UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Campus de São Paulo PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES – IA/UNESP JOSIANE RODRIGUES LIMA Para além do tambor, O poder das palavras: A escrita feminina e a formação da identidade das mulheres negras do Bloco Ilú Obá de Min. São Paulo 2022 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Campus de São Paulo PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES – IA/UNESP JOSIANE RODRIGUES LIMA Para além do tambor, O poder das palavras: A escrita feminina e a formação da identidade das mulheres negras do Bloco Ilú Obá de min. Dissertação submetida à UNESP – Universidade Estadual Paulista, como requisito parcial exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, para a obtenção do título de Mestre em Artes. Área de concentração: Arte e Educação. Linha de Pesquisa: Processos artísticos, experiências educacionais e mediação cultural. Orientadora: Prof. Dra. Luiza Helena da Silva Christov São Paulo 2022 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. L732p Lima, Josiane Rodrigues, 1988- Para além do tambor, o poder das palavras: a escrita feminina e a formação da identidade das mulheres negras do bloco Ilú Obá De Min / Josiane Rodrigues Lima. - São Paulo, 2022. 89 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Luiza Helena da Silva Christov Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Artes e sociedade. 2. Negras. 3. Mulheres - Identidade. 4. Feminismo e arte. I. Christov, Luiza Helena da Silva. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 700.103 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 LIMA, Josiane Rodrigues. Para além do tambor, o poder das palavras: A escrita feminina e a formação da identidade das mulheres negras do bloco Ilú Obá de Min. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da UNESP para obtenção do título de Mestre em Artes. Aprovada em: 21 de outubro de 2022. Banca Examinadora 1. Profa. Dra. LUIZA HELENA DA SILVA CHRISTOV – Orientadora - Professora Voluntária / Instituto de Artes da Unesp 2. Profa. Dra. CARMINDA MENDES ANDRE Professora Voluntária / Instituto de Artes da Unesp 3. Profa. Dra. ADRIANA FRIEDMANN Pesquisadora / Independente A palavra que me move Aos orixás que me sustentam E ao meu filho que tem tanto o que trilhar. Agradecimentos “Asé Orixá Lenu mi o” A palavra que me move pode alterar o mundo. Sou meio Manoel de Barros quando falo do encanto que a palavra causa em mim, das possibilidades que ela me mostra, os caminhos que ela é capaz de abrir e o futuro todinho presente nela. Acreditar na minha palavra foi o que me trouxe aqui, acreditar no que eu tenho a dizer é o que me faz hoje escrever esse agradecimento. E não foi fácil, sendo eu uma mulher negra no Brasil, nascida no findar dos anos 80, vivi e encarei muitas coisas para ser quem sou hoje. Nem sempre acreditar foi uma tarefa que eu conseguia cumprir, as vezes a sobrevivência vinha antes me tirando o chão e os caminhos possíveis, mas sabe, liberdade é que nem água, caça jeito e encontra caminho, e o meu caminho veio assim, através da palavra e da criação de mundos por meio dela. Sendo de candomblé como sou, preciso então iniciar esse agradecimento com quem veio primeiro, com a própria palavra no mundo que é Exú. Laroyê por todos os caminhos abertos e por transformar o erro em acerto! Acredito que foi ele quem potencializou minha palavra e me levou até Luiza Christov, minha orientadora, essa luz no mundo, que assim como eu é crente na palavra-magia, ela me orientou nesses caminhos com afeto e precisão, ela acreditou na minha palavra e transformamos mundos juntas, muito Obrigada, Lu! Claro que Luiza não vem só, no nosso grupo de estudos encontrei alento para as dúvidas e força nas palavras dos meus colegas que creem na potência da palavra tanto quanto eu, não vou citar todos os nomes mas preciso mencionar Cristiane Rogério, mulher de potência e doçura, hoje já mestre, com quem compartilhei angustias e alegrias, admirei (e admiro cada vez mais) e fui admirada em muitos momentos; e Felipe Michelini, todo meu amor e respeito pra ti, sempre e sempre. Ao Matheus e seu processo de adolescer e de me permitir ser sua mãe e companheira de jornada, você é, meu filho, meu grande amor. A minha família, D. Nilza, Sr.José e meu irmão, Gui, a base, de onde eu venho e que mesmo não entendendo tudo o que eu faço e que tanto eu estudo, seguem indo a apresentações e se emocionando junto comigo a cada vitória, a cada riso, a cada novidade. Eu amo vocês. Quando ainda estava tudo no campo das ideias eu ganhei o empurrãozinho e uma ajuda imensa da Juliana dos Santos, me auxiliando para preencher meu Lattes, mas não só isso, também uma oferta de afeto e colo, junto com ela, muitas trocas foram feitas com a Mirella Maria, elas abriram os caminhos na Unesp, abriram espaço, ainda bem, obrigada! Ao Ilú Obá de Min. Foi através dessas mulheres que vivi tantas coisas, foi através dessas mulheres que entendi o poder da minha palavra, o poder de ser mulher, o poder de ser criativa, plena e não estar só então agradeço a nossa presidenta, Beth Beli, agradeço à Girlei, nossa grande mestra, a Nega Duda e toda sua sabedoria. Entre todas as mulheres que tocam neste lindo espaço de resistência, também agradeço as que caminharam comigo e me ajudaram a tornar possível essa escrita: Raquel Santos, Daiane Pettine, Cris Blue, Maíra Berutti, Bia Carmo, Aline Mariano, Joana Cortês, só para citar algumas. Dentro de mim e do meu coração tem tantas outras que não caberiam aqui, quem é sabe. Já no finzinho do percurso, quando eu já estava cansada, e achando que a melhor ideia era desistir, um gás e um respiro apareceram para encher meus pulmões e caminhar comigo, agradeço a compreensão, as leituras, ao companheirismo, aos palpites e por entrelaçar os dedos aos meus, Bruno, meu companheiro, Oxóssi que caminha comigo além do que me guia. Aos orixás e sua imensa sabedoria e bondade de me guiar, me acolher e me ensinar também sobre a beleza de se viver em comunidade, com felicidade e gratidão, logo, agradeço ao meu Pai de Santo, Professor Sidnei Nogueira de Xangô e a toda a minha família, Ccrias onde encontro os meus, que me acolhem e me ensinam, com um beijo especial na Iyaroba Mãe Suelena de Yemonjá e todo poder feminino que a cerca. As amigas da pós na Casa tombada, que antecedeu este mestrado, por acreditarem sempre em mim, por e movimentarem junto a mim, Rebeca, Janete, Janaína, Roberta, Isis, Marilia e Aline. Seguimos juntas. Gratidão, como diz o meu pai, Sidnei de Xangô, é um grande Ebó e o faço com o coração nos dedos e toda a magia que as boas palavras e boas trocas tem em si. Devo ter esquecido nomes, mas o tamanho da minha gratidão não tem fim. Axé, axé, axé! Resumo Josi Lima é como eu sempre me apresento apesar do meu nome ser um pouco mais longo. É a minha voz, ou melhor, as minhas palavras que se seguem na pesquisa que você vai ler, são as minhas experiências entrelaçadas a experiencias de outras mulheres do bloco afro Ilú Obá de Min. As conversas que se seguem falam sobre como este Coletivo de mulheres atua na formação das identidades negras que habitam o bloco, como essas mulheres vivem essa experiência de fazer parte deste coletivo. Para essa investigação/descoberta, foram-me enviadas cartas por algumas delas, nessas cartas, essas mulheres falaram de suas experiências, suas impressões e como o bloco atuou na vida delas entre os anos 2019 e 2022. Nessas conversas eu descobri um tanto imenso de mim, entre as cartas dessas mulheres com quem conversei pude perceber os atravessamentos e experiências que o bloco proporciona e que podem ser individuais ao mesmo tempo que são coletivos, mas tudo isso é só o começo de uma reflexão. Palavras-chave: Identidade negra; Mulheres; Coletivos culturais; Arte-educação; Direito a escrita, Escrevivência. Abstract I introduce myself to people as Josi Lima, although my full name is a bit longer. This research expresses my voice, or rather my words, my experiences interweaved with the experiences of other women composing the Afro-Brazilian carnival group Ilú Obá de Min. The conversations herein describe how that female collective helps people forge Black identities, how those women live the experience of being part of this collective. This investigation/finding was based on letters sent to me by some of those women, in which they talked about their experiences, impressions and how the carnival group has influenced their lives between 2019 and 2022. Through these conversations, I discovered so much about me. Reading the letters sent by these women to whom I talked, I could realize the individual and at the same time collective intersections and experiences provided by the carnival group. However, this research is only the beginning of a reflection. Key words: Black identity; Women; Cultural groups; Art-education; The right to write, Escrevivência (to write about one’s own experiences). SUMÁRIO 1. QUE RUFEM OS TAMBORES ............................................................................................. 10 2. DO PULSAR DO CORAÇÃO AO PULSAR DOS TAMBORES ...................................................... 12 2.1 QUE TAMBORES SÃO ESSES? ........................................................................................ 26 3. QUEM SEGUE ESSE CORTEJO .......................................................................................... 30 3.1 O CORTEJO .................................................................................................................. 35 4. NOSSO AFETO É POTÊNCIA: O LIVRO OU UMA FORMA DE VER O MUNDO. ............................. 41 4.1 ILÚ OBÁ, UM CORPO ENCANTADO E (ALGUMAS DE) SUAS HISTÓRIAS. ................................ 51 4.1.1 BIA CARMO ............................................................................................................... 52 4.1.2 ALINE OLIVEIRA ......................................................................................................... 57 4.1.3 MAÍRA BERUTTI ......................................................................................................... 61 4.2 ENCERRANDO O CORTEJO: ILÚ OBÁ DE MIN É QUILOMBO URBANO. .................................. 68 5. ANEXOS OU: O QUE MAIS PODE TER POR AQUI.................................................................. 74 5.1 AUTORIZAÇÕES ............................................................................................................ 80 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................... 