unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP GETÚLIO DE SOUZA LIMA O ESPETÁCULO MIDIÁTICO E AS IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS: os programas educacionais sob a égide da cultura digital ARARAQUARA – SP 2022 unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP GETÚLIO DE SOUZA LIMA O ESPETÁCULO MIDIÁTICO E AS IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS: os programas educacionais sob a égide da cultura digital Tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação Escolar. Linha de pesquisa: Teorias Pedagógicas, Trabalho Educativo e Sociedade Orientador: Prof. Dr. Luíz Antônio Calmon Nabuco Lastória ARARAQUARA – SP 2022 L732e Lima, Getúlio de Souza O ESPETÁCULO MIDIÁTICO E AS IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS : os programas educacionais sob a égide da cultura digital / Getúlio de Souza Lima. -- Araraquara, 2022 225 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientador: Luíz Antônio Calmon Nabuco Lastória 1. Educação Escolar. 2. Espetacularização Midiática. 3. Cultura Digital. 4. BNCC e Currículo Paulista. 5. TDIC e Capitalismo de Plataforma. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. GETÚLIO DE SOUZA LIMA O ESPETÁCULO MIDIÁTICO E AS IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS: os programas educacionais sob a égide da cultura digital Tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação Escolar. Linha de pesquisa: Teorias Pedagógicas, Trabalho Educativo e Sociedade Orientador: Prof. Dr. Luíz Antônio Calmon Nabuco Lastória Data da defesa: 05/08/2022 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA __________________________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. Livre-Docente Luiz Antônio Calmon Nabuco Lastória UNESP – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Ari Fernando Maia UNESP - Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Titular Antônio Álvaro Soares Zuin UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Luis Roberto Gomes UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profª Dª Dalva de Souza Lobo UFLA - Universidade Federal de Lavras Dedico este trabalho aos meus pais Joséfino de Souza Lima (in memoriam) e Arlinda Rosa de Lima (in memoriam) que me ensinaram a conhecer o caminho, e que ainda hoje em todos os dias realimentam a minha força de seguir caminhando; à minha filha Rafaela Dames de Lima como parte essencial do caminho, à minha esposa Rosimeire Aparecida Dames de Lima que me acompanha no caminho, e a todos que assim como eu, acreditam no potencial da educação na construção de um mundo melhor. AGRADECIMENTOS Ao concluir este trabalho gostaria de externar o sentimento de dever cumprido quanto àqueles que confiaram na minha potencialidade como pesquisador, e propiciaram que eu pudesse fazer de um espaço acadêmico de grande relevância institucional como a FCLAR/UNESP, o ambiente ideal para o desenvolvimento deste trabalho. Assim, manifesto aqui os meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que direta ou indiretamente, contribuíram durante o percurso da pesquisa e na construção da versão final desta tese. Primeiramente aos meus pais Josefino (in memoriam) e Arlinda (in memoriam)que me ensinaram o significado da busca pelos objetivos traçados. À minha família de convivência sempre presente no caminho, a esposa Rosimeire sempre zelando pelos meus passos, e como parte do caminho desta trajetória minha filha Rafaela, um amor infinito. Ao meu irmão João Lima e sua família, (esposa Rosicler e o filho João Paulo) pelo companheirismo e pela referência a qual serviu de estímulo para minha caminhada acadêmica. À minha irmã Cleuza e família que, ao abrirem as portas de sua casa para meu breve descanso me confortaram, e ao me dar o afago da companhia me propiciaram momentos de alegria e força a cada desafio. À minha irmã e comadre Anália, aos meus demais irmãos José, Maria e Jânio e suas respectivas famílias. Aos meus colegas de turma e amigos que fiz durante o estudo das disciplinas cursadas, bem como aos parceiros do Grupo de Pesquisa Teoria Crítica/Araraquara, que tanto contribuíram durante o percurso desta pesquisa. A todos os professores do curso que nos ensinaram os caminhos das pedras no percurso acadêmico, sobretudo, o Prof. Nabuco que por meio de suas disciplinas e ensinamentos me encaminhou para o conhecimento da Teoria Crítica na qual trilhei meu trajeto acadêmico. Aos brilhantes professores membros integrantes das bancas de qualificação e defesa Prof. Dr. Ari Fernando Maia, Prof. Dr. Antônio Álvaro Zuin, Prof. Dr. Luis Roberto Gomes e Pro.ª Dr.ª Dalva de Souza Lobo, que acrescentaram um aprendizado incalculável em meu desempenho de pesquisador ao apontar e me possibilitar os direcionamentos durante a etapa final do percurso. Ao professor Amadeu pelo brilhante trabalho de revisão final do texto. Finalmente, ao grande parceiro, amigo e orientador, Prof. Dr. Luiz Antônio Calmon Nabuco Lastória. Foi com ele que aprendi que além de um graduado acadêmico, existe o sentido humano nesta atividade. E mais que meu orientador de pesquisa e produção acadêmica, posso dizer que me tornei um grande admirador de seu trabalho e de suas atitudes humanas. Obrigado Nabuco! CONSIDERAÇÕES A PROPÓSITO DA TESE: THEODOR W. ADORNO Em primeiro lugar, compreendo "televisão como ideologia" [...], cuja influência entre nós é grande, ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa consciência e um ocultamento da realidade, [...], enquanto a formação a que nos referimos consistiria justamente em pensar problematicamente conceitos como estes que são assumidos meramente em sua positividade, [...]. Além disto, contudo, existe ainda um caráter ideológico-formal da televisão, ou seja, desenvolve-se uma espécie de vício televisivo em que por fim a televisão, como também outros veículos de comunicação de massa [...]. Theodor W. Adorno. Televisão e formação. (1995, p. 79) A tese que gostaria de discutir é a de que desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. [...] Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. Theodor W. Adorno. A educação contra a barbárie (1995, p. 154) RESUMO Propôs-se, neste trabalho, investigar, no âmbito da educação escolar, as atribuições midiáticas referentes às Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação – TDIC, considerando-se que estas estão progressivamente inseridas nos projetos de educação tecnológica de cunho digital. Assentando-se em discussões empreendidas por autores da Teoria Crítica da Sociedade, questiona-se o desenvolvimento de potencialidades críticas dos estudantes em sua forma consubstanciada, visto que a prioridade digital reproduz os atributos da espetacularização imagética, da semiformação educacional e da administração algorítmica presente no capitalismo de “plataforma”. Buscou-se, também, por meio da Hermenêutica Objetiva, elucidar as contradições educacionais oriundas do dirigismo didático, quando das análises de recortes documentais extraídos da Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2018) e do Currículo Paulista (2019/2020), bem como dos estudos da literatura produzida nos últimos anos, com vistas a conjeturar as aporias da práxis docente e os desafios formativos no ensino básico quando permeados, prioritariamente, pelas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação. Os resultados apontam que a educação escolar, ao ser absorvida pelo espetáculo midiático da “cultura digital”, reduz a mediação pedagógica ao imediatismo tecnológico, inviabilizando sua natureza formativa. Palavras-chave: Espetacularização. BNCC. Cultura digital. Currículo paulista. TDIC. ABSTRACT They proposed, in this work, to investigate, in the scope of school education, the media attributions referring to the Digital Technologies of Information and Communication - DTIC, considering that these are progressively inserted in the projects of technological education of digital nature. Based on discussions undertaken by authors of the Critical Theory of Society, the development of students' critical potentialities in theeir consubstantiated form is questioned, since the digital priority reproduces the attributes of imagery spectacularization, educational semi-formation and algorithmic administration present in the “platform” capitalism. This study also looked for elucidating the educational contradictions of Objective Hermeneutics arising from the didactic direction on documentary clippings extracted from the National Common Curricular Base - NCCB (2018) and from the Paulista Curriculum (2019/2020), as well as from studies of the literature produced in the last few years. years, with a view to conjecture the aporias of the teaching praxis and the formative challenges in basic education when permeated, primarily, by the Digital Technologies of Information and Communication. The results indicate that school education, when absorbed by the media spectacle of “digital culture”, reduces pedagogical mediation to technological immediacy, making unfeasible its formative nature. Keywords: Spectacularization. NCCB. Digital culture. São Paulo curriculum. DTIC. LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Competências habilidades, categoria e objeto do conhecimento para CHSA do Ensino Médio paulista. 115 Quadro 2 – Competência 1, suas habilidades, categoria e o objeto do conhecimento 116 Quadro 3 – Competência 3, suas habilidades, categoria e o objeto do conhecimento 119 Quadro 4 – Competência 5, habilidades, categoria e o objeto do conhecimento de CHSA 121 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BNCC Base Nacional Curricular Comum CHSA Ciências Humanas e Sociais Aplicadas CNE Conselho Nacional de Educação DCNEB Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica DCNEM Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio EAD Ensino a distância EUA Estados Unidos da América FMI Fundo Monetário Internacional HO Hermenêutica objetiva LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PCNEM Parâmetros Curriculares Nacionais para Ensino Médio PISA Programa Internacional de Avaliação de Estudantes SA Situação de Aprendizagem TDIC Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação TDIC Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação TIC Tecnologia de informação e comunicação SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 15 2 A CULTURA DA ESPETACULARIZAÇÃO MIDIÁTICA E A TECNOLOGIA DIGITAL 24 2.1 Descortinando a sociedade atual por meio do espetáculo (Guy Debord) 25 2.1.1 Da espetacularização à sensação 34 2.2 Ideologia e “racionalidade cínica” (Slavoj Žižek) 38 2.3 Pensando a sociedade midiática com T. W. Adorno 48 2.3.1 Theodor Adorno: televisão e formação 52 2.4 Da midiatização à softwarização da sociedade excitada (Christoph Türcke) 58 2.5 Educação e alfabetização midiática como paradigma de formação (Douglas Kellner) 67 3 A CONCEPÇÃO DE CULTURA DIGITAL NOS PROGRAMAS EDUCACIONAIS SOB AS LENTES DO MÉTODO HERMENÊUTICO OBJETIVO 76 3.1 Considerações sobre o método Hermenêutico Objetivo nas pesquisas em educação 77 3.2 Análise conceitual das competências como normativas da BNCC (HO) 80 3.2.1 As competências como base formativa na concepção da BNCC 84 3.2.2 Contemporaneidade e o projeto de educação digital na BNCC 89 3.2.3 Educação, contemporaneidade e imersão digital na BNCC 94 3.2.4 A BNCC e a “cultura digital” na potencialização do espetáculo 100 3.3 O currículo paulista e a educação para o mundo digital 107 3.3.1 As Ciências Humanas e Sociais aplicadas no Currículo Paulista 111 3.3.2 A estruturação das CHSA no Currículo Paulista e a cultura digital 116 3.3.3 As propositivas pedagógicas e a sobreposição didática da “cultura digital” 124 4 EDUCAÇÃO DIGITAL, REDE SOCIAL E O PENSAMENTO CRÍTICO EM SUAS POSSÍVEIS INTERFACES 135 4.1 O consumo de redes sociais e suas implicações educativas 136 4.2 A rede social Facebook 146 4.2.1 Comunicação mediada por computador e a transição algorítmica 147 4.2.2 Facebook: interação ou monitoramento social? 