizes estéticas e culturais.” (BRASIL, 2018, p. 203). Na competência (EF15AR24) “Caracterizar e experimentar brinquedos, brincadeiras, jogos, danças, canções e histórias de diferentes matrizes estéticas e culturais.” (BRASIL, 2018, p. 203) podemos entender os elementos de danças, canções e causos contados pelo caipira, como pertencentes a essas matrizes estéticas e culturais que o texto se refere. Vejamos a seguinte competência de Arte no Ensino Fundamental: (EF15AR25) Conhecer e valorizar o patrimônio cultural, material e imaterial, de culturas diversas, em especial a brasileira, incluindo-se suas matrizes 42 indígenas, africanas e europeias, de diferentes épocas, favorecendo a construção de vocabulário e repertório relativos às diferentes linguagens artísticas. (BRASIL, 2018, p. 203) O objeto da cultura caipira tem um rico repertório para ser trabalhado dentro dessa competência, pois é uma cultura cheia de elementos únicos como música, linguagem, superstições, alimentação, celebrações e costumes, que devem ser reconhecidas e valorizadas como um patrimônio cultural brasileiro. 2.2.2.2 Geografia no Ensino Fundamental – Anos Iniciais Vejamos o seguinte trecho da BNCC: “Dessa forma, deve-se garantir aos alunos a compreensão das características naturais e culturais nas diferentes sociedades e lugares do seu entorno, incluindo a noção espaço-tempo.” (BRASIL, 2018, p. 368). Como abordado no Capítulo 1, a noção de tempo na cultura caipira é vista diferente da visão do morador citadino, pois segue o ciclo das plantações, sendo dividido em tempo das secas e tempo das águas. Tendo isso preestabelecido, é essencial que se aborde a cultura caipira como um exemplo de culturas na sociedade com diferentes noções de espaço-tempo. Lendo o trecho: Assim, é imprescindível que os alunos identifiquem a presença e a sociodiversidade de culturas indígenas, afro-brasileiras, quilombolas, ciganas e dos demais povos e comunidades tradicionais para compreender suas características socioculturais e suas territorialidades. (BRASIL, 2018, p.368) Podemos inferir que a cultura caipira, sendo parte da formação do povo brasileiro, está incluídas nos “demais povos e comunidades tradicionais” citados. Analisando o trecho: Do mesmo modo, é necessário que eles diferenciem os lugares de vivência e compreendam a produção das paisagens e a inter-relação entre elas, como o campo/cidade e o urbano/rural, no que tange aos aspectos políticos, sociais, culturais, étnico-raciais e econômicos. Essas aprendizagens servem de base para o desenvolvimento de atitudes, procedimentos e elaborações conceituais que potencializam o reconhecimento e a construção das identidades e a participação em diferentes grupos sociais. (BRASIL, 2018, p.368) Vemos que se encaixa perfeitamente no tópico cultura caipira, que tem uma relação muito grande com o campo/cidade e o rural/urbano. Brandão (1983) fala sobre a definição do caipira como o contrário do homem da cidade, sua moradia (o rural) também se define como o antônimo do urbano. 43 Dentro do proposto pela competência (EF01GE06) “Descrever e comparar diferentes tipos de moradia ou objetos de uso cotidiano (brinquedos, roupas, mobiliários), considerando técnicas e materiais utilizados em sua produção.” (BRASIL, 2018, p. 371), pode-se trabalhar as casas de taipa e palha típicas da cultura caipira, bem como objetos de seu cotidiano, como a colher de pau, forno de barro, pilão etc. Retomemos o papel primordial que as condições do solo e da água tem no cotidiano caipira, como explicitado por vários autores abordados no capítulo anterior, ao contextualizar a formação do caipira, que foi muito ligada a necessidade de itinerância, em busca de uma terra para fazer de moradia e sustento. Como também foi abordado, a água e sua relação com o solo tem um papel central em todas as instâncias da vida do caipira, visto que a seca influenciaria no sustento de toda família. Tendo isso em mente, podemos notar a relevância de se trabalhar essa cultura na seguinte competência proposta pela BNCC: “(EF02GE11) Reconhecer a importância do solo e da água para a vida, identificando seus diferentes usos (plantação e extração de materiais, entre outras possibilidades) e os impactos desses usos no cotidiano da cidade e do campo” (BRASIL, 2018, p. 373). As ideias de Brandão (1983) podem ser ricamente trabalhadas na competência (EF03GE01) “Identificar e comparar aspectos culturais dos grupos sociais de seus lugares de vivência, seja na cidade, seja no campo.” (BRASIL, 2018, p. 375), visto em que se compara a cultura caipira com a cultura citadina, dissertando sobre como uma se define no que a outra não é, no que falta na outra. A cultura caipira também está presente na competência (EF03GE02) “Identificar, em