UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS – UNESP, UNICAMP E PUC-SP TALES DE PAULA ROBERTO DE CAMPOS O projeto transfronteiriço do Primeiro Comando da Capital – PCC (2006-2016) São Paulo 2020 TALES DE PAULA ROBERTO DE CAMPOS O projeto transfronteiriço do Primeiro Comando da Capital – PCC (2006-2016) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para a elaboração do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional”. Orientador: Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille. Co-Orientador: Prof. Dr. William Laureano da Rosa. São Paulo 2020 TALES DE PAULA ROBERTO DE CAMPOS O projeto transfronteiriço do Primeiro Comando da Capital – PCC (2006-2016) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional”. Orientador: Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille. Co-Orientador: Prof. Dr. William Laureano da Rosa. BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________ Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) _______________________________________________________ Prof. Dr. Paulo José dos Reis Pereira (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) _______________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Alan Shaikhzadeh Vahdat Ferreira (Universidade Federal da Paraíba) São Paulo, 07 de dezembro de 2020. À minha família – Elson, Yuri e Rovânia. Para as pessoas que nunca desistiram de mim nos momentos mais difíceis. Que eu continue os recompensando pela luta deles. AGRADECIMENTOS Os momentos de agradecimentos são sempre um dos mais marcantes para mim, pois é onde eu percebo que estou chegando ao final de uma jornada que exigiu muito esforço e coragem perante as adversidades. E a partir deste momento, somos testados às novas etapas da vida. Nesse momento, escrevo para agradecer e para saudar àquelas pessoas que fizeram a diferença nestes dois anos de estudos e de aprimoramento profissional. Sem vocês, provavelmente, eu não chegaria tão longe. Primeiramente, quero agradecer a Deus que, por meio de suas “linhas tortas”, iluminou meu caminho. Assim como escrevi em outro agradecimento dois anos atrás, eu continuo sendo uma pessoa que não possui uma relação muito próxima quanto a algum tipo de devoção. Não sou muito religioso. Porém, sua presença surge por meio de oportunidades e desafios. Surge por meio da luta e da humanidade. Surge por meio da bondade. Seja como for, muito obrigado por fazer com que meus passos possam ir mais longe. Agradeço profundamente ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP) por me ceder as instalações para os estudos, pelas reflexões, pelas aulas e pelo acesso ao conteúdo. A tantos saberes. Esta instituição me impressiona cada vez mais pelos seus conhecimentos e pelo que partilha com seus alunos. Sou eternamente grato por me fazer um profissional mais competente, mais preparado e que com toda a certeza, fará o melhor para tentar trazer um pouco de paz ao mundo. Agradeço também aos diretores deste programa interinstitucional que também tive a oportunidade de conhecer-nos. Muito obrigado professores doutores Samuel Alves Soares e Héctor Luís Saint- Pierre pelos ensinamentos e pela partilha deste conhecimento riquíssimo. Agradeço também aos meus orientadores que fizeram tanta diferença para que esta dissertação pudesse ser realidade. Obrigado Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille e Prof. Dr. William Laureano pelas dicas, pelas lições, pela dedicação e por acreditar neste trabalho que lhes propus. Acredito que tenha sido um desafio e tanto, mas podem ter a mais plena certeza que eu aprendi muito em cada momento de nossa trajetória. Saio do mestrado mais fortalecido e honrado por ter conhecido ambos. Eu espero algum dia lhes reencontrar como colegas de campo e como amigos. Agradeço ao corpo docente com quem eu pude ter contato durante esta experiência no San Tiago Dantas. Foi simplesmente sensacional conhecer essa equipe de professores. Se eu já os admirava antes de conhecê-los, hoje eu lhes respeito ainda mais. Assim como os meus orientadores, vocês são fonte incrível de conhecimento. Fico grato por ter sido aluno destes educadores e cientistas políticos. Agradeço aos funcionários que fazem este programa ser tão bem sucedido. Vocês são peças essenciais para que tudo o que eu lutei pudesse se tornar realidade. Muito obrigado às meninas da Secretaria pela paciência e atenção; à bibliotecária pelas inúmeras indicações de livros e pelas correções de artigos e da dissertação, ao TI pela ajuda nas dificuldades técnicas, e ao pessoal da Portaria e da Limpeza. Meus agradecimentos também são direcionados aos meus incríveis colegas de pós- graduação que eu pude conhecer ao longo de 2019 e de 2020. Vocês são fantásticos, eu os admiro pela inteligência e pelas pessoas que são. Cada um à sua forma são amigos e parceiros para mim nesta vida acadêmica e na convivência na cidade de São Paulo. Desejo sucesso nas suas trajetórias profissionais. Venceremos juntos! Não posso esquecer-me de agradecer a meus amigos tanto em Guaratinguetá como da minha segunda casa na PUC Minas Poços de Caldas. Mesmo diante das adversidades, vocês foram um dos alicerces que me apoiaram ao longo de toda esta jornada. Meus mais sinceros agradecimentos a todos. Obrigado pelos momentos de descontração, de ajuda e de companheirismo. Sou grato pelas amizades sinceras que eu formei tanto em minha cidade como no meu canto favorito do Sul de Minas. Por serem muitos, seria injustiça minha nomeá- los, com o risco de esquecer alguém. Finalmente, agradeço à minha família, indiretamente, meus “terceiros orientadores”. Obrigado pai, não consigo mensurar o quanto a sua experiência e sua dedicação foram fundamentais atingir o patamar que me encontro hoje. Muito obrigado mãe por todo o apoio incondicional e lições de vida. Há coisas que não aprendemos na academia, e você me guiou junto ao meu pai neste caminho. Obrigado Yuri, pela inspiração, pelos questionamentos e pelos momentos de descontração frente à pressão e ao cansaço. Amo todos vocês. Há mais coisas boas em você do que você sabe, filho do gentil Oeste. Alguma coragem e alguma sabedoria, misturadas na medida certa. Se mais de nós dessem mais valor a comida, bebida e música do que a tesouros, o mundo seria mais alegre (TOLKIEN, 2012, p. 281). RESUMO Esta dissertação tem como objetivo discutir a expansão internacional da facção criminosa brasileira intitulada o Primeiro Comando da Capital (PCC) em