UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS E VETERINÁRIAS CÂMPUS DE JABOTICABAL Gabriel Guimarães Simões Moreira Orientadora: Profª. Drª. Karin Werther JABOTICABAL – S.P. 1º SEMESTRE DE 2022 RELATÓRIO FINAL DO ESTÁGIO CURRICULAR OBRIGATÓRIO DO CURSO DE MEDICINA VETERINÁRIA, REALIZADO JUNTO À FUNDAÇÃO PARQUE ZOOLÓGICO DE SÃO PAULO Caso de Interesse: Estase folicular em Chelydra serpentina Relatório do Estágio Curricular em Prática Veterinária apresentado à Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias, Câmpus de Jaboticabal, Unesp, para graduação em Medicina Veterinária M838r Moreira, Gabriel Guimarães Simões Relatório final do estágio curricular obrigatório do curso de medicina veterinária, realizado junto à Fundação Zoológico de São Paulo : Caso de interesse: estase folicular em Chelydra serpentina / Gabriel Guimarães Simões Moreira. -- Jaboticabal, 2022 28 p. : tabs., fotos Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Medicina Veterinária) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias, Jaboticabal Orientadora: Karin Werther 1. Chelonia. 2. Medicina Veterinária. 3. Animais silvestres em cativeiro. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias, Jaboticabal. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. 2 Sumário Introdução ............................................................ 3 Descrição das Entidades .................................... 4 Descrição das Atividades ................................... 8 Caso de Interesse .............................................. 11 Introdução ...................................................... 11 Revisão de Literatura .................................... 13 Relato de caso - Histórico ............................. 15 Materias e Métodos........................................ 16 Resultados ...................................................... 18 Considerações Finais .................................... 25 Bibliografia ......................................................... 27 3 Introdução O estágio curricular foi realizado entre 02/08/2021 e 30/11/2021 na Divisão de Veterinária do Zoológico de São Paulo e entre 01/12/2021 e 10/12/2021 no Centro de Recuperação de Animais Silvestres do Parque Ecológico do Tietê (CRAS-PET), ambos localizados na cidade de São Paulo. A Divisão de Veterinária é responsável por todos os animais do Zoológico, do Zoo Safari e do Centro de Conservação de Fauna Silvestre do Estado de São Paulo. O Zoológico de São Paulo foi escolhido para o estágio por ser um dos maiores zoológicos do Brasil, abrigando grande quantidade de animais e variedade de espécies nativas e exóticas, possibilitando o acompanhamento de uma vasta variedade de casos clínicos e cirúrgicos, necropsias e manejos de diferentes espécies. O Centro de Recuperação de Animais Selvagens do Parque Ecológico do Tietê é um Centro de Triagem de Animais Selvagens (CETAS), responsável por receber e destinar milhares de animais apreendidos pela polícia e de entrega voluntária. Devido ao grande volume de animais, foi possível acompanhar uma variedade de casos diferentes , assim como compreender melhor a função, rotina e importância de um CETAS. 4 Descrição das Entidades A Fundação Parque Zoológico de São Paulo (FPZSP), fundada em 1958, é dividida entre o Zoológico, o Zoo Safari, a Divisão de Produção Rural (conhecida como Fazenda Zoo), o Centro de Conservação de Fauna Silvestre do Estado de São Paulo (CECFAU) e o Centro de Recuperação de Animais Silvestres do Parque Ecológico do Tietê (CRAS-PET). O estágio foi realizado na Divisão de Veterinária do zoológico, Responsável pelos animais do Zoológico, do Zoo Safari e do CECFAU. Ela é localizada dentro da área do Zoológico, que se encontra inserido no Parque Estadual das Fontes do Ipiranga, o maior fragmento florestal de Mata Atlântica em área urbana na região metropolitana da cidade de São Paulo. O Zoológico e Zoo Safari ocupam uma área de 825.000 m² e abrigam mais de 2.000 indivíduos de mais de 200 espécies, além de animais de vida livre