83 10 1. Que rufem os tambores Laroyê Uma das sabedorias passadas de forma oral nos terreiros brasileiros é que para tocar os tambores, aqueles que tem a pele de algum animal sobre ele para ser repercutido, usa-se o fogo para afiná-lo. Estamos, agora, neste texto iniciando um cortejo, uma apresentação. Para que os olhos e ouvidos estejam prontos para serem tocados, usaremos as palavras da poeta e integrante do Ilú Obá de Min, Joana Cortês, como o fogo, preparando o terreno, para dançar ao ritmo, firmar o ponto e, claro, aquecer o couro do tambor e do coração. Importante dizer que esta dissertação é um texto que dança, uma escrita livre e brincante, portanto, enquanto aquece os tambores, dispa-se também da escrita acadêmica sem movimento ou som. Uma nação de mulheres de vermelho Soem os sinos do mundo porque são nossas as boas notícias que daremos: Toda criança nascerá em casa e pelas nossas próprias mãos Sairá fogo do ferro Quando uma de nós sucumbir Uma nação de mulheres vestidas de vermelho se levantará juntas e ao mesmo tempo para lutar. Nossas armas tomarão cada praça esquina quarteirão bairro cidade país continente nação Faremos a travessia Os olhos atentos ao negrume da noite O faro aceso adentro da mata O agogô saúda e reverenda Com a espada de Ogum na mão 11 Tocamos Ombro a ombro Para iniciar os trabalhos e abrir os caminhos Para fazer chegar do Ayê ao Orum Hoje, o desejo do tilintar bem alto dos ferros: Que nunca nos faltem a flecha ao peito um pedaço de tronco de árvore e uma pele de cabra Sem o qual, não se é nada! Para que o couro da nossa mão orquestre sempre os tambores do mundo E a nossa Ópera Negra ocupe os ouvidos das que estão vivas celebre a história das nossas ancestrais e coroe as nossas cabeças com a benção de Oxum e o pano imenso branco cheirando a pemba de Oxalá. Joana Côrtes p.34-35 12 2. Do pulsar do coração ao pulsar dos tambores Escrevo sobretudo para aquelas mulheres que não falam, que não verbalizam, porque elas, nós, estamos aterrorizadas, porque fomos ensinadas a respeitar mais o medo que a nós mesmas. Audre Lorde, p 79 Eu sou a Josiane, mas prefiro ser chamada de Josi. Mulher negra, mãe, candomblecista, formada em letras, pós-graduada em histórias e culturas afro- brasileiras e indígenas para educação, que exerce, atualmente, a profissão de Professora concursada em uma escola pública em São Paulo. Sou, também, integrante do bloco afro Ilú Obá de Min a 7 anos. Faço parte do naipe1 do agogô, aprendi a tocar este instrumento nas oficinas de rua do bloco, com outras mulheres que dividiam as filas comigo, mesmo sem nunca ter tocado instrumento algum. Confesso que fui parar e aprendi a tocar este instrumento por acaso pois quando entrei no bloco meu foco era mesmo colocar meu corpo na dança. Lembro da primeira vez que vi a dança do Ilú Obá nas ruas da dita cidade cinza que naquele momento era uma explosão de cores e sentidos. Aquele espetáculo me encheu os olhos, vou tentar explicar aqui em algumas palavras o que os meus olhos viram nas ruas de São Paulo: eram as representações de Orixás mais bonitas e completas que eu já tinha visto. Para você que me lê, Orixás são, segundo definição retirada do glossário do livro, Mitologia dos orixás:” Orixá [orisá]: divindade, Deus do panteão iorubá”; preciso dizer que ao contrário do cristianismo e suas ramificações, nas religiões de matriz africana não encontramos o monoteísmo, onde só um Deus é seguido e toda e qualquer outra expressão de devoção calada, mas sim, vários Deuses são respeitados e adorados. Grifo que o Ilú Obá acaba por representar, o Candomblé de nação Ketu. Ainda se fala pouco do Candomblé no dia a dia, e começando a falar deste assunto vou fazer uma menção aqui a Exú, divindade do panteão Ioruba que representa o início, o caminho, o mensageiro. Acredito que nada mais pode iniciar essa discussão do que quem abre todos os caminhos, cria e recria 1 conjunto de pessoas; grupo. 13 a realidade sempre que necessário e como traz o Babalorixá Sidnei Nogueira em seu livro Intolerância religiosa: “Os Deuses e a fé preta não têm sua existência significada pela ausência e pela destruição da alteridade. Exu dos nagô, Pambu-njila dos bantu e Legba não precisam, para existir, que sua existência seja verdade única, ou seja, a crença parte do “e”, como conjunção aditiva inclui em oposições a uma verdade dogmática do “ou” excludente e que se coloca como única alternativa a ser seguida.” p.129 ou seja, dentro desta religião (Candomblé), que podemos chamar também de cultura e filosofia de vida, não é reforçado o etnocentrismo2, não temos um quase acesso apenas a um Deus e não está tudo centralizado em uma única forma perfeita de existência: “Tradicionalmente, para as concepções de mundo negras transladadas para o Brasil o sagrado alheio é igualmente verdadeiro e digno, podendo inclusive ser agregado ou não, mas nunca é demonizado, achincalhado ou desacreditado como fazem as crenças cristãs hegemônicas.” ibdem p.129 Sendo assim, nesta religião temos cada Orixá, Deuses, com suas histórias e especificidades e uma ampla forma de ver o mundo, todos respeitados e nenhum maior que o outro. Saindo um pouco dessa explicação “fria” e indo para um relato de experiência, um relato encarnado e ancorado numa realidade pulsante, aos olhos de alguém que não tinha nunca visto aquelas representações de perto, foi como se algo na minha cabeça fizesse aquele sonzinho de encaixe, sabe? Clic? e algumas coisas que eu não entendia direito, começaram então a fazer sentido, as próprias forças ancestrais estavam ali na minha frente, as roupas que eles usavam, as cores e toda a energia ali presentes causavam um cenário quase que mágico para mim, que pouco sabia sobre o que era um panteão de Deuses, Orixás. O cuidado do Bloco na representação, tentando ao máximo representar de forma respeitosa a história e a memória dos que vieram antes de mim deixou meu coração em extrema felicidade e 2 visão de mundo característica de quem considera o seu grupo étnico, nação ou nacionalidade socialmente mais importante do que os demais. 14 foi a primeira, e não a única vez, que o ilú Obá me fez chorar. Depois de um tempo, quando eu já era uma das felizes integrantes do bloco, uma das mestras do Ilú Obá, Cris Blue, nos disse que "algumas memórias estão no nosso corpo, são como memórias ancestrais...” ou seja, anos atrás um ancestral meu viveu, viu ou sentiu algo e agora o meu corpo reconhece assim que vê... e essa era a melhor definição para o que eu sentia, naquela noite, ao ter o primeiro contato com o bloco, ver o Ilú, os dançarinos, ali, na rua, era ser lembrado de algo que eu não conhecia, mas que meu corpo, células, tinham registro, tinha esta memória-presente, era o meu tão sonhado e procurado “Fazer parte”. Este “fazer parte" acompanha este ser que vos fala desde sempre, lembro que na época da escola, eu não tinha muitos amigos e por mais que eu tentasse eu não conseguia me encaixar, passava parte do meu tempo sozinha, talvez por não ter um padrão de beleza aceito naquele tempo ou por simplesmente ter sonhos grandes, bem maiores do que as bordas da periferia onde eu cresci. Neste percurso de busca, cursei letras na universidade presbiteriana Mackenzie, um curso que amei fazer, que influenciou de forma positiva forma como eu lia o mundo, pois entrei em contato com outras tantas possibilidades e campo de estudo que eu não imaginava existir uma parte de mim encontrou o que procurava mas nada se compara a minha experiência na casa tombada, onde, ao fazer uma pós graduação direcionada a educação possível que inclui a história de negros e indígenas, mais uma vez houve o Clic, e tive o prazer de conhecer mulheres incríveis que me permitiam construir uma identidade própria me dando a chance de experimentar a sensação de ser uma parte integrante daquele grupo, aquele reconhecimento e aceitação que desde sempre eu buscava, além do percurso percorrido através das disciplinas estudadas e aprofundadas e o real valor do saber além das paredes da academia. Ali naquele espaço tive aula com Quilombolas, Jongueiros, contadores de história e aquilo tudo fazia sentido para mim, entender que o aprendizado não está só nas páginas dos livros, mas sim, e totalmente no dia a dia, na experiencia, no viver. Escrever sempre foi o meu caminho de existência, desde que aprendi a escrever, entendi o poder das palavras em sequência, contando uma história, guardando uma memória, criando mundos. Eu faço isso, mas só hoje em dia eu reconheço que o papel sempre foi meu melhor amigo pois eu não tinha muitos outros, não tinha amigos que realmente entendiam meus incômodos, meus sentimentos e as 15 palavras que moravam dentro de mim. Tive inúmeros diários, agendas, folhas soltas, registros. Foi assim, deste jeito que eu aprendi a usar a escrita como organização do meu sentir. Quando eu estava triste escrevia até entender o motivo, transformá-lo em algo que se podia tocar, organizar; quando eu estava feliz escrevia para materializar. Encaro a escrita como uma forma de tornar as coisas, os sentires, os sonhos, palpáveis e realizáveis, às vezes, para tomar uma certa distância, as vezes para que tudo se torne eterno. A grande sacada que eu percebo sobre a escrita é que a gente tem liberdade em poder reler o que está escrito, reviver o que foi vivido ou entender o que sente. Sei que foi muito inesperada essa emoção toda sobre escrita, sobre como as sensações vem para mim através dela, e como eu a vejo operar no mundo e sei também que, por enquanto, não faz sentido com as primeiras impressões e informações aqui trazidas, ao mesmo tempo que comecei com apresentações, e essa relação com a escrita também sou eu e tudo isso soa como as notas que compõe uma música, isoladamente, parecem não fazer sentido, mas, quando juntamos tudo, entendemos a melodia. Estamos compondo juntos. Sou filha de uma família grande e bem preta, quando digo isso quero dizer que minha avó teve dez filhos, dos dez, seis chegaram à idade adulta, casaram-se e tiveram filhos e todos são negros, as mulheres mais velhas são casadas com homens negros, e tem os filhos negros, e os homens seguiram a mesma lógica, logo, todos são pretos. Mas isso não quer dizer que as questões raciais são algo que discutimos entre nós ou que exista algum tipo de menção a este fato nas mesas de almoço de Natal ou aniversários que dividimos. Ali, naquele espaço, somos só pessoas, sabe? Entre nós é só isso, só estamos juntos. Isso me impele a fazer uma comparação com o que alguns autores já disseram, só podemos ser vistos como negros quando somos colocados como os outros em contraposição de alguém “diferente” afinal como diz Morisson p.24 “a raça tem sido um parâmetro de diferenciação constante, assim como a riqueza, a classe e o gênero, todos relacionados ao poder e a necessidade de controle”, logo, dentro do âmbito familiar ao qual eu estou, ela não se faz presente, pois, se todos somos iguais ali, naquele espaço, não somos o outro e, portanto, não existe uma necessidade de diferenciação. Mas esse fato torna-se um problema quando este processo acontece a todo vapor longe das paredes seguras e quentinhas da família. Então ao olhar para a minha pele eu a enxergava negra, mais escura que todas as protagonistas das novelas, ou peças publicitárias da minha infância, o único 16 momento que eu era exposta ao mesmo tom de pele era no carnaval com as propagandas da “globeleza” famosa vinheta da rede globo de televisão onde uma mulher negra era hiper sexualizada ao aparecer nua, dançando e sorrindo, apenas com o corpo pintado, e, apesar de não entender e não conseguir visualizar com clareza algumas coisas que são a base da nossa sociedade, eu percebia que algo não estava certo. “segundo leis fisiológicas inalteráveis (...) os negros, via de regra salvo raras exceções, só podem ter suas faculdades intelectuais despertadas o suficiente para receberem cultura moral e para se beneficiarem da instrução religiosa ou de outra natureza quando submetidos à autoridade obrigatória do homem branco... por sua indolência natural, exceto quando submetidos ao estímulo da obrigação, eles passam a vida dormitando uma vez que sua capacidade pulmonar para o ar atmosférico foi expandida somente até a metade pela falta de exercício físico[...] o sangue negro que irriga o cérebro acorrenta a mente a ignorância, à superstição, e à barbárie, e fecha a porta para a civilização, a cultura moral e a verdade religiosa ”MORISSON p.24 e 25 A partir dessa ideia estapafúrdia, dessa imagem que ilustra essa citação, acontecia comigo, quase que imperceptivelmente uma fuga dessa realidade, afinal eu não poderia ser aquele corpo pintado que dançava na tv e nem queria estar distante da inteligência, desta forma eu preferia e me reconhecia enquanto “morena”, talvez para assim como Emicida diz em uma das suas letras “ela quis ser chamada de morena isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena”, a ideia de humanidade plena era reservada aos brancos. Neste ponto eu noto e consigo explicar de onde vinha, mesmo sem saber direito a ideia de fazer parte. Era uma sensação viva e simples, a ideia central era sentir-se humana. Os processos de silenciamento são tão perfeitos e estão tão arraigados na nossa sociedade que nem notamos quando estes estão em curso, logo ter a pele preta, mesmo quando menina, era algo que eu não sabia ao certo o peso e não entendia bem os porquês do isolamento, do silenciamento e da não-aceitação. Não entendia quais eram as raízes de todas as piadinhas, brincadeiras e agressões pelas quais passava diariamente. Vivi assim por anos e estes não foram nada fáceis já que eu não entendia como ou porque tudo ocorria daquela forma. 