149 4.2.3 Possibilidades educacionais e/ou aporias formativas no Facebook 153 4.2.4 O Facebook como mecanismo econômico e ideológico-cultural 157 4.2.5 O Facebook, a algoritmização e racionalização cultural-comercial 161 4.3 Puxando o “freio da emergência” da algoritmização 166 5 O EMBATE ENTRE A MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA DOCENTE E A CULTURA DIGITAL 170 5.1 Dirigismo didático e as aporias pedagógicas docentes nos programas educacionais 171 5.1.1 Aporias conceituais: autonomia, emancipação e liberdade 172 5.1.2 Aporias digitais na mediação docente 177 5.1.3 As aporias do dirigismo didático neoliberal na mediação docente 180 5.2 O espetáculo digital e a semiformação educacional 188 5.2.1 Semiformação, racionalidade e atualidade conceitual 193 5.3 Os (des)caminhos formativos na distração concentrada 199 6 A TÍTULO DE CONCLUSÃO 204 REFERÊNCIAS 216 15 1 INTRODUÇÃO Marcada pela intensificação da revolução digital iniciada em meados do século passado, quando o mundo assistiu a uma corrida cada vez mais desafiadora do homem pela busca de projetos até então nunca experimentados, a indústria audiovisual também vai impactar, de forma transformadora, as políticas educacionais. Como resultado do acelerado processo de desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TIC), a partir da década de 1980, com acentuação hegemônica de um sistema produtivo que se desponta com destacado propósito mercadológico, ganha força, com grande apelo tecnológico, a busca pela racionalização da educação escolar com metas estabelecidas pelos organismos internacionais. Portanto, um aspecto econômico de natureza tecnicista com vistas ao aumento da produtividade passa a ser o prisma balizador dos investimentos financiadores em educação, os quais seriam angariados junto às instituições internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial (BM), ambos com sede em Washington (EUA). Alinhados às prerrogativas do capital internacional e do Fundo Monetário Internacional (FMI), essas agências passam a orientar e fomentar os projetos educacionais com ênfase no aspecto tecnológico. Neste cenário, impactada pelas tecnologias digitais, a educação básica passa a ser reorientada e organizada com base no uso das novas linguagens tecnológicas como recursos pedagógicos tidos como essenciais. No Brasil, a fundamentação legal dessa tendência educacional passa a ser construída a partir do ano de 1996 com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), criada com a Lei 9.394/96 (BRASIL, 1996). Neste percurso, via Conselho Nacional de Educação (CNE), são elaborados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL, 1998), e os Parâmetros Curriculares Nacionais para Ensino Médio (PCNEM) (BRASIL, 2000). Nesses documentos, foram traduzidos os ditames da nova orientação educacional enfatizando o uso das TICs. Competências específicas para cada área do conhecimento, condicionadas ao desenvolvimento das aptidões tecnológicas pertinentes às disciplinas do currículo escolar, foram paulatinamente gestadas. Recentemente, a educação nacional no Brasil passou por uma ampla revisão conceitual quanto à forma de organizar didaticamente o ensino básico na Educação Infantil, no Ensino Fundamental e no Ensino Médio. As novas Diretrizes da Educação Nacional, a partir do ano de 2017, passaram a ser reorientadas de acordo com as competências e habilidades amplamente estabelecidas na Base Nacional Curricular Comum (BNCC), agora sedimentada e alinhada às premências da contemporaneidade (BRASIL, 2018), ou seja, nas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC). Nelas, a “cultura 16 digital1”, como fundamento básico de adequação educacional ao contexto tecnológico hodierno, figura com todas as letras. Na BNCC, portanto, estão referendadas, enfaticamente, as proposições educativas oriundas da disseminação da tecnologia digital em todos os setores da atividade social no mundo contemporâneo. Assim, o sistema de comunicação midiático passa a ter um espaço prioritário também nas relações produtivas e, por conseguinte, na arregimentação formativa dos programas de educação escolar no ensino básico. Nesses termos, a discussão acerca da categoria “espetacularização” referida a esse momento social também pode ser depreendida das proposições atinentes à formação digital conforme os termos da própria BNCC. Nesse viés, Guy Debord, nos anos 1960, debruçou-se sobre o tema da espetacularização. Ainda que guardadas as devidas ressalvas acerca do espraiamento imagético no tecido social, se se considerarem tempos históricos díspares no que concerne ao desenvolvimento de ferramentas de comunicação midiática2, pode-se dizer que, sob certos prismas, a sua obra Sociedade do Espetáculo (DEBORD, 2015) se dirige aos dias atuais. Ressalta-se ainda que, para as pretensões no âmbito desta pesquisa em tempos de “cultura digital”, o foco é dirigido, inicialmente, para a análise crítica empreendida por Debord (1967), considerando os conceitos marxianos de “fetiche da mercadoria” e “alienação”, ainda que estes conceitos tenham passado por algumas adaptações ou “desvios”, como afirma Coelho (2018, p. 18). Assim, argumenta o autor: “o sentido original de um conceito é desviado e outros eram acrescentados", caracterizando uma nova rota de observação. “Trata-se de reconhecer a dimensão histórica dos conceitos, que devem ser revistos e atualizados, como é a proposta da Teoria Crítica” (COELHO, 2018, p. 18). A opção metodológica, conforme essa concepção teórica, pressupõe que se tome a obra de Debord, pautando o tipo de contribuição que ela ainda poderia oferecer para a construção do 1 Segundo a BNCC (2018), a “cultura digital” se aplica ao contexto da contemporaneidade em que, conjugada com o “mundo digital” e o “pensamento computacional”, “envolve aprendizagens voltadas a uma participação mais consciente e democrática por meio das tecnologias digitais, o que supõe a compreensão dos impactos da revolução digital e dos avanços do mundo digital na sociedade contemporânea, a construção de uma atitude crítica, ética e responsável em relação à multiplicidade de ofertas midiáticas e digitais, aos usos possíveis das diferentes tecnologias e aos conteúdos por elas veiculados e, também, à fluência no uso da tecnologia digital para expressão de soluções e manifestações culturais de forma contextualizada e crítica” (BRASIL, 2018, p. 474). 2 Nas últimas cinco décadas, os investimentos em tecnologia de informação e comunicação (TIC) têm possibilitado a emergência de uma suposta “cultura digital” por meio das tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC), as quais estão cada vez mais acessíveis e caracterizadas por um hibridismo midiático. Os produtos desta nova realidade tecnológica são elaborados para a concentração de múltiplas funções da microeletrônica em um mesmo aparelho, o que os torna elementos de disseminação da espetacularização social e com inédito potencial de sensações imagéticas. As TDICs “proporcionaram mudanças no modo de se relacionar, aprender, ler, enfim, fazer coisas na contemporaneidade. Estas novas formas de ver e entender o mundo trouxeram para a sociedade novas maneiras de se realizar práticas sociais, por meio das tecnologias” (VILAÇA; ARAÚJO, 2016, p. 34). 17 objeto de investigação desta pesquisa. Assim, ao diagnosticar e problematizar a Sociedade do Espetáculo (DEBORD, 2015) como sendo uma importante referência de sustentação do controle social exercido pelos sistemas econômicos vigentes3 desde meados do século passado, esse controle, atualmente, apresenta-se como uma reprodução altamente sistematizada de mediação social, agora potencializados e multiplicados, qualitativa e quantitativamente, quanto à sua amplitude no tecido social. A sociedade do espetáculo encerra um conceito que não deve ser “confundido com uma afirmação dos meios de comunicação como o poder dominante. Trata-se de um conceito que procura compreender as características da fase contemporânea da sociedade capitalista, marcada pela articulação entre produção de imagens e produção de mercadorias” (COELHO, 2011, p. 15). Essa tendência se verifica no âmbito das políticas educacionais já nas décadas finais do século passado via PCNs. Neles sublinha-se a necessidade de se adequar o rápido processo de transformação industrial com base nas novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) ao novo paradigma de educação básica. Os PCNs (BRASIL, 1998, p. 31) consideram que, “além do prejuízo que o atraso na progressão escolar ocasiona aos próprios alunos, estimulando a evasão e a tentativa de ingresso no mercado de trabalho sem a necessária qualificação, as elevadas taxas de repetência criam custos adicionais para os sistemas de ensino”. Este diagnóstico educativo seria pautado, a partir de então, estrategicamente, na formação das novas gerações de estudantes para o exercício da cidadania integrada à nova realidade e, prioritariamente, para o atendimento às necessidades do novo mercado de trabalho. Dado que o método desta pesquisa tem como propósito a crítica imanente à cultura permeada pelos aparatos midiáticos contemporâneos no âmbito da educação escolar, fez-se necessário considerar a atualização dessa crítica por intermédio de análises teóricas de caráter filosófico e sociológico para, por meio dela, dar-se maior concretude à hipótese de que a intencionalidade educativa via imersão digital se materializa com vistas ao atendimento mercadológico da sociedade da informação. Intrínsecas a esse programa educacional para a educação básica e suas possibilidades, estão certas implicações educativas das sensações imagéticas, devidamente explicitadas por 3 Debord procurou inferir também o conceito de espetáculo como sendo uma estratégia de Estado, considerando o controle social exercido por este sobre o conjunto da sociedade. Ressalta-se que, em suas proposições analíticas acerca do papel do Estado, o autor não condicionou ou privilegiou especificidades de um sistema político sobre outro, pois, se no período totalitário de esquerda ou direita, o direcionamento partia do poder concentrado, na democracia, a hegemonia mercadológica assumia a condição de difusão das novidades de consumo, o que potencializa o sentido da espetacularização (RICARDO, 2012; BUENO, 2017). 