que residem na mata dentro de sua área. A divisão de veterinária conta com um centro cirúrgico (figura 1 A); uma sala para preparo cirurgico e preparo de materiais para esterilização (Figura 1 B); uma sala para pequenas intervenções cirurgicas (Figura 2); uma sala para radiografia e uma sala para análise da imagem radiográfica (Figura 3 A e B); uma sala para preparo de medicações (Figura 4); uma farmácia; um ambulatório (Figura 5); baias, recintos, caixas e gaiolas para internação; uma sala para necropsia (Figura 6) e um prédio administrativo. Existem ainda a Divisão de Ciências Biológicas, dividida entre o Programa de Enriquecimento Comportamental Animal (PECA), responsável pelo enriquecimento ambiental e condicionamento dos animais; e os setores de Répteis, Mamíferos e Aves. Eles estão situados dentro da área do Zoológico e são responsáveis pelo manejo diário dos animais do zoológico. Também estão entre suas responsabilidades levar a alimentação, reportar quaisquer alterações nos animais à divisão de veterinária, administrar medicações de animais fora da internação, trocas de recinto e de pareamento de indivíduos. O zoológico conta ainda com o Departamento de Pesquisas Aplicadas, dividido entre o Núcleo de Análises Químicas e o Núcleo de Biologia Molecular e 5 Microbiologia, que realizam todos os exames laboratoriais necessários na rotina da divisão de veterinária. O Centro de Recuperação de Animais Selvagens do Parque Ecológico do Tietê (CRAS-PET) foi fundado em 1986 e gerenciado pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica até janeiro de 2020, quando foi assumido pela FPZSP. O Centro recebe animais de apreensões, resgates e entregas voluntárias, ocorrendo mais de 12000 recebimentos anuais. Todo animal que chega no CRAS- PET será destinado à soltura, zoológicos, mantenedouros de fauna ou criadores comerciais. A estrutura do CRAS conta com um ambulatório, uma sala para internação, um centro cirúrgico, uma recepção onde ocorre o recebimento dos animais, uma sala para filhotes, uma sala aquecida para répteis, uma cozinha, um prédio adminstrativo, seis complexos de recintos e uma sala para necrópsias. 6 Figura 1 a - Sala de cirurgia do Zoológico de São Paulo, ano de 2021 Figura 1 b - Sala de preparo cirúrgico e preparo de materiais para esterilização do Zoológico de São Paulo, ano de 2021 Figura 2: Fotografia da sala para pequenas intervenções cirurgicas do Zoológico de São Paulo, ano de 2021 Figura 3: Fotografias da sala para radiografia do Zoológico de São Paulo, ano de 2021 7 Figura 3: Sala para análise da imagem radiográfica do Zoológico de São Paulo, ano de 2021 Figura 4: Sala para preparo de medicações do Zoológico de São Paulo, ano de 2021 Figura 5: Ambulatório do Zoológico de São Paulo, ano de 2021 Figura 6: Sala para necropsias do Zoológico de São Paulo, ano de 2021 Fonte: Fotografias disponibilizadas pelo Zoológico de São Paulo 8 Descrição das Atividades 1. Acompanhar e auxiliar os enfermeiros no zoológico Durante o estágio no zoológico, os estagiários auxiliam os enfermeiros a preparar as medicações orais diariamente, sendo estas discriminadas em uma tabela. Na tabela constava a identificação do paciente, a medicação e a via de administração, podendo este ser rato lactante com pelo, rato neonato, barata, grilo, carne bovina, carne suína, bolinho feito de banana amassada e ração de primata moída ou em seringas dentro de envelopes para serem colocadas pelos tratadores na dieta rotineira do animal. A preparação do alimento medicado era feita diariamente de manhã pelos enfermeiros e estagiários. Para cada animal o alimento medicado era colocado no seu pote plástico específico, devidamente identificado com nome, espécie, número de cadastro do animal e período da medicação, nos casos de medicação administrada duas vezes ao dia. Em seguida os potes eram levados aos setores pertinentes, para os tratadores levarem aos animais. No caso dos animais internados na divisão de veterinária, o alimento medicado era dado ao animal pelos tratadores da divisão ou