17 Para tentar explicar este ponto de vista para você, meu leitor, e porque ele não fazia o menor sentido, vou novamente acessar uma lembrança. Devo lhe dizer que dentro da minha família eu tenho uma prima muito querida, que desde que sou muito nova me chamava de “Maravilhosa”, isso acontecia antes de iniciar as minhas interações na escola, e ser colocada a prova todas as barreiras acolhedoras familiares, desta forma, sempre que eu me via no espelho eu enxergava só a menina maravilhosa que ela dizia e que eu era, então, me sentia linda, incrível, amada. Mas na escola isso não acontecia, eu sempre era considerada a feia, a negrinha, a fedida entre outras coisas negativas e desnecessárias que as crianças são ensinadas a dizer. Eu não entendia por que isso acontecia. Certa vez, na escola, para ser mais específica, ainda no jardim de infância, a professora preferiu acreditar nas minhas coleguinhas que eu tinha iniciado uma bagunça ao invés de escutar o que eu tinha a dizer, eu não tinha começado nada, me colocando de castigo por este motivo. Sempre a última a ser ouvida ou escolhida, era rejeitada e a rejeição me rondava sem um motivo real ou palpável para mim, nada fazia sentido, já que eu admirava a pele cor de chocolate que recobre minha carne; é um grande choque para a criança negra ser inserida nessa sociedade insalubre, que faz com que percebamos o que Neusa Santos diz: A espontaneidade lhe é um direito negado, não lhe cabe simplesmente ser- há que estar alerta. Não tanto para agir, mas sobretudo para evitar situações em que seja obrigado a fazê-lo abertamente.” 29%, isso explica por que eu era considerada em certa medida uma menina negra tímida, existia um medo exponencial em simplesmente existir. Cresci assim e me tornei uma mulher negra, adulta, sem uma explicação, sem um sentido para as experiências que relatei ou tantas as outras vividas nesse processo de amadurecimento. Odiei meu cabelo muitas vezes, odiei o jeito do meu rosto e o fato dos meus olhos não serem verdes ou azuis vezes sem fim, quis ser outra e chorei por conta que ninguém via o que eu via, por ter sido negada e rejeitada por tantas vezes até me tornar adulta. Hoje quando eu olho para trás e percebo como funciona esse silenciamento, o que Grada Kilomba compara com a obrigatoriedade do uso de uma máscara daquelas que eram utilizadas na época da escravização: 18 Esta máscara era utilizada, segundo registros para cobrir a boca e impedir que os escravizados 1. Cometessem suicídio; 2. Comessem os frutos das plantações dos escravocratas. Fonte imagem: Wikipédia, acesso: 15/12/21 O uso dessas máscaras também impunha o silêncio das pessoas que as utilizavam, o que a grada faz é nos mostrar que muitas vezes ainda utilizamos esta máscara de maneira figurativa, e que faz total sentido com a reflexão trazida pela Neuza Santos: ” A máscara, portanto, levanta muitas questões: por que deve a boca do sujeito negro ser amarrada? [...] existe um medo apreensivo de que, se o sujeito colonial falar, a/o colonizador terá de ouvir. Seria forçado a entrar em uma confrontação desconfortável com as verdades da/o “Outra/o”. Verdades que têm sido negadas, reprimidas, mantidas em silêncio como segredos.” p.41 Desta forma entendo que existe ainda atualmente uma política em andamento que quer exatamente isso, o silenciamento das minorias3, podemos reconhecer essa política no capitalismo que é a evolução da colônia e que precisa manter certas relações pois como nos diz Munanga: 3 Segundo Mendes Chaves: [A palavra minoria se refere a] um grupo de pessoas que de algum modo e em algum setor das relações sociais se encontra numa situação de dependência ou desvantagem em relação a um outro grupo, “maioritário”, ambos integrando uma sociedade mais ampla. As minorias recebem quase sempre um tratamento discriminatório por parte da maioria.” 19 “O caráter antagonista das relações existentes entre elas é ilustrado pela função instrumental à qual é condenada a sociedade dominada. A necessidade de manter a dominação por suas vantagens econômicas e psicossociais leva os defensores da situação colonial a recorrem não apenas à força bruta, mas a outros recursos tais como os já mencionados de controle.” p.10 Desta forma se dá o apagamento das nossas visões e existências enquanto identidades negras positivas, pois essa construção de nossa sociedade é necessária para que o mundo continue caminhando da forma como o conhecemos, é necessário que a cor da pele não seja vista em determinados espaços, mas que grite em outros nos negando direitos básicos em vários âmbitos, mas dizendo que não existe essa negação. Todo esse cenário que mostrei aqui tem diversas implicações e não posso me furtar ao fato de que morar na periferia de São Paulo é um dos agravantes que torna a história e histórias ainda mais densas. Estudei a vida inteira em escolas públicas, e não tinha perspectiva nenhuma de fazer uma universidade, eu acreditava que a única forma possível e acessível a minha realidade era pagando mensalidades e sendo bem sincera comigo, eu não tinha dinheiro; eu não tinha noção que havia universidades não pagas, publicas, federais, tudo era sobre ter dinheiro para seguir os estudos ou seguir em um subemprego, sobrevivendo sem saber o que seria uma outra possibilidade de vida, a real operaria das fabricas. Quando descobri que existia o Prouni, em meados de 2011, através das propagandas de televisão, tudo começou a parecer possível e eu tentei, por que não? Era uma forma de acessar aquele espaço que eu sonhava, idealizava, mas que eu sabia não ter dinheiro. Quando consegui a bolsa pelo Prouni e acessei a universidade, um mundo se abriu. Ao acessar a universidade e conhecer outras pessoas também bolsistas como eu, descobri que existiam universidades públicas, que existiam outras formas de existir e entrar nestes espaços, que existem possibilidades, o que devo salientar aqui nunca chegou aos meus ouvidos durante o ensino fundamental ou médio; mas não foi só isso, ao circular mais pelo centro velho da cidade de São Paulo, que fica bem próximo ao Mackenzie conheci pessoas negras que se diziam negras e não morenas como eu já estava habituada a dizer desde muito nova. Isso foi me mudando e me dando uma nova perspectiva de existência, uma nova forma de me enxergar, e o que parecia mais certo 20 que se encaixava melhor no que eu enxergava no espelho, que ornava com o “maravilhosa” que eu sempre tinha ouvido da minha prima quando pequena e começou a fazer sentido porque finalmente eu tinha permissão de existir, finalmente eu podia tirar a máscara. Então passei a entender as experiencias negativas que vivenciei durante aqueles anos da minha vida, e tudo o que eu negava enxergar, entenda, como pessoa negra viver em uma sociedade racista é negar a sua negritude para conseguir manter a sanidade de alguma forma, já que a humanidade não nos pertence, não faz sentido me agarrar a isto sem apoio, como constata Neuza Santos em mais um trecho de sua pesquisa, “O figurino é branco, em seus diversos matizes. Aqui branco quer dizer aristocrata, elitista, letrado, bem-sucedido. Noutro momento, branco é rico, inteligente, poderoso. Sob quaisquer nuances, em qualquer circunstância, branco é o modelo a ser escolhido. Escolha singular, fixada à revelia de quem apenas deve a tal modelo configurar-se. Na construção de um Ideal de Ego branco, a primeira regra básica que ao negro se impõe é a negação, o expurgo de qualquer “mancha negra”.” Neusa tornar-se negro 36% do livro 1h 58 restantes. Eu vivi essa expurgação por anos a fio, e por começar a circular no centro de São Paulo passei a conhecer muitas pessoas que já não faziam esse percurso, que já entendiam que não deviam expurgar a “mancha negra” pois de verdade, ela não existe e foi criada apenas para nos controlar. Ao entrar em contato com essa realidade posso dizer que me reconheci, me descobrir negra o que me fez perceber exatamente o que Bianca Santana destacou de Francisco Weffort “o branqueamento apaga as glórias dos negros, a memória dos líderes que poderiam sugerir caminhos diferentes daquele da humilhação cotidiana, especialmente para os pobres “p.15; comecei a me inteirar do que acontecia, a enxergar através de outros olhos a realidade do povo negro, mas não só visualizar as cicatrizes, como também a resistência e as possibilidades de vida, enxerguei também o que poderia ser a negritude e do que poderia me ensinar mais sobre todos estes anos em que esta realidade esteve guardada, sobre toda esta história, a minha história a minha identidade. Dentro deste processo, deste acesso a uma nova realidade eu tive a sorte de conhecer as pessoas certas que me apresentaram o Ilú Oba de Min, que me foi explicado de forma bem simples “um bloco de carnaval onde a bateria é formada apenas por mulheres” hoje 21 gosto de pensar que foi Iansã, orixá dos ventos, raios e tempestades, que me convidou e com seus ventos me mostrou um lugar que eu devia ocupar, que era meu por direito. Foi como fazer parte de um novo universo, o Ilú e suas mulheres tão iguais e tão diferentes virou uma realidade para mim onde todos os fins de semana eu colocava minha melhor roupa, pegava o meu instrumento e ia para a rua, tocar, e não só tocar como aprender muito mais sobre mim. Foi lá o primeiro lugar onde de alguma forma entrei em contato com o candomblé, minha religião hoje, e isto foi um dos presentes que o Ilú Obá me trouxe, eu nunca imaginei que aconteceria, por total desconhecimento e preconceito. Vamos voltar um pouco mais na minha história. Cresci entre terreiros de umbanda e igreja católica, tenho memórias de ir à missa por vontade própria, fiz catequese por este mesmo motivo, e lembro também das festas dos erês no terreiro e eles passando bolo no meu rosto e jogando guaraná na minha cabeça. Minha mãe sempre foi médium de Umbanda e como o sincretismo sempre funcionou muito bem por aqui, no Brasil, para ela era natural integrar as religiões umbanda e católica. Um adendo aqui, quando analisamos a história das religiões negras no brasil, percebemos como o sincretismo e a assimilação são uma forma perfeita de apagamento, afinal as religiões negras, por conta do racismo, não deviam existir, pois como diz uma frase certeira do professor e Babalorixá Sidnei Nogueira “o fato é que nunca é uma questão apenas religiosa”. p 61. Dentro do Brasil existe, ainda hoje, uma hierarquia de qual religião fica mais próxima ao cristianismo (que é considerado branco) e por este motivo é melhor aceitar e sofrer um pouco menos de preconceito, embranquecer é a ordem e não importa muito de que forma isso vai acontecer, como traz, neste trecho, Nogueira: “houve uma cooptação de práticas religiosas negras por uma classe média branca que quer consumir elementos do sagrado africano, ao memo tempo que não deixa de ser compreendida como elevada, higienizada e civilizada. A umbanda, religião de clara ascendência banto, descendente das “macumbas cariocas”, é eleita para ser apropriada e se tornar bem de consumo da classe média. P.95-96 Logo, desde muito nova, tive contato com a Umbanda, uma religião que passou e ainda passa por um processo de embranquecimento e cristianização, mas o 22 candomblé era a religião proibida, misteriosa, ruim e que não devia ser mencionada. Entre as religiões ela era a mais negativa possível, ou seja, mantenha-se longe, por este motivo eu não saiba nada sobre ela. Esta era uma realidade que eu respeitava mesmo sem conhecer e sem questionar os motivos, tinha um certo fascínio distante, daqueles que a gente imagina o que pode