18 Türcke (2010) como resultantes da “cultura digital”. É nesse sentido que este trabalho toma como parâmetro o consumo das redes sociais, a exemplo do Facebook. Esta pesquisa põe em questão, como já anunciado, o propósito formativo e crítico da educação escolar tal qual foi concebida no programa (BNCC e Currículo Paulista), na sua forma mais bem consubstanciada, considerando, também, as manifestações dos atores – estudantes do ensino básico – os quais se tornaram alvo de empreendimentos espetaculares, via algorítmico. É preciso ter em mente que, nessas redes, as manifestações sociais, via de regra, se desenvolvem como reações previamente esperadas quando ativadas por quem posta, compartilha, comenta ou replica um determinado conteúdo de diferentes naturezas ideológicas. Ressalta-se, ainda, que a própria plataforma direciona, por meio de seu sistema (algoritmo), os temas de acordo com a pauta ou o interesse de indivíduos e grupos que interagem na rede, de modo a torná-los objeto de interesse manifesto, quase sempre, de acordo com pressupostos ideológicos afins e pelos quais se guia determinada fração do conjunto social (BRASIL, 2018; SÃO PAULO, 2019). Com vistas à discussão teórica referente ao conceito de “ideologia”, buscou-se na obra Sublime objeto da ideologia, de Žižek (1992, 2003), compreender como este autor concebe a dominação social a partir das categorias marxianas de fetichismo e de reificação ao denominar a “razão cínica” como o paradoxo de uma “falsa consciência esclarecida”. Ao tomar de Adorno a compreensão acerca do mecanismo da subserviência à ideologia fascista por meio da qual ocorre a manipulação de aspectos inconscientes, Žižek infere que a “farsa” elimina a possibilidade de uma dialetização efetiva e reflexiva, e, portanto, a veneração sobrepõe-se como máscara ideológica. Considerando-se o quadro atual, nota-se que essas preocupações referentes à tecnologia digital têm sido objeto de diretrizes manifestadas nos manuais de grades curriculares das políticas educacionais em curso no Brasil desde as últimas décadas do século passado e, recentemente, na Base Nacional Curricular Comum – BNCC (BRASIL, 2018) e suas propostas adjacentes das secretarias estaduais de educação, como os Currículos Paulistas (Ensino Fundamental/2019 e Ensino Médio/2020) (SÃO PAULO, 2019, 2020). Todavia, embora esses documentos apresentem proposições para o desenvolvimento das aptidões para o uso da tecnologia digital como meio de inclusão/integração, visando ao exercício da cidadania e à preparação para o mercado de trabalho, verifica-se que, apesar de indicarem certa potencialidade de desenvolvimento formativo no tocante à competência reflexiva na qual se efetiva a habilidade de abstração do educando acerca de conteúdos de natureza digital, como no caso das mídias sociais, estas não deixam de injetar neles, de forma constante e em pequenas dozes sensoriais, o suficiente para o deterem no estado de sensação. Portanto, 19 [...] deve-se considerar que o embate entre o novo e o tradicional pedagogicamente falando deva ser pensado no âmbito da formação humana do aluno e no seu desenvolvimento cultural por meio da apropriação de conhecimentos sistematizados, pois, na escola como local de aprendizado o qual exige esforço físico e mental, o discernimento para o desenvolvimento de atividades intelectuais, na maior parte do tempo, deve estar desprendido do cotidiano de entretenimento do mundo midiático fora do contexto escolar. (LIMA, 2018, p. 29). Isto posto, ressalta-se um aspecto sintomático da atual educação escolar. Esse aspecto residiria no fato de que as prioridades de inclusão digital devam alinhar-se à necessidade de desenvolvimento de competências básicas de atividade reflexiva, expondo o alunado às microdoses contínuas de sensações imagéticas. Tal contradição será abordada por meio do fio argumentativo que permeia os trabalhos de Debord (1997) em A Sociedade do Espetáculo; Adorno e Horkheimer (1985) em Dialética do Esclarecimento (1969); Adorno (2003), em seus escritos sobre Televisão e Educação, de 1970; Žižek (2003) em O sublime objeto da ideologia; Kellner e Share (2008) em Alfabetização Midiática (Educação para a leitura crítica da mídia, democracia radical e reconstrução da educação); e Türcke (2010) em Sociedade Excitada. Na esteira das contribuições desses autores, tentou-se construir um percurso teórico situando os elementos constitutivos que marcaram a espetacularização subjetiva e objetiva do conjunto social. Adorno e Horkheimer (1985), por seu turno, projetaram na sociedade capitalista a supremacia dos artefatos tecnológicos a exemplo do cinema, sob a égide ideológica do esclarecimento como uma nova forma de mistificação das massas, consolidando, assim, os mass media também como meio de dominação social. Adorno se referiu, em seu texto Televisão e Educação, à sua preocupação quanto ao futuro da atividade educativa ante as investidas do mercado educacional à distância, colocando em xeque a mediação física do professor quanto ao objeto de conhecimento (SANTOS, 2012; LIMA, 2017). Não restam dúvidas de que tais investidas mercadológicas empreendidas por meio de aparatos audiovisuais cada vez mais potentes têm o seu ápice com o advento das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs) nas décadas finais do século passado. Türcke (2010) analisou, há duas décadas, em Sociedade Excitada, o resultado do percurso irrefreado do homem em busca de novas sensações, o que caracterizou tomando emprestado uma expressão de Hegel, como um “retorno ao fundamento4”. 4 Em Sociedade excitada: filosofia da sensação, Türcke (2010, p. 170) explica que “o sensório humano, que nos parece um dote constante do Homo sapiens, é o resultado de uma longa desescalada da sensação, aliás, tão longa que podemos errar o seu cálculo temporal em algumas dezenas de milhares de anos. Seus vestígios culturais mais antigos ainda palpáveis são todos eles já sedimentações e transposições de outros consideravelmente mais velhos”. 20 A revolução da alta tecnologia deixa reconhecer sinais claros de uma volta em direção ao arcaico. Mas sua força propulsora é o choque audiovisual. Ele adquire a condição de um rodamoinho da história da humanidade. Seu “eis” profano, fugidio, milhões de vezes inflacionado, não é apenas o ímã da atenção por excelência e, sim, como agora fica claro, ao mesmo tempo a herança universal daquelas sensações primevas que antes apareciam como a epítome do sagrado. Mas, na medida em que ele toma posse dessa herança, choque audiovisual se torna sensação absoluta. (TÜRCKE, 2010, p. 172). Ressalta-se que, embora as preocupações do filósofo alemão não se remetam fundamentalmente ao universo da atividade educativa, propositadamente há de se servir de sua ampla análise das mediações microeletrônicas na sociedade midiática. Com isso, busca-se compreender de que modo a compulsividade imagética, característica das interações entre jovens estudantes e as redes sociais, implica e reflete no processo de ensino/aprendizagem da educação escolar, visto que o projeto de ascensão e de hegemonia do mercado pela via das mais recentes indústrias culturais se tem avolumado a cada dia. Quanto às análises e interpretação das políticas educacionais da Base Nacional Curricular Comum - BNCC (BRASIL, 2018) e do Currículo Paulista (SÃO PAULO, 2019, 2020), materiais empíricos desta pesquisa, optou-se pelo método da hermenêutica objetiva. Depreende-se daí que esses documentos quase sempre flertam com as motivações desencadeadas a partir das reformas educacionais empreendidas no país desde a última década do século XX. Essas motivações são oriundas do âmbito econômico em fina sintonia com o desenvolvimento do mercado. Daí surgem os ajustes buscados pelas políticas educacionais. Por meio de análises de cunho hermenêutico, também se admite que as recentes investidas nas reformas educacionais, cujo fundamento das justificativas recai sobre as TDICs, seguem o mesmo percurso anteriormente demarcado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2000), quanto à sua proposição pedagógica permeada pelo alargamento do protagonismo do estudante do ensino básico. Se, naquelas reformas, se tinha a condicionante de simples orientação, ou seja, como “parâmetros” meramente “norteadores”, com a BNCC avançou-se para a normatização das proposições antes aventadas. O “decálogo das competências básicas” da educação escolar explicitou-se por completo. Tem-se, então, um redimensionamento das intencionalidades Portanto, esse processo de desmitificação do sobrenatural que, por sua vez, era imaculado, acompanha o homem em toda sua trajetória histórica. No estágio atual, uma gama de sensações múltiplas recorrentes de forma paulatina na softwarização se caracteriza em uma volta ao obscurantismo primitivo em virtude deste espectro de dominação do homem pela sensação imagética. 21 político-pedagógicas na BNCC (BRASIL, 2018), bem como no Currículo Paulista (SÃO PAULO, 2019, 2020) dela resultante e multiplicador. Ressalta-se que, como parte de um processo de adequações dos programas educacionais à realidade econômico-mercadológica empreendida desde as últimas décadas do século passado, a BNCC (BRASIL, 2018) se apresenta como um direcionamento curricular no sentido de atender, de forma literal, as demandas de um modelo mercadológico caracterizado por uma racionalidade produtiva, à qual os programas educacionais hão de se adequar. Se, no século XX, os Parâmetros Curriculares Nacionais tinham como aspectos orientadores o desenvolvimento do aluno com vistas ao exercício da cidadania e a inserção no mercado de trabalho, já enfatizando as Tecnologias da Informação e Comunicação, a Base Curricular Nacional traz as prerrogativas da contemporaneidade fortemente marcadas pela “cultura digital”, cujo aprofundamento do uso das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação se torna inevitável. Neste caso, as tecnologias digitais, aliadas das sensações imagéticas, criam um ambiente desafiador para a efetivação formativa em virtude do poder de persuasão exercido pelas tecnologias digitais nos alunos do ensino básico. Para Türcke (2010, p. 107), “a sensação autêntica não é aquela que está sob meu controle, mas aquela que se impõe mesmo contra a minha vontade – e é justamente assim que o poder mais alto se anuncia, que desta feita se imprime em mim: o poder de Deus”. Como contraponto a esse estado de subserviência administrada pelo algoritmo já estabelecido, a cultura digital, revestida pelo audiovisual, busca verificar tal condição para além da análise documental, interrogando-se acerca das possibilidades e limites de uma “alfabetização e formação midiática”, a qual possa ser efetivada de forma que não se reduza à operacionalização técnica do mundo digital. Ao optar por uma investigação empírica com base na Hermenêutica Objetiva e os desdobramentos decorrentes desse método, nota-se, que o predomínio de uma condução pedagógica – pautada em um dirigismo didático do programa educacional com base na pedagogia das competências – visa priorizar, de forma incisiva, os investimentos educativos a partir da “cultura digital”, esta imperando sobre a mediação docente. Estes estão evidenciados já no conjunto das dez competências da BNCC (BRASIL, 2018) e referendados nas competências e habilidades do Currículo Paulista (SÃO PAULO, 2019, 2020), cujos recortes destes documentos nortearam as investigações do objeto desta pesquisa. Quanto à disposição textual, sua construção se estrutura em quatro capítulos, perfazendo um total de seis seções. A primeira seção, cujo aporte inicial se estabelece a partir da teoria social aplicada ao desenvolvimento técnico em suas manifestações culturais, sociais, econômicas, políticas e ideológicas, considera sempre as implicações sociais e educacionais decorrentes do 22 processo das transformações tecnológicas. Assim, o primeiro capítulo, trata dos referenciais acerca de categorias inerentes ao objeto, ou seja, a educação escolar imbricada pela “cultura digital”, analisada a partir do processo de recrudescimento midiático da espetacularização mercadológica, da indústria cultural e seu desencadeamento sensorial, como parte de uma cadeia ideológica administrada, bem como de suas incidências formativas. Na terceira seção (segundo capítulo), buscou-se dar voz, por meio de análises de cunho hermenêutico, aos dispositivos educacionais deliberadamente elaborados pelas políticas e seus programas educativos, com vistas à efetivação de uma educação escolar de caráter pragmático, cujas características de racionalização e integração permeadas pela pedagogia das competências são norteadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais na última década do século XX, e normatizadas na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), tendo no Currículo Paulista (SÃO PAULO, 2019, 2020) a sua materialidade última. Os dois documentos últimos serviram como universo para