atividades transfronteiriças durante o período de 2006 a 2016, principalmente em relação ao Paraguai e a Bolívia guiada por quatro variáveis: em primeiro lugar, o processo de sofisticação da estrutura hierárquica. Em segundo, a formação de alianças com grupos criminosos estrangeiros. A terceira variável, por meio da desmobilização e desarticulação dos rivais tanto nacionais como internacionais viabilizando a entrada no mercado ilegal. E por último, a inserção, reformulação ou regulamentação dos mercados ilegais sul-americanos (Paraguai e Bolívia). Considerando o contexto histórico que deu origem ao objeto de pesquisa desta dissertação, no mundo criminal brasileiro, uma máxima é utilizada para demonstrar que existe honra e progresso entre os criminosos: “O crime fortalece o crime”. O Primeiro Comando da Capital (PCC) – facção originária do estado de São Paulo, fundada na Casa de Detenção de Taubaté em 1993 segue esta cartilha. O grupo criminoso surgiu nas massas carcerárias como um defensor da união dos presos contra as injustiças e abusos praticados pelo Estado brasileiro a partir de um modelo de irmandade, solidariedade e igualdade entre os seus. Apareceu para a grande parcela da população brasileira na Megarrebelião de 2001 e mais tarde, aterrorizou o estado de São Paulo nos Ataques de Maio de 2006, uma vez que o governo estadual havia optado pelo não- enfrentamento direto. Para tanto, estudou-se a base teórica da estrutura hierárquica do grupo criminoso e seus níveis de atuação, analisando o comportamento do PCC na Bolívia e Paraguai, durante o marco temporal deste trabalho. O método de pesquisa desta dissertação de caráter qualitativo envolveu pesquisas e consultas a materiais primários e secundários, além de acesso a material investigativo jornalístico do Brasil e do Paraguai. Os resultados obtidos nesta dissertação destacam as operações bem-sucedidas do PCC em se infiltrar em território estrangeiro com a adoção do Projeto Paraguai de 2010, graças a um sistema de ampliação da igualdade de poder entre os membros e de livre-arbítrio nas tomadas de decisões dentro da facção, além de impactos consideráveis sobre as políticas de regulação dos mercados ilegais sul-americanos (principalmente no entorno da cidade de Pedro Juan Caballero). Palavras-Chave: Primeiro Comando da Capital. Facção Criminosa. Mercado Ilegal. Crime Organizado Transnacional. Paraguai. Bolívia. ABSTRACT This dissertation has as objective to discuss the Brazilian criminal faction entitled the First Capital Command’s (PCC) international expansion of the group in cross-border activities during the period from 2006 to 2016, mainly in relation to Paraguay and Bolivia, guided by four variables: first, the sophistication process of the hierarchical structure. Second, the formation of alliances with foreign criminal groups. The third variable, through the demobilization and disarticulation of rivals, both national and international, enabling entry into the illegal market. And finally, the insertion, reformulation or regulation of illegal South American markets (Paraguay and Bolivia). Considering the historical context which originated the research object of this dissertation, in the Brazilian criminal world, a maxim is used to demonstrate that there is honor and progress among criminals: “Crime strengthens crime”. The First Capital Command (PCC) - faction from the state of São Paulo, founded in the Casa de Detenção de Taubaté in 1993 follows this booklet. The criminal group emerged in the prison masses as a defender of the union of prisoners against the injustices and abuses practiced by the Brazilian State through a model of brotherhood, solidarity and equality among their own. It appeared to the large portion of the Brazilian population in the Megarrebelião of 2001 and later, terrorized the state of São Paulo in the May 2006 Attacks, since the state government had opted for non-direct confrontation. To this end, we studied the theoretical basis of the hierarchical structure of the criminal group and its performance levels, analyzing the behavior of the PCC in Bolivia and Paraguay, during the timeframe of this work. The research method of this qualitative dissertation involves research and consultation of primary and secondary materials, as well as access to investigative journalistic material from Brazil and Paraguay. The results obtained on this dissertation highlights the successful operations of the PCC in infiltrating in foreign territory with the adoption of the 2010 Paraguay Project, thanks to a system of increasing equality of power between members and free will in decision making decisions within the faction, as well as considerable impacts on the regulation policies of illegal South American markets (mainly around the city of Pedro Juan Caballero). Keywords: First Command of the Capital. Criminal Faction. Illegal Market. Transnational Organized Crime. Paraguay. Bolivia. RESUMEN Esta disertación tiene como objetivo discutir, la expansión internacional de la facción criminal brasileña intitulada el Primero Comando de la Capital (PCC) en actividades transfronterizas durante el período de 2006 a 2016, principalmente en relación a Paraguay y Bolivia, guiada por cuatro variables: primero, el proceso de sofisticación de la estructura jerárquica. En segundo lugar, la formación de alianzas con grupos criminales extranjeros. La tercera variable, a través de la desmovilización y desarticulación de los rivales, tanto nacionales como internacionales, posibilitando el ingreso al mercado ilegal. Y finalmente, la inserción, reformulación o regulación de los mercados ilegales sudamericanos (Paraguay y Bolivia). Considerando el contexto histórico en lo cual se dio origen a el objeto de pesquisa de esta disertación, en el mundo criminal brasileño, se utiliza una máxima para demostrar que hay honor y progreso entre los criminales: “El crimen fortalece el crimen”. El Primer Comando de la Capital (PCC), facción del estado de São Paulo, fundada en la Casa de Detenção de Taubaté en 1993, sigue a este folleto. El grupo criminal surgió en las masas carcelarias como defensor de la unión de los presos contra las injusticias y abusos practicados por el Estado brasileño desde un modelo de hermandad, solidaridad e igualdad entre los suyos. Apareció ante una gran parte de la población brasileña en la Megarrebelião de 2001 y luego aterrorizó al estado de São Paulo en los Ataques de Mayo de 