UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA ÁREA DE ENSINO E APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA E SEUS FUNDAMENTOS FILOSÓFICO-CIENTÍFICOS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS RIO CLARO - SP 2024 O QUE NARRAM AS ALFABETIZADORAS A RESPEITO DA FORMAÇÃO EM ALFABETIZAÇÃO MATEMÁTICA PARA OS ESTUDANTES PÚBLICO-ALVO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL: EXPERIÊNCIAS A PARTIR DO PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO DA IDADE CERTA (PNAIC) RENATA APARECIDA DE SOUZA RENATA APARECIDA DE SOUZA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro RENATA APARECIDA DE SOUZA O QUE NARRAM AS ALFABETIZADORAS A RESPEITO DA FORMAÇÃO EM ALFABETIZAÇÃO MATEMÁTICA PARA OS ESTUDANTES PÚBLICO-ALVO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL: experiências a partir do Pacto Nacional pela Alfabetização da Idade Certa (PNAIC) Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito para obtenção do título de Doutora em Educação Matemática. Orientador: Prof. Dr. Emerson Rolkouski Rio Claro - SP 2024 S729q Souza, Renata Aparecida de O que narram as alfabetizadoras a respeito da formação em alfabetização matemática para os estudantes público-alvo da Educação Especial: : experiências a partir do Pacto Nacional pela Alfabetização da Idade Certa (Pnaic) / Renata Aparecida de Souza. -- Rio Claro, 2024 371 p. : tabs., fotos, mapas Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro Orientador: Emerson RolKouski 1. Matemática. 2. Narrativas. 3. Educação Especial. 4. Formação de Professores. 5. Políticas Públicas. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro RENATA APARECIDA DE SOUZA O QUE NARRAM AS ALFABETIZADORAS A RESPEITO DA FORMAÇÃO EM ALFABETIZAÇÃO MATEMÁTICA PARA OS ESTUDANTES PÚBLICO-ALVO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL: experiências a partir do Pacto Nacional pela Alfabetização da Idade Certa (PNAIC) Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Educação Matemática. Comissão Examinadora: Prof. Dr. Emerson Rolkouski Orientador Setor de Ciências Exatas/Universidade Federal do Paraná, campus de Curitiba Prof.ª Dr.ª Heloisa da Silva Instituto de Geociências e Ciências Exatas/Unesp, campus de Rio Claro Prof.ª Dr.ª Maria Ednéia Martins Salandim Faculdade de Ciências/Unesp, campus de Bauru Prof.ª Dr.ª Mirian Maria Andrade Universidade Federal Tecnológica do Paraná, campus de Curitiba Prof.ª Dr.ª Rosane Aparecida Favoreto da Silva Secretaria de Estado da Educação do Paraná Conceito: Aprovada. Rio Claro - SP, 23 de fevereiro de 2024. DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a Deus, que possibilitou a realização do meu Doutorado e que, em toda a minha caminhada, não me desamparou, tendo sempre me protegido e me guardado para que, após todas as minhas viagens, eu pudesse retornar para a minha família e encontrá-la com saúde e paz. AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, quero agradecer a Deus, por ter colocado alguns presentes em minha vida. Sim, posso chamar os meus amigos de “presentes de Deus”! Eles não pertencem à família consanguínea, mas são pessoas que fazem parte do meu mundo e que compartilham dos meus sonhos. Em especial, começo agradecendo ao meu amigo Marcelo Porrua e às minhas amigas Jorcelia e Sidriana, por terem acreditado no meu potencial e por me mostrarem o quanto eu era capaz, dirigindo-me, a todo instante, palavras de incentivo. À minha revisora Aline, por me acompanhar desde o Mestrado, fazendo as correções e adequações necessárias no meu texto com muito zelo e profissionalismo. Agradeço à minha querida e amável orientadora, Prof.ª Dr.ª Ivete Maria Baraldi (in memoriam), por ter aceitado o desafio de trilhar novos caminhos comigo até o momento em que assim Deus nos permitiu. Ao meu querido orientador, Prof. Dr. Emerson Rolkouski, que assumiu o compromisso de prosseguir com a pesquisa e, mesmo tão distante geograficamente, esteve presente em todos os momentos em que eu precisei. A todos os professores do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação Matemática (PPGEM), por compartilharem todos as suas experiências com zelo, dedicação e carinho. Às minhas amigas e ao meu amigo da “República Delas” e aos estudantes do PPGEM Samanta, Pamella e Andrei e, em especial, à minha amiga Rosicasia e à sua filha Júlia, por compartilharmos o mesmo lar durante alguns anos. Ao Hércules, à Eliane, à Geciara, ao Thiago, ao Rodrigo, ao André, à Débora, ao Zamir, ao Manuel, à Josiane e ao Fernandes, meus amigos do PPGEM — a todos, o meu carinho e o meu respeito por somarem conhecimento ao meu conhecimento, por dividirem as minhas angústias e por multiplicarem as minhas alegrias. Independentemente de qualquer situação, permanecemos juntos e, acima de tudo, companheiros. Aos amigos que a cidade de Rio Claro me proporcionou: Daia, Amanda, Kátia, Carol, João, e a Dona Maria. Devo também agradecer, de forma mais que especial, àqueles que viveram o meu objetivo, suportando a minha ausência e a minha presença ausente durante estes quatro anos de pesquisa: a minha família. Agradeço, assim, às minhas filhas Loyrrana, Maressa e Dhamires, minhas meninas superpoderosas, pelo carinho, pelo amor e pela compreensão. Este período tornou-nos ainda mais unidas. Ao meu genro Murillo e ao Felipe, meu “quase genro”. Aos meus pais, por sempre me apoiarem e me aconselharem. À minha irmã Sandra, por ser a tia acolhedora e, além disso, por muitas vezes, desempenhar o papel de mãe das minhas filhas. Ao meu irmão Edemilson, por ser o tio cuidadoso e o irmão companheiro nas horas mais difíceis. À minha cunhada Eliene e a todos os meus sobrinhos, por dividirem comigo alguns momentos de reflexões acadêmicas, mesmo sem terem consciência disso. À minha querida amiga e avó paterna das minhas filhas Loyrrana e Maressa, Maria de Lurdes, por sempre me apoiar e cuidar com muito zelo das suas netas. Às colaboradoras da minha pesquisa, por dedicarem tempo a esta pesquisa, concedendo- me entrevistas: Gilcinéia, Érica, Tatiane, Eleusa, Zilda, Sonia e Maria Edna. Ao Governo do estado de Mato Grosso e à gestão municipal de Araputanga no período de 2021 a 2024, por me concederem a licença qualificação profissional. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por financiar a minha pesquisa (Processo n.º 141357/2021-5). Como se diz (na África), cada partido ou nação enxerga o meio-dia da porta da sua casa — através do prisma das paixões, da mentalidade particular, dos interesses ou ainda da avidez em justificar um ponto de vista Amadou Hampâté Bâ (2010, p. 181–182). RESUMO Este trabalho tem por objetivo geral investigar a política de formação continuada do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) no ano de 2014, com foco na Educação Especial, buscando compreender essa formação em seus diferentes contextos: o de influência, o de produção de texto e o da prática de professoras alfabetizadoras pertencentes ao Vale do Jauru, estado de Mato Grosso. A pesquisa é de caráter qualitativo, articulada à da História Oral, e mobiliza a Abordagem do Ciclo de Políticas públicas de Stephen J. Ball (2011). Esse ciclo é composto por três contextos principais: o da influência, o da produção de texto e o da prática. A pesquisa está centrada, principalmente, no contexto da prática, considerando o efeito de primeira ordem, a partir de sete narrativas de professoras alfabetizadoras da referida região. São também considerados quatro contextos elaborados por Ball, Manguire e Braun (2021): os situados, as culturas profissionais, os materiais e os externos. Como resultados, é possível afirmar que, ao atuar com a política no contexto da prática, há diversas interpretações e atuações possíveis, justamente pelo fato de que os contextos de atuação e as pessoas que neles atuam são distintos. As narrativas das professoras alfabetizadoras evidenciaram que houve uma mudança entre a proposta prescrita para o programa e a atuada no referido ano — ou seja, houve diferentes formas de interpretação do PNAIC de Matemática, principalmente em relação ao material da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. As atrizes que atuaram com essa política, especificamente em relação à Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, tiveram diversos posicionamentos em relação aos momentos de reflexões, à troca de experiências entre os pares, à produção coletiva de materiais e à execução das atividades lúdicas em sala de aula com os estudantes público-alvo da Educação Especial. A História Oral, articulada à Abordagem do Ciclo de Políticas, teve um papel fundamental nesta pesquisa. Por sua vez, as fontes históricas foram importantes para atribuir significados à produção de conhecimento no campo da Educação Matemática. Essas fontes possibilitaram-nos um conhecimento mais verticalizado sobre a formação continuada do PNAIC de Matemática realizado em sete municípios do Vale do Jauru, a partir do protagonismo das sete professoras alfabetizadoras colaboradoras. Além disso, impulsionaram o entendimento de que a política pública, no campo educacional, não pode ser vista de maneira linear, como forma de “implementação” direta de ações no contexto da prática — ou seja, a ideia de que houver uma “implementação” deve ser revista e reconsiderada, pois cada política sofre alterações, desde o seu processo de construção até o seu desenvolvimento no contexto da prática, de onde se conclui que não se “implementa” algo pronto quando se trata de políticas públicas. Sendo assim, tais políticas devem levar em consideração os contextos da prática, pois eles são diversos, dadas as singularidades regionais, locais, sociais e culturais e as condições de trabalho de cada professora, bem como as suas histórias formativas, os seus valores e as suas crenças em relação ao processo de ensino e de aprendizagem. Palavras-chave: Matemática; Narrativas; Educação Especial; Formação de Professores; Políticas Públicas. ABSTRACT This work has as its main objective investigating the continuing education policy of the Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), Brazil’s National Pact for Literacy at the Right Age, in 2014, focusing on Special Education, in order to understand this program in its different contexts: the context of influence, the context of text production and the context of practice of female literacy teachers of the Vale do Jauru, state of Mato Grosso, Brazil. The research is of a qualitative in nature, linked to Oral History, and uses Stephen J. Ball’s Public Policy Cycle Approach (2011). Such a cycle is based on three main contexts: influence, text production and practice. This research is mainly focused on the context of practice, considering the first-order effect, based on seven narratives from literacy teachers of the Vale do Jauru. Four contexts proposed by Ball, Manguire and Braun (2021) are also considered: situated contexts, professional cultures, material contexts and external contexts. As a result, it is possible to state that, when acting with politics in the context of practice, there are different possible interpretations and actions, precisely because the practice contexts and the people who work in them are different. The narratives of the literacy teachers showed that there was a change between the proposal prescribed for the program and the one implemented in 2014 — that is, there were different ways of interpreting the PNAIC of Mathematics, mainly in relation to the Special Education material from the perspective of Inclusive Education. The literacy teachers who worked with this policy, specifically regarding Special Education from the perspective of Inclusive Education, had different positions in relation to moments of reflection, to the exchange of experiences among peers, to the collective production of materials and to the development of playful activities in the classroom with Special Education students. Oral History, linked to the Policy Cycle Approach, played a fundamental role in this research. In its turn, historical sources were important in attributing meanings to the production of knowledge in the field of Mathematics Education. These sources allowed us to better understand the continuing education policy of the PNAIC of Mathematics, carried out in seven municipalities of Vale do Jauru, based on the protagonism of the seven collaborating literacy teachers. Moreover, the research promoted the understanding that public policies, in the educational field, cannot be seen in a linear way, as a form of direct “implementation” of actions in the context of practice — that is, the idea that there is an “implementation” must be reconsidered, as each policy undergoes changes, from its construction process to its development in the context of practice, which leads to the conclusion that something ready-made cannot be “implemented” when it comes to public policies. Therefore, such policies must consider the different contexts of practice, as they are diverse, given regional, social and cultural singularities and the working conditions of each teacher, as well as their educational histories, values and beliefs regarding the teaching and learning processes. Keywords: Mathematics; Narratives; Special education; Teacher training; Public policy. LISTA DE FIGURAS Figura 1 — Abordagem do Ciclo de Políticas. ......................................................................... 