o desenvolvimento das análises hermenêuticas cujas interpretações sobre recortes da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, até então no âmbito do componente curricular de Sociologia, fundamentam, de forma prognóstica e diagnóstica, as hipóteses aventadas acerca da reduzida potencialidade de desenvolvimento crítico na formação do alunado. Na quarta seção (terceiro capítulo), para além das análises sociológicas e filosóficas acerca das TDICs, sobretudo, as redes sociais, apresenta-se um investimento teórico- bibliográfico, por meio da ampla literatura produzida na última década acerca das plataformas digitais, substancialmente, a rede social Facebook entendida aqui como a maior expressão do “capitalismo de plataforma”. Assim, buscou-se, no âmbito da realidade social e escolar de estudantes do nível médio, o entendimento dos impactos do mundo digital na sua educação. No quarto e último capítulo (seção cinco), a investigação se aplica às aporias desafiadoras da atividade docente, considerando-se as interposições curriculares pautadas no dirigismo didático e suposta na horizontalização do ensino, sobre o qual se apequena a práxis pedagógica em sua representação sociopolítica como resultado das priorizações do pensamento computacional na educação escolar. Na sexta seção (a título de conclusão), são apresentadas as últimas considerações e avaliações quanto aos aportes sustentados por esta pesquisa. Estas dão conta de que grande parte das tarefas propostas no Currículo Paulista (SÃO PAULO, 2019, 2020) estão didaticamente dirigidas para o empreendimento digital, em sua resolução, como procedimento pedagógico. Logo, da forma como foram concebidos, o acesso e a operacionalização digital passam a ser a ação pedagógica prioritária do programa educacional hodierno. A hipótese aqui conjeturada acerca das aporias e potencialidades de apropriação do pensamento crítico por parte dos alunos 23 do ensino básico, tendo em vista que o didatismo dirigido, sobretudo, pelos procedimentos pedagógicos digitais estabelecidos no programa educacional, mostra-se conformada ao pragmatismo contemporâneo permeado prioritariamente pela “cultura digital”, expressão última do capitalismo em sua fase “big tech”. 24 2 A CULTURA DA ESPETACULARIZAÇÃO MIDIÁTICA E A TECNOLOGIA DIGITAL O poder do espetáculo, que é tão essencialmente unitário, centralizador pelas forças próprias das coisas, e perfeitamente despótico no seu espírito, indigna-se com frequência ao ver constituir-se dentro de seu reino uma política-espetáculo, uma justiça-espetáculo, uma medicina-espetáculo, ou tantos outros também surpreendentes espetáculos mediáticos. Assim, o espetáculo nada mais seria que o excesso do mediático, cuja natureza indiscutível boa, já que serve para comunicar, é por vezes dada a excessos. Com muita frequência, os mestres da sociedade declaram-se mal servidos pelos seus empregados mediáticos; mais amiúde eles censuram a plebe dos espectadores a sua tendência para entregar sem moderação, e quase bestialmente, aos prazeres mediáticos. Comentários sobre a sociedade do espetáculo (DEBORD, 2003) O encaminhamento teórico desta tese procurou dar luz ao processo de expansão progressiva do espetáculo partindo de suas concepções originais de meados do século passado, quando este se mostrou como importante mecanismo de intensificação da reificação mercadológica. O conjunto dessa engrenagem (coisas e pessoas) modela um ambiente sociocultural no qual se projetou o subjugo do sujeito coisificado culminando numa mutação de caráter ontológico: o despontar de uma estratégia de dominação social permeada pela ideologia da mercantilização na qual ser é ser percebido (esse est percipi). Com o processo de recrudescimento mercadológico em virtude dos empreendimentos reificados da indústria cultural, aprofundou-se também o processo de semiformação, visto que a cultura em sua natureza formativa se viu reduzida e circunscrita às aspirações mercantis. Assim, a arte não se projeta mais para o sensível, ao contrário, se estabelece como mercadoria de grande potencialidade econômica, uma vez que, assumindo o controle do espetáculo, o sistema midiático se encarrega de difundir aquilo que Adorno e Horkheimer (1985) entenderam como sendo a real “mistificação das massas”. No percurso de mistificação das massas, a indústria cultural se apropria pela via da midiatização e, posteriormente, softwarização, das irradiações imagéticas pelas quais se irradiam suas concepções ideológicas. Não obstante, as ideologias tomam formas e naturezas diferentes à medida que os atores de determinado tempo histórico se conformam às representações manifestas na política, na economia, nos valores e na cultura. No entanto, estas, geralmente, atuam na subjetividade como critério de investimento psicológico, sobre o qual a "máscara ideológica” em sua “racionalidade cínica" (ZIZEK, 1996) se incumbe de propalar no conjunto social os elementos normativos que constituem a ideologia do espetáculo como mercadoria. 25 Observa-se que esses elementos sob o incremento das TDICs, nas últimas décadas, ao evoluírem para o status de cultura digital e atuando na subjetividade do conjunto social, potencializaram a resignação já presente na sociedade administrada, mostrando-se um campo fértil e propício para a hegemonia do capitalismo de plataforma. Assim, as políticas educacionais também foram absorvidas pelo pensamento computacional sob a retórica de incorporar à educação escolar uma suposta inclusão digital dos estudantes, já que estes se situam em um contexto demarcado pelas imersões tecnológicas. 2.1 Descortinando a sociedade atual por meio do espetáculo (Guy Debord) Quando o jovem escritor Guy Debord, cujas características5 fugiam do padrão acadêmico, pelo menos da grande maioria dos pensadores ocidentais pelos quais se estruturou o pensamento presente no mundo contemporâneo acerca das questões de relevância sociológica e filosófica, forjou a análise do alvorecer de uma sociedade marcada pelo advento da espetacularização do mundo midiático, originava-se, sob cunho o imagético, a representação de um dos fundamentos básicos das relações sociais mercantilizadas que se estabeleceram como hegemônicas na sociedade contemporânea e, também, no caso das intervenções educacionais. Debord (2003) observa, naquele momento histórico, que a espetacularização como fórmula de dominação social se aprofundava à medida que o poder imagético se consolidava como um mediador entre o homem e a disseminação das mercadorias como imagens. Desde então, o nível de consciência individual como representante de um segmento social perde a sua capacidade de reação com legitimidade e sustentação; portanto, torna-se “falsa”. De lá para cá, o que predominou foi o ritmo quase alucinógeno da maquinaria cultural realimentada a cada novo impulso tecnológico. O estado de adesão objetiva e administrada pelo espetáculo em cada parte do conjunto do tecido social, ou seja, a aceitação de uma realidade cujo sentido está no “fazer parte de”, conduz a uma forma de alienação preestabelecida. Não se projeta no tecido social outro caráter, senão aquele determinado pela atividade espetacularizada pela qual se inverte a natureza do real: “No mundo realmente invertido, o verdadeiro é o momento do falso” (DEBORD, 2003, p. 9). 5 Debord atuou filosoficamente ao discutir a ordem capitalista e os desdobramentos midiáticos no processo de espetacularização da sociedade em suas relações sociais e mercantis a partir das análises sistemáticas dos modelos totalitários, sejam de direita como o nazifascismo, sejam de esquerda como o stalinismo e até mesmo o modelo comunista empreendido na China maoísta. A sua peculiaridade intelectual está no fato de ter uma obra de alcance relevante no âmbito da teoria crítica sem ter sequer concluído o curso universitário (RICARDO, 2012; CORRÊA, 2017). 26 Portanto, ao se dimensionarem as implicações educativas do consumo de redes sociais – no nosso caso a rede social Facebook – percebe-se, de imediato, a relevância teórica do pensamento de Debord, tendo em vista o condicionamento efetivado pelas mídias sociais à espetacularização imagética. A discussão, empreendida por Debord em meados do século passado (1967), e revisada no final do mesmo século pelo autor (1993) acerca da espetacularização social, foi revisitada por pesquisadores como Viana (2011), Souza (2014) e Cioccari, Silva e Rovida (2018). De forma geral, as pesquisas apontam para um consenso de que a Sociedade do Espetáculo se estabeleceu arraigada por uma vultosa carga de linguagem midiática, sobretudo, com o advento dos impulsos imagéticos que se tornaram a essência do totalitarismo mercadológico, e manipulada publicitariamente por diferentes ideologias forjadas politicamente durante o século XX. O sistema midiático, em sua ação comunicativa, potencializada aceleradamente, impõe- se como estratégia de conexão e, ao mesmo tempo, de isolamento entre os indivíduos, tornando- os vulneráveis a certa alienação. Um conceito que, em Marx, na Crítica da Economia Política (MARX, 2013), designa a falta de identificação do trabalhador com o produto resultado do esforço de seu trabalho, isto é, a troca de sua força de trabalho pelo salário empenhado pelo capitalista, caracteriza uma relação de produção com base no valor recebido como parte do resultado do trabalho executado e que se torna, portanto, alienado. István Mészáros (2017, p. 222), discutindo o conceito de alienação em Marx, explica que, “nesse desenvolvimento da parcialidade à universalidade, da personificação à despersonalização, das limitações e mediações políticas, da liberdade e imediaticidades econômicas, a economia política gradualmente suplanta o velho fetichismo e formula com clareza as condições da alienação desenfreada”, ou seja, o processo produtivo vai absorvendo qualquer tipo de autodeterminação que se poderia pressupor existir. “Assim, o desenvolvimento da parcialidade política à universalidade econômica significa que a alienação particular ou específica é convertida em alienação universal” (idem). Logo, compreende-se que o processo de espetacularização corroborou de forma crucial com a universalização das relações alienadas, essencialmente, quando se consideram as estratégias de subjugação social empreendida pelo capitalismo digital. Acentua-se também que, ao beber da fonte da Teoria Crítica, Debord procurou revitalizar conceitualmente alguns aspectos do pensamento marxiano. Com a sociedade do espetáculo, vemos o mundo por imagens que são elas mesmas produtos de consumo, ou que existem para nos induzir ao consumo. Perdemos a capacidade de representarmos a realidade de acordo com a nossa 27 subjetividade, com base naquilo que nós mesmos vivenciamos. Nossas experiências reproduzem imagens que são anteriores ao que estamos vivenciando. Mesmo quando produzimos imagens, elas seguem um padrão, de beleza, por exemplo, que não é definido por nós, mas pelas grandes corporações, com o objetivo de venda de mercadorias. [...] A capacidade que as grandes corporações empresariais possuem, de produzirem espetáculos, ou seja, imagens que orientarão o nosso comportamento em direção ao consumo dos seus produtos, corresponde ao que Debord definiu como sendo o exercício do poder espetacular difuso e que está presente na vida cotidiana. (COELHO, 2018, p. 18 apud CIOCCARRI; SILVA; ROVIDA, 2018). Ao dimensionar o poder das imagens sobrepondo à representatividade subjetiva em relação ao espetáculo reproduzido cotidianamente, depreende-se que a teoria debordiana vislumbra uma concepção do mundo, pela qual este é administrado de forma a conduzir, de maneira progressiva, o processo de expropriação das faculdades individuais ou objetivas. A este elemento de controle