2006, ya que el gobierno estatal había optado por el no enfrentamiento directo. Considerando la historia de la facción, Para ello, se estudió la base teórica de la estructura jerárquica del grupo criminal y sus niveles de desempeño, analizando el comportamiento del PCC en Bolivia y Paraguay, durante el período de tiempo de este trabajo. El método de investigación de esta disertación cualitativa implica la investigación y consulta de materiales primarios y secundarios, así como el acceso a material periodístico de investigación de Brasil y Paraguay. Los resultados obtenidos en esta disertación destacan las exitosas operaciones del PCC en la infiltración en territorio extranjero con la adopción del Proyecto Paraguay de 2010, gracias a un sistema de ampliación de la igualdad de poder entre los miembros y el libre albedrío en la toma de decisiones dentro de la facción, así como impactos considerables en las políticas de regulación de los mercados ilegales de América del Sur (principalmente alrededor de la ciudad de Pedro Juan Caballero). Palabras-Clave: Primer Comando de Capital. Facción Criminal. Mercado Ilegal. Delincuencia Organizada Transnacional. Paraguay. Bolivia. LISTA DE IMAGENS Imagem 1 – Hipótese e as variáveis presentes na dissertação.................................................... 21 Imagem 2 – O PCC e as disputas estaduais no Brasil até 2016……………………………….. 102 Imagem 3 – Organograma hierárquico do Primeiro Comando da Capital, 2001.................... 125 Imagem 4 – Composição Organizacional do Primeiro Comando da Capital, 2006-2016....... 127 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Dimensões centrais dos Atores Não-Estatais Violentos.......................................... 34 Tabela 2 – Comparação das Descrições de Crime Organizado (Autores).............................. 49 Tabela 3 – Comparação das descrições de Crime Organizado (Organizações Internacionais)........................................................................................................... 50 Tabela 4 – Classificação de Organizações Criminosas.............................................................. 71 Tabela 5 – Primeiro contato do PCC com distribuidores bolivianos (Fevereiro, 2008)........ 108 Tabela 6 – A Conexão PCC-Capilo (2008-2011)........................................................................ 111 Tabela 7 – O Escritório do PCC-Paraguai (2011-2013)............................................................ 116 Tabela 8 – A aliança contra Rafaat (2015-2016)........................................................................ 122 Tabela 9 – Classificação de Organizações Criminosas – O Primeiro Comando da Capital na Primeira Formação (1993-2001)......................................................................... 128 Tabela 10 – Classificação de Organizações Criminosas – O Primeiro Comando da Capital na Segunda Formação (2006-2016)........................................................................ 130 Tabela 11 – A incursão do PCC no Paraguai (2008-2016)........................................................ 144 LISTA DE SIGLAS E NOMENCLATURAS ADA Amigos dos Amigos AMIA Asociación Mutual Israelita Argentina BNDD Bureau of Narcotics and Dangerous Drugs CO2 Dióxido de Carbono Coaf Conselho de Controle de Atividades Financeiras Compaj Complexo Penitenciário Anísio Jobim CPI Comissão Parlamentar de Inquérito CSA Controlled Substances Act CV Comando Vermelho DEA Drug Enforcement Administration EUA Estados Unidos da América EPP Ejercito del Pueblo Paraguayo FARC Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia FDN Família do Norte GAECO Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado GDE Guardiões do Estado INTERPOL International Criminal Police Organization KKK Klu Klux Klan LSD Ácido Lisérgico MAG Mitrailleuse d'Appui General MERCOSUL Mercado Comum do Sul MP-SP Ministério Público de São Paulo MPE-MS Ministério Público Estadual do Mato Grosso do Sul MS-13 Mara Salvatrucha OMG’s Outlaw Motorcycle Gangs ONG’s Organizações Não-Governamentais ONU Organização das Nações Unidas PIB Produto Interno Bruto PCC Primeiro Comando da Capital PCE Penitenciária Central do Estado PCMS Primeiro Comando do Mato Grosso do Sul PCP Primeiro Comando de Portugal PCP Primeiro Comando do Paraná PF Polícia Federal PGC Primeiro Grupo Catarinense PM Polícia Militar PMCE Polícia Militar do Ceará PMSP Polícia Militar de São Paulo PTB Partido Trabalhista Brasileiro PSDB Partido da Social Democracia Brasileira RDD Regime Disciplinar Diferenciado Rota Rondas Ostensivas Tobias Aguiar SAP Secretaria de Administração Pública Senad Secretaria Nacional Antidrogas SSP Secretaria de Segurança Pública VNSA’s Violent Non-State Actors SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................... 15 2 OS ATORES NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS........................................... 24 2.1 Os Atores Estatais e suas ameaças............................................................................. 26 2.2 Atores Não-Estatais Violentos.................................................................................... 31 3 O TRANSNACIONALISMO E O CRIME.............................................................. 39 3.1 O Crime Organizado Transnacional nas Relações Internacionais: Perspectivas e Desafios...................................................................................................................... 42 3.1.1 Os Grupos Criminosos Transnacionais: das gangues às organizações mafiosas......................................................................................................................... 60 3.1.2 Classificação dos Grupos Criminosos Transnacionais................................................. 68 3.2 Os Mercados Ilegais e as conexões com o espaço criminal...................................... 73 4 A HISTÓRIA DO PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL (1993-2016)............. 86 4.1 A fase das rebeliões e a reforma interna do PCC (2001-2006)................................ 88 4.2 Expansão nacional (2007-2009).................................................................................. 94 4.3 Expansão internacional: Paraguai e Bolívia (2010-2016)........................................ 104 5 O PCC ALÉM DO BRASIL: ANÁLISES TRANSNACIONAIS........................... 