51 Figura 2 — Cadernos de formação do PNAIC para a Alfabetização Matemática. ................ 102 Figura 3 — Cadernos de referências e de jogos do PNAIC. .................................................. 104 Figura 4 — Fio de contas. ...................................................................................................... 111 Figura 5 — Números em Braile. ............................................................................................ 112 Figura 6 — Recorte do caderno de número 3 sobre a construção do SND. ........................... 113 Figura 7 — Recorte do caderno de número 6. ........................................................................ 115 Figura 8 — Recorte do caderno de jogos. .............................................................................. 117 Figura 9 — Jogo da torre. ....................................................................................................... 262 Figura 10 — Jogo do 5. .......................................................................................................... 263 Figura 11 — Jogo da pirâmide. .............................................................................................. 263 Figura 12 — Jogo das pétalas. ................................................................................................ 264 Figura 13 — Jogo do tabuleiro. .............................................................................................. 265 Figura 14 — Jogo do triângulo. .............................................................................................. 268 Figura 15 — Vale do Jauru. ................................................................................................... 270 Figura 16 — Processo de interpretação e atuação da política do PNAIC no contexto da prática. ................................................................................................................................................ 342 LISTA DE QUADROS Quadro 1 — Resultados encontrados na BDTD. ...................................................................... 59 Quadro 2 — Leis e decretos que influenciaram a construção de políticas públicas voltadas para a Educação Especial no Brasil. ................................................................................................. 69 Quadro 3 — Definição dos estudantes público-alvo da Educação Especial, conforme a Política Nacional da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. .................................. 78 Quadro 4 — Nome dos cadernos de formação do PNAIC de Matemática e respectiva carga horária. .................................................................................................................................... 102 Quadro 5 — Encontros para a formação do PNAIC. ............................................................. 103 Quadro 6 — Datas dos encontros pelo Google Meet. ............................................................ 128 Quadro 7 — Roteiro 1: a infância e a família......................................................................... 134 Quadro 8 — Roteiro 2: a vida escolar. ................................................................................... 134 Quadro 9 — Roteiro 3: a formação e a atuação profissional.................................................. 134 Quadro 10 — Roteiro 4: a formação continuada. ................................................................... 135 Quadro 11 — Roteiro 5: o PNAIC de forma mais geral. ....................................................... 135 Quadro 12 — Roteiro 6: o PNAIC de 2014. .......................................................................... 135 Quadro 13 — Roteiro 7: a formação em Educação Especial e o ensino de Matemática apresentados no PNAIC de 2014. ........................................................................................... 135 Quadro 14 — Roteiro 8: sugestões referentes à formação continuada................................... 135 Quadro 15 — Informações sobre a Prof.ª Gilcinéia. .............................................................. 138 Quadro 16 — Informações sobre a Prof.ª Érica. .................................................................... 160 Quadro 17 — Informações sobre a Prof.ª Tatiane. ................................................................. 173 Quadro 18 — Informações sobre a Prof.ª Eleusa. .................................................................. 186 Quadro 19 — Informações sobre a Prof.ª Zilda. .................................................................... 209 Quadro 20 — Informações sobre a Prof.ª Sonia. .................................................................... 220 Quadro 21 — Informações sobre a Prof.ª Maria Edna. .......................................................... 230 Quadro 22 — Atores de políticas e trabalho com políticas. ................................................... 300 LISTA DE TABELAS Tabela 1 — Dados sobre a formação continuada de professoras alfabetizadoras do PNAIC no Brasil e em Mato Grosso (2013 e 2014). ................................................................................ 272 LISTA DAS PRINCIPAIS SIGLAS ADI — Auxiliar em desenvolvimento infantil AEE — Atendimento Educacional Especializado ANA — Avaliação Nacional de Alfabetização Apae — Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais BDTD — Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações Capes — Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Casies — Centro de Apoio e Suporte à Inclusão da Educação Especial Ceaada — Centro Educacional de Apoio ao Deficiente Auditivo Ceapro — Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica de Mato Grosso Ceel — Centro de Estudos em Educação e Linguagem Cefapro — Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica de Mato Grosso CNE — Conselho Nacional de Educação CNPq — Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Conae — Conferência Nacional de Educação Coneb — Conferência Nacional da Educação Básica Coned — Congressos Nacionais de Educação Consed — Conselho Nacional de Secretários de Educação DREs — Diretorias Regionais de Educação de Mato Grosso DUA — Desenho Universal para a Aprendizagem EJA — Educação de Jovens e Adultos Enem — Exame Nacional do Ensino Médio FNDEP — Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública Fundeb — Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação Funemat — Fundação Universidade do Estado de Mato Grosso Ghoem — Grupo de História Oral e Educação Matemática HO — História Oral IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Ideb — Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IES — Instituições de Ensino Superior Inep — Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira LBI — Lei Brasileira de Inclusão LDB — Lei de Diretrizes e Base da Educação Libras — Língua Brasileira de Sinais MEC — Ministério da Educação OCDE — Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OMS — Organização Mundial da Saúde ONGs — Organizações Não Governamentais ONU — Organização das Nações Unidas PAC — Plano de Aceleração do Crescimento Paic — Programa de Alfabetização na Idade Certa do estado do Ceará PAR — Plano de Ações Articuladas PCNs — Parâmetros Curriculares Nacionais PDDE — Programa Dinheiro Direto na Escola PDE-Escola — Plano de Desenvolvimento da Educação Pisa — Programa Internacional de Avaliação de Estudantes PNAIC — Pacto Nacional Pela Alfabetização na Idade Certa PNE — Plano Nacional de Educação PNLD — Programa Nacional do Livro Didático PPGECM — Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Mato Grosso PPGEdu — Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso PPGEM — Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática da Universidade Estadual Paulista PPP — Projeto Político-Pedagógico Profa — Programa de Formação de Professores Alfabetizadores Renafor — Programa Rede Nacional de Formação Continuada Saeb — Sistema de Avaliação da Educação Básica SDs — Sequências didáticas Seduc/MT — Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso SND — Sistema de numeração decimal TCA — Toda Criança Aprendendo TDAH — Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade UFMT — Universidade Federal de Mato Grosso Unemat — Universidade do Estado de Mato Grosso Unesco — Organizações das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura Unesp — Universidade Estadual Paulista Unicef — Fundo das Nações Unidas para a Infância SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 21 SEÇÃO 1: EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E EDUCAÇÃO ESPECIAL — DA MATERNIDADE À PESQUISADORA QUE SOU ............................................................ 29 SEÇÃO 2: CICLO DE POLÍTICAS PÚBLICAS — UMA LENTE ................................. 47 SEÇÃO 3: O CONTEXTO DE INFLUÊNCIA ................................................................... 58 3.1 Por que o PNAIC? ............................................................................................................ 58 3.1.1 Por que a Educação Especial em um programa como o PNAIC? ............................ 68 3.1.2 O contexto de influência e a Educação Especial no estado de Mato Grosso ........... 89 SEÇÃO 4: CONTEXTO DA PRODUÇÃO DE TEXTO DO PNAIC ............................... 94 4.1 Dos princípios de formação do PNAIC e da sua operacionalização ................................ 94 4.1.1 PNAIC: a formação das professoras alfabetizadoras ............................................... 98 4.2 Sobre a Alfabetização Matemática na perspectiva do letramento .................................. 101 4.3 O caderno de formação de Matemática: Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva ................................................................................................................................. 104 4.4 Inclusão: conhecendo um pouco mais sobre os cadernos da formação do PNAIC ....... 109 SEÇÃO 5: METODOLOGIA — A HISTÓRIA ORAL E A SUA ARTICULAÇÃO COM A ABORDAGEM DOS CICLOS DE POLÍTICAS PARA A CONSTITUIÇÃO DO PNAIC ATUADO PELAS PROFESSORAS ALFABETIZADORAS DO VALE DO JAURU ................................................................................................................................... 121 5.1 Metodologia de produção de dados e de análise ............................................................ 123 5.1.1 Percursos essenciais................................................................................................ 