social pode-se caracterizar o sentido conceitual da alienação em um estágio amplificado por meio da espetacularização difundida e diluída sob a forma de imagens. A difusão do espetáculo imagético determina, assim, o que será objeto de mercantilização, tal qual se observa hoje no material de publicidade presente nas redes de comunicação social, fato que denota quão essas mercadorias são cultuadas, isto é, se modernizam assumindo a forma de fetiche. No entanto, este fato não reduz a relevância da construção de uma competência refletida sobre o ambiente imagético contemporâneo. Muito pelo contrário! Os dotes de manipulação funcional de equipamentos tecnológicos por parte do educando – inerentes às novas gerações contemporâneas das TDICs e, por isso, considerados nativos digitais –, não o capacitam necessariamente para o entendimento da realidade dada nos ambientes midiáticos, sobretudo, nas redes sociais. Esse processo de iniciação para o entendimento objetivo da sociedade imagética no plano educacional de jovens estudantes, porém, tem, no seu contraponto, exatamente o grupo social formado por crianças e adolescentes, mormente recrutados pela nova indústria cultural6, cujos requintes audiovisuais intensificaram a espetacularização, incluindo os retransmissores de objetos do contexto escolar (SALLES, 2005; ZANOLLA, 2007). Dessa forma, as reflexões de Debord corroboram o aspecto de valoração das questões comunicativas contemporâneas pelas quais se engendram as preocupações acerca das implicações educativas da prioridade digital dos programas e do consumo irrefletido de redes 6 Considerando a política deliberada do mercado de produtos de alta tecnologia em extrapolar de forma progressivamente acelerada a obsolescência compulsória, observa-se que os produtos midiáticos com sua capacidade multifuncional atraem um número cada vez maior de consumidores predispostos a sustentar a indústria das modernas versões audiovisuais. Esta manifestação comporta e alimenta o sentido de pertencimento ao status social caracterizado pelas novas e espetaculares sensações (PALHARES, 2011; MORAES; COELHO, 2016). 28 sociais por alunos do ensino básico. A respeito da relevância acerca dessas reflexões de Debord para o presente, Viana (2011, p. 11) afirma que: O seu valor reside em focalizar em sua análise um derivado do modo de produção capitalista que é a expansão do consumo e das formas como ele assume e das imagens criadas por ele, o que denominou espetáculo (sem analisar o processo histórico que engendra essa situação, mas por questão de foco analítico). Isso, por sua vez, tem ressonância na análise do processo comunicacional, pois no próprio cerne de sua análise do espetáculo se encontra o problema da comunicação, da separação e do isolamento. A comunicação cotidiana é atingida pela separação e fim do diálogo, a comunicação via meios tecnológicos é cada vez mais espetacular. Este estado de isolamento manifesto na sociedade hodierna evidencia certa ausência dialógica, e, portanto, os meios midiáticos passam a exercer um papel determinante na condução sociopolítica no atual momento histórico. Aqui o estágio de alienação se dá por meio de disparos de mensagens midiáticas recheadas de teor ideológico das mais diversas tendências e pretensões. Tal qual observou Debord (1967), a espetacularização ocorre acompanhando sempre a capacidade técnica comunicacional que o homem supera a cada novo produto. Essa superação técnica nunca será democrática no sentido de delegar bem-estar ao indivíduo simplesmente pela apropriação dos novos produtos. Pelo contrário, estes estarão a serviço do controle social exercido pelo sistema de produção e reprodução capitalista. Portanto, além de unilateral, a estrutura técnica comunicacional é objetivada sempre no afã de instituir, por meio da comunicação instantânea, uma linha operacional de disseminação de sua própria ideologia. Por constituir-se uma fonte potencialmente propagadora de uma concepção ideológica de natureza mercadológica, o espetáculo se estabelece como forma de dominação7, salientada enfaticamente nas teorias sociais, no caso da Teoria Crítica (FREITAS, 2004; DUARTE, 2012). De fato, a argumentação debordiana acerca do papel espetacular que cumpre as linguagens comunicativas na sociedade contemporânea está inegavelmente influenciada pelo pensamento crítico frankfurtiano – sobretudo nas figuras de Adorno e Horkheimer – sobre a fragilidade da capacidade racional e reflexiva dos sujeitos sociais, que, na condição de consumidores dos produtos da indústria cultural e da informação, refletem suas relações de apatia, conformismo e passividade. (SOUZA, 2014, p. 255). 7 A ideologia capitalista “espectacularizada”, por exemplo, veiculada midiaticamente pelo sistema capitalista, incorpora e reforça o “trabalho abstrato como uma forma de dominação social que mantém a função das estruturas objetivas e impessoais sobre as relações concretas dos indivíduos” (MELO, 2011, p. 251). 29 Logo, o sentido de espetacularização das ações comunicativas denota a intencionalidade e a necessidade do fazer seguidores e, por conseguinte, consumidores passivos de ideias e produtos. Cada produto disponibilizado no mercado concentra uma ideia na qual se estabelece uma determinada linhagem de conduta social que passa a ser reproduzida por seus integrantes, o que, geralmente, define a que grupo ou tribo o indivíduo pertencerá. No entanto, quase em contrassenso, essa tribo está desintegrada na sua condição “corpórea”. A espetacularização integrada conduz ao isolamento do indivíduo, o qual passa a ser condicionado pela estrutura funcional dos algoritmos reguladores das redes sociais. No ambiente das redes sociais se encontram estruturados, sob a forma de agentes digitais, certos elementos que agem como se fossem “predadores” em potencial. Tendo em vista o papel por eles desempenhado na captura de novos seguidores/consumidores, são denominados digital influencers. Esses novos predadores se servem das redes sociais como Facebook, Youtube, Instagran, Telegran, blogs, dentre outros, para divulgação e comercialização de produtos, ideias e visões de mundo. Neste mesmo compasso das relações comunicativas nas redes, projeta-se outra condicionante disseminadora de elementos capitalizados pelo mercado de produtos a serem transformados em objetos de desejo de seguidores de “personalidades midiáticas” provenientes do mundo artístico, jornalístico e esportivo. Os chamados youtubers se transformaram em atores digitais, com a possibilidade de interação audiovisual direta por meio da rede social Youtube, na qual se desenvolvem os efeitos espetaculares das imagens acompanhadas quase sempre de um apelo sensibilizador de cunho mercadológico. As inferências comunicativas/imagéticas, neste caso específico, transbordam o sentido conceitual do fetichismo da mercadoria, cuja relação, conforme a análise debordiana, se dá de forma unilateral e ditatorial priorizando o consumo administrado: espetáculos em detrimento da ação reflexiva. Nesse trajeto da comunicação midiática por meio das plataformas digitais, desponta-se também, o ordenamento político-eleitoral como experiência de poder que se tem potencializado, à medida que se estabelece, nas redes, a propagação ideológica de natureza totalitária, inclusive, nos chamados regimes democráticos. A título de exemplo, destacam-se dois casos emblemáticos ocorridos nas disputas eleitorais recentes. No primeiro, o então candidato à Presidência da República dos Estados Unidos da América, Donald Trump, candidato pelo Partido Republicano em 2016, conseguiu reverter uma condição desfavorável em meio ao favoritismo da então candidata do Partido Democrata, Hillary Clinton, valendo-se da utilização das fake news (notícias 30 falsas) nas redes sociais8. Outra experiência se deu também na corrida presidencial do Brasil em 2018. O então candidato Jair M. Bolsonaro (PSL), hoje no PL, alinhado ao projeto de extrema direita, conseguiu chegar à presidência com a vitória no segundo turno, servindo-se da estratégia de disseminação de mensagens via redes sociais9, as quais propagandeavam a possibilidade de um novo paradigma político para o país. Aos idealizadores dessas façanhas eleitorais, Da Empoli (2019) chamou de Os Engenheiros do Caos em livro que leva o mesmo nome lançado no Brasil em 2019, em que, logo na introdução, o autor repercute o fato de que, em um ambiente marcado pela baixa representatividade no âmbito da atividade política, os elementos definidores passam a ser os audiovisuais por meio das redes sociais. Juntos, esses engenheiros do caos estão em vias de reinventar uma propaganda adaptada à era dos selfies e das redes sociais e, como consequência, transformar a própria natureza do jogo democrático. Sua ação é a tradução política do Facebook e do Google. É naturalmente populista, pois, como as redes sociais, não suporta nenhum tipo de intermediação e situa todo mundo no mesmo plano, com um só parâmetro de avaliação: os likes, ou curtidas. É uma ação indiferente aos conteúdos porque, como as redes sociais, só tem um objetivo: aquilo que os pequenos gênios do Vale do Silício chamam de “engajamento” e que, em política, significa adesão imediata. Se o algoritmo das redes sociais é programado para oferecer ao usuário qualquer conteúdo capaz de atraí-lo com maior frequência e por mais tempo à plataforma, o algoritmo dos engenheiros do caos os força a sustentar não importa que posição, razoável ou absurda, realista ou intergaláctica, desde que ela intercepte as aspirações e os medos – principalmente os medos – dos eleitores. (DA EMPOLI, 2019, p. 9). Neste caso, não se vislumbra qualquer tipo de capital político construído por uma liderança representativa com raízes em determinados segmentos sociais, e suprime-se a necessidade de um partido político com projeções eleitorais e posições ideológicas claras. Assim, o que se arquiteta nesse jogo populista é o investimento midiático nas esferas mais vulneráveis em função do pensamento irrefletido acerca de questões conjunturais como crises econômicas, por exemplo. 8 Conforme Da Empoli (2019, p. 29), “Nos Estados Unidos, por trás da aparente simplicidade da campanha de baixo custo de Donald Trump, havia também técnicas psicométricas da Cambridge Analytica e, sobretudo, a capacidade de se alavancar nas funcionalidades mais inovadoras do Facebook graças a uma equipe de técnicos mobilizados pela empresa (que a campanha de Hillary recusara)”. 9 Assim como nos Estados Unidos, o desencadeamento de um aparelhamento midiático mudou radicalmente o cenário político-ideológico, trazendo à tona o desfraldar de uma reverência autoritária no executivo nacional, algo impensado desde a promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro1988. Da Empoli (2019, p. 29) confirma que, “no Brasil, os comunicadores a serviço do candidato ultranacionalista Jair Bolsonaro driblaram os limites impostos aos conteúdos políticos no Facebook comprando milhares de números de telefone para bombardear quem utiliza o WhatsApp com mensagens e fake news”. 