acontecer, mas, não pode nem chegar perto para comprovar se tudo aquilo é verdade. O Ilú Obá de Min, é um bloco de carnaval, uma bateria integrada apenas por mulheres que leva o candomblé para as ruas de São Paulo ao levar representações de orixás, suas danças e cantigas cantadas em Ioruba, por onde quer que passe. Algo que, quando sabemos a história do candomblé faz total sentido; Adriana Aragão, uma das fundadoras do Ilú Obá, em um dos episódios da Série Atunko4 diz que o Candomblé, quando começou era uma manifestação feminina e de rua, as mulheres que tocavam, ensinavam, dançavam, logo o que o Ilú Obá faz é um retorno, mesmo que não seja essa a proposta inicial. Já disse uma vez aqui e repito, foi Iansã que me levou até o bloco, pois, o meu primeiro contato com Ilú, a primeira vez que vi o bloco na rua, era em um cortejo, na sexta à noite, todas com o figurino e uma certa magia. No instante em que pude ver Mafalda Pequenino, artista que no corpo de baile do Ilú que representa Iansã, em cima de uma perna de pau, fazendo com que assim ela fosse uma das pessoas mais altas do cortejo. De longe já era possível vê-la, parecia flutuar sobre a multidão que a cercava, com sua energia e sorriso, as roupas vermelhas, e o adereço na cabeça em formato de chifres de búfala, quando passou por mim me deu um olhar muito atencioso, seguido de um sorriso e saiu ventando, seguindo o cortejo. Naquele momento eu sabia que tinha que de alguma forma integrar aquele bloco, fazer parte daquele grupo de mulheres que cantavam, tocavam e dançavam de modo tão seguro e tão bonito, de forma que no ano seguinte foi o que fiz, entrei no bloco, tinha o foco em entrar para dançar, mas acho que todo mundo ou pelo menos a maioria entra com este foco, já que em um primeiro momento a dança é uma das partes mais surpreendentes e atrativas do bloco, mas, ao acessar o bloco as novas integrantes não entravam direto para a dança, me disseram que eu podia entrar em algum outro naipe, ou seja, entrar para tocar algum instrumento e no ano seguinte já dentro do bloco eu poderia, se quisesse, migrar para a dança. Lembro da 4 Série documental, disponível em serviços de streaming, que filmou os ensaios do bloco Ilú Obá de Min no carnaval de 2020 no qual o bloco homenageou Lia de Itamaracá. 23 primeira vez, no primeiro ensaio, tudo era diferente e possível, logo neste dia já aprendi que cada dia no Ilú era um dia único, as coordenadoras organizam uma recepção para as novas integrantes, tudo feito com muito carinho e tambor, mas, não só isso, também é tudo construído para que as novas integrantes entendam o quanto de feminino e ancestral há neste bloco a partir disso, tudo é passado de maneira oral pois assim como nas religiões de matriz afro, a oralidade é valorizada e um dia perdido no ensaio é um dia que nunca vai retornar. Tudo que acontece é único e não estar ali de ouvidos e olhos atentos é renunciar a isso. Durante este primeiro ensaio, ao ouvir a cantiga para Oxalá, que em um sincretismo simples pode ser aproximado de Deus das igrejas cristãs, tudo em mim se movimentou, a vontade de chorar foi absurda e alterou todas as minhas estruturas, chorei, de joelhos, com o agogô na mão, ouvindo o coro cantando aquela cantiga em palavras e em um idioma que para mim ainda não eram reconhecidas, mas que ainda assim faziam todo sentido; as células do meu corpo reagiam como se as vozes daquele coro feminino falassem comigo e para mim que ali, naquelas fileiras era o meu lugar. O que eu não esperava ao integrar o bloco é o poder de transformação que iria se abater sobre mim a cada fim de semana ou ainda o quanto era importante para mim integrar aquela egrégora fim de semana após fim de semana. Cada vez que eu chegava ao ensaio, eu tinha uma nova visão de onde podia chegar a potência e a beleza de uma mulher negra. Elas estavam por todos os lados, com cabelos crespos ou cacheados, compridos, curtos, carecas, coloridas. Quantas cores eu vi, quantas mulheres passei a admirar e a entender que o Ilú Obá era como um espelho eu via um reflexo ali, e naquelas mulheres eu me enxergava também, e elas estavam ali, tocando na mesma fileira que eu ou mais para trás, tocando as cabaças coloridas com missangas os chamados Xequeres, ou ainda, aqueles grandes instrumentos de madeira e pele, chamados Alfaias ou Djembes com toda a destreza, regendo a bateria ou empunhando um microfone e cantando para todas ouvirem. Todas pareciam tão seguras que não me parecia certo ter nenhum tipo de dúvida de quem eu era ou como era ser mulher negra, foi como se fosse a porta que eu precisava atravessar, ver todas aquelas mulheres me dava a permissão para ser alguém, de tomar a minha posição enquanto mulher negra neste mundo, e que não só é negra, mas que tem orgulho e exibe isto para quem quiser ver, e tudo isso entrou na minha história e caminho, colocando no lugar algumas peças que ainda não haviam se encaixado. 24 Mas, ok, Josi, e essa pesquisa? Esta pesquisa vem junto a necessidade crescente dentro de mim de contar essas histórias, assim que eu percebi como foi o trajeto da minha identidade, entendi que meu desejo era pesquisar as histórias de como são os trajetos das identidades positivas de mulheres negras, quais são os processos vividos, como eles foram assimilados, como é possível construir uma identidade e entender o que move as outras mulheres negras que integram o bloco afro Ilú Obá de Min e como o bloco e o estar no bloco influencia em quem essas mulheres são. Este desejo estava tomando forma em minha cabeça, quando no carnaval de 2020, no qual o bloco homenageou Lia de Itamaracá e durante o primeiro ensaio uma das integrantes sugeriu um projeto totalmente novo e ousado, fazer a filmagem dos ensaios de dentro do bloco. Estávamos todas acostumadas a pessoas externas ao bloco filmando nossos ensaios, e o resultado que era o cortejo nas ruas, mas nunca havia algo interno, algo que nos acompanhasse durante o processo, antes do resultado, acompanhasse o nosso caminho até o cortejo. Ela, a diretora da Série, Daiane Pettine, iniciou o projeto. Fazia as filmagens dos ensaios e disponibilizava para todas as integrantes via Youtube. Era uma proposta de olhar diferente para o bloco, ir além do resultado do cortejo e acompanhar os corpos e mentes que fazem tudo acontecer, um tema era definido e ela entrevistava algumas das integrantes, dando um espaço para que aquelas vozes fossem ouvidas. Estávamos habituadas há ter o foco no final do processo, o resultado, vídeos e mais vídeos do cortejo, nada sobre o processo, nada com foco nas mulheres negras que integram o corpo do Ilú, nada sobre as histórias presentes em cada mulher-célula deste corpo. Eu acompanhei os primeiros episódios, de fora, observei a proposta e conforme os ensaios foram acontecendo o projeto que era de uma integrante só se tornou um projeto feito a mais de uma mão, assim como Ilú Obá é feito no coletivo. Eu fui convidada a integrar esta equipe, éramos 5 mulheres negras, integrantes do bloco, de lugares distintos do Brasil, com trajetórias únicas, produzindo um material audiovisual, na cara e na coragem. Nós entramos dentro do coração e veias do Ilú, que são as mulheres que integram o bloco e acompanhamos a construção daquele carnaval de 2020 e algumas das centenas de histórias que o bloco leva em sua alma, que fazem com que seus cortejos sejam potência e beleza que são, as histórias dessas mulheres me encheram o coração e os sentimentos que eu já carregava pelo bloco. A cada mulher que eu conhecia mais eu queria conhecer e mais 25 eu me reconhecia, e via um pouco de como haviam sido as experiencias de cada uma, e conhecia um pouco da trajetória dentro do bloco, como tudo se misturava e fazia sentido para estas mulheres e para mim. Somos um tantos nós mesmos e um tanto inegável os outros que passam pelas nossas vidas, mas além disso, essas mulheres em especial também se uniam a mim através da raça5, através da cor de suas peles, seus cabelos, traços e histórias, assim, boa parte do que elas diziam em nossas entrevistas, calavam fundo em minha vivência e faziam muito sentido para mim. Era como se eu soubesse e conhecesse cada uma delas, e seus risos, jeito, histórias e coração. Mas eu estaria me furtando da realidade se dissesse que essa foi a primeira vez que tivemos acesso ao mundo de algumas das integrantes do Ilú, no ano de 2019, uma outra incrível ideia que surgiu após um processo de carnaval, foi a escrita de um livro em conjunto, tanto a escrita, quanto a organização e a edição feita entre as mulheres do agogô, a proposta era simples, cada uma das integrantes do agogô poderia escolher uma forma de expressão que pudesse ser impressa nas páginas de um livro, ou seja, valia textos de qualquer gênero ou formato, incluindo imagens e desenhos e todo este material seria reunido e publicado em formato de livro. Para tal trabalho eu e outras mulheres formamos um conselho editorial que definiu a ordem dos textos e fez o projeto gráfico da publicação. Este livro foi publicado de forma colaborativa com quase 100 relatos, e leva o nome de “Nosso afeto é potência”, frase essa que devo destacar, foi elaborada também no coletivo durante a composição para uma música do carnaval de 2019. O reconhecimento do poder construtivo do afeto para mulheres negras foi a grande força motriz para esta publicação, bell hooks já disse que “Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes” hooks.p.12 vivendo de amor. Esta publicação exclusiva do agogô, como disse anteriormente, o naipe que eu integro e onde as aproximadamente 100 mulheres foram convidadas a escrever seus relatos de carnaval, que vai muito além da Quarta-Feira de Cinzas. Esses relatos são de uma riqueza, de detalhes e de emoção e funcionam, também, como um espelho. Ler essas mulheres é mais uma vez uma forma de observar, de reconhecer e de perceber como pode agir uma identidade positiva construída e a percepção de como os lugares afetam as nossas escolhas e gostos. Certa vez em uma aula da pós, a professora 5 Convém explicar que raça aqui é entendida como noção ideológica. Neusa Santos Souza in Tornar-se Negro 26 Luiza Christov nos disse que a nossa pesquisa deve nos tocar a alma, deve fazer sentido, que assim sendo as palavras são encarnadas, tem corpo e motivo de existir. Sem amor, sem uma curiosidade genuína de que serve a pesquisa em artes? Tudo isso que eu trouxe até agora foram as faíscas que fizeram essa pesquisa passar a existir como chama constante, isso me movimentou de forma que essas palavras precisam ser redigidas e esses pensamentos deviam ganhar espaços “(...)e enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade a autora e a autoridade na minha própria história” Kilomba, p.28. Decidi que seria interessante, entender como que se dá essa identidade e o reconhecimento dessas mulheres, como são as histórias delas antes da entrada no bloco e como se transformaram a partir do contato com o bloco, como podemos ser tão iguais se somos de outros lugares, tivemos outras infâncias e histórias tão diferentes? O que nos une de verdade, o que nos distancia uma das outras, será possível um ponto de confluência? E como o Ilú atravessa a nossa experiencia? Ele tem responsabilidade? Ele mal influencia? E se não tivéssemos tido contato com o bloco, será que seriamos quem somos? Essas perguntas são algumas das que rondam minha mente e me fazem refletir sobre as possibilidades sobre o universo Ilú Obá de Min e as bordas que passam e existem no mundo externo, o que essas mulheres levam do bloco para as experiencias delas, fora do bloco. Essa é a chama que já aqueceu tudo dentro do meu coração, a pesquisa tem que ter motivo e coração e eu escrevo assim, ao som dos tambores e com o coração nas pontas dos dedos. 