124 5.1 A Estrutura Hierárquica do PCC.............................................................................. 124 5.2 A Atuação Transnacional........................................................................................... 135 5.3 Desmobilização e desarticulação dos rivais.............................................................. 139 5.4 A inserção, reformulação ou regulamentação dos mercados ilegais sul- americanos................................................................................................................... 143 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 149 REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 156 15 1 INTRODUÇÃO A violência pública no Brasil faz parte de um desafio político que aflige o país há séculos. O Brasil foi fundado com base em um sistema escravocrata baseado na violência no qual tem seus reflexos históricos até os dias atuais. Uma série de revoltas populares que ocorreram durante a Regência (1831-1840) ajuda a demonstrar como este processo de violência sempre esteve presente na sociedade ao longo dos anos, a exemplo da Cabanagem (1835-1840), a Sabinada (1837-1838), a Balaiada (1838-1840) e a Farroupilha (1836-1845) (SCHWARTZ, 2019; FAUSTO, 1995). Em termos de Brasil contemporâneo, a violência exacerbada ganhou destaque midiático a partir da década de 1970, ainda que a relação da sociedade brasileira com fenômenos agressivos seja antiga. A agressão sempre foi uma forma de manutenção da ordem social. Basta considerar que, muitos historiadores destacam que 80% das prisões praticadas por agrupamentos policiais brasileiros entre 1810 a 1821 eram de escravos cativos e libertos. Conforme o Brasil crescia no espaço urbano, a violência também se expandia estatisticamente (BRETAS, 1991). Em 2018, por mais que o grau de criminalidade seja discrepante entre os diferentes estados da federação, no geral, o país sul-americano é responsável por 14% das mortes por homicídio no mundo e possui números de violência semelhantes a Ruanda, África do Sul, República Dominicana e a República Democrática do Congo (BRASIL, 2018). Anualmente, o Brasil gasta cada vez mais em segurança pública. Entre 1996 a 2015, os custos com o crime saltaram de 113 bilhões para 285 bilhões de reais. 4,38% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro é gasto principalmente com: segurança pública (1,35%); segurança privada (0,94% do PIB); seguros e perdas materiais (0,8% do PIB); custos judiciais (0,58% do PIB); perda de capacidade produtiva (0,40% do PIB); encarceramento (0,26% do PIB); e custos dos serviços médicos e terapêuticos (0,05% do PIB) (BRASIL, 2018, p. 9). Junto à violência, nos países da América Latina, o surgimento de gangues e grupos criminosos transnacionais é uma grande preocupação do aparato estatal. Comparado a diversos Estados ao redor do globo, os latino-americanos veem estes criminosos como a maior ameaça à soberania e a segurança nacional (CRUZ; CRUZ, 2013). No cenário sul-americano em especial, estes grupos criminosos possuem como parte de seu mercado, a produção de drogas ilegais, derivadas da folha de coca, vindas 16 principalmente da Bolívia, Colômbia e Peru. Os conflitos envolvendo o monopólio e o controle da droga nestes países originam antagonismos entre as partes envolvidas, resultando em um número alarmante de mortos (VILELA, 2013). Com relação à campanha antinarcóticos, de acordo com os estudiosos vinculados ao Instituto Igarapé, Robert Muggah e Gustavo Diniz (2013), o Brasil possui sérias dificuldades no que tange aos temas de violência pública e de questão fronteiriça – mais especificamente, no narcotráfico. Os autores afirmam que o governo brasileiro tem consciência das deficiências que enfrenta no combate ao tráfico de drogas, crimes cibernéticos, movimento ilegal de armamentos e lavagem de dinheiro (MUGGAH, DINIZ, 2013, p. 2). Somado a este cenário desafiador, de acordo com Cruz e Cruz (2013), devido à instabilidade do Estado na extensão territorial nacional, há localidades dispersas no território brasileiro em que o poder policial é diminuto frente ao de organizações criminosas. Entre os espaços citados, estão as regiões do Nordeste, favelas em torno de diversas capitais brasileiras, como o Rio de Janeiro e especialmente a região da Tríplice Fronteira no sul. Esta última região, por exemplo, envolve as cidades fronteiriças de Ciudad del Este (Paraguai), Puerto Iguazú (Argentina), e Foz do Iguaçu (Brasil). É de conhecimento destes governos locais a presença de uma estrutura voltada ao tráfico de drogas, armas e contrabando. É desta região que parte do carregamento de narcóticos se dirige ao Brasil, “o segundo maior consumidor de drogas do mundo”. Pelo menos seis milhões de pessoas no Brasil já experimentaram cocaína e drogas derivadas. Como resultado, a violência pública originada, em parte devido ao narcotráfico, foi um dos responsáveis indiretos de mais de 1.145.208 mortes relacionadas a homicídios entre 1980 a 2011 (CRUZ; CRUZ, 2013). No decorrer dos anos 1990, paralelamente às ameaças dos narcóticos na fronteira, nos centros urbanos brasileiros, a injustiça social e a baixa institucionalização de programas preventivos elevaram o problema da violência pública – um dos maiores do Brasil. Desde 1980, os homicídios estavam crescendo assustadoramente e no início da década seguinte, a proporção de homicídios de homens frente a mulheres era de 8 para 1 em todo o Brasil (ZALUAR; NORONHA; ALBUQUERQUE, 1994). O número de pessoas envolvidas em acidentes externos (incluindo homicídios) atingiu 59 mortes a cada 100.000 habitantes em 1980 (SOUZA; LIMA; 2006). O número de mortes por arma de fogo saltou de 5 para 15 homicídios a cada 100.000 habitantes entre 1980 a 1995 (MURRAY; CERQUEIRA; KAHN, 2013). De acordo com alguns autores, estes dados comprovam que o Estado havia chegado a uma situação na qual a expansão incontrolável da violência e do crime organizado desafiava seu poderio. As explicações sobre o porquê de 17 tanta violência eram variadas: desde problemas relacionados à prática de medidas frustradas de justiça criminal até uma série de falências de antiquados planos de contenção da ilegalidade (ADORNO, 2003). Este modelo de violência popularizado em toda a América Latina inspirou uma série de medidas no qual, a forma de atuação dos Estados da região contra a expansão do crime e da ilegalidade levou a um aumento da agressividade por parte das estruturas estatais contra a delinquência juvenil, originando em algumas ocasiões, medidas