124 5.1.2 As entrevistas em período pandêmico .................................................................... 130 5.2 As narrativas das professoras alfabetizadoras do Vale do Jauru .................................... 137 5.2.1 A entrevista da professora alfabetizadora Gilcinéia ............................................... 138 5.2.2 A entrevista da professora alfabetizadora Érica ..................................................... 160 5.2.3 A entrevista da professora alfabetizadora Tatiane .................................................. 173 5.2.4 A entrevista da professora alfabetizadora Eleusa ................................................... 186 5.2.5 A entrevista da professora alfabetizadora Zilda ..................................................... 209 5.2.6 A entrevista da professora alfabetizadora Sonia .................................................... 220 5.2.7 A entrevista da professora alfabetizadora Maria Edna ........................................... 230 SEÇÃO 6: O PNAIC DE TODAS E O PNAIC DE CADA UMA DAS ALFABETIZADORAS DO VALE DO JAURU ............................................................... 270 6.1 O PNAIC de Mato Grosso da região do Vale do Jauru ................................................. 270 6.2 O PNAIC de todas .......................................................................................................... 279 6.2.1 O PNAIC da professora alfabetizadora Gilcinéia — do encantamento à aversão . 298 6.2.2 O PNAIC da professora alfabetizadora Érica — a experiência com a Sala de Recursos Multifuncionais ....................................................................................................................... 302 6.2.3 O PNAIC da professora alfabetizadora Tatiane — sequência didática .................. 307 6.2.4 O PNAIC da professora alfabetizadora Eleusa — experiência com a Educação Especial ................................................................................................................................... 310 6.2.5 O PNAIC da professora alfabetizadora Zilda — o uso de atividades lúdicas ........ 315 6.2.6 O PNAIC da professora alfabetizadora Sonia — “Se separou, não aconteceu” .... 319 6.2.7 O PNAIC da professora alfabetizadora Maria Edna — a experiência como interina e o contexto da prática ............................................................................................................... 328 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 333 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 351 APÊNDICES ......................................................................................................................... 364 21 INTRODUÇÃO No final da década de 1980 e no início da década de 1990, as pesquisas brasileiras privilegiaram discussões sobre a formação do professor enquanto sujeito pesquisador crítico e reflexivo acerca da sua prática pedagógica. Esse tópico — o da formação de professores no Brasil — está inserido em um campo de saberes desafiador, pois várias são as discussões que apontam fragilidades na construção de uma política pública de formação desses profissionais, seja ela inicial ou continuada. Ao falarmos em “formação de professores”, aludimos aqui especificamente aos professores com Licenciatura Plena em Pedagogia, que estão habilitados para atender aos estudantes1 da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I2. A formação desses profissionais vem sendo alvo de muitas críticas e também objeto de várias discussões. Muitos pesquisadores têm procurado identificar as necessidades formativas específicas dessas etapas e contribuir para o desenvolvimento de uma proposta adequada. A intenção é não apenas apresentar críticas ao fazer pedagógico em questão, mas, sobretudo, proporcionar reflexões que possam levar à construção de políticas públicas que eliminem as atuais barreiras formativas para esses professores, que são tão importantes para o desenvolvimento cognitivo e social de estudantes dos anos iniciais da Educação Básica3. No contexto de todas essas discussões, é importante voltarmos o nosso olhar para a formação das professoras alfabetizadoras4 que atuam diretamente com os estudantes que fazem parte do público-alvo da Educação Especial — pessoas com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento ou altas 1 Optamos pelo uso do masculino genérico, tão só a fim de evitarmos repetições ao longo do texto. Com essa escolha, pretendemos abarcar a diversidade de pessoas estudantes. O mesmo acontece com outras palavras escritas no masculino ao longo da tese. 2 O Ensino Fundamental consiste em um dos níveis da Educação Básica, obrigatória no Brasil. Ele tem duração de nove anos e é direcionado, na maioria das vezes, às pessoas com idade entre os seis e os 14 anos. A divisão do Ensino Fundamental se dá da seguinte maneira: os anos iniciais correspondem às séries cursadas do 1.º ao 5.º ano, destinadas às crianças entre os seis e os dez anos, sendo o primeiro ano a fase de alfabetização; já os anos finais compreendem as séries do 6.º ao 9.º ano para crianças e jovens entre 11 e 14 anos. Disponível em: https://bit.ly/41NVlFM. Acesso em: 30 jul. 2023. 3 O sistema educacional brasileiro é dividido em Educação Básica e Ensino Superior. A Educação Básica, conforme a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a LDB, passou a ser estruturada por etapas e modalidades de ensino, englobando a Educação Infantil, o Ensino Fundamental obrigatório de nove anos e o Ensino Médio (Brasil, 1996). 4 No decorrer do trabalho, utilizamos a expressão “professoras alfabetizadoras” para aludirmos às profissionais que trabalham com os estudantes das séries iniciais, correspondentes ao Ensino Fundamental I, uma vez que esse quadro funcional é, em sua maioria, ocupado por professoras. Sendo assim, para essa designação, “professor” ou “professores” aparecerão, sobretudo, em citações diretas e nas narrativas das colaboradoras. 22 habilidades/superdotação5. Nesta pesquisa, tratamos especificamente de estudantes matriculados na Educação Básica. Segundo Camargo (2012, p. 15), o professor deveria estar “preparado para planejar e conduzir atividades de ensino que atendam às especificidades educacionais dos alunos com e sem deficiência”6. Contudo, na prática, ao atender às orientações da política educacional inclusiva, muitos profissionais não se sentem aptos para desenvolver um trabalho que contemple as expectativas formativas do seu alunado. Em sua maioria, esses profissionais alegam falta de formação inicial e continuada para atuar com o público-alvo da Educação Especial. Sobre as recomendações para as formações docentes, sejam elas continuadas ou iniciais, Sales (2013) e Viana e Barreto (2014) afirmam que, na Matemática, as práticas pedagógicas dos professores que lidam com estudantes público-alvo da Educação Especial devem favorecer um ensino que valorize as especificidades desse público, com base em um currículo centrado não na ideia de “falta”, mas, sim, na ideia de “potencialidade de aprender”. De fato, esses estudantes requerem uma metodologia que leve a uma desconstrução da impossibilidade de aprendizado — ou seja, os professores devem compreender que todos têm condições de aprender e aprendem em tempos diferentes. Para isso, os profissionais que ensinam conhecimentos matemáticos a esses estudantes devem conhecer bem as especificidades didático-pedagógicas em questão, além das características sociais e culturais que também dizem respeito a esse público, assegurando que todos os estudantes sejam contemplados com o que prevê a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva7 (Brasil, 2008). Embora comemoremos 15 5 Fazem parte desse público as pessoas com deficiência, com transtornos globais de desenvolvimento ou com altas habilidades/superdotação (Brasil, 2008). 6 Há pelo menos duas maneiras de compreender a deficiência. A primeira a tem como uma manifestação da diversidade humana. Um corpo com impedimentos vivencia limitações de ordem física, intelectual ou sensorial, mas são as barreiras sociais que, ao ignorar esse corpo, provocam a experiência da desigualdade. Já a segunda forma de compreender a deficiência sustenta que ela “é uma desvantagem natural, devendo os esforços se concentrarem em reparar os impedimentos corporais, a fim de garantir a todas as pessoas um padrão de funcionamento típico à espécie. Nesse movimento interpretativo, os impedimentos corporais são classificados como indesejáveis e não simplesmente como uma expressão neutra da diversidade humana […]” (Diniz; Barbosa; Santos, 2009, p. 67). Nesta pesquisa, alinhamo-nos à primeira definição. 7 Todas as vezes em que, neste trabalho, referirmo-nos à Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, entendemos que ela tem como objetivo assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, orientando os sistemas de ensino para garantir: o acesso ao ensino regular, com participação, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados do ensino; a transversalidade da modalidade de Educação Especial desde a Educação Infantil até a Educação Superior; a oferta do atendimento educacional especializado; a formação de professores para o atendimento educacional especializado e de demais profissionais da Educação para a inclusão; a participação da família e da comunidade; a acessibilidade arquitetônica nos transportes, nos mobiliários, nas comunicações e na informação; e a articulação intersetorial para a efetivação de políticas públicas (Brasil, 2008, p. 14). 23 anos da aprovação dessa política, ainda hoje, esse modelo inclusivo é alvo de diversos questionamentos por parte de diferentes instâncias sociais, principalmente por parte dos professores que atuam diretamente com os estudantes público-alvo da Educação Especial. O fato de haver uma política educacional voltada para a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, que garanta o acesso dos estudantes público-alvo da Educação Especial à sala de aula comum8, não lhes asseguram nem a permanência nem o aprendizado. Quando uma política pública é elaborada, ela precisa levar em consideração os diferentes contextos que irão receber essa política, nos quais ela será colocada em ação. Em se tratando especificamente de uma política educacional, o contexto escolar é o local no qual essa política será interpretada, ressignificada e executada pelas professoras. Ao tratar de políticas públicas educacionais, esta pesquisa trouxe para o cenário investigativo uma política de formação continuada em serviço do Governo Federal — o programa Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), criado em 2012, cujos objetivos eram: I. Alfabetizar todas as crianças em Língua Portuguesa e em Matemática. II. Realizar avaliações anuais universais, aplicadas pelo Inep, junto aos concluintes do 3.