2.1 Que tambores são esses? “Em diversas culturas os tambores contam histórias, ampliam os horizontes da vida e têm gramáticas próprias, que muitas vezes expressam o que a palavra não alcança. “ Luiz Simas Ilú Obá de Min, é um nome em Ioruba, que em tradução livre significa mãos femininas que tocam tambor para o rei Xangô. Xangô, Orixá da Justiça, uma das 27 divindades do panteão iorubá é o patrono deste bloco de carnaval, juntamente com Iansã. O Ilú Obá De Min – Educação, Cultura e Arte Negra é uma associação paulistana, sem fins lucrativos, que tem como base o trabalho com as culturas de matriz africana, afro-brasileira e a mulher. Foi fundado pelas percussionistas Beth Beli, Adriana Aragão e Girlei Miranda em novembro de 2004. O objetivo da associação é preservar e divulgar a cultura negra no Brasil e o fortalecimento das mulheres negras. através do carnaval e de ações educativas e culturais que são distribuídas durante o ano todo; atividades essas que envolvem desde shows, rodas de conversa a oficinas de toques e ritmos que são dadas em escolas e associações culturais, tudo isso é construído a muitas mãos, desde o planejamento das atividades até a aplicação destas sempre com a temática negra como base das ações e de seu desenvolvimento. É importante ressaltar que sendo um bloco independente, todas as mulheres do bloco, que no ano de 2020 tinha cerca de 400 mulheres de 5 a 80 anos, podem e participam de suas ações. Atualmente o Ilú Obá de Min tem história em São Paulo, com 18 anos de existência tem em sua função abrir o carnaval de São Paulo, onde leva, aproximadamente, 20 mil pessoas às ruas para acompanhar o cortejo, falando de cultura negra e trazendo o candomblé para rua, preenche a cidade na noite de sexta de carnaval abrindo o carnaval de São Paulo com seus tambores, mulheres, homenageadas, história negra e orixás. A energia que circunda o bloco é uma energia de movimento e descoberta assim como a escrita que move meus dedos. Existe um aforismo Ioruba que diz que Exú é a boca do mundo ele come tudo e devolve tudo ao mundo de forma diferente da maneira que estava antes, transforma, transmuta, transcende as ruas e consequentemente, ao ser levado para as ruas através do Ilú Obá, transcende também o carnaval de São Paulo. A cada ano, o bloco escolhe uma personalidade ou algum fato histórico relacionado ao povo negro para levar ao cortejo, essas escolhas variam entre personalidades como Carolina Maria de Jesus, Elza Soares, Lia de Itamaracá, como pode também escolher fatos históricos ou grupos de pessoas negras, como Mulheres Quilombolas ou o Movimento Negro brasileiro. Com estas escolhas, nós as mulheres inseridas no bloco, fazemos pesquisas, leituras, rodas de conversas; o bloco promove encontros e discussões sobre o tema formando as suas integrantes politicamente e 28 conscientemente de suas histórias. e Além das integrantes, as pessoas que acessam aos ensaios que são abertos e gratuitos também tem acesso a estas histórias e memórias. O que o Ilú faz, ano após anos é não permitir que nossas histórias caiam no esquecimento, sejam apagadas da memória; é uma forma de reavivar e ensinar a todos através da arte, através da cultura, afinal como já disse Amílcar Cabral “A luta pela libertação é antes de tudo, um ato cultural”. Fora essa parte toda técnica, e explicativa sobre o que é o Ilú Obá e um pouco sobre como o bloco opera, pode-se dizer também que o Ilú Obá é um corpo encantado das ruas, encantado pois mesmo que sejamos 400 em um cortejo nos tornamos apenas um corpo que entra em sincronia enquanto toca e canta, quando sai para as ruas para mostrar o resultado dos nossos ensaios e esforços, o encanto está justamente no poder dessas vozes e corpos juntos, de mãos dadas, cantando, dançando, tocando, contando uma história. É encantado porque nossas identidades, as identidades das mulheres negras que fazem parte deste bloco, que são tão únicas, e independentes podem se dissolver em um único corpo, um corpo grande, corpo de uma Iyaba6, Iyaba que são as grandes mães na cultura Ioruba, uma Iyaba com leite em seus seios, pronta para alimentar seus filhos assim como sabemos que é e imaginamos Iemanjá. Corpo que pode também Carregar um Abebe7, adornado, dourado e onde a beleza é facilmente refletida nos olhos de quem vê, pulseira nos braços, e uma colher de mel na boca sempre que precisarmos falar qualquer coisa, para que falemos apenas palavras doces, mas carregadas de verdade, como Oxum nos ensina. Este corpo também se transmuta e pode trazer, também o Oxê8, o machado de duas lâminas, para cobrar e fazer a justiça e os raios e trovões do casal Iansã e Xangô fazendo ventar e chover. Vem com caça farta de histórias, sorrateiro e certeiro de uma flecha só ou ainda pronto para guerra consciente que algumas lutas necessitam de um posicionamento, ou de alguma forma mudando tudo, abrindo caminho, podendo ser tudo e nada e matando o pássaro ontem com a pedra que atira hoje, com as encantarias das nossas mais velhas e com os dizeres do movimento negro paulista, do movimento negro brasileiro, espalhando o que é necessário, 6 Iyabá (em iorubá: Iyagba), cujo significado é mãe Rainha, é o termo dado aos orixás femininos Iemanjá e Oxum, mas no Brasil esse termo é utilizado para definir todos os orixás femininos em geral em vez o termo Obirinxá(orixá feminino). 7 Abebe: Espelho adornado usados pelas Iabas Oxum e Iemanjá 8 Oxê: Machado de Xangô 29 cortando o silêncio, criando mundos e possibilidades levando conhecimento e novidade a todos que entram em contato com este corpo encantado. É importante ressaltar como funciona, quais são as engrenagens de dentro do bloco que eu posso afirmar que deixa o nosso carnaval com muito mais autonomia. A cada ano o tema de carnaval é escolhido através da diretoria. Nossa Diretora, Beth Beli, escolhe algo, ou alguma personalidade que tenha a ver com o que iremos falar, qual personalidade podemos exaltar, essa escolha é feita entre as diretoras. Após comunicar as integrantes do bloco qual a escolha, são abertas as inscrições de composições das integrantes, toda e qualquer integrante pode escrever uma música de acordo com o tema, sempre buscando trazer fatos da história que está sendo contada e buscando mesclar as lendas e histórias dos orixás. Estas composições concorrem com outras, também compostas por integrantes para definirmos quais saíram em cortejo naquele ano. Diferente das composições do carnaval das escolas de samba com o qual estamos acostumados onde apenas uma composição é escolhida, no nosso cortejo, geralmente, temos entre 5 e 6 composições que são escolhidas. A escolha é feita através de votação onde todas as integrantes tem direito ao voto, após a escolha feita, novamente as mestras e algumas integrantes se reúnem para criar os arranjos das composições escolhidas, esses arranjos são criados e passados a todas as integrantes nos ensaios de rua, mas nada é definitivo, os arranjos podem mudar se caso toda a bateria começar a tocar junto e perceber que não ficou tão bom ou alguma das integrantes tenha alguma ideia que complemente ou altere de forma positiva o que já foi criado. Todo esse processo aqui citado se assemelha de certa forma em como os quilombos foram construídos e funcionavam, como este tipo de comunidade vivia (ainda vive) e sobrevivia em tempos tão áridos: No quilombo do Ambrósio em minas gerais(...) localizado entre os municípios de São Geraldo e Ibiá, havia, segundo o historiador Waldemar de Almeida Barbosa, “um modelo de organização e disciplina, de trabalho comunitário”. Para esse autor, os negros eram divididos em grupos e setores, “todos trabalhando de acordo com sua a sua capacidade”. P.36 - Clovis Moura Quilombos Pode-se notar que algo parecido a isso existe dentro do Ilú Obá, uma organização que funciona muito bem, dividida de acordo com as habilidades de cada 30 mulher sobre cada carnaval e cada ação, que é feito a muitas mãos e afeto. Nosso afeto é potência, já disse o título do nosso livro. 3. Quem segue esse cortejo Ser Ilú é como parir diariamente, Lentamente. Cada ensaio um aprendizado Uma reconstrução. Raquel Santos Falamos do cortejo do Ilú Obá aqui, vou falar agora para tentar explicar agora uma outra dimensão do bloco. Temos, na construção do carnaval do Ilú uma divisão interna entre as integrantes do bloco, que causa a harmonia e a beleza. Além da Dança que nos enche os olhos temos também a bateria do Ilú que conta com 4 instrumentos que apresento agora, o Agogô que é um instrumento de ferro, o mais agudo da bateria que é repercutido através de uma baqueta de madeira, logo atrás temos o Xequerê que é feito com uma cabaça9 coberta por miçangas, em seguida temos o Djembe, que é o primeiro tambor, esculpido no tronco de uma arvore, tem um som mais agudo e pode ser repercutido com os agdavis, que são hastes finas e madeira ou com as mãos dependendo do ritmo e do som que precisa ser feito e a Alfaia, o instrumento mais grave da bateria, é um tambor que gostamos de chamar de coração da bateria e ele é repercutido através de duas baquetas de madeira mais grossas que a dos outros instrumentos. Além de todos esses instrumentos temos também o Canto, que nem preciso explicar qual é a função. Como iniciei este papo, as dimensões são várias, como que camadas que se sobrepõe e que não são vistas no final. Também da nossa apresentação em si, primeiro fazemos o Xirê10, que determina a ordem com que as cantigas de orixás são entoadas que respeita a ordem (ou se aproxima da ordem) dos terreiros de candomblé com a qual os orixás são 9 Fruto das plantas de gênero Lagenaria e Curcubita. 10 A palavra xirê, contração dos termos iorubá sè, fazer, e irè, brincadeira, diversão, pode ser traduzida como “Fazer festa, brincar”. Um Congraçamento, um encontro o xirê é a roda onde os orixás se encontram para dançar e brincar. Candomblé bem explicado p.203 31 apresentados; finalizada essa parte, iniciamos a apresentação das composições que trazem o tema do carnaval daquele ano. Sobre a apresentação do xirê, nos inspiramos na lógica dos terreiros da nação Ketu, e entendemos por nação os cultos que nasceram de acordo com o costume e tradições do povo Iorubá que veio de uma determinada região do continente africano, a Nigéria. Agora, por que, isso tudo? Para começar a explicar que tudo pode ser dividido em pequenos pedaços, menores pedaços. E é isso que os livros que me acompanham aqui vêm fazendo, cada um segue o cortejo com uma função e no cortejo que estou construindo aqui, é importante pensar em quem segue junto, quem dança, quem coloca nas palavras encanto, quem explica, quem entende, quem observa de longe. Para tal feito, para falar do chão, do que é a base, cantar as cantigas junto comigo Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino, eles que escreveram sobre a ciência encantada das macumbas, algo que eu posso afirmar que cerca tudo que diz respeito ao Ilú, eles enxergam a macumba enquanto ciência, uma forma de analisar o mundo, e portanto podem com certeza me ajudar na leitura e na compreensão do que acontece, as encantarias são algo encontrado em cada uma das páginas do seu livro, e eles entendem que: “Nosso terreiro é cruzado, se encanta no sopro das palavras, no riscar da pemba e no sacrifício que alimenta o solo. O nosso terreiro é boca que tudo come e corpo que tudo dá. Fazemos rodas, praticamos esquinas, erguemos choupanas e cazuás, inventamos mundos,” Ciência encantada das macumbas, Dimas e Rufino. p.10 O soprar das palavras-mulheres, das trocas silenciosas cheias de som, do chão encantado que o Ilú Obá e suas integrantes criam que não só pode como deve ser lido também, além dos meus olhos, através da leitura deles. Dimas e Rufino são mais que necessários ao falar do Ilú Obá de Min, pois o Ilú pode ser considerado um espaço de encantamento de corpos, é lugar de gira e irmandade, de reconhecimento de quem veio antes é um espaço onde as mulheres podem se refazer e compreender o quão importante é a reconstrução de uma identidade negra pois, “Por mais que o colonialismo tenha nos submetido ao desmantelo cognitivo, à desordem das