pelos próprios estagiários. As medicações líquidas eram enviadas dentro de seringas sem agulha, protegidas dentro de envelopes etiquetados com as informações do animal e a discriminação entre “Manhã” e “Tarde”, nos casos de medicações feitas duas vezes ao dia. Estas sempre eram enviadas no dia anterior aos setores, para que pudessem ser administradas pelos tratadores na primeira alimentação do dia. Alguns procedimentos realizados diretamente nos recintos, como medicações injetáveis, alimentação por sonda, limpeza de ferimentos e troca de bandagens e curativos eram realizados apenas pelos enfermeiros, podendo ser acompanhados pelos estagiários. Todas as medicações, a partir de novas receitas dos médicos veterinários, eram registradas e atualizadas em livros pelos enfermeiros. Todas as fichas com nova prescrição eram deixadas num escaninho para os enfermeiros registrarem na agenda diariamente. 2. Acompanhar e auxiliar os médicos veterinários no zoológico 9 Nesta etapa, os estagiários acompanhavam e auxiliavam os veterinários nos atendimentos e necropsias. Abrangia todas as espécies de vertebrados, e incluía vermifugações, cirurgia de contenção de vôo, coleta de sêmen, acompanhamento de afecções crônicas, assim como emergências, cirurgias, tratamento de feridas e acompanhamento de animais na quarentena para serem introduzidos no plantel (tabelas 1 e 2). Todo animal do plantel que morria, por quaisquer razões, era necropsiado. Os estagiários também acompanhavam e auxiliavam nas necropsias. Semanalmente trocava o veterinário responsável pelas necropsias, sendo realizado um rodízio entre as três veterinárias do setor. Animais de vida livre trazidos à divisão não eram necropsiados, sendo descartados ou, no caso de primatas, entregues à polícia. 3. Atividades realizadas no CRAS-PET No CRAS-PET, a contenção dos animais e a aplicação de medicações nos animais internados era de responsabilidade dos estagiários. Nesse momento também eram realizadas as reavaliações de animais cujo tratamento havia encerrado, sendo realizadas por um veterinário junto aos estagiários. O paciente que estivesse de alta era transferido à um recinto adequado, onde aguardava ser destinado e liberado para o transporte. A soltura no recinto era realizada pelos estagiários. A rotina do restante do dia dependia da chegada/entrega de novos animais, que variava bastante. Os animais, levados pela polícia ou por civis, eram registrados na chegada. Para cada animal era feita uma ficha detalhada,os animais eram avaliados, identificados, mamíferos e répteis microchipados e as aves anilhadas. Caso o animal já fosse anilhado, verificava-se a legitimidade dessa anilha e, no caso de adulteração, ela era removida. Após o recebimento, os animais passavam por uma triagem para determinar seu estado de saúde, e caso não precisassem de internação no setor de Veterinária eram levados aos recintos onde permaneciam até o seu momento de envio à destinação adequada. 10 Tabela 1. Relação de número de procedimentos veterinários por classe animal acompanhados pelo estagiário entre 02/08/21 e 30/11/21 no zoológico de São Paulo Classe\Procedimento Clínico Cirúrgico Necropsia Total Mamíferos 35 11 0 46 Répteis 49 3 4 56 Aves 32 22 6 60 Anfíbios 9 0 8 17 Total 125 36 18 179 Tabela 2. Relação de número de exames de imagem por classe animal acompanhados pelo estagiário entre 02/08/21 e 30/11/21 no zoológico de São Paulo Exame\Classe Mamíferos Répteis Aves Anfíbios Total Radiografia 11 5 21 1 38 Ultrassonografia 6 7 4 0 17 Eletrocardiograma 3 0 0 0 3 Total 20 12 25 1 58 11 Caso de Interesse Estase folicular em Chelydra serpentina Introdução O caso de interesse escolhido foi um caso de estase folicular pré-ovulatória em uma tartaruga mordedora (Chelydra serpentina)(Figura 7). A estase folicular é uma condição onde folículos são produzidos pelos ovários mas não ocorre ovulação, ocorrendo acúmulo destes nos ovários (Hedley, 2016). A etiologia não é completamente compreendida, mas há relação com erros de manejo levando à falta de estímulos