punitivas e de execução sumária. Este Estado punidor altamente legitimado que enfrenta o crime organizado busca considerar todas as ações que forem necessárias para criar seu próprio modelo de lei, como resposta a prática de atividades ilegais. Em determinados casos, age fora dos padrões jurídicos (FOUCAULT, 1987). A entrada ilegal das drogas e a geração da violência criminal nas fronteiras e nas cidades do Brasil tem relação com gangues delinquentes – notáveis pela visibilidade, grau de crueldade na execução de crimes, poder de fogo expandido e número de membros. Entre as aproximadamente 30 gangues presentes no Brasil, destaca-se o Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior e a mais influente organização criminosa presente no território brasileiro (CRUZ; CRUZ, 2013; INSIGHT CRIME, 2018). Fundado no estado de São Paulo na década de 1990, na Casa de Custódia de Taubaté, o PCC surge depois de um dos eventos mais marcantes de violência policial na história recente do país. A morte de 111 detentos no presídio de Carandiru em 1992, em São Paulo, impactou profundamente a fundação do grupo. Prometendo unidade entre os presos a fim de evitar novos episódios de massacres, seus fundadores juraram defender a integridade dos detentos dentro e fora dos presídios. A partir de 1995, os seus membros foram espalhados em diversas penitenciárias por todo o estado de São Paulo. No mesmo ano, o PCC passa a controlar o Carandiru, o maior presídio da América Latina. Apesar de ter a existência negada pelo estado paulista entre 1997 a 1998, em 2001, o grupo foi o responsável por coordenar uma rebelião em São Paulo, e em 2006, foi o causador do maior motim já realizado em cadeias brasileiras – o que resultou na morte de centenas de agentes de segurança. Estima-se que o PCC tem, aproximadamente, 30 mil membros (FELTRAN, 2018; VEIGA, 2018). No exterior, a facção é suspeita de protagonizar o “roubo do século” a uma companhia de transporte espanhola em Ciudad Del Este (Paraguai) em abril de 2017. Os assaltantes conseguiram roubar valores estimados entre 8 a 40 milhões de dólares. O dinheiro seria utilizado para compra de armas e para o narcotráfico, cujas suspeitas apontavam para o PCC. O crime no Paraguai ainda teria características semelhantes a uma sequência de assaltos 18 ocorridos em Campinas, Santos e Ribeirão Preto entre 2015 a 2016 (ROMERO, 2017; ARNOLD, 2017). Rapidamente, o PCC se expandiu por todo o país, passando a estabelecer redes de tráfico de drogas e de armas na Bolívia e no Paraguai, a partir de 2010 (MANSO, DIAS, 2018; COUTINHO, 2019; VILELA, 2015). A complexidade do crime organizado no Brasil, a luta para resolver ameaças hemisféricas e a entrada constante de drogas passou a ser um dos tópicos de interesse da política externa. A partir da conjuntura descrita, esta dissertação buscou analisar o processo de internacionalização do Primeiro Comando da Capital – e os fatores que constituíram esta facção como uma organização transfronteiriça do tráfico de drogas a partir do período entre 2006 (ano dos Ataques de Maio no estado de São Paulo) a 2016 (ano de assassinato de Jorge Rafaat, o “rei da fronteira” em Pedro Juan Caballero por integrantes do PCC). Estes dois eventos foram cruciais para a ascensão da facção e sua projeção externa. 2006 a 2016 representa a fase inicial de internacionalização do PCC. Neste sentido, a linha temporal ficará situada entre estas duas datas. Além disso, em razão da volatilidade dos acontecimentos criminais e da rápida dinâmica que os envolve, uma discussão envolvendo eventos posteriores não contribui de forma efetiva e imediata para o objetivo central desta pesquisa. Após este período, outros acontecimentos ocorreram. Por exemplo, em primeiro lugar, o início da guerra pelo controle do tráfico de drogas entre o PCC e o Comando Vermelho (CV), a partir de outubro de 2016. O início da inimizade entre as duas facções começou a ocorrer a partir do momento em que, membros do CV se aliaram a grupos criminosos rivais ao PCC em presídios de Rondônia, Roraima e do Acre, a exemplo da Família do Norte (FDN) no estado do Amazonas. Todo este cenário instável vivido pelas duas facções atingiu o seu ápice em 2017 (JOZINO, 2016). A guerra interna entre PCC, CV e aliados regionais dos dois lados alterou estruturalmente uma série de domínios do crime organizado por todo o Brasil. Além disto, neste mesmo período iniciaram-se embates entre o PCC e facções localizadas na região Norte e Nordeste pelo controle da rota do tráfico de drogas. A inimizade entre a facção paulista e membros do grupo Família do Norte ocasionaram revoltas criminais e chacinas no presídio central da cidade de Manaus (MACHADO, 2019), por mais que o projeto de expansão do PCC para o exterior já estivesse em prática. Em segundo lugar, em 2016 foi o ano em que o PCC esteve recrutando ex-membros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) para as suas operações. Neste mesmo período, ocorreu a desmobilização das FARC (JELMAYER; VYAS; PEARSON, 2017). 19 A escolha por Paraguai e Bolívia como Estados-chave para o estudo desta dissertação se deve ao fato de que no Paraguai, o maior produtor de maconha e cigarros ilegais da região, a combinação da corrupção crescente e da produção ilegal deu poder inigualável para organizações criminosas, o que faz do Paraguai um núcleo de distribuição de drogas, armas, e contrabando para o Brasil e para a Argentina (INSIGHT CRIME, 2018a). Em termos mercantis, o território paraguaio está geograficamente mais próximo para os membros da facção paulista, sem contar com os ganhos para o PCC em participar de um mercado de drogas estrangeiro. De acordo com Allan de Abreu (2020a), acessar o Paraguai significa ter acesso a um dos espaços criminais mais lucrativos da América do Sul, formado pelas cidades fronteiriças de Pedro Juan Caballero e Ciudad del Este (ABREU, 2020a). O Paraguai se tornou um importante espaço de operações de diversas organizações criminosas das mais distintas origens – desde o antigo movimento de esquerda Ejercito del Pueblo Paraguayo (EPP), passando por facções brasileiras como o Comando Vermelho (INSIGHT CRIME, 2018a). Além disso, vale ressaltar que, apesar da ausência de provas concretas que concretizem tais alegações, de acordo com Ottolenghi (2019) e diversas autoridades americanas, sempre houve uma suspeição que aponta para a presença do grupo libanês Hezbollah na Tríplice Fronteira entre Paraguai, Brasil