memórias, à quebra das pertenças e ao trauma, hoje somos herdeiros daqueles que se reconstruíram a partir de seus cacos.” p.13. Entender o que o colonialismo fez, 32 absorver o desmantelo cognitivo, a desordem das memórias e fazer como Exú, transformar, transmutar, desconstruir e a partir daí se refazer. Isto é uma tarefa árdua e muito difícil quando sozinha, a reconstrução que se dá nesse espaço chamado Ilú Obá de Min, onde pouco a pouco percepções sobre raça e liberdade são colocadas à frente das integrantes do bloco, e diante desta percepção da potência deste grupo de mulheres, estes autores e sua proposta de olhar através de uma lógica de terreiro o mundo em que vivemos, podem me ajudar a entender e a explicar tudo isso. Mas não conto só com eles para me ajudar a lançar um olhar para essa história escrita a mãos negras, para um cortejo acontecer, é preciso mais, mais vozes, outros que acompanhem o som e que possam ir muito além da parte teórica e para falar das mulheres, eu aprendi que além da teoria a importância da experiencia e do reconhecimento no momento de criar novas memórias e reflexões nada mais justo que conversar também com Audre Lorde, mulher negra, lésbica que se debruçou em pensar e poetizar as vidas das mulheres negras. A proposta de Audre é levar em consideração muito mais do que nos foi imposto e colocado como verdade através do colonialismo e do machismo, ela desafia as barreiras e ousa imaginar a possibilidade de uma outra forma de olhar o mundo e as mulheres que o habitam: No entanto, quando entramos em contato com nossa ancestralidade, com a consciência não europeia de vida como situação a ser experimentada e com a qual se interage, aprendemos cada vez mais a apreciar nossos sentimentos e a respeitar essas fontes ocultas do nosso poder - é delas que surge o verdadeiro conhecimento e, com ele as atitudes duradouras. P.46 Audre traz justamente algo que acredito e que move boa parte da minha escrita e pesquisa, a ideia que a experiencia tem importância sim, não só a experiencia como a voz das mulheres negras precisam ser ouvidas e tem muito a dizer, ela ressalta que o que vivenciamos umas com as outras deve ser levado em consideração, deve ter espaço e voz e tem total importância no resultado final das nossas vidas, e mais, a importância da poesia para a vida das mulheres, ela vai além da ideia de razão diferente da emoção, ela levanta a bandeira que as duas caminham juntas, o que tem total relação com as investigações aqui feitas quando entendemos que nossas vidas não operam de modo cartesiano, ou seja a separação de razão e emoção é falha. 33 Professor Sidnei Nogueira, babalorixá, doutor em Linguística traz para nós a visão sobre a religião de forma mais sistêmica discutindo como o racismo opera e como podemos desvenda-lo, compreende-lo dentro do campo da intolerância religiosa, e não, o Ilú não é uma instituição religiosa, mas fala, se relaciona e homenageia abertamente as religiões de matriz afro, e logo, entra no espectro deste tipo de análise e necessita de um olhar atencioso sobre isso para que esta informação não se perca e os detalhes não sejam ignorados. Certamente um entre os inúmeros motivos responsáveis pela perseguição às tradições religiosas de origem africana no Brasil tem a ver com as significativas diferenças epistêmicas entre eles (eurocentradas) e nós (afrocentrados). É importante que um paradigma afrocentrado nos devolva a nós mesmos. Nossos afrossentidos devem ser reconstituídos por meio das experiências afro-brasileiras. NOGUEIRA, p.127 É importante reconhecer a importância de conversar com um Babalorixá ao tratarmos de Religiões de matriz Afro, não teria nenhuma outra forma mais respeitosa de fazê-lo. Por muitos anos, o racismo nem foi visto nem refletido como um problema teórico e prático significante nos discursos acadêmicos, resultando em um déficit teórico muito sério (Weib,1998). Por um lado, esse déficit enfatiza a pouca importância que tem sido dada ao fenômeno do Racismo. E por outro lado, revela o desrespeito em relação àqueles que experenciaram o racismo. GRADA, P.71 Com esta citação, trago também Grada Kilomba e a força das palavras cirúrgicas dela para dizer do que sabemos acontecer atualmente no mundo e atravessa as vidas das pessoas negras de forma cruel e constante, é importante dizer que esta pesquisa se guia através das experiencias positivas de identidade positiva negra, e ao mesmo tempo, dizer o quanto o racismo operou e opera nessas vidas, quais caminhos ele consegue alterar e ou dificultar. Falar de Ilú Obá de Min, de Candomblé, de cultura negra também é falar do que vive em nossa estrutura e é negado enquanto realidade. Ser o outro não é algo que é confortável ou fácil de perceber, portanto, os ensaios presentes no livro a Origem dos outros de Toni Morrison nos trazem um 34 panorama de como a sensação de não adequação reside na vida dos que tem a sua humanidade roubada desde a infância. Neste livro também Toni Morrison fala sobre literatura de uma forma direta e com um recorte racial muito importante que faz toda diferença para a observação ativa dos relatos de experiencia que estou analisando nesta pesquisa. A literatura é especialmente e evidentemente reveladora ao expor/refletir sobre a definição de si, quer condene ou apoie o modo pelo qual ela é adquirida. Como uma pessoa se torna racista, ou sexista? Já que ninguém nasce racista, e tampouco existe qualquer predisposição fetal ao sexismo, aprende- se a outremização não por meio do discurso ou da instrumentação, mas pelo exemplo. MORRISON, P.27 Tantos outros autores seguem este cortejo que está sendo construído aqui, entoando com suas vozes e seus conhecimentos a analise necessária dos atravessamentos do Bloco Ilú Obá de Min na vida das integrantes, através desses olhares conseguimos entender e direcionar esta pesquisa a riqueza das construções possíveis presentes nas cosmovisões negras, que norteiam não só o Corpo negro, mas a cultura e uma filosofia de vida e nos ajudam a entender no que estava pensando Clovis Moura quando decidiu estudar os quilombos e suas formações econômicas e políticas. Quando se fala do racismo e das necessidades que temos de reconhecimento e aproximação de histórias de vida e claro, da fortaleza que podemos encontrar nos quilombos urbanos locais seguros onde se pode existir e viver o que vai muito além de só resistir e sobreviver, como disse Emicida, precisamos poder falar para além das cicatrizes, e sendo um bloco feminino, é importante entender que: Para as mulheres, então, poesia não é um luxo. É uma necessidade vital da nossa existência. Ela cria o tipo de luz sob a qual baseamos nossas esperanças e nossos sonhos de sobrevivência e mudança, primeiro como linguagem, depois como ideia e então como ação mais tangível. LORDE P.47 Esta pesquisa, este cortejo, visa então, a partir da poesia dessas vidas, das experiências partilhadas, dos tambores compartilhados e da encantaria produzida tornar o caminho percorrido pelas mulheres diluídas no bloco entre as outras tantas em algo tangível, em algo além do bloco, mas a partir do bloco, em poesia, poesia que 35 versa sobre a vida e a negritude, não fala apenas das cicatrizes, mas reconhece elas, o foco é transformar e visualizar essas vidas como uma poesia tangível. 3.1 O cortejo “Todo corpo preto é um palimpsesto e publica-lo é mudar o país” Mariana Luiza, Carolinas p.333 Devo dizer que a pesquisa anteriormente não era sobre o Ilú Obá. Apesar de integrar o bloco a tantos anos e amá-lo profundamente, a pesquisa inicialmente era estudar coletivos culturais paulistas em geral, talvez escolher um ou dois, observa-los a uma certa distância e construir este paralelo sobre como estas identidades são formadas a partir do contato dessas pessoas com o coletivo e como a arte tem sua responsabilidade nisso, este estudo traria a tão falada e pedida distância que a academia diz importante, mas que eu, sinceramente acho impossível, sem querer me alongar tanto aqui, mas, quando alguém consegue realmente isentar um texto, uma fala de suas crenças, saberes, ideologia? Isso seria possível? essa necessidade não vem do mesmo lugar que diz ser necessário isolar a razão e a emoção? Enfim, reflexões. O que acontece é que nem sempre os nossos planos iniciais seguem o seu curso, no caso desta pesquisa, aconteceu a pandemia que primeiro me paralisou totalmente, afinal, como eu iria me inteirar, observar e conversar com essas pessoas se todos nós não podíamos mais sair de casa e todas as atividades haviam sido suspensas? Desistir não era uma opção, mas me senti de mãos atadas, mas logo depois esta situação fez com que eu tivesse que mudar os planos. A ideia que se iniciou na minha cabeça era pesquisar, da mesma forma que eu tinha pensado que faria com os outros coletivos, mas, somente o Ilú Obá. Por estar por dentro do coletivo o meu acesso as pessoas se tornava um pouco mais fácil e possível, a ideia simples, entrevistar as mulheres do Ilú, já que eu conseguiria o contato delas e poderia construir esta mesma ideia e este mesmo traçado de como as coisas aconteciam com estas mulheres e o acesso delas a partir dos ensaios e ações do Ilú Obá de Min, queria 36 entender como este coletivo cultural formado apenas por mulheres afeta a formação de uma identidade, isso tudo é bem amplo e bonito, mas ainda assim, eu não sentia que era isso que eu queria fazer, ainda faltava algo para que eu sentisse a pesquisa ganhar corpo e movimento, para que a paixão e a vontade de entender o processo me fizesse movimentar. Claro, devo dizer que a ideia de entender como as identidades ganham alterações a partir das interações culturais é algo que me encanta e acompanha, desde a minha graduação quando fiz um comparativo com as experiências trazidas pela Chimamanda Ingozi Adiche em seu livro, Americanah, que conta a trajetória de uma nigeriana nos estados unidos, para a cultura brasileira, eu percebi ali uma aproximação e a curiosidade sobre a formação cultural começou, ou talvez pela minha própria experiencia de vida e tudo que acompanhei acontecendo a pessoas mais próximas, acho este assunto fascinante, mas, eu queria mais, só fazer entrevistas não me parecia o certo. Então, um dia lendo o nosso livro “nosso afeto é potência”, entendi o que eu queria, a forma como a voz daquelas mulheres saltavam o livro e dançavam em volta de mim calou(ou deveria dizer cantou?) fundo em meu peito e me mostrou um possível caminho e além disso, ao ler as mulheres eu tinha uma nova dimensão daqueles sorrisos que me recebiam aos fins de semana no Ilú Obá, ali, lendo a escolha das memórias, das palavras, da pontuação, eu conseguia saber mais sobre aquelas mulheres do que muitas conversas que tivemos e notar o quão próximas éramos do que eram feitas as suas histórias, quais caminhos elas já haviam percorrido. Isso me deu a ideia de então a partir dos relatos do livro para entender quem são aquelas mulheres que escreveram, entender o porquê escolheram aquele relato, porque estão no Ilú e entender se elas percebem alguma mudança, uma percepção de mundo que aconteceu a partir do contato com o bloco ou se isso é uma hipótese que na vida dela não aconteceu, que o bloco não opera nenhuma mudança significativa ou perceptível. Como eu disse anteriormente neste texto, eu considero a escrita algo de muito valor, ela é onde eu me debruço e existo de forma completa, e para tentar explicar essa ideia de mais uma forma usarei aqui as palavras de Anzaldúa, Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva dessa complacência que temo. Porque não tenho escolha. Porque preciso manter vivos o espírito de minha revolta e a mim mesma. Porque o mundo que crio na escrita compensa aquilo que o mundo real não me dá. Ao escrever, eu 37 organizo o mundo, ponho nele uma alça em que posso me segurar. Eu escrevo porque a vida não satisfaz meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando eu falo, pra