sociais e ambientais para ovulação (Hedley, 2016) e é uma condição mais comum em lagartos, mas que ocorre com frequência em quelônios e serpentes (Sykes, 2010). A tartaruga em questão, uma fêmea cujo nome no zoológico é “Boquinha”, de cadastro número 26758, idade entre 25 e 27 anos e 4,6 quilos, tem uma fratura antiga de mandíbula, histórico de cáseos e ausência de membro pélvico direito, amputado por necrose decorrente de agressão das outras tartarugas do recinto. Esse caso foi escolhido por ter sido acompanhado do primeiro atendimento até a alta do animal e por ter sido um caso completo, tendo sido utilizadas diversas ferramentas para o diagnóstico e tratamento. 12 Figura 7: Exemplar de Chelydra serpentina no Parque Estadual de Taum Sak Mountain, Missouri. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File :Common_Snapping_Turtle_Close_Up.jp g Figura 8 a: Recinto das Chelydra serpentina em exposição no Zoológico de São Paulo, no ano de 2021. Fonte: Disponibilizada pelo Zoológico de São Paulo Figura 8 b: Recinto das Chelydra serpentina em exposição no Zoológico de São Paulo, no ano de 2021. Fonte: Disponibilizada pelo Zoológico de São Paulo 13 Revisão de Literatura Chelydra serpentina (Linnaeus, 1758), de nome comum “Tartaruga Mordedora”, é uma espécie da classe Reptilia, ordem Testudines, família Chelydridae. É uma das três espécies que compõem o gênero Chelydra (Rhodin, Anders G.J et al, 2017). Ocorre naturalmente no leste do Canadá e dos Estados Unidos, e apresenta populações introduzidas em regiões dos Estados Unidos, no Japão, China e Taiwan (Rhodin, Anders G.J et al, 2017). Essa espécie apresenta maior abundância em lagoas pequenas, com fundo lamacento rico em substrato orgânico e ausência de jacarés-norte-americanos, um de seus únicos predadores (Aresco & Gunzburger, 2007). Tartarugas mordedoras são onívoras oportunistas, com uma dieta generalista que pode incluir plantas aquáticas, moluscos, anfíbios, lesmas, sanguessugas, peixes, tartarugas, cobras, pequenos mamíferos e aves (Nakama, 2014). Tartarugas dessa espécie apresentam um comportamento pós alimentação único, frequentemente se enterrando em substrato lamacento ao invés de procurar locais com temperaturas mais altas, tendo uma estratégia digestiva que não depende de temperatura para acelerar as funções metabólicas. Essa estratégia prolonga a digestão, reduzindo o tempo gasto em busca de alimento e conservando energia, além de evitar predadores (Nakama, 2014). Há uma relação de mutualismo entre populações de tartarugas mordedoras e tartarugas pintadas (Chrysemys picta), havendo correlação positiva entre suas populações. A tartaruga mordedora fornece alimento para a espécie menor na forma de algas e sanguessugas que se prendem à sua pele e casco, e por sua vez a remoção dos parasitas e excesso de algas beneficia a tartaruga mordedora (Nakama, 2014). A maturidade sexual em Chelydra serpentina se dá em torno de 145mm de comprimento de casco. A idade associada à esse tamanho pode variar dependendo de região e clima de onde o indivíduo está. Um estudo no Michigan (Congdon et al, 1987) descobriu que a fêmea reprodutivamente madura mais jovem da população estudada tinha 12 anos, enquanto outro estudo em Iowa estimou a idade reprodutiva 14 mínima em fêmeas em 8 a 9 anos, e 5 anos em machos (Christiansen e Burken, 1979). A estação reprodutiva ocorre primariamente na primavera, coincidindo com o fim da hibernação. As fêmeas da espécie podem fazer longas migrações para criação de ninhos, já tendo sido registradas migrações de mais de 5 quilômetros. Os substratos preferidos para a criação de ninhos são vegetação apodrecida, solo arenoso e tocas de roedores (Nakama, 2014). Em quelônios, a foliculogênese geralmente se inicia com uma produção aumentada de estrogênio que estimula a produção de vitelogenina no fígado. Ocorre então a produção da gema, que é levada do fígado aos oócitos pela corrente sanguínea (Sykes, 2010). A estase folicular é mais comum em lagartos, mas também ocorre com frequência em tartarugas. Pode