º ano do ensino fundamental. III. No caso dos Estados, apoiar os Municípios que tenham aderido às Ações do Pacto, para sua efetiva implementação (Brasil, 2012, p. 11). O foco dessa política formativa não foi a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. No entanto, ela trouxe essa temática para o debate, especificamente na formação de Linguagem e na formação de Matemática. O material de formação da Matemática foi objeto de uma pesquisa de Mestrado no campo do Ensino de Ciências e Matemática, desenvolvida por mim na Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat)9, com foco na Educação dos estudantes surdos. Após essa pesquisa, foram formulados outros questionamentos, ampliando as discussões para incluir todos os estudantes público-alvo da Educação Especial e, então, desenvolver uma pesquisa em nível de Doutorado. O desenvolvimento de tais discussões possibilitou, ainda, uma reflexão sobre questões relacionadas à formação inicial e continuada dos professores, principalmente à formação que 8 É o espaço onde os estudantes, com ou sem deficiência, estão regularmente matriculados na Educação Básica, de acordo com a série e o ano. A responsabilidade de ensinar esse público é da professora regente da sala. 9 O Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino de Ciências e Matemática (ou PPGECM) em nível de Mestrado está vinculado ao campus universitário de Barra do Bugres da Unemat. Tem por objetivo geral formar profissionais na área de ensino, com uma visão epistemológica crítica para atuarem nos diferentes níveis e modalidades de ensino. O eixo norteador são os desafios tecnológicos impostos pela sociedade do século XXI. Disponível em: https://bit.ly/3RXnxS9. Acesso em: 12 jan. 2024. https://bit.ly/3RXnxS9 24 as professoras pedagogas têm recebido para atuar diretamente com o ensino da Matemática para os estudantes público-alvo da Educação Especial que estão vivenciando o seu processo formativo na Educação Básica. Surgiram, assim, outros questionamentos sobre a formação continuada do PNAIC e sobre os possíveis impactos dessa formação no contexto da prática das professoras alfabetizadoras de todo o Brasil. Diante dessas indagações, a nossa atenção foi direcionada para a política pública de formação continuada do PNAIC do ano de 2014, ofertada para as professoras alfabetizadoras, especificamente no que diz respeito aos estudantes público-alvo da Educação Especial. Por entendermos que, em todo o território nacional, não teríamos, de imediato, condições de proceder a um mapeamento direto desses impactos, de forma um pouco mais restrita, mas não menos significativa, foi proposto um estudo envolvendo as professoras alfabetizadoras de uma região do estado de Mato Grosso chamada de “Vale do rio Jauru” ou “Vale do Jauru”10. Nesta pesquisa, partimos dos seguintes questionamentos: quais foram as percepções que as professoras alfabetizadoras do Vale do Jauru tiveram sobre o ensino da Matemática para os estudantes público-alvo da Educação Especial, após receberem a formação proporcionada pelo PNAIC em 2014?; quais foram as percepções acerca da Educação Especial e das formações continuadas, em particular as realizadas no âmbito de políticas públicas, presentes nas narrativas das professoras alfabetizadoras do Vale do Jauru?; quais desafios as professoras alfabetizadoras enfrentaram no que diz respeito ao ensino da Matemática para os estudantes público-alvo da Educação Especial, particularmente durante e após a formação do PNAIC de 2014?; que elementos poderiam ser incorporados à formação continuada das professoras alfabetizadoras que contribuiriam para a construção de uma prática pedagógica no ensino da Matemática para os estudantes público-alvo da Educação Especial? Partindo dessas indagações, a pesquisa mobilizou a Abordagem do Ciclo de Políticas Stephen J. Ball (2011). Esse ciclo é composto por três contextos principais. O da influência refere-se ao momento em que as políticas públicas se iniciam, quando os discursos são construídos e tencionados por disputas de diferentes grupos de interesses. O contexto da produção de texto está relacionado à materialização da política pública, por diferentes meios — textos oficiais, leis, decretos, pronunciamentos oficiais sobre os textos oficiais, vídeos etc. O contexto da prática está relacionado ao local onde a política será interpretada, ressignificada e atuada. Esta pesquisa está centrada, principalmente, no contexto da prática, considerando o efeito de primeira ordem, a partir de sete narrativas de professoras alfabetizadoras da região 10 Neste trabalho, a pesquisadora optou pela designação “Vale do Jauru”, por ser uma expressão que utiliza há vários anos. 25 do Vale do Jauru. São também considerados quatro contextos elaborados por Ball, Manguire e Braun (2021): os situados, as culturas profissionais, os materiais e os externos. O objeto deste estudo é a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. O objetivo geral é investigar a política de formação continuada do PNAIC no ano de 2014, com foco na Educação Especial, buscando compreender essa formação em seus diferentes contextos: o de influência, o de produção de texto e o da prática das professoras alfabetizadoras pertencentes ao referido vale. De modo a direcionar as ações para o desenvolvimento deste trabalho, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos: apresentar, por meio dos contextos situados, culturas profissionais, contextos materiais e contextos externos, as percepções que as professoras alfabetizadoras do Vale do Jauru tiveram sobre o ensino da Matemática para os estudantes público-alvo da Educação Especial, durante e após receberem a formação proporcionada pelo PNAIC em 2014; apresentar as percepções acerca da Educação Especial e das formações continuadas, em particular as realizadas no âmbito da política pública do PNAIC, presentes nas narrativas das professoras alfabetizadoras do Vale do Jauru; discutir os desafios que as professoras alfabetizadoras revelaram sobre ensino da Matemática para os estudantes público-alvo da Educação Especial, particularmente durante e após a formação do PNAIC de 2014; identificar, a partir da análise de narrativas, quais saberes foram incorporados à formação continuada das professoras alfabetizadoras que contribuíram para a construção da prática pedagógica no ensino da Matemática para os estudantes público-alvo da Educação Especial. A pesquisa está baseada em uma abordagem qualitativa. Recorremos à metodologia da História Oral para analisar as narrativas de sete professoras alfabetizadoras das redes municipal e estadual que participaram da formação do PNAIC no ano de 2014. As profissionais são de sete municípios, todos pertencentes ao Vale do Jauru do estado de Mato Grosso, conforme já mencionado. São eles: Araputanga11, Barra do Bugres12, Cáceres13, 11 Cidade de Mato Grosso, localizada a 338 km da capital Cuiabá. De acordo com estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, a população era de 17.078 habitantes. Disponível em: https://bit.ly/47tLHcT. Acesso em: 20 jun. 2023. 12 Cidade de Mato Grosso, localizada a 150 km da capital Cuiabá. De acordo com estimativas do IBGE, em 2022, a população era de 29.403 habitantes. Disponível em: https://bit.ly/3tLnJMk. Acesso em: 02 out. 2023. 13 Cidade de Mato Grosso, localizada a 214 km da capital Cuiabá. De acordo com estimativas do IBGE, em 2022, a população era de 89.478 habitantes. Disponível em: https://bit.ly/3RHXJJy. Acesso em: 02 out. 2023. 26 Glória do Oeste14, Mirassol do Oeste15, Porto Esperidião16 e Tangará da Serra17. A metodologia da História Oral é utilizada pelo grupo de pesquisa do qual os autores fazem parte — o Grupo História Oral e Educação Matemática (Ghoem)18. Nesta pesquisa, essa metodologia foi articulada à Abordagem do Ciclo de Políticas de Stephen J. Ball (2011), que apresenta elementos teórico-conceituais que possibilitam o entendimento do processo de constituição de uma política pública e da sua avaliação. A Abordagem do Ciclo de Políticas apresenta três principais contextos interconectados: o contexto de influência, o contexto da produção de texto e o contexto da prática. Quanto aos resultados desta pesquisa, a intenção é lançar contribuições para a discussão e a elaboração de políticas públicas que orientem o processo de formação continuada das professoras que atuam na Educação Básica, para que essas profissionais possam atuar em sala de aula levando em consideração as especificidades dos estudantes público-alvo da Educação Especial que fazem parte do processo educacional inclusivo brasileiro. A partir disso, poderão surgir outras reflexões, que abrirão possibilidades para novas investigações. A escrita desta tese de Doutorado, além desta parte introdutória e das considerações finais, está estruturada em seis seções. Na primeira, intitulada “Educação Matemática e Educação Especial — da maternidade à pesquisadora que sou”, narro a minha história de vida, com destaque para o momento da maternidade, quando me entende como mãe de uma filha surda. Essa experiência foi fundamental para a minha constituição como pesquisadora e para o meu envolvimento com a temática da Educação Especial e da Matemática. Na segunda seção, “Ciclo de Políticas Públicas — uma lente”, abordamos os conceitos de “política”, “política pública” e “política educacional”, aos quais este trabalho investigativo está filiado. Em seguida, apresentamos a teoria da Abordagem do Ciclo de Políticas de Stephen J. Ball e de seus colaboradores. A terceira seção, que intitulamos “O contexto de influência”, foi dividida em duas subseções. Na primeira, apresentamos, a partir do contexto de influência, os discursos internacionais, nacionais e estaduais que colocaram o PNAIC na agenda política 14 Cidade de Mato Grosso, localizada a 300 km da capital Cuiabá. De acordo com estimativas do IBGE, em 2021, a população era de 2.990 habitantes. Disponível em: https://bit.ly/3HbchN5. Acesso em: 02 out. 2023. 15 Cidade de Mato Grosso, localizada a 288 km da capital Cuiabá. De acordo com estimativas do IBGE, em 2021, a população era de 26.785 habitantes. Disponível em: https://bit.ly/41NRHM8. Acesso em: 02 out. 2023. 16 Cidade de Mato Grosso, localizada a 322 km da capital Cuiabá. De acordo com estimativas do IBGE, em 2021, a população era de 10.024. Disponível em: https://bit.ly/48I9Ay9. Acesso em: 20 out. 2022. 17 Cidade de Mato Grosso, localizada a 240 km da capital Cuiabá. De acordo com estimativas do IBGE, em 2022, a população era de 107.631 habitantes. Disponível em: https://bit.ly/46YI0gl. Acesso em: 02 out. 2023. 18 O Ghoem foi criado em 2002, por iniciativa de um coletivo interessado em discutir a História Oral e as suas possibilidades para a Educação Matemática (Garnica, 2023). https://bit.ly/3HbchN5 27 brasileira. A formação incluiu, pela primeira vez, a temática da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva para as professoras alfabetizadoras brasileiras no ano de 2014. Essa apresentação foi feita com base em um levantamento de pesquisas relacionadas ao tópico em questão na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Na segunda subseção, apresentamos de que maneira o discurso da Educação Especial, na perspectiva da Educação Inclusiva, entrou para a agenda da política pública de formação de professoras alfabetizadoras do PNAIC de 2014 e como essas influências apareceram também em alguns documentos legais no estado de Mato Grosso, mesmo que o foco da formação não fosse necessariamente a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva e, sim, a formação em Matemática. Em seguida, em nova seção, apresentamos o contexto da produção de texto do PNAIC, com base em dois momentos — no primeiro, é apresentada a operacionalização do PNAIC; no segundo, os cadernos de formação do PNAIC de Matemática e, de forma mais detalhada, o caderno de Educação Inclusiva19. Já a quinta seção, que explicita a metodologia de pesquisa, tratando da História Oral e da sua articulação com a Abordagem do Ciclo de Políticas para a constituição do PNAIC atuado pelas professoras alfabetizadoras do Vale do Jauru, ficou reservada para as discussões sobre o contexto da prática. Ela foi dividida em três subseções. Na primeira, foi apresentada a metodologia de pesquisa da História Oral, visando à construção de fontes, a partir de entrevistas das professoras alfabetizadoras. Tais entrevistas constituíram fontes escritas, fundamentais para elucidar compreensões sobre o PNAIC atuado por essas profissionais no contexto da prática, após a formação de Matemática, especificamente sobre a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Na segunda, foi abordado o contexto da prática, por meio da contextualização do PNAIC realizado no estado de Mato Grosso, especificamente nos sete municípios que correspondem aos loci da pesquisa. A terceira subseção foi reservada para a apresentação das entrevistas realizadas com as sete professoras alfabetizadoras do Vale do Jauru. A sexta e última seção, intitulada “O PNAIC de todas e o PNAIC de cada uma”, analisou as narrativas das sete professoras alfabetizadoras colaboradoras da pesquisa e as percepções delas quanto à 19 Cabe salientar que o caderno que discutiu sobre a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva foi denominado como “Educação Inclusiva”, ou seja, mesmo o foco do caderno sendo as discussões sobre os estudantes público-alvo da Educação Especial, os elaboradores optaram por deixar a temática muito abrangente. Neste trabalho, optamos por especificar de qual grupo da Educação Inclusiva iremos tratar. Portanto, o trabalho investigativo está direcionado para os estudantes público-alvo da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Essa escolha se justifica exatamente pelo fato de muitas pessoas ainda considerarem que a inclusão somente é destinada às pessoas com deficiência. Na verdade, ela abrange todos os grupos que, historicamente, foram excluídos da sociedade, incluindo povos originários, mulheres, negros, pessoas com vulnerabilidade social, entre outros. 