reescrever as histórias mal-escritas que eles contaram de mim, de você. Pra ficar mais íntima comigo mesma e contigo. Pra me descobrir, pra me preservar, pra me fazer, pra ter autonomia. Pra dissipar os mitos de que sou uma profeta louca ou uma pobre alma sofredora. Pra me convencer de que tenho valor e de que o que tenho a dizer não é um monte de merda. Pra mostrar que eu posso e que eu vou escrever, mesmo que me ameacem pra não escrever. E eu vou escrever sobre as imencionáveis, sem me importar com o suspiro ultrajado da censura e do público. E por fim, eu escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho mais medo ainda de não escrever. Anzaldúa, P. 52 O que é feito no livro é de certa forma, autobiografia, escrever sobre si é algo que exige um tanto de atenção apurada, cuidado e arte, então eu parto do ponto mais sensível e criativo dessas mulheres que vai muito além de uma conversa, a proposta aqui é ler mais dessas mulheres do Ilú Obá, eu acredito que através da escrita de alguém, podemos entender muito sobre quem essa pessoa é de onde ela fala, como ela fala e como enxerga o mundo. A nossa escrita é sempre carregada dos nossos valores e um livro que se presta a registras as memórias de um grupo de pessoas pós acesso a um processo artístico é uma peça valiosíssima de arte e reflexão. A escrita deste livro foi um marco de muita importância dentro do bloco como um todo, mesmo sendo escrito por parte das participantes dele. Sabemos que por conta do racismo e da escravização dos sujeitos negros, o direito a educação foi negado as pessoas negras por muito tempo, e mesmo depois do acesso nada ficou mais fácil, o campo literário de reconhecimento ganhou alguma lutas, porém ainda é algo distante de uma realidade agradável, logo, entre as 100 mulheres participantes do processo muitas acreditavam que não sabiam ou não deviam escrever afinal não eram escritoras e por fim não enxergavam o quanto era valioso o relato delas também, não conseguiam vivenciar a sua própria trajetória e existência como algo que merecia algum destaque. Isto também é uma das heranças racistas que temos ao enxergar o mundo, entendendo que alguns lugares não podem ser nossos, ter este livro publicado é saber, é como se fosse uma autorização, ou indo além é uma exigência e uma lembrança: este espaço também é dessas mulheres. 38 Sou uma pessoa das letras, e neste momento nem estou falando da minha graduação, apesar de ser formada nesse curso que tanto amo, percebi que sempre vou por este caminho, gosto de ler as pessoas e além de todas as observações não verbais, ter acesso a escolha das palavras é algo que me encanta e aproxima. Eu ainda sentia que faltava algo mais e me perguntava se a entrevista ainda seria necessária além da conversa com os textos no livro, e ao ler sobre uma pesquisa especifica que estudava a partir das caligrafias a etnografia de algumas pessoas, decidi não mais seguir com entrevistas deste jeito quadrado de perguntas e respostas e pedir para que as mulheres me escrevessem cartas sobre sua trajetória no Ilú, a escolha dessas mulheres se deu a partir dos relatos no livro, o tempo de atuação no bloco e se houve ou não alguma migração entre os instrumentos, ou seja, se quando ela entrou ela aprendeu um instrumento e atualmente toca algum outro. Sendo assim eu posso levar em consideração a forma como a experiencia no Ilú toca essa mulher dentro de um período de experiencia e vivência, já que o livro foi escrito e publicado em 2019 e esta pesquisa está se desenvolvendo dois carnavais depois. Além de investigar o antes do Ilú na vida dessas mulheres, tenho uma visão de um pequeno período durante o Ilú Obá, posso encontrar mais descobertas no processo de permanência no bloco, como o que pode ter mudado e transitado em percepção e personalidade dessas mulheres? logo isso torna a escrita da carta de suma importância para uma análise em que a formação das identidades positivas possa ser colocada em perspectiva. Portanto, esta conversa que proponho aqui será um conjunto que se dará a partir dos relatos do livro, passando pelas cartas para daí então, construir um perfil dessas mulheres, entender qual o caminho que seguiram, como o Ilú opera na vida delas e traçar a realidade que elas vivem atualmente após terem estado em contato com o coletivo e com um adendo muito importante que pode mudar o resultado da pesquisa, pois alterou as bases da vida de todos, a pandemia que vivemos em 2020, todas as perdas e o medo, o distanciamento forçado das ruas ou a falta dele, sem dúvida foi um tempo importante para se auto-observar e tirar algumas conclusões. As cartas entram nesta escritura por se tratar de um caminho que pode trazer à tona alguns olhares e percepções que nem sempre vem à tona em uma conversa, afinal escrever é um processo de lapidação, escreve-se e reescreve, lê e se relê possibilitando a inserção de mais e importantes informações. A partir dessas bases quero entender se para essas mulheres o contato com o bloco tem ou 39 não alguma influência na formação de sua identidade positiva e mais, entender o que elas consideram possível levar para as experiencias diárias dela, em casa, no trabalho e para a vida. A encruza de Exú aponta caminhos enquanto possibilidades: cruzando perspectivas, a encruzilhada transatlântica é a categoria que, a partir dos princípios explicativos de mundo assentes em Exú, nos fornece bases para pensar a trágica experiência de deslocamentos forçados e não retorno também como uma possibilidade de reinvenção da vida, de culturas resilientes que se recodificaram no próprio trânsito. SIMAS, RUFINO p.55 Fazer essa travessia que nos é imposta ainda através do racismo que reside em nossa sociedade, aceitar o não retorno, tomar para si o que lhe é dado e transmutar, transformar, engolir para cuspir diferente, esse é o caminho tomado por estas mulheres em contato com o bloco e com suas potencialidades. Este é o Cortejo pronto para as ruas. O carnaval do Ilú Obá de Min é assim, um tema é escolhido, muito planejamento, ideias são ouvidas, inventadas, recriadas, vários ensaios onde as vozes são equalizadas os instrumentos afinados e o tempo calculado, experenciado, circulado. De forma muito parecida a preparação dos nossos cortejos posso dizer que foi a escolha das mulheres para fazer parte da gira que é esta pesquisa. Lido e relido cada um dos relatos presentes no livro, entendendo a forma como elas se expressavam e como as escritas se mostravam. Nesta dissertação eu tinha uma dúvida que assim como a maioria de nossas dúvidas vai se desmembrando em várias, mas tudo começa no: Será que os coletivos culturais são uma porta de entrada e a morada de muitos saberes Ancestrais e a formação de uma identidade positiva negra? Para obter essa resposta, decidi cruzar as informações obtidas através dos relatos das mulheres sobre o antes e o depois do Ilú, o que mudou e o que as aproxima? Qual foi o papel do bloco ao acessá-las? O que foi possível? Juntamente com as minhas percepções e experiencias e escrever como se fosse só para meu registro, ou seja, de forma livre e não metódica e presa as paredes da academia, da mesma forma que foi pedida as cartas para elas, mesmo que eu tenha perguntas formuladas não 40 direcionei a elas essas perguntas. O passo seguinte foi ler minunciosamente as cartas das integrantes do bloco, ver o que elas dizem sobre esta vivência refletir sobre isso, buscar justificativas nas leituras feitas para as sensações trazidas, para os relatos de experiencia vividos. Enquanto escrevo a pesquisa nasce em mim o desejo de falar do corpo Ilú Obá, mas não no cortejo, ou seja, não no dia final do resultado, eu estou interessada no que forma este corpo. Não me interessa falar apenas do Candomblé nas ruas, apesar de achar que esse seria um assunto riquíssimo e necessário, mas, minha vontade é entender as células do corpo encantado do Ilú Obá de Min, quem são as mulheres? como os rostos se veem no espelho após a experiência que o Ilú proporciona, o que acontece com quem entra em contato com essa força? E como essa pessoa era antes? E a família? A família nota algo é um tsunami ou só atinge essa célula? É possível observar essas pequenas células através do sorriso delas? e esses corpos que compõe esse grande corpo, como eles existem durante o processo de carnaval? E como eles não existem? O que acontece com essas mulheres? Como é processo entre um carnaval e outro? O encanto que o Ilú me causa vai também pela grandeza do bloco, ao pensar no livro, nas cartas eu entendo o quanto o bloco tem mais a oferecer do que conseguimos imaginar ao acessá-lo uma primeira vez, ou vendo apenas o cortejo de rua. Fomos ensinados a não entender como arte a escrita, ou direcionados a entendê-la como uma arte menor, ou ainda, ela foi colocada diante de tantas regras que é quase impossível reproduzi-la enquanto arte, ainda mais a escrita de mulheres negras, por isso é importante ouvir ecoar em nós essas palavras de Anzaldúa: Minhas queridas hermanas, os perigos que enfrentamos como mulheres de cor escritoras não são os mesmos que mulheres brancas, mesmo que a gente tenha tanto em comum. Nós não temos tanto a perder - nós nunca tivemos privilégio nenhum. ANZALDÚA.p.44 Diante desta reflexão o melhor dizendo, desse chamado de Anzaldúa podemos entender que este texto também tem uma responsabilidade política de trazer estas mulheres, que são comumente colocadas a margem e tem seus escritos desrespeitados e rebaixados a algo menor, desinteressante ou de pouca importância como também escritoras e produtoras de conhecimento. Atualmente ler um conjunto 41 de textos deste tipo é algo grandioso e potente que não deve ser tratado sem carinho ou cuidado. Aqui temos uma proposta de conversa com estes relatos que presta atenção aos vários atravessamentos que a escrita dessas mulheres sofre e tem alma em cada um dos seus pedaços. 4. Nosso afeto é potência: O livro ou uma forma de ver o mundo. A voz de minha filha Recolhe todas as nossas vozes Recolhe em si As vozes mudas caladas Engasgadas nas gargantas. Conceição Evaristo, p.17 Nosso afeto é potência é bem mais que um livro. É um manifesto a favor das relações permeadas por amor e respeito que são possíveis apesar de todas as dores e descaminhos que já foram ofertados a nós, mulheres negras, e dos tempos tão sombrios que estamos vivendo, é mais uma das formas que o Ilú Obá encontrou de existir além do carnaval. Entenda, é verdade, o carnaval é de suma importância como uma das festas culturais brasileiras (ou mais uma das) que tem em sua história muito da cultura negra, e imaginar que um bloco que é formado por mais de 400 mulheres seria simples e de fácil leitura, é inocência. Como já disse anteriormente, o livro foi escrito a muitas mãos, com conselho editorial, ISBN, mas há mais, bem mais que a parte técnica nele. Há toda uma vida pulsante, que dança no ritmo dos tambores, Xequeres e Agogôs e que declara seu amor não só pelo Ilú Obá, mas pela unidade da comunidade construída no naipe do agogô. Quando a ideia do livro surgiu, lembro do furor que tomou conta das mulheres, tínhamos passado por um processo de carnaval bem diferente, foi a primeira vez que 42 o Bloco Ilú Obá de Min havia feito uma abertura de inscrições com ações afirmativas e uma comissão de Heteroidentificação para comprovar através de fotografias quem eram as mulheres inscritas para então admiti-las, explico por que; o Ilú Obá foi fundado em 2004, e mesmo com a proposta de ser um bloco afro, era um bloco muito embranquecido. Vários fatores contam nesta leitura, talvez por ser um bloco de localização central em São Paulo e a maior parte das mulheres negras morarem na periferia, talvez pela alta demanda de mulheres negras com jornada tripla de trabalho, o que as impossibilita de acrescentarem algo mais a sua rotina, ou ainda pelo número crescente de igrejas cristãs nas periferias e a eterna demonização das religiões de matriz