ser causada por nutrição inapropriada ou condições ambientais, entre outros. Folículos que não ovulam ou regridem podem se tornar necróticos e levar à progressão para celomite por gema. Sinais clínicos podem incluir anorexia e letargia, níveis elevados de cálcio, albumina, proteína total e fosfatase alcalina, com anemia, leucopenia e heteropenia (Sykes, 2010). O diagnóstico pode ser feito por ultrassonografia para demonstrar a presença de folículos não ovulados retidos nos ovários (Sykes, 2010). Folículos normais não- ovulados são esféricos, homogêneos e hiperecogênicos em quelônios, enquanto folículos atróficos são heterogêneos com áreas hipoecogênicas e anecogênicas (Gumpemberger, 2017). Folículos retidos podem se tornar friáveis e se romper levando à celomite por gema, assim fluido livre na cavidade é uma indicação de agravamento do processo (Gumpemberger, 2017). A etiologia exata da estase folicular não é totalmente compreendida mas está frequentemente associada à problemas de manejo, levando à uma ausência de estímulos sociais ou ambientais que causariam as flutuações hormonais que levam à ovulação (Hedley, 2016). É recomendado que se realize ovariectomia bilateral para tratamento. Deve-se examinar o fígado, pois lipidose hepática é uma complicação comum. O prognóstico é bom caso não ocorra dano excessivo ao fígado (Rowland, 2016). 15 Relato de caso - Histórico O indivíduo em questão, a tartaruga mordedora de nome “Boquinha” e cadastro de número 26758, apresenta os dados registrados em fichas no zoológico desde 2008, quando já era adulta. De acordo com os registros encontrados nasceu entre 1995 e 1997. Apresenta fratura não consolidada antiga na mandíbula, que não aparenta causar desconforto para o animal. A ocorrência da fratura foi anterior ao caso relatado e não consta nas fichas. Foi atendida em 2008 em razão de pododermatite, e em 2008, 2015 e 2016 por agressão de outras tartarugas do recinto. Em 2016, a mordedura levou à perda do membro pélvico direito. A locomoção e comportamentos naturais não foram comprometidos. Em 2019, foi atendida em razão de lesão abrasiva no membro amputado devido à atrito com o chão e foi feito um salto de resina para evitar o contato do membro amputado com o chão, não havendo mais lesões similares após o procedimento. Em 2020 foi atendida devido à um abcesso subcutâneo. Desde 2008 nota-se presença intensa de algas no casco do animal. Em todos os atendimentos citados, o animal se encontrava ativo, alerta e agressivo, como é esperado de uma Chelydra serpentina. O caso relatado se iniciou com um atendimento no dia 02/08/2021, quando o paciente foi levado à divisão de veterinária pela recidiva de um abcesso na região femoral caudal. 16 Materias e Métodos O paciente era uma fêmea da espécie Chelydra serpentina, de cadastro número 26758, idade entre 25 e 27 anos, 4,6 quilos e comportamento alerta mas menos agressivo do que o normal. Foram examinadas outras 4 fêmeas da mesma espécie com o intuito de realizar transfusão sanguínea para a paciente 26758, tendo sido realizado uma ultrassonografia e um hemograma em cada uma, no dia 06/08. Ao longo do caso, foram realizados quatro exames hematológicos, três radiografias, duas ultrassonografias e uma tomografia computadorizada. Todos os exames citados foram realizados com a paciente em contenção física. Foi realizada coleta de sangue do indivíduo 26784, a mais apta das Chelydra serpentina examinadas, com idade similar e 8 quilos. Foi realizada contenção química com quetamina (30mg/kg) e midazolam (2mg/kg), e administrou-se propofol (2mg/kg) durante o procedimento. Coleta de 20mL de sangue foi bem sucedida, e utilizou-se flumazenil (0,05mg/kg) para reversão anestésica. No mesmo dia da coleta, realizou-se a transfusão e procedimento cirurgico. Foi realizado acesso venoso jugular para transfusão dos 20mL de sangue coletados do indivíduo 26784, com auxílio de bomba de infusão. A técnica realizada foi a ovariosalpingohisterectomia, com acesso femoral bilateral. A anestesia foi feita com