28 formação que receberam do PNAIC no ano de 2014 em relação à Matemática, especificamente quanto aos estudantes público-alvo da Educação Especial. Para tanto, levou-se em consideração o contexto da prática, nomeadamente o contexto de resultados e efeitos, por se tratar de uma política de formação da qual as professoras alfabetizadoras participaram há cerca de 10 anos. É importante referir que, segundo Ball (2011), para que possa ser observado o efeito de determinada política, é necessário respeitar uma temporalidade de mais de cinco anos. Desse modo, direcionou-se a atenção para o efeito de primeira ordem, a partir das narrativas das professoras alfabetizadoras, com a finalidade de entender quais mudanças estruturais e pedagógicas aconteceram nas escolas dessas professoras após a formação do PNAIC, tendo em vista os quatro contextos elaborados por Ball, Manguire e Braun (2021): contextos situados, culturas profissionais, contextos materiais e contextos externos. Por último, apresentamos as considerações finais da pesquisa. 29 SEÇÃO 1: EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E EDUCAÇÃO ESPECIAL — DA MATERNIDADE À PESQUISADORA QUE SOU Ao refletir sobre como dar início a esta tese, senti a necessidade de narrar o meu processo formativo — o processo que me tornou a professora e a pesquisadora que sou hoje. Retomarei as minhas memórias, proporcionando ao leitor o acesso a um movimento não linear dos acontecimentos, mas dinâmico e necessário para a construção de diferentes histórias. Isso significa que essas minhas memórias poderão me levar por alguns caminhos dos quais eu até preferiria não lembrar; em outros momentos, certamente, a narrativa me fará retomar sentimentos maravilhosos e únicos. Melhor seria lembrar, recorrendo às palavras de Portelli (2016, p. 45), que a “[…] memória não é boa nem má. A memória simplesmente é: não podemos decidir se teremos ou não memória, e só conseguimos controlar parcialmente o seu conteúdo e o seu funcionamento”. É importante também frisar que não deixarei de ser a pesquisadora para me tornar narradora; ambos os lugares de fala estão em consonância e, com o movimento da memória e da escrita, buscarei historiar parte da minha formação, que me proporcionou e ainda me proporciona aprendizado para me tornar professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental e pesquisadora na área da Educação Especial em uma perspectiva inclusiva. Meu nome é Renata Aparecida de Souza. Eu sou filha de Neide Gonçalves de Souza e Pedro Jerônimo de Souza. A minha mãe é natural de Potirendaba1, estado de São Paulo, e meu pai é de Boqueirão de Barreiras2, estado da Bahia. As dificuldades financeiras de meus avós fizeram com que eles deixassem o interior baiano e paulista e se aventurassem para a cidade de São Paulo. Foi assim que meus pais se conheceram e iniciaram a nossa família. Contudo, a experiência da cidade grande e o trabalho como metalúrgico não satisfaziam os projetos do meu pai. Em busca de novas oportunidades, ele se encantou pela propaganda da colonização3, 1 Cidade brasileira do estado de São Paulo, localizada a 440 km da capital homônima. De acordo com estimativas do IBGE, em 2022, a população era de 18.496 habitantes. Disponível em: https://bit.ly/47tKq5F. Acesso em: 02 out. 2023. 2 Atualmente, essa cidade recebe o nome de “Sebastião Laranjeiras” e está localizada a 908 km da capital Salvador. De acordo com estimativas do IBGE, em 2022, a população era de 9.360 habitantes. Disponível em: https://bit.ly/47AcnsA. Acesso em: 02 out. 2023. 3 A publicidade feita pelo Governo Getúlio Vargas na década de 1930 era a de que o projeto “Marcha para Oeste”, empreendido durante o Estado Novo no final da década de 1930 e início da década de 1940, traria mudanças grandiosas para os solos mato-grossenses. Contudo, a região sudoeste de Mato Grosso foi especialmente castigada durante esse processo de colonização — sofreram muito as pessoas que para cá vieram com a promessa de terem acesso ao progresso, tendo sido esquecidas por sucessivas gestões locais durante muitos anos (Alves, 1997). 30 a qual ficou conhecida como “Marcha para Oeste”4. Quando eu tinha um ano e oito meses, os meus pais se mudaram para o estado de Mato Grosso, adquirindo uma pequena propriedade para cultivar a terra e sobreviver da agricultura familiar na comunidade de Cachoeirinha, no município mato-grossense de Araputanga. A promessa frustrada de dias melhores veio desacompanhada de responsabilização por parte do Governo local, que abandonou os meus pais à própria sorte, assim como o fez com várias outras famílias que vieram tentar uma nova vida aqui em Mato Grosso. Somente a luta e a persistência foram aliadas na trajetória de colonização. A falta de infraestrutura também se refletia na falta de acesso à escola, pois não existia transporte escolar. Os estudantes, em sua maioria, faziam o trajeto a pé. A minha irmã e o meu primo vivenciaram essa realidade: aos sete anos, foram matriculados em uma escola rural e caminhavam cerca de quatro quilômetros, entre ida e volta. Essa situação desagradava o meu pai, mas não havia alternativa à época. Mesmo desanimado com a vida na roça, ele estava engajado nas demandas da comunidade. Por ser muito comunicativo e morar em um local pequeno, ele ficou conhecido por várias pessoas. A sua popularidade chamou a atenção de algumas representatividades políticas e, em 1980, ano em que a cidade de Araputanga estava elegendo o seu primeiro prefeito, meu pai foi convidado a trabalhar na campanha eleitoral de Delci Garcia dos Santos (in memoriam). Após a vitória desse candidato, passou a compor a gestão municipal. Assim, em 1982, mudamo-nos para a cidade de Araputanga, onde tive o meu primeiro contato com o ambiente escolar na Escola Estadual Dr. Joaquim Augusto da Costa Marques5. Lá cursei todo o meu primário e o meu ginásio — ou seja, estudei lá da 1.ª até a 8.ª série. Foram anos de 4 A “Marcha para o Oeste” foi uma política pública engendrada pelo Governo de Getúlio Vargas durante o Estado Novo, a fim de desenvolver e integrar as regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil, que até aquele momento apresentavam uma baixa densidade populacional. Disponível em: https://bit.ly/48Bx3RM. Acesso em: 23 nov. 2023. 5 Localizada em Araputanga, foi criada pelo Decreto n.º 230, de 23 de outubro de 1979, publicado no Diário Oficial do estado de Mato Grosso na mesma data. Tratou-se de uma iniciativa de uma liderança política local, o Sr. Shiguemitu Sato, doador legal do terreno, e da sua esposa Elizabeth Eiko Nakaghi Sato, conforme registro da escritura pública no Cartório do Primeiro Ofício Aurélio Olegário de Campos, pertencente ao município de Cáceres (livro n.º 153, folhas 44/45, datadas de 31 de maio de 1977). É uma escola considerada inclusiva, pois atende a alunos público-alvo da Educação Especial. Está localizada em bairro privilegiado da cidade, o Jardim Primavera. Apenas 14,4% das crianças que estudam na escola residem no bairro; as demais crianças estão distribuídas nos bairros circundantes, conforme distribuição a seguir: centro — 21,5%; Cidade Alta — 11,5%; Independente — 0,5%; Jardim Anápolis — 1,9%; Jardim do Braz — 8,1%; Jardim dos Ipês — 3,8%; Jardim Primavera — 14,4%; Jardim Vilage — 4,3%; São Sebastião — 7,2%; São Luis — 4,3%; São Francisco — 2,9%; e Santo Antônio — 3,3%. A escola atende a 28 turmas do 1.º ao 9.º ano, perfazendo um total de 695 estudantes regularmente matriculados nas salas regulares, além de 10 estudantes matriculados na Sala Multifuncional. A idade média dos estudantes varia entre os seis e os 14 anos, tendo alguns poucos estudantes com 15 anos finalizando o Ensino Fundamental no 9.º ano. Do total de estudantes, apenas 14,4% moram no mesmo bairro no qual a escola está localizada — ou seja, 85,6% moram em outros bairros, desde os mais perto até os mais distantes. Os dados aqui referidos foram obtidos no Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola (2019). 31 muitas alegrias compartilhadas com bons amigos em sala de aula e fora dela. Tive a oportunidade de estudar com vários professores, em sua maioria excelentes profissionais, dos quais me emociono ao falar, porque sempre tive muito apreço por eles. Hoje percebo que os professores com os quais mais me identifiquei durante a Educação Básica foram aqueles que utilizavam uma metodologia de ensino bem diferenciada em relação ao que era esperado na época. Eles valiam-se de jogos que eram confeccionados com materiais concretos e faziam parte do cotidiano dos alunos, como, por exemplo, tampinhas de garrafas de refrigerante. De maneira lúdica, ensinavam os conteúdos e respeitavam e valorizavam o nosso aprendizado. Hoje, essa lembrança me levou a refletir sobre os métodos de ensino que utilizamos em aulas. Embora as aulas fossem configuradas com base em modelo dinâmico, na minha concepção, faltava atendimento e avaliação para aqueles estudantes que, de algum modo, estavam na sala e não conseguiam aprender ou se motivar para realizar as atividades com mais autonomia. Acompanhei o fracasso de muitos colegas meus. Embora lhes fosse reservado o tempo de recuperação e embora se esforçassem para atingir a nota mínima e garantir a aprovação, alguns não conseguiam e eram reprovados, passando a ser reconhecidos na escola como estudantes “repetentes”. Muitos colegas, ao vivenciarem esse modelo educacional, sentiam- se inferiorizados em relação aos demais estudantes e desistiam de estudar. Outros persistiam em aprender, mas não obtinham o apoio dos professores e de seus familiares e eram retirados do ambiente escolar. Em observação à rotina dos meus colegas no ambiente escolar, acompanhei o primeiro dia de aula de uma turma em uma sala bem pequena ao lado da minha, os quais foram recepcionados por uma professora segurando um bolo de aniversário nas mãos. Para minha surpresa, a professora era aquela que, anos anteriores, havia praticado agressões físicas em seus alunos, inclusive na minha irmã mais velha. Os estudantes da turma eram muito inquietos e corriam pela escola; a professora, sem êxito, tentava sozinha acalmá-los, precisando da ajuda de outros profissionais. Entendi que o bolo tinha outra função naquele ambiente, além de servir como gesto de boas-vindas. Tratava-se de um atrativo para que os estudantes ficassem em sala. Depois de muito tempo, compreendi que aquela sala, aquela professora e aqueles estudantes faziam parte da Educação Especial e ficavam sempre separados com a sua professora. 32 Estudei nessa escola até a 8.ª série, hoje 9.º ano do Ensino Fundamental II. Iniciei o 2.