afro, pois “(...) o racismo religioso tem como alvo um sistema de valores cuja origem nega o poder normatizador de uma cultura eurocêntrica hegemônica cristã.” NOGUEIRA, P.56, o que afasta muitas vezes as donas por direito ancestral desta cultura a assumirem este lugar, tomarem frente a sua cultura. O fato é que, o bloco foi crescendo ano a ano e quando começou a ficar muito grande e ter mais acesso e reconhecimento teve que controlar o acesso de integrantes para ter um número máximo de inscrições por processo de carnaval, isso limitou mais ainda o número de mulheres negras a acessarem, para se ter uma ideia, em 2016 em menos de uma hora já haviam encerrado as inscrições para o carnaval de 2017, e a maioria das mulheres que haviam entrado no bloco eram brancas. Podemos falar aqui que sem acesso à internet e/ou a internet de qualidade é quase impossível acessar um site, sem mencionar o fato que, mesmo sendo um bloco que toda e qualquer mulher podia acessar, os instrumentos e o figurino são gastos particulares de cada integrante, dependendo do grau de vulnerabilidade fica difícil o acesso de algumas mulheres ao bloco, e voltamos ao mesmo lugar, qual é o grupo mais propenso a sofrer com a vulnerabilidade social? Sim, as mulheres negras. Sendo assim em 2016, algumas integrantes iniciaram um movimento interno para mudar este jogo e tentar equalizar o acesso ao bloco, muito foi pensado e discutido o processo de carnaval; as integrantes negras pediam que algum tipo de posicionamento fosse assumido acerca deste assunto. Dois anos e muitas discussões depois, as inscrições no meio do ano de 2018 para o carnaval de 2019 foram as primeiras com este recorte racial, a ideia inicial era abrir primeiramente para as mulheres negras e depois as vagas remanescentes para mulheres em geral, porém, não houve vagas remanescentes, todas as vagas foram ocupadas por mulheres negras. A sensação deste processo de inscrição foi vitoriosa, 43 o plano era termos um número maior de mulheres negras e conseguimos. Logo, em 2019, quando o processo de carnaval que foi cercado de afeto e autocuidado acabou e surgiu a ideia do livro, foi um grande furor. Afinal como traz Conceição Evaristo: Constitui-se como uma escrita que corresponde ao que Homi Bhabha fala da poesia do colonizado. Essa não só encena o “direito de significar” como também questiona o direito de nomeação que é exercido pelo colonizador sobre o próprio colonizado e seu mundo. (EVARISTO. 2009. P.24) Esse é um furo na bolha que já conhecemos e justamente por ser uma bolha de opressão e silenciamento que muitas mulheres não se sentiam aptas a preencher as páginas de um livro com suas histórias, não se sentiam sujeitos para tal empreitada. Fizemos algumas conversas, oficinas, estendemos o prazo. Nem todas conseguiram enviar por diversos motivos, mas grande parte enviou e isso foi uma vitória. Quando: uma mulher como Carolina Maria de Jesus crê e inventa para si uma posição de escritora, ela já rompe com um lugar anteriormente definido como sendo o dela, o da subalternidade, que já se institui como um audacioso movimento. (Evaristo. 2009). Uma das centralidades desse processo era mais uma vez protagonizar a autonomia e a possibilidade criativa dessas mulheres, era uma proposta que ia além do carnaval, que faz parte na verdade das propostas do Ilú. Textos em mãos, organizados, capa pensada, tudo compartilhado e criado, temos um livro com nossas vozes impresso. Eu que escrevo desde sempre e nunca havia sido publicada lembro do que senti, eu estava ali, com minha escrita e meu nome em uma página de um livro! Decidimos que não pararíamos por aí e organizamos uma super cerimônia de lançamento para o nosso livro. Queríamos algo grande, nos atrevemos a sonhar e talvez por isso conseguimos reservar a Biblioteca Mario de Andrade e numa noite de outubro de 2019, estávamos lá, coloridas, felizes com livros em mãos trocando autógrafos entre nós. Lembro da sensação de ter o livro com o meu nome em negrito e olhar em volta ver um sem-número de mulheres negras abraçadas, olhando extasiadas ou repetindo quase que hipnotizadas, eu estou em um livro! O lançamento foi aberto, logo havia mães, namorados, namoradas, filhos, amigos. Foi uma noite muito linda e potente para cada uma daquelas mulheres, foi um marco, um recorte. Hoje em dia, quando lembro daquela noite e pego esse livro nas mãos entendo como 44 a literatura pode nos libertar, como a arte opera dentro das nossas vidas e nos dá poder, nos dá novas formas de observar a vida: Uma ideologia de libertação deve encontrar sua experiência em nós mesmos; ela não pode ser externa a nós e imposta por outros que não nós próprios; deve ser derivada da nossa experiência histórica e cultural particular (M.K. Asante, 1988, p. 31, apud Gonzalez 1988). Isso tudo que contei por si só já é gigante, mas, tem mais. Os relatos presentes no livro são de afeto, todos eles falam do poder transformador da vida em comunidade, do poder da irmandade, do afeto enquanto força de resistência e transformação e para nós, mulheres negras viver de amor, de afeto e de leveza é algo que não somos habituadas, um constante aprender a ser, aprender a estar, aceitar e permanecer. bell hooks em seu texto “Vivendo de amor” fala sobre essa dificuldade no ato de amar: O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar. (hooks. 2010. P.2) Diante disso, entender o quão transformador é estar em um livro falando dos caminhos que o afeto percorreu na vida dessas mulheres a partir do contato com o Ilú Obá é reconhecer que a resistência a processos dolorosos vem por meio do afeto e da comunidade. “O Ilú é um lugar que quando eu entrei me senti igual a todas, me achei livre.” esta é a primeira frase na página 149, que foi escrita por Mariana Pacheco, na época ela tinha 10 anos. Mariana é uma menina retinta, que já passou por situações não tão legais por ser uma criança negra, mas ao narrar a sua participação no agogô do Ilú naquele carnaval, ela fala que se sentiu igual a todas, e o que é ser igual a todas? Não ser mais vista como diferente, como estranha ou exótica, é um pertencer, ela também diz que se sentiu livre, ela tem uma admirável autoestima, conseguimos perceber no decorrer de suas falas, porém, mais que isso, nessas poucas palavras podemos perceber que o Ilú proporciona o pertencimento para ela, e é enriquecedor para nós, mulheres negras já adultas, podermos perceber que ela tem a liberdade de ser o que quiser ser e este acesso a outras possibilidades e realidades 45 desde menina. O Ilú Obá se prova como sendo um lugar seguro para a infância dessa menina, algo que se faz necessário para o fortalecimento da nossa existência enquanto seres humanos. E este relato se cruza com os relatos das outras mulheres de várias idades que estão neste espaço. Renata Balbino (167) diz: No primeiro ensaio que eu participei do Ilú eu chorei. Achei que a minha cabeça estaria muito preocupada em tentar tocar sem nunca literalmente ter colocado um agogô na mão, ou em me enturmar (eu, tímida e quieta, no meio de tantas mulheres que já sentia serem maravilhosas demais). Mesmo sem entender absolutamente nada, senti uma emoção e um conforto tão grande que me entreguei, como se estivesse no lugar certo na hora certa. E não entender nada é absolutamente real. Vim de uma formação cristã que, de uma forma ou de outra, desconhece tudo relacionado a crenças de matriz afro-brasileira. Nunca tive contato com nada relacionado a isso, então o conhecimento estava perto do zero. Temos uma nova visão de mundo a partir deste relato, ela nunca tinha tido contato real com o bloco, ou seja, o fato de nunca ter tocado um instrumento era um agravante que a podia ter paralisado, porém a deixou chegar até aquele espaço. Mas as barreiras invisíveis estavam ali, o fato de nunca ter tido contato com a cultura que é uma herança dela por direito, a cultura de terreiro e dos Orixás, ou até a timidez que ela trazia. Renata narra, nesse pequeno recorte, como se sentiu, narra a novidade de estar entre as mulheres com as quais ela se reconhece, trazendo assim uma reflexão muito importante do poder transformador que a liberdade das outras pode nos causar, é como se, ao ver uma igual livre ela tivesse então a permissão para o ser também, ela narra o pertencer, como foi para ela entender-se como parte, com outras palavras, ela e Mariana Pacheco falam sobre a mesma realidade, de um espaço onde podem ser, existir sem todas as amarras antes impostas. As duas experiências conversam entre si e com a minha vivência, o Ilú Obá é um emaranhado de histórias que confluem feito rio. O livro se torna então uma linda cantiga que cruza as experiencias de afeto e comunidade vividas através do tambor do Ilú Obá por meio das palavras, pois como diz Larrosa “As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras.” (larossa,2002 p.21). Se não 46 pensamos com uma certa genialidade e sim com nossas próprias palavras não conseguimos construir com a nossa imaginação uma possibilidade além do que já conhecemos, para ampliar este horizonte é preciso conhecermos mais, e a troca entre mulheres presente em todas as ações do Ilú Obá ocupam essa função, este livro então nada mais é que um relicário de tesouros escritos por mãos negras. Fazer parte desse grupo é uma redenção. De todos os nãos, das ruas que nos cuspiam e hoje abrem passagem para saudação dos orixás, do país que nos sequestrou história e corpos, desse continente e dessa terra que regamos com sangue, suor e sons. É na certeza de que esse mundo vamos dominar que eu existo em meio as outras e me enxergo em outras e renasço a cada domingo. Reparo dos cabelos, de postura, de fala, de sentidos que reabilita minha existência. (Pettine. 2019. P.141) Este relato de outra integrante, se inicia com uma palavra muito forte “redenção”, que aqui se encaixa em ascensão e por que não, mais uma vez, a liberdade. Podemos, também, experimentar a sensação de ser preterida, dispensada, ser suplantada a partir do fato de participar e partilhar de um bloco onde mulheres negras tem suas histórias e vivencias respeitadas e em evidência. histórias estas que são extremamente parecidas com a dela como se fosse uma permissão para que ela pudesse existir e sentir o que sentia, isso valoriza a experiencia dela, afinal: A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, ou o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. (LAROSSA, 2002 p.21) E é isso, esses relatos juntos falam sobre o que aconteceu a essas mulheres ao habitarem o Ilú Obá. Toda a experiencia compartilhada de rejeição, de tristeza, de falta de confiança, abandono que aparece em muitos dos relatos, é ressignificada ao entrar em contato com as histórias das outras mulheres dentro do bloco, todos os caminhos seguidos dentro da rotina de encontros e ensaios estabelecida pelo Ilú Obá, nos leva a um lugar onde a existência enquanto mulher negra é permitida e festejada. A construção de uma identidade se dá nesses encontros e no reforço das boas partilhas, ao verem uma imagem boa e livre do que pode ser é criada uma possibilidade de existência a partir daí. Esta existência em um primeiro momento pode 47 ser nova, desconhecida e um pouco assustadora como tudo o que é novo. Nós, mulheres negras, estamos acostumadas ao “não” e a sermos jogada sempre para escanteio é natural que demoremos um tanto para assumirmos o lugar que é nosso por direito, e ao acessarmos a vida e a história de outras mulheres vivenciando essa novidade conseguimos então, vislumbrar uma outra realidade e reunir forças para assumirmos a nossa própria vida, o lugar de comando dela. A pesquisa em artes e cultura, para mim existe para contar histórias, registrar histórias, tipo um álbum de fotografias onde as descrições, ou seja, as palavras são as responsáveis pelas imagens construídas e que fazem todo sentido para quem olha de fora entender o que se passa ali dentro. Falar do Ilú enquanto coletivo cu