uso de quetamina (30mg/kg), midazolam (0,5mg/kg) e propofol (5mg/kg). Ao final do procedimento utilizou-se flumazenil (0,05mg/kg) como reversor. No primeiro atendimento foi receitada ceftazidima intramuscular a cada três dias, 22mg/kg, por cinco aplicações, e após o término dessa receitou-se nebulização com gentamicina uma vez ao dia por dez dias, utilizando 0,2mL de gentamicina a cada 6mL de soro fisiológico. Após o procedimento cirurgico foram receitados ceftazidima a cada três dias por cinco aplicações, 22mg/kg, meloxicam 0,2mg/kg uma vez ao dia por três dias e aplicação de sulfadiazina de prata na lesão cirúrgica, uma vez por semana durante três semanas. 17 Acontecimentos em ordem cronológica: 02/08/2021 – Atendimento Inicial, radiografia e hemograma, início da prescrição de ceftazidima 06/08/2021 – Ultrassonografia e avaliação ultrassonográfica das possíveis doadoras de sangue 16/08/2021 – Segunda radiografia e início da prescrição de nebulização com gentamicina 20/08/2021 – Tomografia computadorizada 22/08/2021 – Terceira radiografia 13/09/2021 – Segunda ultrassonografia e hemograma 14/09/2021 – Transfusão de sangue e intervenção cirurgica 15/09/2021 – Início da prescrição de ceftazidima, meloxicam e kuraderm pós cirurgicos, avaliação dos folículos retirados 20/09/2021 – Terceiro hemograma 22/10/2021 – Quarto hemograma 18 Resultados No primeiro atendimento, o exame hematológico apresentou eritrócitos em 0,13x106µL, hemoglobina com leitura abaixo do limite inferior do equipamento, não sendo possível a leitura e hematócrito 9%, constatando-se anemia grave. Os parâmetros utilizados foram de Macroclemys temminckii, uma espécie taxonomicamente próxima, sendo 0,27 – 0,55 x106µL para eritrócitos, hemoglobina 4,2g/dL e 15% – 41% de hematócrito (ISIS 2013). Na radiografia (Figura 8 A, B e C) constatou-se opacificação dos campos pulmonares e cavidade celomática homogênea difusa e à ultrassonografia (Figura 9 A, B e C), detectou-se a presença de diversos folículos de tamanhos variados, sendo alguns de aspecto hiperecogênico homogêneo e outros com contorno hiperecogênico e conteúdo anecogênico, indicando degeneração folicular. O fígado estava hiperecogênico, indicando lipidose. O diagnóstico foi de estase folicular com pneumonia secundária. Com base nestes resultados, decidiu-se que seria necessário realizar intervenção cirurgica para a estase folicular e transfusão de sangue para a anemia, o que seria muito arriscado sem que a pneumonia fosse tratada antes. Assim foi receitado tratamento para a pneumonia. Examinou-se as candidatas a doar sangue para a paciente, e a mais apta foi a tartaruga mordedora de cadastro número 26784. Ao final do tratamento inicial para pneumonia, repetiu-se a radiografia e não se constatou mudança. Iniciou-se outro tratamento e foi marcada tomografia computadorizada para confirmar o diagnóstico. Na tomografia (Figura 10), não se encontrou evidência de pneumonia. Repetiu- se então a radiografia e não havia diferença das últimas, concluindo-se que a opacificação é por provável sobreposição de órgãos e folículos ao pulmão, devido ao grande número de folículos na cavidade. 19 Foi então marcado o procedimento cirurgico, e realizados hemograma e ultrassonografia pré cirurgicos. Ambos exames obtiveram resultados similares aos iniciais. No dia do procedimento, a coleta de sangue do indivíduo 26784 foi bem sucedida. A paciente 26758 foi levada à clínica particular para a cirurgia (Figura 11 A, B e C), na qual não houveram intercorrências, e receitou-se tratamento pós cirurgico usual. Foi realizada coleta de sangue para reavaliação pós cirurgica, resultando em hematócrito em 22%, eritrócitos em 0,25x106µL e hemoglobina em 1,6g/dL. Após um mês da cirurgia, o animal foi reavaliado. Constatou-se ótima evolução pós operatória, com a paciente mais ativa e mais agressiva, se alimentando normalmente e apresentando comportamentos normais da espécie. Foi realizada contenção física para coleta de sangue. O animal se encontrava perceptivelmente mais forte. Nos resultados, eritrócitos estavam em 0,38x106µL, hemoglobina em 6,6g/dL e hematócrito em 27%, demonstrando melhora significativa no quadro com todos os parâmetros dentro da normalidade (Quadro 1). 