e Argentina (FERREIRA, 2015). Segundo o Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América (EUA), graças a fortes ligações com cartéis de droga latino-americanos e lavagem de dinheiro, o grupo supostamente conseguiu arrecadar recursos para financiar ataques terroristas. Estas séries de declarações e relatórios publicados ao longo da década de 2000 ainda não comprovam empiricamente a criação de uma célula local (OTTOLENGHI, 2019). O caso boliviano é diferenciado devido à influência de fatores políticos e sociais que moldaram o mercado da droga neste país andino. A Bolívia é um dos países mais pobres da América do Sul, e o terceiro maior produtor de coca da região – atrás de Peru e Colômbia (INSIGHT CRIME, 2016). Apesar da queda gradual, os níveis de produção de drogas da Bolívia, de acordo com a United Nations Office on Drugs and Crime 1 (UNODC), ainda são equivalentes aos de meados da década de 1990 (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2019). Tido como país de “alta prioridade” pelo Departamento de Estado americano (RICHARDS, 1998), desde a vitória de Evo Morales nas eleições de 2006, o ex- “cocalero” deu prosseguimento ao programa “cato” para abolir a venda de coca ilegalmente. Ao legalizar o processo de plantio, Evo procurou limitar a produção de coca apenas para o 1 Em português, o Departamento das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (PEREIRA, 2015). 20 necessário a subsistência dos plantadores – podendo apenas plantar no espaço de no máximo, 2.500 m². Este seria o único modo de controlar a expansão do mercado de coca no país (DAVIS, 2015). Além disso, a Bolívia rapidamente se tornou um alvo dos discursos estadunidenses de globalização do crime organizado surgido nos anos 1990 e 2000 (STERLING, 1994). De acordo com o discurso estadunidense, a região, que sofre com os efeitos nefastos do crime organizado, é afetada majoritariamente pelo tráfico de drogas, um dos maiores responsáveis pela proliferação da “corrupção, violência e instabilidade política” (ARAVENA, 2009, p. 8). Esta vertente do crime organizado transnacional influencia a estrutura política dos países latino-americanos, criando “um Estado fraco, que é incapaz de garantir o “Estado de Direito”, um Estado impossibilitado de assegurar bens públicos para a população, e uma erosão de sistemas políticos, especialmente em jovens democracias da região” (ARAVENA, 2009, p. 8). Os problemas relacionados à expansão da ótica da “Guerra às Drogas” e dos programas de atuação dos EUA na América Latina levaram Morales a agir preventivamente, banindo a Drug Enforcement Administration (DEA) da Bolívia, considerando experiências antidrogas anteriores pautadas por Washington. Por exemplo, a campanha intervencionista contra Manuel Noriega no Panamá em 1989, e a adoção do Plano Colômbia em 2000, na Colômbia e no Peru explicam o afastamento do presidente boliviano da administração estadunidense (DAVIS, 2015; SILVA, 2015). Em termos geográficos, este mercado boliviano também é central para os objetivos do PCC, como uma forma de estabelecer interligação entre as atividades praticadas entre o país de origem da facção e o seu vizinho (SAMPÓ; FERREIRA, 2020). Esta dissertação possui o seguinte objetivo geral: investigar o desenvolvimento do Primeiro Comando da Capital (PCC) como uma das maiores facções criminosas do Brasil e seus planos de expansão internacional entre 2006 a 2016. O objetivo geral é sustentado pelos seguintes objetivos específicos: verificar a expansão tendo como base as variáveis que amparam a atuação do PCC neste período; estudar a base teórica da estrutura hierárquica dos grupos criminosos e seus níveis de atuação; e analisar a atuação do PCC na Bolívia e Paraguai entre 2006 a 2016. A pergunta proposta formulada para esta dissertação é a seguinte: “De que forma, considerando o impacto do narcotráfico e da violência pública na América do Sul e particularmente no Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC) atingiu entre os anos de 2006 a 2016 um processo de internacionalização, enquanto uma organização 21 criminosa com aspectos transnacionais?”. A partir de esta pergunta, na Imagem 1 apresenta-se a hipótese e as variáveis independentes e dependente. Imagem 1 – Hipótese e as variáveis presentes na dissertação Fonte: Elaborado pelo próprio autor. A partir do que foi apresentado como as variáveis que fazem parte do problema de pesquisa, é importante destacar que esta dissertação se baseou em material bibliográfico, cobrindo extensamente uma série de autores que se relacionaram direta ou indiretamente com o tema proposto, o que permitiu ao trabalho tecer suas próprias análises e conclusões por meio desta bibliografia que contém artigos, dissertações, livros ou demais materiais sobre o PCC. Portanto, o desenvolvimento desta pesquisa foi possível por meio de uma série de investigações etnográficas, entrevistas, e outras análises produzidas por terceiros. Uma vez que o objeto de pesquisa se trata de um ator ilegal, a possibilidade de se aproximar por meio de dados primários é extremamente complexo. Sendo assim, perante tais adversidades, esta dissertação tenta responder os dilemas que a envolvem a partir da visão de outros pesquisadores, a fim de constituir uma análise de caráter transnacional, com base em uma bibliografia das Relações Internacionais. Considerando a hipótese descrita, nesta dissertação buscou-se organizar uma série de capítulos que descreve um conjunto de temas relevantes, os quais ajudam a elucidar o raciocínio lógico e a progressão de assuntos centrais para o tema. Após a Introdução, no capítulo 2 serão descritos os diferentes autores que fazem parte do sistema internacional e que 22 ascenderam nas Relações Internacionais, a partir da confrontação teórica existente durante parte considerável do período de fundamentação deste campo. Por esse motivo, se abordou os estudos da Ciência Política e da Filosofia Política, inclusive revisitando os clássicos do contratualismo. Após esta revisão, foram feitos estudos sobre os Atores Não-Estatais Violentos – um dos fatores centrais para o desenvolvimento desta dissertação. No capítulo 3, o foco incide sobre o fenômeno transnacional, passando por sua origem teórica e implicações sobre as Relações Internacionais. A partir de um ponto de vista mais generalizado (no qual será abordado o transnacionalismo em sua criação teórica), este capítulo versará sobre como os atores estatais