31 Todo este apelo ideológico, alicerçado na disseminação da retórica carregada de apelos nacionalistas e religiosos, emalhados por extremos ideológicos, materializa-se em perfis que, mesmo estando distanciados do poder, têm clareza acerca da influência sobre setores sociais, cujas preferências ideológicas são manifestadas por meio das redes sociais. Assim, o líder de um movimento que agregue as fake news à construção de sua própria visão de mundo se destaca da manada dos comuns. Não é um burocrata pragmático e fatalista como os outros, mas um homem de ação, que constrói sua própria realidade para responder aos anseios de seus discípulos. Na Europa, como no resto do mundo, as mentiras têm a dianteira, pois são inseridas numa narrativa política que capta os temores e as aspirações de uma massa crescente do eleitorado, enquanto os fatos dos que as combatem inserem-se em um discurso que não é mais tido como crível. Na prática, para os adeptos dos populistas, a verdade dos fatos, tomados um a um, não conta. O que é verdadeiro é a mensagem no seu conjunto, que corresponde a seus sentimentos e suas sensações. (DA EMPOLI, 2019, p. 10). Essas manifestações de comunicação midiática com base no estabelecimento do controle indelével de mentes receptoras do repertório propalado pelas redes sociais são, via de regra, emitidas pelas grandes corporações de comunicação, sustentadas pela valoração econômica embutida em sua capacidade de agregar seguidores na capitalização dos projetos de poder. Dessa forma, depreende-se que o poder econômico, quando transmutado para a alçada política, acaba por fortalecer o aspecto hegemônico do poder exercido pelo Estado sobre o indivíduo. No espetáculo contemporâneo promovido pelas redes sociais, o poder de convencimento está condicionado, também, à subserviência dos seguidores/consumidores desse tipo de retóricas ideológicas e produtos, pois ambos foram plantados e propagandeados de acordo com o estado de espírito do receptor, que é previamente definido pela atuação seletiva e cuidadosa do algoritmo. Essa condição de poder, porém, pode produzir situações embaraçosas e até conflituosas. Muitas se situam no contexto atual tratadas como pós-verdades ou notícias falsamente plantadas (fake), quase sempre carregadas de intolerância e violência. Debord (1967, p. 70) pontua que “cada nova mentira da publicidade é também a confissão da sua mentira precedente. Cada derrocada de uma figura do poder totalitário revela a comunidade ilusória que a aprovava unanimemente e que não era mais do que um aglomerado de solidões sem ilusões”. Assim, o falso e o verdadeiro passam a ser apenas uma opção ideológica de quem recebe a mensagem, pois não se trata de discernir tal conteúdo de forma elucidativa, mas de degustar o script ideológico ali impregnado. 32 Em meio ao aparato imagético, constata-se o arcabouço fragmentado de uma sociedade envolta pelas irradiações audiovisuais, pelas quais se manifestam as representações de um indivíduo um tanto ofuscado em sua subjetividade, em virtude de seu pertencimento social estar vinculado ao projeto de atendimento aos apelos do cativante mercado reluzido aos meios audiovisuais. Essa realidade definida pela necessidade de “ter” para “ser” difundida pelos meios de comunicação e de informação, agora cuidadosamente personalizada pelos algoritmos, sobrepõe-se à ação refletida do sujeito, pois as decodificações pelas quais se articulam reflexões elaboradas estão administradas pelos mecanismos de controle mercadológicos. Embora o foco de análise deste trabalho não esteja orientado, prioritariamente, para o aspecto da formação ética do ser humano, entende-se que o caráter formativo deva também ter, em suas intervenções, preocupações quanto às interações sociais manifestadas nas redes sociais, pois essas, em função de seu caráter subjetivo, se tornam, potencialmente, um ambiente de práticas nem sempre afeitas ao comportamento ético. É neste estágio de propagação imagética da sociedade do espetáculo atual, agora tecnicamente potencializada com o desenvolvimento das novas mídias sociais, que toda a significação do poder social se estabelece de forma fragmentada e orientada, a um só tempo, na própria espetacularização de produtos e ideias pelos quais se constrói a condição do poder. Logo, o espetáculo “empodera” a si mesmo e de forma automática diante da impotência subjetiva de uma sociedade alienada e incapaz de dosar suas experiências totalitárias de poder (TRAVANCAS; NOGUEIRA, 2016). Esse empoderamento tem como projeto de sustentação os mecanismos pelos quais o homem da era da comunicação midiática se serviu, desde meados do século XX, quando, ao pensar ter superado o cúmulo da barbárie em plena expansão do capitalismo financeiro, sucumbiu em meio à difusão descontrolada da atividade midiática. Transformar a atividade educativa em um espetáculo como forma de adequação à contemporaneidade marcada pelo “mundo digital” tem-se tornado uma prioridade nas proposições pedagógicas da sociedade da informação. O conhecimento, produto de intensa abordagem reflexiva sobre o objeto de estudo, se depara com um ambiente marcado pelo apelo mercantilizado e pela fragmentação cultural e social. O isolamento cultural e intelectual, neste caso, seria a fonte que realimenta e sustenta o poder totalitário dominador. Como contraponto, Debord propõe uma mobilização de resistência por meio de uma ação coletiva quando se dirige ao lado fragilizado da sociedade do espetáculo. Mesmo que em uma condição de arrefecimento das forças de resistência em função da fragilidade gerada pela fragmentação social e o isolamento frente ao espetáculo dominante, o autor defende a unidade de classe na linha de frente do embate contra a falsa consciência. Quando se unifica o desejo 33 subsumido em cada indivíduo, para Debord pode significar a redenção do estado de inércia em relação à prática social: “Se a lógica da falsa consciência não pode reconhecer-se veridicamente a si mesma, a procura da verdade crítica sobre o espetáculo deve ser também uma crítica verdadeira” (DEBORD, 1967, p. 138). Destarte, não se pode esperar o resultado de uma ação social bem-sucedida se esta não for produto de uma intenção coordenada de acordo com os princípios de uma crítica pautada no interesse objetivo da sociedade. O simples atuar de forma contraposta ao establishment não significa, por si só, a possibilidade real de alteração de um quadro solidificado no controle dominador dos promotores do espetáculo. Além disso, um projeto crítico combativo significa uma atuação consistente quanto à argumentação e mobilização social conduzida pela bandeira do conhecimento. Portanto, toda ideologia subjetiva ou de um determinado setor da sociedade que vá prevalecer sobre as necessidades objetivas, ou seja, atendimento aos propósitos representativos da totalidade em relação à atuação político-jurídica, se torna nociva ao desenvolvimento civilizatório. Qualquer proposta, projeto ou programa de natureza política, que estejam carregados de afinidades ideológicas extremistas quando executados, se transformam em fonte de confronto e intolerância, podendo extremar-se em violência física e/ou psicológica, perdendo- se o sentido do embate produtivo por meio do debate de ideias objetivas. Esses embates ideológicos manifestados em meio à sociedade do espetáculo se apresentam, cotidianamente, nas redes sociais em forma de ações e reações, muitas vezes, sem o devido cuidado com os desdobramentos potencialmente educacionais ali implicados. O espetáculo, impulsionado pela aceleração midiática, não corrobora uma condição de análise sustentada na argumentação crítica. Pelo contrário, ao expropriar a capacidade reflexiva subjetiva, isola e desagrega, ampliando a vulnerabilidade formativa potencializada pela racionalização do ensino escolar. Assim, a proposta aventada na sociedade do espetáculo deve ser considerada como alerta para o que se objetiva no encaminhamento da educação escolar contemporânea (BELLONI, 2003; LIMA; NEVES, 2006). As propostas e estratégias educativas sistematizadas nos documentos oficiais nas últimas três décadas, estruturalmente, refletem a necessidade de se conduzir a ação educativa docente no caminho do desenvolvimento de competências de alunos que possam atuar no mercado de trabalho e no convívio social de forma dinâmica e multifuncional (CARVALHO, A, 2013). Todavia a materialização da apropriação do conhecimento escolar passa, antes de tudo, pelo investimento na capacidade de assimilação das necessidades pedagógicas contemporâneas, aprofundando a reflexão sobre o uso de mídias 34 sociais no ambiente de estudo, sem perder de vista a relevância docente na atividade educativa. Franco (2016, p. 546) destaca a “necessidade de considerar o caráter dialético das práticas pedagógicas, no sentido de a subjetividade construir a realidade, que se modifica mediante a interpretação coletiva”, em que pese a interveniência midiática na apropriação do conhecimento. 2.1.1 Da espetacularização à sensação Se a condição social espetacularizada que Debord (1967) projetou para o século XX, cuja essência objetiva do indivíduo se ofuscou ante a disseminação imagética, atualmente essa se aprofundou na sociedade da sensação, como argumentou Türcke (2010, p. 172), pois os incrementos da revolução tecnológica atingem, de forma paulatina, a tudo e a todos, “mas sua força propulsora é o choque audiovisual. Ele adquire a condição de um rodamoinho da história da humanidade”. Daí se pode considerar que a sociedade contemporânea vai potencializar o espetáculo viciante em formas de “impulsos sensoriais” que, segundo o filósofo, são retroalimentados por novos cliques produzindo novas sensações imagéticas. Conforme Farias (2018, p. 171), Tanto os pressupostos econômicos e político como econômicos pulsonais permitem que o filósofo alemão compreenda a permanência das pessoas diante das telas digitais como um sintoma de vivências traumáticas que requerem, assim como tudo que é traumático, a sua reapresentação nos termos do que Freud chamou de compulsão a repetição traumática. Na teoria de Türcke, este conceito freudiano é compreendido na formação da atenção e da própria cultura, pois teria sido pela via da repetição de traumas vividos em meio à natureza que o coletivo humano foi vagarosamente se forjando. Esse acondicionamento traumático compulsivo pelo qual se mobiliza a recorrente disposição das pessoas ao estímulo digital, no âmbito da atividade educativa escolar, se coloca como uma subserviência ao elemento técnico de forma passiva. Assim, o audiovisual passa a ser um desafio para o processo educacional, quando não condicionado para além de suas prerrogativas operacionais e pragmáticas, ou seja, não se desenvolve competência refletida no mundo digital se as habilidades oriundas da criticidade não forem estimuladas pela práxis formativa. Ademais, em meio ao complexo círculo vicioso em que estão mergulhados os consumidores de mídias sociais, sobretudo, crianças e adolescentes, nestes predomina o caráter sensitivo quando em posse de um artefato midiático audiovisual, em função dos sintomas compulsivos desenvolvidos na relação com a tela. 35 Sensação corresponde a todo um complexo de elementos. Em primeiro lugar, algo subjetivo: a percepção; depois, sua intensificação: percepção daquilo que chama a atenção; em seguida, algo subjetivo, aquilo que chama a atenção; e, por fim, a interpenetração e intensificação recíprocas do subjetivo e do objetivo. (TÜRCKE, 2010, p. 77). É neste conjunto de afecções subjetivas e estimulações objetivas que se sucedem, de forma contínua, os impulsos pelos quais a distração comunicativa se avoluma, ou seja, a atividade de abstração na qual se projeta a síntese que leva à apropriação de conhecimentos concretamente pensados fica prejudicada. As sensações aqui ficam a cargo da relação de poder que se estabelece entre o que é perceptível (ação subjetiva) e a manifestação espontânea para que possa ser percebido (ação objetiva), efetivando, assim, o processo de “estar aí”. Portanto, a exemplo da “sociedade do espetáculo”, a “sociedade excitada”10 se apresenta como consumidora de artefatos midiáticos, aderindo aos médios audiovisuais e psiquicamente alinhados aos projetos mercadológicos de mentes e produtos. Tanto a espetacularização quanto a sensação executam a tarefa de conduzir a atividade subjetiva, sempre sincronizada aos apegos das inovações tecnológicas, cujo desdobramento objetivo é o “ser percebido”, consubstanciando sua prevalência na sociedade midiática (SANTOS, 2012). Se, na sociedade do espetáculo, a dimensão imagética ainda deixava grande parte do conjunto social à margem do frisson tecnológico, na sociedade excitada a revolução tecnológica se apropriou da quase totalidade das manifestações cotidianas de qualquer indivíduo como resultado de sua acessibilidade (LIMA, 2016). Este aspecto deve ser aqui considerado como um delineador importante acerca das implicações do espetáculo no desenvolvimento de uma condicionante formativa do sujeito, este tomado na posição de consumidor imagético, e no combate à sua “falsa consciência”. O alcance social do espetáculo debordiano do século passado, como mencionado anteriormente, foi alterando-se à medida que os condicionantes políticos e econômicos hegemônicos se foram estabelecendo. No primeiro momento, em sua fase “concentrada” em meio à consolidação dos totalitarismos de direita (nazifascismo) e esquerda (stalinismo), a atividade comunicativa de massa agia de forma a consolidar a consistência ideológica de cada regime, tendo sempre presente a cena espetacularizada de um líder na linha de frente: “A imagem 10 A “sociedade excitada”, conforme proposta por Türcke (2010), “consome e distribui um grande fluxo de informação em um ritmo viciante”, compondo “um frenesi dos usuários dos meios de comunicação, em que todos querem ser os portadores das novidades [...] Os usuários interagem, produzem conteúdo, intervêm e opinam com vigor e velocidade sobre os diferentes fatos e acontecimentos. Há um vício na busca de informação e entretenimento” (CARDOSO; PRADO JÚNIOR; IACOMINI JÚNIOR, 2019, p. 285-286). 