seus lugares de vivência, marcas de contribuição cultural e econômica de grupos de diferentes origens.” (BRASIL, 2018, p. 375), uma vez que temos grande influência caipira no jeito de falarmos, nas festas juninas, folia de reis, alimentação e em certas superstições. Observemos o seguinte trecho da seção de geografia da BNCC do Ensino Fundamental – Anos Iniciais: (EF04GE01) Selecionar, em seus lugares de vivência e em suas histórias familiares e/ou da comunidade, elementos de distintas culturas (indígenas, afro-brasileiras, de outras regiões do país, latino-americanas, europeias, asiáticas etc.), valorizando o que é próprio em cada uma delas e sua contribuição para a formação da cultura local, regional e brasileira. (BRASIL, 2018, p. 377) 44 Em “elementos de distintas culturas [...] valorizando o que é próprio em cada uma delas e sua contribuição para a formação da cultura local, regional e brasileira”, entendemos a cultura caipira, que contribuiu e faz parte da cultura brasileira, muito presente em algumas regiões como o interior do estado de São Paulo e com vários elementos únicos. Os caipiras, como um grupo social, são economicamente vulneráveis, como exemplificado por Ribeiro (1995), ao discorrer sobre a marginalização do caipira nas lutas pela posse de terra, na itinerância, entre outros, bem como por Candido, quando destaca que os caipiras possuem “[...] alimentação apenas suficiente para sustentar a vida; organização social limitada à sobrevivência do grupo.” (CANDIDO, 1964, p.60). Dito isso, é possível abordar a cultura caipira na competência (EF05GE02): “Identificar diferenças étnico-raciais e étnico- culturais e desigualdades sociais entre grupos em diferentes territórios.” (BRASIL, 2018, p. 379). 2.2.2.3 História no Ensino Fundamental – Anos Iniciais Entrando na seção da BNCC sobre História no Ensino Fundamental – Anos Iniciais, temos o seguinte: No 3º e no 4º ano contemplam-se a noção de lugar em que se vive e as dinâmicas em torno da cidade, com ênfase nas diferenciações entre a vida privada e a vida pública, a urbana e a rural. Nesse momento, também são analisados processos mais longínquos na escala temporal, como a circulação dos primeiros grupos humanos. Essa análise se amplia no 5º ano, cuja ênfase está em pensar a diversidade dos povos e culturas e suas formas de organização. A noção de cidadania, com direitos e deveres, e o reconhecimento da diversidade das sociedades pressupõem uma educação que estimule o convívio e o respeito entre os povos. (BRASIL, 2018, p. 404) Além da relevância da cultura caipira no tema vida urbana/rural, que já foi abordado anteriormente, podemos pensar dentro de “pensar a diversidade dos povos e culturas e suas formas de organização” a cultura caipira. Observemos o seguinte: Para evitar uma visão homogênea, busca-se observar que, no interior de uma sociedade, há formas de registros variados, e que cada grupo produz suas memórias como elemento que impulsiona o estabelecimento de identidades e o reconhecimento de pertencimento a um grupo social determinado. (BRASIL, 2018, p. 404) Em “cada grupo produz suas memórias como elemento que impulsiona o estabelecimento de identidades e o reconhecimento de pertencimento a um grupo social” podemos fazer uma ligação com a cultura caipira, mediante a ajuda de Sant’anna (2000), que 45 disserta sobre as formas de representação do caipira feitas por ele próprio, músicas que fazem a construção de memórias que, por sua vez, são um modo de se reconhecerem como membros de um grupo. Vejamos o seguinte trecho: (EF03HI03) Identificar e comparar pontos de vista em relação a eventos significativos do local em que vive, aspectos relacionados a condições sociais e à presença de diferentes grupos sociais e culturais, com especial destaque para as culturas africanas, indígenas e de migrantes. (BRASIL, 2018, p. 411) Se selecionarmos o trecho “Identificar e comparar pontos de vista em relação a eventos significativos do local em que vive”, podemos usar como exemplo a ascensão do mercado de carnes no final do séc XIX, que beneficiou os proprietários de terra destinados a pecuária, mas causou uma maior marginalização do caipira, que teve suas terras tomadas e foi obrigado a se mudar, como descrito por Ribeiro (1995). Dentro da competência (EF03HI04) “Identificar os patrimônios históricos e culturais de sua cidade ou região e discutir as razões culturais, sociais e políticas para que assim sejam considerados” (BRASIL, 2018, p. 411) existe a possibilidade de se trabalhar patrimônios da cultura caipira, como a moda de viola. Analisando competência da BNCC a seguir: (EF04HI08) Identificar as transformações ocorridas nos meios de comunicação (cultura oral, imprensa, rádio, televisão, cinema, internet e demais