e de natureza não-estatal lidam com este fenômeno que alterou a base das Relações Internacionais a partir da década de 1990, de tal forma que possa consequentemente sustentar, auxiliar e entender o capítulo seguinte. No capítulo 4, será realizada uma análise teórica abordando classificações criminais que se desenvolveram junto ao crime organizado de forma temporal, tratando a sua origem e os fatores que consolidaram estes grupos como domínios do crime organizado. Além das classificações dos grupos criminosos, este capítulo também discorrerá sobre como o termo “crime organizado” cresceu ao longo da literatura criminal e como atingiu o seu auge nas Relações Internacionais, assim como as críticas sobre este termo e os impactos dele sobre o caso brasileiro, parte essencial da base teórica. Em seguida, serão abordados os estudos sobre mercados e redes ilegais demonstrando as interações entre os espaços ditos como legais que se misturam com o mercado e os atores que fazem uso da marginalidade para desenvolver suas interações. Esta parte também demonstra como a distância dos espaços e das rotinas locais podem criar relações com dinâmicas distantes, mas que integram a fundamentam os mercados transnacionais ilegais. No capítulo 5, será apresentado um breve histórico sobre o Primeiro Comando da Capital e seu processo de expansão internacional, perpassando por alguns dos momentos mais importantes para a formação da facção paulista: a Megarrebelião de 2001, os Ataques de Maio de 2006, as estratégias de expansão nacional que fundamentam as ações do grupo e consequentemente, a internacionalização em direção ao Paraguai e a Bolívia, contemplando o período já destacado de 2006 a 2016, que culminou nos anos de enfrentamento direto do PCC contra o traficante brasileiro Jorge Rafaat. Por fim, no capítulo 6, será desenvolvida uma análise acerca da atuação da facção paulista no exterior, tendo como base as variáveis que compõem esta dissertação, e colocando em evidência os estudos feitos acerca do desenvolvimento do PCC no Brasil e suas implicações. Por meio destas variáveis já destacadas, este capítulo tentará propor novos 23 direcionamentos e versões de estudos baseados nas Relações Internacionais sobre o caso em voga nesta dissertação. Desta forma, a partir dos dados apresentados, poderá ser elaborado o capítulo conclusivo, considerando e agregando todos os estudos feitos, analisados e contemplados por esta dissertação. No capítulo a seguir, trabalharemos a gênese e a criação dos modelos de Atores Não- Estatais nas Relações Internacionais, além da eventual contribuição destes indivíduos ao Crime Organizado e sua variação transnacional – parte essencial dos estudos e da compreensão teórica desta dissertação. 24 2 OS ATORES NÃO-ESTATAIS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A presença de atores não-estatais causa divergências dentro dos estudos das Relações Internacionais. Os primeiros ensaios teóricos admitem a existência destes atores ainda nas décadas de 1950 e 1960, como por exemplo, no caso da Análise de Política Externa, considerando o elemento humano na tomada de decisão dos Estados em estudos sobre a opinião pública. De acordo com Hudson (2005), considerando vários eventos-chave, como a ação dos dirigentes políticos no decorrer da Guerra Fria dos anos 1960 (a exemplo da Crise dos Mísseis de Cuba), ignorar a presença do homem nestes eventos levaria a previsões errôneas, descartando análises feitas por autores como Snyder, Bruck e Sapin, ainda nos anos 1950 (HUDSON, 2005; ALLISON, 1969). A existência de outros atores ajuda desmistifica a simples crença de que os Estados são entidades sólidas, sem conteúdo doméstico relevante. Desta forma, é cada vez mais difícil desconsiderar a presença dos atores não-estatais no sistema internacional, dado que eles são essenciais em áreas como a democracia, a economia, nas comunicações e até mesmo, na educação (JOSSELIN; WALLACE, 2001). Juntamente com as mudanças teóricas provenientes da adição dos atores não-estatais, o cenário de globalização trouxe novos questionamentos acerca da infinidade de novos atores. O poder e a autoridade estão influenciando no equilíbrio destes. Como consequência, frequentemente há o aparecimento de novos desafios ao poder do Estado, mas que ainda são fracos comparados a esta grande autoridade. Desta forma, em um mundo em que as fronteiras cada vez menos podem defender os Estados e a suas soberanias, o “Leviatã” está perdendo espaço em determinadas áreas de atuação (HIGGOTT; UNDERHILL; BIELER, 2000). Esta quebra de paradigma coloca os Atores Não-Estatais como um desafio a ser estudado para as Relações Internacionais. Primeiramente, eles significavam um rompimento com a clássica visão de poder que foi dada aos Estados ao longo de décadas de desenvolvimento de estudos dentro da Política Internacional (HIGGOTT, UNDERHILL, BIELER, 2000). Sendo assim, a complexidade do debate que estes novos atores causam é ainda mais profundo do que se imagina. O que estaria ocorrendo seria uma fragmentação do poder, de tal forma que ele não se encontra mais concentrado em grande quantidade nas mãos dos Estados. Na modernidade em que o sistema internacional está inserido por meio da globalização, o poder atravessa até mesmo os atores que rivalizam com países e que fomentam todo um mercado paralelo. Por mais que não seja um fenômeno recente no sistema 25 internacional, é a partir da dinâmica criminal que os atores não-estatais se fortalecem em centros de poder (GALEOTTI, 2001). De acordo com Mark Galeotti (2001), a expansão do poder de grupos rebeldes e ilegais foi um crescimento à margem do Estado moderno. O não-estatal foi potencializado com o advento da explosão tecnológica, a partir da década de 1980, e a ascensão do mundo globalizado e interligado comercialmente entre 1980 a 1990. A junção destes eventos fortaleceram a mobilidade do ator não-estatal – vindo a adquirir um alcance de atividades e interesses expandidos junto à mídia globalizada deste período. Em suma, o ator não-estatal atingiu seu estágio mais expansivo possível (GALEOTTI, 2001). Por outro lado, não se deve desconsiderar a existência de estruturas que fomentem o conflito dentro dos Estados e entre eles. Enquanto um promotor monopolista da violência, o Estado pode gerar o conflito social no qual acaba se tornando vítima (PEARCE, 2010). Por exemplo, de acordo com Daniele Silva (2020), basta se debruçar no quesito da