36 imposta do bem, no seu espetáculo, recolhe a totalidade do que existe oficialmente e concentra- se normalmente num único homem, que é a garantia da sua coesão totalitária” (DEBORD, 1967, p. 37). Com a derrota do nacional-socialismo na Segunda Guerra Mundial, o espetáculo viria servir a outra realidade política, econômica e ideológica, porém, não menos totalitária. Nas economias de controle burocrático estatal, como nos exemplos da União Soviética e da China, irá acentuar a atividade comunicativa ditatorial, como forma de sobrevivência do regime frente a qualquer tipo de prática sociopolítica opositora. A ditadura da economia burocrática não pode deixar às massas exploradas nenhuma margem notável de escolha, visto que ela teve de escolher tudo por si própria, e que toda outra escolha exterior, quer diga respeito à alimentação ou à música, é já a escolha da sua destruição completa. (DEBORD, 1967, p. 36). Prevalecem, então, nichos de espetáculos de natureza “concentrada” nestes redutos em muito direcionados pelos encaminhamentos do desfecho da Grande Guerra, mas também pela vultosa expressividade adquirida pela revolução socialista e o Exército Vermelho no combate ao Nacional-Socialismo durante a Segunda Guerra Mundial, cujo desfecho se materializou como o elemento publicitário e disseminador da ideologia socialista, sob a égide da ditadura stalinista. Na outra ponta do embate ideológico, o processo de incorporação de indivíduos ao mercado de capitais e bens culturais vai representar um alargamento do controle social por meio da difusão do espetáculo do sistema imagético. E, mesmo que isso representasse o “fim da arte” (ADORNO, 1986), a mercantilização cultural na fase “difusa” se apropria dos meios de comunicação em massa e passa a determinar os percursos das sociedades administradas pelo capital (GUIMARÃES, 2018). O espetacular difuso acompanha a abundância das mercadorias, o desenvolvimento não perturbado do capitalismo moderno. Aqui, cada mercadoria considerada isoladamente está justificada em nome da grandeza da produção da totalidade dos objetos, de que o espetáculo é um catálogo apologético. (DEBORD, 1967, p. 37). Logo, o espetáculo é a força propulsora da capacidade reprodutiva do capital (FONTENELE, 2002; SOTTANI, 2014). É por meio dele que se garante a multiplicação dos agentes integradores da sociedade moderna. Os produtos advindos da revolução microeletrônica, pelos quais se integram as mentes humanas e os produtos tecnológicos desenvolvidos por elas, 37 vão dar a sustentação para a fase seguinte do espetáculo “integrado”, cujos elementos mercantis, segundo a análise debordiana, atingem a todos de forma integrada. É neste estágio de assimilação da realidade psíquico-social da civilização, em seu momento atual, que, conforme Türcke (2010), se investe na relação existencial entre o homem e sua compulsão por sensações propiciadas pela universalização microeletrônica. Se, por um lado, este caráter globalizado de produtos de alta tecnologia, em virtude da propagação espetacular via tecnologias digitais de comunicação e informação (TDIC), poderia significar certo status de inclusão via integração digital11, por outro, o cenário passou a significar uma forma de degradação social: à medida que determinados “sonhos de consumo”, sobretudo, de jovens adolescentes são desencadeados pelos meios midiáticos, passam a representar também um aspecto de pertencimento à sociedade: “tal ânsia pode ser facilmente reconhecida como uma versão desesperada do tema esse est percipi” (ser é ser percebido), conforme Türcke (2010). Assim, o status imaginário de pertencimento ao mundo social, pautado pela necessidade de consumo de produtos espetacularizados midiaticamente, se torna potencialmente um aspecto determinante nas relações sociais de grupos e/ou indivíduos, mesmo quando estes se encontram em estado de vulnerabilidade social como situações de pobreza extrema e/ou exclusão social. Logo, a máxima marxiana de que a consciência se estabelece sob a égide das condições materiais de existência ganha nova ressignificação com C. Türcke. Tal qual atesta Farias (2018, p. 170): A atualização do pensamento de Marx, realizada por Türcke, não apenas reforça a compreensão de que tal permanência representa uma expansão do mundo da produção de mercadorias, que compreende aquilo que Marx denominou mais- valia, mas também, conduz ao entendimento de uma face da exploração que, aos poucos se tornou mais evidente apenas com as transformações microeletrônicas no modo de trabalhar da sociedade capitalista: a exploração do sistema nervoso humano, da capacidade humana de se concentrar, e de se ater sobre as coisas do mundo. No contexto do espetáculo integrado característico da “sociedade excitada”, as disparidades econômicas subjetivas e objetivas se apresentam como uma modalidade de coerção social. O “ser percebido” como critério de pertencimento traz a possibilidade constante de exclusão e, portanto, de desintegração do próprio corpo social, uma vez que a possibilidade de integração ocorre de forma seletiva. 11 Ocorrem apropriações e reapropriações da tecnologia global a partir de peculiaridades locais, e se vive e interage conforme fatores culturais. São formadas redes de relacionamento proporcionadas por novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), ligando as interações pessoais: em um “mundo de estímulos constantes, as tecnologias passam a fazer parte do estilo de vida que exige ampla funcionalidade” (CARDOSO; PRADO JÚNIOR; IACOMINI JÚNIOR, 2019, p. 289). 38 2.2 Ideologia e “racionalidade cínica” (Slavoj Žižek) Em meio ao caráter de socialização paulatina de um conjunto cada vez maior de manifestações midiáticas por indivíduos (anônimos ou influenciadores), grupos, corporações, celebridades, empresas públicas e privadas que atuam nas mídias sociais, acumulam-se interações em rede pelas quais são externadas objetivações de pensamento em magnitude de toda ordem, o que, de certa forma, caracteriza o perfil de quem emite determinada mensagem. Essas exteriorizações quase sempre carregam, em seu interior, expressões simbólicas de defesas ou refutações de uma ideia ou ação de natureza política, mercadológica, cultural, religiosa, comportamental etc. Neste caso, o sistema/algoritmo se incumbe de alastrá-las às esferas sociais afins, provocando uma reação em cadeia e caracterizando um embate ideológico que, no contemporâneo, tem sido depreendido como parte de expressões de um corpo social pós- ideológico12. Esse contexto pós-ideológico pode ser compreendido pelo atual estágio do modelo capitalista marcado por representações, muitas vezes, falseadas por sistemas sociais pelos quais se multiplica uma “racionalidade cínica”13. Tais sistemas não são simplesmente resultados de imposições coercitivas, mas da aceitação advinda da crença de eles operarem a partir de padrões desejados de racionalidade. Pois toda forma de vida funda-se na partilha de um padrão de racionalidade que se encarna em instituições, disposições de conduta valorativas e hábitos. [...] Há um modo cínico de funcionamento dessas estruturas que aparece normalmente em épocas e sociedades em processo de crise de legitimação, de erosão da substancialidade normativa da vida social. Isso nos coloca diante de uma hipótese maior: a partir de um certo momento histórico, os regimes de racionalização das esferas de valores da vida social na modernidade capitalista começaram a realizar-se (ou, ao menos, começaram a ser percebidos) a partir de uma racionalidade cínica (SAFLATE, 2008, p. 12- 13). 12 Mesmo que esta adjetivação (pós) possa encaminhar para um determinado período ou tempo histórico, este recorte analítico-conceitual se aplica, aqui, a um estado comportamental de indivíduos que, embora não estejam convictos das objetivações e da racionalidade de uma proposição que pode ser entendida como uma visão político-ideológica de mundo, preferem seguir seu destino por um caminho pelo qual acreditam conduzir ao triunfo final. O problema está no fato de que eles sabem (ou desconfiam) que este trajeto não vai levá-los a lugar algum. 13 A racionalidade cínica refere uma “articulação contemporânea entre mundo do trabalho e mundo do consumo [que] visa à constituição disciplinar de sujeitos que orientam seu modo de agir a partir de uma lógica de anulação paradoxal de contradições e de amaciamento de contrários exigida pela racionalidade das sociedades capitalistas contemporâneas” (SAFATLE, 2008, p. 24). 39 O “cinismo” se explica (ou se manifesta) pelo falseamento das relações sociais permeadas no contexto da explosão do mercado digital, empreendida com o advento da softwarização14. Nela se projeta o programa de um rigoroso controle social por meio da multiplicação de valores, crenças e comportamentos e, ainda que estes não representem, de forma sustentável, uma significância racional e concreta no âmbito da realidade social, acabam por suprimir o real e incorporar nos indivíduos uma racionalidade falsa, cínica. Dessa forma, as inserções midiáticas manifestadas nos audiovisuais contemporâneos, sobretudo nas redes sociais, se oferecem como um mecanismo de reprodução deste estágio comportamental desconectado de quaisquer realidades racionais – comportamentos que já se mostravam como “sintomas de uma consciência duplicada”, como se refere Saflate (2008, p. 100) ao pontuar uma questão já posta por Adorno (2009) como sendo elementos culturais “previamente ironizados15”. Logo, a softwarização se projeta como condição determinante para a execução do controle social por meio de certa ideologização midiática (COSTA, 2013), mesmo que esta não tenha os elementos essenciais para a constituição de uma identidade como, por exemplo, o discernimento racional acerca das reais objetivações implícitas nos mecanismos da rede algorítmica, que se caracteriza como um processo de desordenamento das atribuições formativas, sobretudo no âmbito da atividade educativa, agravado por meio da banalização e recrudescimento dos embates manifestos nas redes sociais. Esse embate acaba por deteriorar a potencialidade racional do indivíduo ante o desnivelamento reflexivo entre o sistema algorítmico e o próprio sujeito, pois a ação e a propagação da razão cínica se tornam o meio de desapropriação da capacidade de ponderar e agir com prudência. Essa condição está estabelecida pela falta de sustentação de uma lógica de consciência coerente e reflexiva dos atores da sociedade pós-ideológica (COSTA, 2013). 