º grau, hoje Ensino Médio, em uma escola particular, no Propedêutico6, e depois retornei para a escola estadual onde concluí, aos 17 anos, o curso Técnico em Contabilidade, embora o meu sonho fosse me formar em Direito. Esse desejo de ser advogada ficou para trás. À época, não havia universidade na minha cidade, e meu pai, por ser muito conservador, não permitiu que eu me mudasse para a capital para fazer o curso. Aos 19 anos, arrisquei-me em um casamento que, apesar das várias cicatrizes que me causou, trouxe-me enorme aprendizado e o mais importante de tudo: duas filhas maravilhosas, que me deram força e inspiração para sobreviver às violências domésticas. A experiência não muito exitosa no casamento e as circunstâncias financeiras me levaram a trabalhar. Assim, consegui o meu primeiro trabalho na docência com uma turma de Alfabetização do Ensino Fundamental da Educação de Jovens e Adultos, a EJA7. Essa turma fazia parte de um programa do Governo Federal e da Secretaria Municipal de Educação, que era a responsável por disponibilizar o prédio e o professor. Iniciei a docência sem nenhuma formação para tal. Confesso que foi muita audácia da minha parte, mas, naquela época, o estudante que terminasse o 2.º grau poderia iniciar a docência, uma vez que a escassez de profissionais habilitados na área era imensa. Após um ano de experiência com a turma da EJA, no ano de 1997, foi-me atribuída uma turma de Educação Infantil. Assim, com o passar do tempo, vi-me imersa no mundo educacional infantil. Aprendia a lecionar lembrando-me das aulas das minhas professoras e em contato com amigas e colegas, que já estavam trabalhando na sala de aula há mais tempo do que eu. Essa interação me permitiu um aprendizado baseado na troca de experiências entre pares — mesmo elas não tendo cursado uma Graduação específica para a área de atuação, que, no nosso caso, seria a Licenciatura em Pedagogia. No dia 29 de junho de 1999, nasceu minha primogênita. Isso significou uma mudança radical em minha vida, não apenas pelo desafio de ser mãe, mas porque, acompanhando as agruras normais da maternidade, eu me deparava com uma exigência muito complexa — a de cuidar de uma bebê surda. O diagnóstico da surdez da minha filha não veio no momento do 6 Em geral, refere-se a uma Educação iniciadora para uma especialização posterior. Como característica principal, temos uma preparação geral básica capaz de permitir o desdobramento posterior de uma área de conhecimento ou estudo. Disponível em: https://bit.ly/3tJPh4E. Acesso em: 28 set. 2022. 7 É uma modalidade de ensino destinada a educandos jovens e adultos que não puderam concluir seus estudos na idade adequada. O curso é ofertado em três etapas, sendo a fase I correspondente do 1.º ao 5.º ano do Ensino Regular (séries iniciais do Ensino Fundamental); e a fase II correspondente do 6.º ao 9.º ano do Ensino Regular (séries finais do Ensino Fundamental) e Ensino Médio. Disponível em: https://bit.ly/3RRodIE. Acesso em: 12 jan. 2024. https://bit.ly/3RRodIE 33 seu nascimento, pois, à época, não existiam os exames médicos que existem hoje para esse tipo de diagnóstico. Embora eu tivesse contraído rubéola no período gestacional, não houve a preocupação médica de realizar exames pós-parto na bebê. Foi meu instinto materno que me levou a realizar um teste de forma não convencional. Em uma madrugada, minha filha acordou chorando muito. Como naquela noite ela estava dormindo ao meu lado, tive a ideia de chamá- la, repetidamente, com diferentes níveis sonoros. Assim o fiz, mas ela, indiferente, continuava o seu choro. Então, resolvi tocar em sua perna, e ela de imediato se acalmou. Naquele momento, tive a certeza de que minha filha não ouvia. Na tentativa de normatizar minha bebê, iniciei uma intensa jornada direcionada pelo olhar clínico e terapêutico. Fui a vários especialistas para que minha filha pudesse realizar o implante coclear8; como isso não foi possível, fui orientada sobre o uso do aparelho de amplificação sonora9. Foram anos de muita preparação para que ela desenvolvesse a fala. Eu a levava para a fonoaudióloga, para a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae)10 e também para a sala de estimulação precoce11 na escola onde fiz o meu 1.º grau. Quando entrei com a minha filha, ainda bebê, naquele ambiente, dei um novo significado à professora com o bolo na mão à espera dos seus alunos. Aquela sala, com aqueles estudantes que viviam separados dos demais, foi a primeira sala de aula da minha filha. Naquele momento, eu iniciei o contato com a Educação Especial, conheci outros estudantes surdos e pude acompanhar o trabalho com o método oralista12. Naquela época, a professora, assim como a minha filha, eu 8 “As intervenções cirúrgicas em pacientes surdos têm sido alvo de muita polêmica. A recuperação da audição, nesses casos, vai depender de inúmeras variáveis, mas há muito ceticismo em caso dos surdos profundos, especialmente adultos. Nos experimentos em que um surdo tenha se submetido ao implante, o resultado é sempre drástico, pois, além de se tratar de um método invasivo para a colocação do dispositivo interno, o sucesso com as respostas auditivas dependerá de vários fatores: idade do surdo, tempo de surdez, condições do nervo auditivo, quantidade de eletrodos implantados, situação da cóclea, tempo da surdez, trabalho fisioterápico de fonoaudiólogo, acompanhamento periódico do médico para ativação e ajustes no dispositivo do implantado etc. Há quem considere todos esses fatores irrelevantes, mas tenho observado e conversado com colegas surdos implantados e a satisfação não é tão expressiva […]” (Gesser, 2009, p. 75–76). 9 Aparelhos auditivos são dispositivos eletrônicos utilizados dentro ou atrás da orelha, cuja função é emitir sons mais altos. Há diferentes tipos de aparelho para atender a diferentes necessidades individuais, que variam conforme o grau de perda auditiva. 10 Sociedade civil, filantrópica, de natureza cultural, educacional e assistencial. Além de pais e amigos do público-alvo, toda a comunidade pode contribuir para a associação. O objetivo é promover ações de prevenção, diagnóstico, reabilitação, tratamento e inclusão social de pessoas com deficiência. A instituição oferece Educação Especial e estrutura para o tratamento de deficiências físicas e intelectuais, estando presente em mais de 2 mil municípios em todo o território nacional. Disponível em: https://bit.ly/41Q14uU. Acesso em: 02 out. 2023. 11 “Para crianças público-alvo da Educação Especial, do nascimento aos três anos, o Atendimento Educacional Especializado se efetivará por meio de serviços de estimulação precoce, que objetivam otimizar o processo de desenvolvimento e aprendizagem em interface com os serviços de saúde e assistência social” (Mato Grosso, 2022, p. 21). 12 Treinar a audição por meio do desenvolvimento do resíduo auditivo para que o surdo aprendesse a discriminar os sons e, consequentemente, pudesse desenvolver a sua fala era a base da filosofia dos defensores do oralismo. https://bit.ly/41Q14uU. 34 e os demais estudantes surdos não tínhamos contato com a Língua Brasileira de Sinais, a Libras. Era comum o uso de uma comunicação gestual e de sinais “caseiros”13, criados e convencionados entre os familiares. Ensinar, naquele período, consistia em treinar a fala, ou seja, era um ensino pautado no oralismo. Era perceptível a dificuldade que tanto minha filha quanto os outros estudantes surdos mais velhos tinham em desenvolver a oralidade. Algumas vezes, cheguei a questionar a professora, mas ela sempre dizia que o sucesso para a aquisição da fala dependeria de alguns fatores, como, por exemplo, estímulo por parte dos pais, acompanhamento por profissional da fonoaudiologia e uso do aparelho auditivo. O mais importante era que os pais não utilizassem sinais para se comunicarem com os seus filhos. Embora eu seguisse com precisão todas essas orientações com a minha filha, não via resultados; pelo contrário, presenciava uma agitação constante por parte dela, e a forma de ela se expressar era por meio de gritos, talvez porque sentisse a necessidade de estabelecer uma comunicação conosco e não conseguisse. Mesmo assim, eu continuava a estimulá-la de acordo com as instruções da escola. O tempo passou e, no ano de 2000, chegou até mim a oportunidade de fazer uma Graduação oferecida pelo projeto “Parceladas”14, da Unemat do campus de Pontes e Lacerda. As aulas aconteciam em Araputanga, município onde resido até hoje. Pelo fato de eu morar em uma cidade longe da universidade, eu não desfrutava da oportunidade de estudar, algo que tinham algumas jovens sem família para cuidar. Outro fator de impedimento era não ter o apoio do meu então cônjuge para enfrentar um trajeto noturno diariamente até a cidade de Cáceres, onde fica o campus da Unemat15 — ele não aceitava que eu me ausentasse da minha cidade para estudar. Reviver esse período da minha formação acadêmica é sempre muito bom, porque foi uma oportunidade ímpar em minha vida tanto pessoal quanto profissional. Foi um período de Eles também enfatizavam a importância da leitura labial como via de comunicação. Como consequência das práticas oralistas, os surdos não aprenderam a falar. Conseguiam pronunciar apenas algumas palavras que eram repetidas de forma mecânica, sem saber o que elas realmente significavam. Esse método resultou em milhões de surdos analfabetos e aqueles que passaram por essa metodologia trazem marcas negativas em suas vidas até os dias atuais (Streiechen, 2012). 13 Vilhalva (2009) afirma que os sinais criados conforme a necessidade individual podem ser chamados de “gestos caseiros”, “práticas linguísticas” ou “sinais emergentes”. 14 O projeto “Parceladas”, da Unemat, foi criado em 1992 como uma modalidade diferenciada de ensino, com objetivo de atender às demandas de formação de professores em diferentes regiões de Mato Grosso. O modelo de formação presencial oferecido em regime parcelado ou em regime contínuo serviu de exemplo para outras universidades brasileiras. Disponível em: https://bit.ly/3H8N4mD. Acesso em: 02 out. 2023. 15 Pela Lei Complementar n.º 30, de 15 de dezembro de 1993, foi criada a Unemat, mantida pela Fundação Universidade do Estado de Mato Grosso, a Funemat. O campus universitário “Jane Vanini” atende a todos os municípios circunvizinhos — Araputanga, Curvelândia, Glória do Oeste, Lambari do Oeste, Mirassol do Oeste, Porto Esperidião, Rio Branco, Salto do Céu e São José dos Quatro Marcos — e a todas as comunidades rurais dos municípios. Disponível em: https://bit.ly/3RXWpma. Acesso em: 12 jan. 2024. https://bit.ly/3RXWpma 35 dedicação completa ao curso de Pedagogia, haja vista que, quando iniciei essa formação, eu já exercia a docência. Ao todo, foram cinco anos de estudos, durante os períodos de férias. O calendário era pensado para atender à realidade dos estudantes, pois as “Parceladas” eram para os professores que estavam atuando em sala de aula e não tinham o Ensino Superior. De início, eu depositei na minha Graduação a esperança de obter respostas para os meus questionamentos quanto ao ensino e à aprendizagem da minha filha. Entretanto, nas aulas, eu sentia falta de discussões a respeito dos estudantes que apresentavam desafios de aprendizagem, inclusive a respeito dos estudantes surdos. Eram várias perguntas, mas todas sem respostas. De maneira sutil, os professores se esquivavam das minhas perguntas. De fato, eu percebia que os meus questionamentos e a minha dificuldade de compreensão sobre o assunto também eram partilhados pelos meus professores. Por outras palavras, tratava-se de um gargalo da formação deles. Eles não se sentiam seguros em direcionar algum debate a respeito, sugerindo que, provavelmente, eu teria respostas se fizesse outra Graduação. Na verdade, à época, pouco se falava a respeito da aprendizagem dos estudantes que “fracassavam” e acabavam excluídos do ambiente escolar, o que era considerado “normal”. Por vezes, a minha insistência sobre o tópico dos estudantes com deficiência era recebida até com intolerância por parte de alguns professores e dos próprios colegas de turma. Como já referi, quando iniciei a Graduação, eu já exercia a docência, e essa realidade me proporcionou várias reflexões. Uma delas foi