tecnologias digitais de informação e comunicação) e discutir seus significados para os diferentes grupos ou estratos sociais. (BRASIL, 2018, p. 413) Podemos pensar no trecho “Identificar as transformações ocorridas nos meios de comunicação [...] e discutir seus significados para os diferentes grupos” a cultura caipira como parte de um grupo que sofreu alterações com as transformações dos meios de comunicação. Na competência (EF05HI01) “Identificar os processos de formação das culturas e dos povos, relacionando-os com o espaço geográfico ocupado” (BRASIL, 2018, p. 415) podemos trabalhar a formação da cultura caipira. Tendo como objeto de estudo os moradores da região cultural da Paulistânia, podemos trabalhar o papel da cultura caipira na identidade desse povo, como proposto pela competência (EF05HI03):“ Analisar o papel das culturas e das religiões na composição identitária dos povos antigos.” (BRASIL, 2018, p. 415). 46 47 CONCLUSÕES "O teste de um povo é como ele se comporta em relação ao antigo. É fácil amar as crianças. Até tiranos e ditadores fazem questão de gostar de crianças. Mas o carinho e o cuidado com os velhos, os incuráveis, os desamparados são as verdadeiras minas de ouro de uma cultura." (Abraham Joshua Heschel) 48 Para além das definições pejorativas sobre o caipira que trazem os dicionários, o presente trabalho buscou conhecer a cultura caipira, a partir de estudos bibliográficos de alguns dos principais autores sobre o tema, como: Romildo Sant’anna, Antonio Candido, Carlos Rodrigues Brandão e Darcy Ribeiro. Com esse estudo realizado no primeiro capítulo deste trabalho, pudemos constatar que a cultura caipira é importante porque faz parte da formação e identidade do povo brasileiro. Podemos fazer um paralelismo da abordagem da dicotomia "nós e os outros" feita por Barros Laraia (2001) e algumas contribuições de Brandão (1983). Barros Laraia (2001) aborda a dicotomia "nós e os outros" como forma de expressar o sentimento etnocêntrico de se ter um tratamento melhor para aqueles que pertencem ao mesmo grupo, enquanto “o outro” recebe uma estranheza e muitas vezes manifestações xenofóbicas. Brandão (1983) cita em um determinado momento em como ao ser visto pelo homem da cidade, o caipira é definido por ser aquilo que o morador da cidade não é, a sua moradia é definida também como o que a cidade não é, sendo assim um exemplo da dicotomia “nós e os outros”. Hall (1992) aborda o conceito de identidade como uma construção feita pela relação do “eu com o mundo”, essa construção também é discutida como algo presente durante toda a vida do indivíduo, estando em constante transformação com as diferentes culturas que lhes se são apresentadas no mundo pós moderno. Tal afirmação pode ser percebido na presença da cultura caipira na formação da identidade de vários grupos sociais, seja no remanescente “r” retroflexo na fala do interior paulista, seja na culinária ou objetos presentes no cotidiano. Podemos afirmar que a influência da cultura caipira na sociedade brasileira atual passa por vários momentos do cotidiano: na culinária com o milho, a farinha, a gordura de porco e a cachaça; na solidariedade do povo brasileiro que foi descrita por Ribeiro (1995) como uma das características do convívio já nas primeiras formações do povo caipira; em objetos presentes no cotidiano brasileiro como a colher de pau; nas modas de viola que fazem parte da origem da música sertaneja atual; nas festas juninas e folias de reis; no modo de falar do interior paulista e tantos outros. O objetivo deste trabalho também foi analisar documentos base para a educação infantil e ensino fundamental 1, em busca de orientações ou menções a cultura caipira que permitissem trabalhar o tema em sala de aula. Tendo isso estabelecido, foi possível concluir que apesar do termo “caipira” não aparecer explicitamente na LDB e BNCC, a partir do entendimento do seu significado pode-se identificar elementos indiretos nesses documentos, que permitem promover práticas educativas. Para tanto, cumpre entender, de fato, o que é a cultura caipira e as 49 transformações pelas quais passou, segundo ponto de vista que leva em conta a dinâmica da cultura e os refazimentos próprios da identidade. 50 REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/SEB, 2017. Disponível on-line em: . Acesso em: 28 nov. 2022. ___. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394. 1996. Disponível em: . Acesso em: 28 nov. 2022. BIBLIOGRÁFICAS BARROS LARAIA, Roque de. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. , 2001. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os caipiras de São Paulo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. CAMPOS, J. T. de. 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