14 Trata-se de um conjunto de atributos midiáticos caracterizado pelas “mídias híbridas, interfaces, técnicas, e ultimamente os pressupostos fundamentais de diferentes formas e tradições das mídias, que juntas resultam em uma nova Gestalt midiática” (MANOVICH, 2013, p. 167). 15 O espectro da ironia acerca desse estado de inconsistência racional tão presente hoje nos indivíduos, que são arrebanhados ideologicamente pelos elementos disseminados pela conexão algorítmica das redes sociais, ganhou espaço quando das análises da atuação da indústria cultural sobre o tempo livre do trabalhador por Theodor Adorno: “O crítico da ideologia que se ocupa da indústria cultural haverá de inclinar-se para a opinião de que — uma vez que os standards da indústria cultural são os mesmos dos velhos passatempos e da arte menor, congelados — ela domina e controla, de fato e totalmente, a consciência e inconsciência daqueles aos quais se dirige e de cujo gosto ela procede, desde a era liberal. Além disso, há motivos para admitir que a produção regula o consumo tanto na vida material quanto na espiritual, sobretudo ali onde se aproximou tanto do material como na indústria cultural. Deveríamos, portanto, pensar que a indústria cultural e seus consumidores são adequados um ao outro. Como, porém, a indústria cultural, entretanto, tornou-se [sic] totalmente fenômeno do sempre-igual, do qual promete afastar temporariamente as pessoas, é de se duvidar se a equação entre a indústria cultural e a consciência dos consumidores é precedente” (ADORNO, 2009, p. 68-69). 40 Atualizando a configuração peculiar de dominação do software hodierno, “muito sutil e, por isso mesmo, mais perigosa” (COSTA, 2013, p. 146), observa-se que a capacidade do sistema de informação e comunicação digital, em matéria de administrar de forma instrumental o conjunto social, foi multiplicada e, por conseguinte, potencializada paulatinamente inúmeras vezes ao longo das últimas décadas. A isso se acresce, ainda, que a percepção e apropriação de um discernimento de natureza ideológica com base nas convicções experimentadas durante a vivência, para o indivíduo de um cenário pós-ideológico, perdem o seu equilíbrio. Como resultado, tem-se um estado de adaptação social a uma proximidade com um aspecto de irracionalidade cínica sistêmica, consolidando o triunfo da estagnação crítica racional pela qual se tem pautado a sociedade da assim denominada “pós-verdade”, em muito pelo mergulho cada vez mais profundo dos indivíduos no mundo das fake news. Como lembra Žižek (1996, p. 14), O modo mais destacado dessa "mentira sob o disfarce da verdade", nos dias atuais, é o cinismo: com desconcertante franqueza, "admite-se tudo", mas esse pleno reconhecimento de nossos interesses não nos impede, de maneira alguma, de persegui-los; a fórmula do cinismo já não é o clássico enunciado marxista do "eles não sabem, mas é o que estão fazendo" agora, é “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo". Depreende-se que essa transgressão de limites entre o real e o falseamento da realidade, que tem ocupado um grande espaço nas inserções midiáticas, produzindo um conjunto de mediações cínicas e falsas fake news, age sempre no sentido de superestimar produtos midiáticos (lives, receitas, comportamentos) e/ou discursos que projetam, no corpo social, a defesa de uma suposta mentalidade símbolo-ideológica da era digital. Assim, os mecanismos de subversão do pensamento crítico racional se estabelecem no corpo social valendo-se, em muito, das investidas dessa falsa consciência, irradiada pelo ambiente digital, e consolidam uma conjuntura de instabilidade à medida que novos elementos decodificam os atuais parâmetros como obsoletos. Assim, O cinismo é justamente a resposta da cultura vigente à subversão cínica: reconhecemos o interesse particular por trás da máscara ideológica, mas mesmo assim conservamos a máscara. O cinismo não é uma postura de imoralidade direta, mas, antes, a própria moral colocada a serviço da imoralidade: a “sabedoria” cínica consiste em apreender a probidade como a mais rematada forma da desonestidade, a moral como a forma suprema da devassidão [depravação] e a verdade como a forma mais eficaz da mentira. (ŽIŽEK, 1996, p. 60). 41 Žižek (1996, p. 60), também assevera que Esse cinismo, portanto, é uma espécie de perversa "negação da negação" da ideologia oficial: confrontada com o enriquecimento ilícito, com o roubo, a reação cínica consiste em dizer que o enriquecimento lícito e muito mais eficaz e, além disso, é protegido por lei. Como disse Bertolt Brecht na Ópera dos três vinténs, "que é o roubo de um banco, comparado a fundação de um banco?" Logo, a sistematização do comportamento cínico é sintomática de uma sociedade marcada pelo atropelo do comportamento ético da ação política. Tem como implicação, sobretudo nas intervenções educativas, um descompasso nas aspirações formativas no âmbito da ética, muito em virtude do “cinismo a serviço da imoralidade”. Por conseguinte, o advento do sistema midiático ultraliberal no início do século XXI desautoriza que se vislumbre uma formação sustentável das competências digitais com base na mediação reflexiva. Se, na Sociedade do Espetáculo, se delineavam, de forma aprazível, os mecanismos ideológicos nos artefatos audiovisuais – aglutinadores das esferas sociais sob a égide dos incrementos midiáticos em um arcabouço de dominação por meio da aquisição da ideia mercantilizada –, na conjuntura atual, observa-se outra face dessa dominação sendo, porém, agora, aprofundada à “racionalidade cínica”. Logo, esse estado de incorporação social ao mercado dominante se encorpa à medida que o mercado se encarrega de apresentar os objetos de desejo espetacular nos meios de comunicação, conspirando sempre para que o indivíduo possa agir de forma a não observar de maneira refletida as implicações deste engajamento fetichizado à mercadoria. Como lembra Žižek (1969, p. 19): Nos primórdios do capitalismo, por exemplo, o papel da ética protestante do trabalho árduo como um fim em si limitou-se a camada dos capitalistas emergentes, ao passo que os operários e camponeses, bem como as classes superiores, continuaram a obedecer a outras atitudes éticas mais tradicionais; logo, não se pode atribuir à ética protestante o papel de "cimento" de todo o edifício social. Hoje em dia, no capitalismo tardio, quando a expansão dos novos meios de comunicação de massa permite, ao menos em princípio, que a ideologia penetre efetivamente em todos os poros do corpo social, o peso da ideologia como tal diminui: os indivíduos não agem da forma como agem em função, primordialmente, de suas crenças ou convicções ideológicas - ou seja, a reprodução do sistema, em sua maior parte, contorna a ideologia e confia na coerção, nas normas legais e do Estado, e assim por diante. Embora estejam a algumas décadas da publicação desta análise atribuída ao capitalismo, os rumos de tal convicção ideológica seguem evidentes pela dinâmica dominadora de um mercado que atua sempre de acordo com os anseios subjetivos de indivíduos sedentos de 42 pertencimento ao corpo social. Neste conjunto de interesses representado pela espetacularização via softwarização, os condicionamentos formativos acerca das tendências comportamentais, de certa forma, vão sendo definidos muito em função da capacidade de o projeto digital da rede alavancar novos parceiros disseminadores de ideias pouco convictas, porém, muitas vezes, convincentes. Assim, a potencialização da força empreendida pelas redes sociais no âmbito da degradação do outro, via proliferação de mecanismos estratégicos como a “cultura do cancelamento”16, vai ocupando, objetivamente, um espaço paralelo de (de)formação midiática por meio da inserção digital, que não pode ser negligenciado quanto à necessidade de aprimoramento de uma alfabetização/educação midiática, no âmbito das políticas curriculares e, sobretudo, nas ações educativas do ambiente escolar. Portanto, embora o sistema educacional, por meio das reformas curriculares do ensino básico, como a BNCC (BRASIL, 2018) e os currículos concernentes às Secretarias Estaduais de Educação, traga em suas diretrizes as proposições sobre a necessidade de empreender ações educativas com base nas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC), essa condição não autoriza a pensar que o conceito de ética digital passou a ser uma prioridade educativa, em sua forma efetiva e consubstanciada. Neste condicionamento digital ainda não se vislumbra uma realidade efetiva tal que se possam determinar critérios comportamentais desprovidos de influências ideológicas, pois, da forma coercitiva pela qual se engendraram os mecanismos de comunicação contemporânea, se infere que o conjunto social esteja impactado por essa “racionalidade cínica”, à medida que as relações sociais também o estão. Para Žižek (1996), isso não pode significar uma adesão pura e simples a uma coerção ideológica e deixar que a realidade positiva seja ofuscada pela carga ideológica presente e irradiada nos diferentes setores do conjunto social. Isso corresponderia a abrir mão de uma 16 Embora não seja um elemento inédito que compõe o rol de estratégias de linchamento público, a cultura do cancelamento digital nos últimos anos tem-se avolumado nos espaços midiáticos, principalmente nas redes sociais as quais são alimentadas e frequentadas por um público muito heterogêneo, porém, com um adjetivo comum. Seus ativistas se servem de um modelo de julgamento de atos e/ou escolhas de pessoas de forma irracional politicamente e depreciativa moralmente. Para Campello (UFPE), “a garantia geral de liberdade de expressão, inclusive em temas morais ou religiosos, ganhou um efeito altamente nocivo em tempos de redes sociais. Basta um post condenatório (ou difamatório, não se pode saber a priori) viralizar para que alguém se torne automaticamente culpado, pouco importando se depois, na esfera jurídica, for inocentado. O estrago do cancelamento já foi feito. A consequência: estamos regredindo àquela forma de punição social com base no moralismo, como se novamente vivêssemos em um vilarejo em que a própria comunidade repreende as ações a partir de algum código de conduta. Hoje, porém, temos um perigoso agravante em relação ao passado: o alcance das redes sociais é imponderável” (CAMPELLO, 2020, s.p.). 43 potencial possibilidade de que se possa empreender alguma consistência no embate acerca da premente ação contra ideológica. Insiste o autor que, “embora nenhuma linha demarcatória clara separe a ideologia e a realidade efetiva, embora a ideologia já esteja em ação em tudo o que vivenciamos como ‘realidade’, devemos, ainda assim, sustentar a tensão que mantem viva a crítica da ideologia” (ŽIŽEK, 1996, p. 22). Essa possibilidade poderia materializar-se caso as conformações ao sentido crítico não fossem tão coagidas por manifestações midiáticas de influenciadores, seja do esporte, da religião, seja de um reality show ou mesmo de um ritmo musical, aliados à realidade socioeconômica das massas abrigada no esconderijo do fantasioso mundo da irracionalidade. É neste contexto de crise de identidade de indivíduos reificados, que os agentes da exploração de mentes carentes de uma consciência refletida agem no ambiente das redes, arrebanhando, g