perceber que o curso de Pedagogia que eu estava fazendo foi pensado apenas para uma turma homogênea, na qual todos os alunos aprendem tudo e de uma mesma maneira. Isso me incomodava, pois eu compreendia que os estudantes eram diferentes um dos outros e aprendiam de formas diferentes, principalmente aqueles que faziam parte dos estudantes público-alvo da Educação Especial. Desse modo, o curso deveria estar atento a essas especificidades, mas não era o que eu estava verificando na minha formação. Assim, foi uma frustração perceber que, no decorrer desse curso, os meus anseios não foram atendidos quanto à formação para atuar com os estudantes que, de certo modo, apresentavam especificidades para aprender. É compreensível que os professores não dessem conta da complexidade do assunto em questão; no entanto, o diálogo deveria ter acontecido, e isso não se verificou. Por outro lado, foi nesse mesmo ambiente formativo que encontrei possibilidades que me permitiram trilhar novos caminhos e adentrar outros lugares em busca de respostas para as minhas indagações. Eu já fiz esse relato em outros momentos da minha vida, mas devo trazê-lo, novamente, neste trabalho, pois da minha memória não se apaga algo que definitivamente marca a vida de qualquer ser humano: a dificuldade de aceitação da minha 36 filha por parte de alguns colegas de trabalho, inclusive dos que estavam fazendo Pedagogia comigo, era enorme. Quando caminhava com uma amiga pelos corredores da faculdade, em um intervalo, falava sobre a minha filha e sobre a dificuldade que ela estava enfrentando na escola em que estava matriculada: rejeitada pela professora regente, por não conseguir manter uma comunicação, ela se encontrava acuada e desestimulada. Narrava para a minha amiga o convite que havíamos recebido da diretora da escola para uma conversa, porque a professora havia reclamado dos gritos emitidos pela minha filha — os pais dos demais estudantes também estavam incomodados com essa situação. Como uma boa diretora, disse ela, ela estava lá para resolver a situação. Então, a minha filha foi convidada a sair da escola — essa diretora sugeriu que eu levasse minha pequena apenas duas vezes por semana; assim, não atrapalharia os colegas ouvintes. De imediato, retruquei e disse a ela para fazermos o contrário: a minha filha iria todos os dias frequentar as aulas, e os demais colegas ficariam em casa, retornando apenas nos dois dias da semana sugeridos pela gestora. A minha proposta, claro, não foi aceita e, na verdade, eu também não queria que fosse, porque todos os estudantes têm o direito de estar e aprender juntos. Além disso, quando alguém fala que o seu filho não é bem-vindo em um local, por mais que revejam essa afirmação, aquele ambiente passa a ser indesejado para sempre. Talvez seja por isso que eu evite trabalhar naquela escola até hoje. Retorno à situação da conversa que estava tendo com a minha amiga. Aproximamo- nos, essa amiga e eu, de um dos nossos professores e continuamos a nossa conversa, quando, para a minha surpresa e total ira, o professor me faz a seguinte pergunta: “Por que você não ensina Libras para sua filha?”. Ele continuou: “Você já ouviu falar sobre Libras?”. Eu prontamente engatei um discurso marcado histórica e ideologicamente pela não aceitação da Libras. O profissional em questão era o Prof. Edson Pereira Barbosa16. Ele tentou argumentar a favor, mas, no momento, preferi me conter e, mais uma vez, ele me impactou com mais uma pergunta: “Você já escolheu um tema para sua monografia?”. Rapidamente, também assustada, respondi que ainda não tinha ideia do que pesquisar. Então, ele sorriu e me disse: “Você está diante de um tema muito interessante; aproveite e faça a sua pesquisa sobre esse assunto sobre o qual conversava”. 16 Tem Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) (2002), Doutorado em Educação Matemática pela Unesp de Rio Claro (2012). É professor efetivo, adjunto I da UFMT, campus de Sinop. Tem experiência nas áreas de Matemática e formação de professores. Disponível em: https://bit.ly/41XoVZK. Acesso em: 12 jan. 2024. https://bit.ly/41XoVZK 37 Como eu era totalmente influenciada pelo método oralista, de imediato, aceitei o desafio e mergulhei em um tema polêmico. Contudo, eu sentia a necessidade de provar para o professor que a Libras não iria suprir as necessidades comunicativas da pessoa surda, até porque a sociedade antiga e também a hodierna são constituídas, na sua maioria, por pessoas ouvintes, que utilizam a fala como meio de comunicação. Portanto, os surdos precisam se apropriar do padrão dos ouvintes e precisam aprender a falar. Essa era uma tese crucial que eu estava decidida a provar para todos. Assim, em minha monografia, decidi pesquisar sobre a família, a surdez e a utilização da Libras como meio de comunicação. Foi com essa pesquisa que percebi o quanto eu estava equivocada em relação ao aprendizado da língua de sinais pela pessoa surda. Ao conhecer a cultura, a identidade e a diferenciação linguística da pessoa surda, pude compreender que o ponto de partida para a inclusão seria a aceitação por parte da família, pois o ambiente familiar é o primeiro espaço de que todas as crianças, ao nascerem, fazem parte, independentemente de serem surdas ou não. Portanto, não é a criança surda que deve se esforçar para se enquadrar na língua oral de seus pais ouvintes; pelo contrário, cabe aos familiares aprenderem essa nova língua, a fim de garantir uma relação saudável e segura para o filho surdo. Após constatar o fracasso do método oralista, segui em uma corrida contra o tempo: estava com um sentimento de dívida para com minha filha, pois havia demorado muito tempo para aceitar a sua condição de ser surda e o seu direito de se comunicar em Libras. Juntas, eu e ela buscamos o aprendizado dessa nova língua, até então desconhecida. Com lembranças vívidas, a minha memória me transporta para a sala de minha casa, onde a minha filha e eu estudávamos os sinais. Contamos com a ajuda de uma amiga minha, que havia feito Especialização em Libras. Ela nos presenteou com alguns DVDs, que traziam os clássicos infantis em Libras. Foram anos, dia e noite, durante finais de semana e feriados, aprendendo Libras juntas. Eu via a fascinação da minha filha em aprender a língua que era dela. Rapidamente, ela desenvolveu um bom repertório linguístico e, de forma espetacular, se comunicava comigo e com os demais colegas surdos. Com isso, ela foi se sentindo muito mais confiante. Entretanto, o seu desenvolvimento escolar não era satisfatório. Ela tinha dificuldade na escrita, na leitura e faltava-lhe a aquisição de alguns conceitos mínimos para a fase que estava cursando. Outro agravante era que ela não conseguia manter uma comunicação com os seus colegas de sala e a professora ouvinte. Para dificultar a situação, ela não contava com um 38 profissional tradutor-intérprete17 em sala de aula. Vivenciei essa mesma dificuldade de aprendizagem também no ambiente escolar com outros alunos, pois, no ano de 2006, assumi uma determinada turma em uma escola estadual. O meu maior desafio foi lecionar para cinco estudantes público-alvo da Educação Especial. Dois deles eram surdos. Em uma sala com quase 30 crianças, na época, eu não contava com a presença do profissional tradutor- intérprete. Naquele ano eu refleti muito sobre a prática docente e as metodologias de ensino. Busquei contemplar a todos os estudantes no meu plano de ensino. Contudo, sei que, naquele período, eu errei muito. Por outro lado, também aprendi — inclusive, percebi as minhas necessidades formativas. Uma delas seria a de um curso específico para melhorar o meu vocabulário em Libras. Ainda no ano de 2006, passei em um concurso municipal. Essa conquista me proporcionou um novo movimento em minha formação. Fui convidada pela Secretária de Educação a assumir uma turma de 5.º ano da Escola Municipal José Evaristo Costa18, na qual havia uma estudante surda. Segundo a então secretária, eu tinha o perfil para trabalhar com essa estudante, pois a minha experiência de mãe de uma menina surda constituiria um ponto de partida, ainda mais visto que os demais professores eram totalmente leigos nas questões do ensino para a Educação dos surdos e rejeitavam a sala. Mesmo sem formação específica, assumi a turma. A Secretaria de Educação assumiu o compromisso de proporcionar a mim uma formação específica na área. Assim, iniciei o trabalho com essa estudante surda e, no ano seguinte, matriculei minha filha na mesma escola onde eu trabalhava. Fui professora dela e de mais uma menina surda. Nesse período, fui fazer um estágio de observação em uma escola de surdos em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e, posteriormente, em Cuiabá, no Centro Educacional de Apoio ao Deficiente Auditivo (Ceaada)19. Lá conheci outras realidades e possibilidades de 17 É a pessoa que traduz e interpreta a língua de sinais para a língua falada e vice-versa, em quaisquer modalidades que se apresentar (oral ou escrita) (Brasil, 2004). 18 Situada na Rua José Caldeira Vila, no bairro São Francisco, a escola foi criada em 30 de março de 1993 pelo Decreto de n.º 010/1993, com autorização para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. É mantida pela Prefeitura Municipal de Araputanga e atende às comunidades rurais e urbanas, desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental de 1.ª a 4.ª série, ou seja, do 1.º ano do 1.º ciclo ao 2.º ano do 2.º ciclo. Atualmente, a instituição conta com um quadro de 46 funcionários, sendo 25 professores, 13 profissionais do apoio administrativo educacional, dois técnicos administrativos, três monitoras, um diretor e dois coordenadores pedagógicos (estes atuantes na escola). Dos 25 professores, dois estão designados para as aulas de articulação e um para a sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE). Os dados aqui referidos foram obtidos no PPP da escola (2023). 19 A Escola Prof.ª Arlete Pereira Migueletti (Ceaada/MT) tem por objetivo proporcionar atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência auditiva (surdez leve, moderada, profunda e severa). O Ceaada oferece ao seu alunado e à comunidade em geral serviços de apoio especializado: intérprete de Libras, instrutores surdos e, ainda, oficinas de Linguagem e bilinguismo em foco, inclusão digital, Educação Física adaptada e cultura e arte (Mato Grosso, 2012). 39 ensino — inclusive, pela primeira vez, ouvi falar da Lei n.º 10.436/200220 e do Decreto n.º 5.626/200521. Ao retornar para o meu município, mencionei o direito que os estudantes surdos tinham de contar com um profissional-intérprete durante as aulas. Contudo, fui ignorada. A não contratação desse profissional se justificou com base no argumento de que a minha presença em sala de aula era o suficiente para garantir o aprendizado das estudantes. Não me deixei abater diante dessa indiferença e procurei o Centro de Apoio e Suporte à Inclusão da Educação Especial (Casies)22, órgão da Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (Seduc/MT). Em seguida, iniciei um curso para intérprete e fui aprovada no ano de 2010. Mesmo assim, não me colocaram na função de tradutora-intérprete. Infelizmente, manter um diálogo frutífero com a secretária a esse respeito era impossível — as estudantes ficaram sem o profissional intérprete em sala de aula todo o Ensino Fundamental I. No ano de 2010, as alunas concluíram o Ensino Fundamental I e, quando deixaram a escola municipal, foram estudar na Escola Estadual Nossa Senhora de Fátima23. Ao iniciarem o ano letivo, em 2011, não contaram com o apoio do tradutor-intérprete, pois a contratação desse profissional esbarrou em alguns empecilhos, como a falta de profissionais habilitados na área. A atitude da gestão escolar em questão foi completamente diferente da atitude da escola municipal — as estudantes contaram com o apoio e a sensibilidade da equipe escolar, que rapidamente enviou as documentações necessárias para que eu assumisse a função de tradutora-intérprete das alunas. Desse momento em diante, passei a interpretar para as estudantes surdas daquela escola. Foi com essa prática em sala de aula que fui desconstruindo a visão de que o acesso ao conhecimento da pessoa surda estava fundamentado na presença 20 Dispõe sobre a Libras e dá outras providências. Reconheceu a Libras como meio legal de comunicação e expressão no Brasil, com seu sistema linguístico de natureza visual e motora, com sua estrutura gramatical própria, com um sistema linguístico de transmissão de ideia e fatos próprios de comunidades surdas do país. Disponível em: https://bit.ly/47DipIX. Acesso em: 12 jan. 2024. 