20 Quadro 1 – Resultados dos exames hematológicos da Chelydra serpentina 26758 do zoológico de São Paulo no ano de 2021 e comparação com parâmetros utilizados Figura 9 a: Exame radiográfico da Chelydra serpentina de cadastro 26758 do Zoológico de São Paulo, realizado no dia 02/08/2021, na posição látero-lateral. Nota-se os pulmões opacificados (seta amarela) e a cavidade celomática homogênea difusa (seta vermelha). Dia da coleta de amostra Valores de Referência (Macroclemys temminckii) (ISIS 2013) Parâmetro Hematológico 02/08 13/09 20/09 22/10 Eritrócitos (µL) 0,13x106 0,16x106 0,25x106 0,38x106 0,27 – 0,55 x106 Hemoglobina (g/dL) - - 1,6 6,6 4,2g/dL Hematócrito (%) 9 9 22 27 15% – 41% a 21 Figura b: Exame radiográfico da Chelydra serpentina de cadastro 26758 do Zoológico de São Paulo, realizado no dia 02/08/2021, na posição dorso-ventral. Nota-se a cavidade celomática homogênea difusa (seta vermelha). Figura 8 c: Exame radiográfico da Chelydra serpentina de cadastro 26758 do Zoológico de São Paulo, realizado no dia 02/08/2021, na posição cranio-caudal. Nota-se os pulmões opacificados (seta amarela). Figura 9 a: Exame ultrassonográfico da Chelydra serpentina de cadastro 26758 do Zoológico de São Paulo, realizado no dia 06/08/2021. Evidencia-se presença de diversos folículos de tamanhos variados, sendo alguns de aspecto hiperecogênico homogêneo (seta amarela) e outros com b c a 22 contorno hiperecogênico e conteúdo anecogênico (seta vermelha). Figura 9 b: Exame ultrassonográfico da Chelydra serpentina de cadastro 26758 do Zoológico de São Paulo, realizado no dia 06/08/2021. Evidencia-se presença de diversos folículos de tamanhos variados, sendo alguns de aspecto hiperecogênico homogêneo (seta amarela) e outros com contorno hiperecogênico e conteúdo anecogênico (seta vermelha). Figura 10 c: Exame ultrassonográfico da Chelydra serpentina de cadastro 26758 do Zoológico de São Paulo, realizado no dia 06/08/2021. Evidencia-se o fígado hiperecogênico (seta vermelha). b c 23 Figura 11: Tomografia computadorizada da Chelydra serpentina de cadastro 26758 do Zoológico de São Paulo, realizado no dia 20/08/2021. Os pulmões estão normais, sem evidência de pneumonia (seta amarela). Figura 11 a: Fotografias da intervenção cirurgica realizada na Chelydra serpentina de cadastro 26758 do Zoológico de São Paulo, no dia 14/09/2021. Foram realizadas transfusão sanguínea (A) e ovariosalpingohisterectomia por acesso femoral bilateral (B), sendo o procedimento bem sucedido e os ovários e folículos (C) retirados com sucesso. a 24 Figura 11 b: Fotografias da intervenção cirurgica realizada na Chelydra serpentina de cadastro 26758 do Zoológico de São Paulo, no dia 14/09/2021. Foram realizadas transfusão sanguínea (A) e ovariosalpingohisterectomia por acesso femoral bilateral (B), sendo o procedimento bem sucedido e os ovários e folículos (C) retirados com sucesso. Figura 11 c: Fotografias da intervenção cirurgica realizada na Chelydra serpentina de cadastro 26758 do Zoológico de São Paulo, no dia 14/09/2021. Foram realizadas transfusão sanguínea (A) e ovariosalpingohisterectomia por acesso femoral bilateral (B), sendo o procedimento bem sucedido e os ovários e folículos (C) retirados com sucesso. Fonte: Disponibilizadas pelo Zoológico de São Paulo b c 25 Considerações Finais O caso apresentado demonstra um tratamento bem sucedido de estase folicular pré-ovulatória e transfusão de sangue em um quelônio. Através dos hemogramas, pode-se notar a melhora dos parâmetros do indivíduo até voltarem à normalidade. A observação do comportamento e atividade do animal, embora mais subjetiva, também demonstrou aparente melhora, tanto em força física e energia, quanto no comportamento, voltando à agressividade esperada da espécie. Entretanto, também foi demonstrada a necessidade de maiores pesquisas sobre a fisiologia da