21 Regulamenta a Lei n.º 10.436 e o art. 18 da Lei n.º 10.098, de 19 de dezembro de 2000, a qual, por sua vez, estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. Disponível em: https://bit.ly/3OrpPbx. Acesso em: 12 jan. 2024. 22 O Centro de Apoio e Suporte à Inclusão da Educação Especial do estado de Mato Grosso (Casies/MT) é uma unidade administrativa da Secretaria de Estado de Educação, Esporte e Lazer, sendo considerado um centro de referência da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, tendo, portanto, a competência de ofertar apoio e suporte à inclusão da Educação Especial, a partir dos seguintes eixos operacionais: atendimento, orientação e avaliação pedagógica; suporte técnico e produção de material didático adaptado; formação continuada para os professores e profissionais da Educação; apoio e orientação aos estudantes, professores e às famílias; e promoção da interação e convivência. Disponível em: https://bit.ly/3TRXqi4. Acesso em: 19 jun. 2023. 23 Situada na Rua Marquês de Pombal, n.º 445, bairro Jardim Primavera, no município de Araputanga. Foi criada pelo Decreto n.º 1027/12/1991 para atender ao Ensino Fundamental (regular e EJA) e ao Ensino Médio (regular e EJA). A realidade em que a escola se insere atende a alunos de todas as classes sociais, sem qualquer distinção, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio. São alunos oriundos da zona urbana e da zona rural, em sua maioria, adolescentes e jovens, com poucos adultos e idosos, mas com procura destes para estudar na unidade escolar. Os dados aqui referidos foram obtidos no PPP da escola (2022). https://bit.ly/47DipIX https://bit.ly/3OrpPbx 40 do tradutor-intérprete. Obviamente, a presença desse profissional é uma das ações para garantir ao estudante surdo um ambiente inclusivo e, consequentemente, o seu aprendizado, mas apenas ele não é o bastante para o desenvolvimento desse alunado. Ao observar as aulas e ao ouvir os relatos dos professores, eu percebia que os meus colegas ainda sentiam dificuldades em proporcionar atividades que viessem ao encontro das necessidades formativas dos estudantes público-alvo da Educação Especial. Muitos desses professores alegavam total desconhecimento para esse ensino e, muitas vezes, delegavam a mim a função de ensinar e elaborar as atividades, embora a coordenação já os tivesse orientado sobre a verdadeira função do tradutor intérprete na sala de aula. Uma minoria dos professores tentava utilizar uma metodologia diferenciada. Alguns desses, às vezes, até conseguiam, mas a falta de conhecimento sobre a surdez e sobre o processo de ensino e de aprendizagem para os estudantes do público-alvo em questão era gritante. Os professores diziam-me que não haviam recebido formação inicial ou continuada para atuarem em sala de aula com essa realidade. Essa alegação, que soa como um discurso pronto por parte dos professores, passou a ser, para mim, uma inquietação, a ponto de me levar constantemente a fazer alguns questionamentos, tais como: “Qual seria a formação inicial que poderia dar conta da complexidade que envolvem os estudantes público-alvo da Educação Especial?”, “Se a formação inicial é considerada insuficiente por parte de alguns professores, o que poderia a formação continuada contribuir para as práticas pedagógicas dos professores?” ou “Os professores estariam ancorados a um discurso homogeneizador de ensino e, por isso, as suas práticas estariam voltadas apenas aos estudantes que não apresentam nenhuma necessidade de metodologias inclusivas?”. No ano de 2012, o Governo Federal promoveu uma formação continuada voltada para as professoras alfabetizadoras — trata-se do PNAIC. Por motivos pessoais, não pude participar da formação, mas observava o trabalho das minhas colegas durante a participação deles e ouvia os seus depoimentos. Umas falavam positivamente do programa; outras o criticavam, alegando o fato de ser preciso investir em compras de materiais; outras se queixavam de um sentimento de dívida ou obrigação, devido à bolsa que estavam recebendo para participar da formação. Como o PNAIC em Araputanga foi o assunto mais discutido entre as professoras durante a sua execução, não pude deixar de acompanhar o programa. No ano de 2014, o material que veio para ser estudado foi referente à Alfabetização Matemática. Conversando com as colegas e folheando esse material, o que mais me chamou a atenção foi o caderno de Educação Inclusiva, pois vi, no material, uma possibilidade da formação continuada para as 41 professoras alfabetizadoras, uma vez que elas sempre pontuavam a ausência de formação nessa área. A formação sobre essa temática para as professoras alfabetizadoras das escolas estaduais do município de Araputanga foi realizada por uma professora do Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica de Mato Grosso (Cefapro)24. Recebi o convite por parte da orientadora de estudo responsável para participar da formação. Os encontros formativos tiveram por objetivo discutir algumas deficiências e também trabalhar algumas práticas para o ensino de crianças público-alvo da Educação Especial. Em dois dias, a professora se esforçou ao máximo para discutir algumas das especificidades de cada deficiência e apresentar, embora de forma muito rápida, vários materiais que ela mesma havia construído no decorrer de sua experiência como professora formadora da área da Educação Especial. As professoras participantes gostaram da formação, mas questionaram a sua curta duração quando considerada a importância do tema. Eu fiquei com várias indagações. As mais salientes se referiam ao próprio material do PNAIC, à pessoa surda e à formação das professoras, especificamente das professoras formadoras. Desde a Graduação, eu fui incentivada por meus professores a cursar uma Pós- Graduação, mas, quando terminei o curso de Pedagogia, eu tinha outras prioridades — uma delas era ter a minha estabilidade financeira. Por isso, foquei nos estudos e fui aprovada em um concurso em 2006, efetivando-me como professora das séries iniciais na rede municipal. No ano de 2010, fui aceita em um concurso estatual para exercer a unidocência25 e iniciei a minha experiência no Ensino Superior na Faculdade Católica Rainha da Paz (Fcarp)26. Após essas conquistas, eu precisei me dedicar integralmente à função de professora e esperar passar um período probatório de três anos. Contudo, no decorrer desse tempo, eu nunca deixei de estar envolvida no processo de ensino e aprendizagem com um olhar voltado às questões do ensino e da aprendizagem dos estudantes público-alvo da Educação Especial, à formação de 24 Surgiu da iniciativa de uma formação continuada, realizada por meio do Centro de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (Cefam), em Mato Grosso, em 1989 (Gobatto, 2015). O Governo de Mato Grosso sancionou a Lei n.º 11.668, que instituiu as Diretorias Regionais de Educação (DREs) no âmbito da Seduc/MT, fazendo a união das assessorias pedagógicas com os 15 Cefapros. 25 A professora que exerce a unidocência é a responsável por ministrar as aulas de todas as disciplinas na Educação Infantil e Ensino Fundamental do 1.º ao 5.º ano. 26 Mantida pela Fundação Arco-Íris de Araputanga, é uma organização sem fins lucrativos e de objetivos sociais, estando localizada na cidade de Araputanga, região noroeste do estado de Mato Grosso. Tem como missão: “Gerar e estimular atividades de ensino, pesquisa e extensão comprometidas com o desenvolvimento humano, econômico e social da região, baseadas em princípios cristãos”. Iniciou o seu funcionamento em 13 de março de 2000, oferecendo à comunidade local e regional os cursos de Administração, Ciências Contábeis e Letras. No ano de 2005, ampliou a sua oferta, com a criação dos cursos de Educação Física e Sistemas de Informação; em 2006, foi instituído o curso de Direito; em 2013, o curso Tecnológico em Gestão da Tecnologia da Informação; em 2016, o curso de Licenciatura em Pedagogia; em 2018, os cursos Tecnológicos em Segurança no Trabalho e Gestão do Agronegócio e o Bacharelado em Engenharia de Produção. Disponível em: https://bit.ly/48FCM8Y. Acesso em: 28 set. 2022. 42 professores para atuarem com esse público e às pesquisas que estavam sendo realizadas sobre a temática. Os questionamentos que eu fiz no período de formação do PNAIC, em 2014, foram amadurecendo. Foi possível unir as minhas inquietações relacionadas à formação docente e à surdez ao ensino de Matemática. Com isso, elaborei o meu pré-projeto de pesquisa para participar da seleção de Mestrado ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PPGECM) da Unemat, campus Barra do Bugres27, que se deu no final de 2016. Fui aprovada e tive como orientadora a Prof.ª Dra. Maria Elizabete Rambo Kochhann28, uma ótima profissional por quem tenho grande respeito e admiração. Ela aceitou o desafio de orientar uma pesquisa científica quando ainda havia uma carência de profissionais que se envolviam com assuntos da Educação Especial, especificamente com as questões da surdez. O trabalho de pesquisa contou com a coorientação da Prof.ª Dra. Nilce Maria da Silva29, cuja experiência acadêmica, principalmente com as questões da Educação de surdos, foi fundamental para nosso trabalho. Essa minha pesquisa de Mestrado teve como título “O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa PNAIC: formação e prática dos professores alfabetizadores no ensino da Matemática para alunos surdos” e como objetivo compreender, discursivamente, quais foram as efetivas contribuições do programa para a formação dos professores alfabetizadores atuantes no ensino da Matemática para alunos surdos. O corpus foi integrado pelos oito cadernos de formação adotados pelo programa e pelo caderno voltado à Educação Inclusiva. O estudo discutiu as formações e as práticas dos sujeitos30, professoras alfabetizadoras que atuavam nos anos iniciais do Ensino Fundamental com o ensino da Matemática para estudantes surdos. Também foi objeto da nossa atenção a formação inicial e continuada das professoras, especificamente as professoras licenciadas em Pedagogia. As 27 Está vinculado ao campus universitário da Unemat de Barra do Bugres. Tem por objetivo geral formar profissionais na área de ensino, com uma visão epistemológica crítica para atuarem nos diferentes níveis e modalidades de ensino. O eixo norteador são os desafios tecnológicos impostos pela sociedade do século XXI. Disponível em: https://bit.ly/3RXnxS9. Acesso em: 12 jan. 2024. 28 Docente efetiva na Licenciatura em Matemática — Educação Matemática da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Tem Graduação em Ciências com habilitação em Matemática pela Universidade de Ijuí (1989), Mestrado em Educação pela UFMT (2002) e Doutorado em Educação para a Ciência pela Unesp (2007). Cursou Pós-Doutorado pela Unesp e pela Universidade de Aveiro (2015), em Portugal. Disponível em: https://bit.ly/4av9jzA. Acesso em: 12 mar. 2024. 29 Tem Graduação em Licenciatura em Letras — Português/Inglês pela UFMT (1992), Mestrado em Educação Especial (Educação do Indivíduo Especial) pela Universidade Federal de São Carlos (1998) e Doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2012). Atualmente, é professora titular da Unemat, onde exerceu a