espécie. Nota-se a necessidade de utilização de parâmetros sanguíneos de Macroclemys temminckii, que embora seja uma espécie taxonomicamente próxima à Chelydra serpentina pode, possivelmente, apresentar diferenças significativas nos parâmetros fisiológicos. Como citado previamente, a etiologia da estase folicular pré-ovulatória não é completamente esclarecida. No entanto, sabe-se que há relação entre a afecção e erros de manejo. Revendo a biologia e ecologia da espécie e relacionando-a ao recinto onde as tartarugas mordedoras se encontram no zoológico de São Paulo (Figura 12 A e B), percebe-se a ausência de substrato lamacento ou arenoso no fundo do tanque, impossibilitando que os animais se enterrem como fazem na natureza. Isso e o espaço e ambiente restritos do recinto podem dificultar a regulação térmica dos animais. Ao mesmo tempo, esse substrato é utilizado para nidificação na natureza, e sua ausência pode resultar em menos estímulos ovulatórios. A ausência do membro pélvico direito, por sua vez, pode também dificultar a criação do ninho pelo indivíduo, sendo os membros pélvicos normalmente utilizados para cavar o ninho. Esses fatores, em conjunto, podem ter causado ou contribuido para o desenvolvimento da afecção na tartaruga 26758, e nos outros indivíduos que dividem o recinto com ela. 26 Em relação ao tratamento, a intervenção cirúrgica foi bastante descrita na literatura e seu sucesso nesse caso aponta para esses mesmos resultados. Devido à dificuldade na detecção da afecção, o animal foi diagnosticado já em um estado avançado, sendo então necessária a transfusão de sangue como suporte para que o animal tivesse mais chances de sobreviver. Em conclusão, os tratamentos da estase folicular pré-ovulatória estão bem embasados e definidos na literatura, mas sua etiologia ainda não é tão esclarecida. A melhoria do recinto e manejo de Chelydra serpentina no zoológico de São Paulo pode ser um grande passo a se tomar para evitar que o mesmo problema ocorra no futuro, e mais estudos sobre a fisiologia normal da espécie podem ajudar muito na detecção e acompanhamento de problemas de saúde nesses animais. 27 Bibliografia 1. Hedley, J.. Reproductive diseases of reptiles. In Practice, London, England, v. 38, p. 457-462, 2016. 2. Sykes J.M. 4th. Updates and practical approaches to reproductive disorders in reptiles. Veterinary Clinics of North America: Exotic Animal Practice, Philadelphia, USA, v. 13, n. 3, p. 349-373, 2010. 3. Rhodin, Anders G.J.; Inverson, John B.; Roger, Bour; Fritz, Uwe; Georges, Arthur; Shaffer, H. Bradley; van Dijk, Peter Paul. Turtles of the world, 2017 update: Annotated checklist and atlas of taxonomy, synonymy, distribution, and conservation status. 8th Ed.. USA: Chelonian Research Foundation and Turtle Conservancy, 2017. p. 25. 4. Aresco, Matthew J., e Margaret S. Gunzburger. Ecology and Morphology of Chelydra Serpentina in Northwestern Florida. Southeastern Naturalist, Maine, USA, v. 6, n. 3, p. 435-448, 2007. 5. Nakama, Rylen. The Common Snapping Turtle, Chelydra Serpentina. PDF. Seattle, Washington: Aquatic Invasion Ecology (FSH 423). 2014. 6. Congdon, Justin D., Breitenbach, G. L., Van Loben Sels, R. C. e Tinkle, D. W.. Reproduction and nesting ecology of Snapping Turtles (Chelydra serpentina) in southeastern Michigan. Herpetologica, Kansas, USA, v. 43, n. 1, p. 39-54, 1987. 7. Christiansen, James L., e Russell R. Burken. Growth and Maturity of the Snapping Turtle (Chelydra Serpentina) in Iowa. Herpetologica, Kansas, USA, v. 35, n. 3, p. 261-266, 1979. 28 8. Gumpenberger M.. Diagnostic Imaging of Reproductive Tract Disorders in Reptiles. Veterinary Clinics of North America: Exotic Animal Practice, Philadelphia, USA, v. 20, n. 2, p. 327-343, 2017. 9. Rowland, M.. Common conditions of reptiles. In Practice, London, England, v. 38, p. 11-22, 2016. Introdução Descrição das Entidades Descrição das Atividades Caso de Interesse Introdução Revisão de Literatura Relato de caso - Histórico Materias e Métodos Resultados Considerações Finais Bibliografia