circulação de armas dentro do território brasileiro. Para a autora, é importante levar em conta a presença de discursos legitimadores do armamentismo (partindo de representantes políticos) e também de importantes lobistas destinados a expandir a venda de tais materiais. Sendo assim, a violência acaba partindo do próprio Estado contra outros atores em alguns casos (SILVA, 2020). Para Ann Fiorini (2000), a mudança de percepção teórica acerca da importância dos atores não-estatais ganha ainda mais reforço depois da publicação da obra, o “Choque das Civilizações”, de Samuel Huntington, em 1996. O conflito entre os atores estatais e não- estatais retratado pelo autor demonstra como os atores não-estatais podem consolidar-se como uma nova força no sistema internacional pautados em um contexto de globalização e de ascensão do terrorismo internacional. Isto reforça como o Estado estaria perdendo capacidade de exercer bens coletivos, estabilidade no cenário doméstico e de impedir danos ao meio ambiente (FIORINI, 2000, p. 15). Desta forma, o próprio ator não-estatal deve ser repensado, abordando a amplitude do termo, o contexto histórico que o solidifica, e como os atores não- estatais impactam a estrutura contemporânea do sistema internacional (HALLIDAY, 2001). A governabilidade dos Estados foi um dos aspectos que sofreu influência considerável. Desta forma, não há muita clareza entre o que pode ser definido como espaço nacional e internacional. O espaço local é um dos destes exemplos (PRADO, 2009). De acordo com James Rosenau, o fim da Guerra Fria é parte essencial da explicação que construiu uma nova ordem global (ROSENAU, 2000). Este conflito bipolar demonstrava uma política verticalizada entre os Estados, desconsiderando que diversos atores viessem a surgir para além da alta cúpula governamental (ROSENAU, 1997). 26 De acordo com Andrew Hurrell (2014), historicamente a ascensão dos atores não- estatais tem relação indireta com o cenário de decadência e de instabilidade no sistema internacional devido a profundas alterações de caráter hegemônico (HURRELL, 2014). Em termos de guerra, a violência contribuiu para que atores não-estatais relacionados ao terrorismo e ao crime organizado passassem a ser vistos como novos focos de poder em setores nos quais os Estados dominam. O mesmo ocorreu em outras áreas em que o Estado predominava – caso da economia e do mercado. De acordo com Michael Sheehan (2014), todo este processo envolvendo a dimensão estatal é um sintoma de como uma variedade de grupos está ocupando espaços para além da dimensão física – a exemplo de novos campos da tecnologia, como é o caso do ciberespaço (SHEEHAN, 2014). Junto a este processo de popularização do poder, os atores não-estatais foram inseridos em diversos debates dentro das Relações Internacionais, envolvendo moralidade, capacidade de projeção de poder e os objetivos que regem suas ações. Eles fazem parte de uma nova abordagem de desafios aos Estados e suas instituições. É importante considerar que há uma infinidade de autores e de abordagens que elencam uma série de novos atores não-estatais, demonstrando como este campo está sempre aberto a novas alterações sistêmicas. Uma vez que esta dissertação está trabalhando com um grupo criminoso como o Primeiro Comando da Capital, o foco central deste trabalho está centrado nos atores não- estatais que possuem capacidade de fazer uso da força, e portanto, de exercer violência. É partir destes detalhes a serem debatidos que no tópico a seguir, trataremos brevemente sobre os Atores Estatais e Não-Estatais Violentos e a sua relação com a inserção em mercados globais e sua relação com temáticas criminais. 2.1 Os Atores Estatais e suas ameaças A origem da criação de uma grande autoridade que possa exercer poder a fim de representar os homens, o que ficou conhecido como o Estado – tem sua origem fortemente enraizada nos estudos da Filosofia Política e nos autores clássicos do fenômeno do contratualismo, sendo que um dos mais bem-sucedidos neste quesito é o filósofo europeu Thomas Hobbes (2003). De acordo com o que o autor propõe em seu célebre texto, O Leviatã, de 1651, a fundação de uma sociedade e de seus valores está ancorada na origem de um contrato social, celebrado como uma forma de libertação do homem do seu estado de natureza, cuja condição era a que estava submetido antes da validação deste acordo. Uma vez que as duas partes aceitam a sua validação, o contrato é firmado independentemente do 27 contratante não ter nenhum tipo de garantia de que a palavra do leviatã será cumprida. No fim das contas, os homens não tem nenhuma opção a não ser confiar na palavra daquele que garante a sua proteção (HOBBES, 2003; RIBEIRO, 2000). Somado a esta suposta comprovação, a fundação de um Estado também é um processo que é consolidado a partir do momento em que psicologicamente ele deixa de ser uma ficção e passa a ser uma realidade impulsionada pelos que são defendidos por ele. Neste quesito, a fundação de um Estado pressupõe a existência de racionalidade, interesses, objetivos, metas e legitimidade (WENDT, 2004; HOBBES, 2003). Hobbes deixa claro esta realidade a partir do seguinte trecho: Um ídolo, ou mera ficção do cérebro, pode ser personificado, como o eram os deuses dos pagãos, que eram personificados pelos funcionários para tal nomeados pelo Estado, e tinham posses e outros bens, assim como direitos, que os homens de vez em quando a eles dedicavam e consagravam. Mas os ídolos não podem ser autores, porque um ídolo não é nada. A autoridade provinha do Estado, portanto antes da instituição do governo civil os deuses dos pagãos não podiam ser personificados (HOBBES, 2003, p. 58). Uma vez que o Estado passa a ser crível, os homens que assinaram o pacto começam a se proteger dentro desta cúpula estatal, não estando mais expostos a guerras eternamente travadas entre os humanos em que predominava a anarquia no estado de natureza. Neste contrato social, a única condição que se mantém é a de respeito ao pacto que fora assinado entre as partes e às regras de convivência na sociedade. Entretanto, mesmo que haja tais leis, Hobbes destaca que o estado natural do homem de egocentrismo e de competição mútua manterá viva esta espiral de conflitos sociais e de agressões, seja entre os assinantes do contrato social ou os de fora dele (HOBBES, 2003). As ameaças nunca deixarão de existir para o Estado e sua população, e frequentemente elas são consolidadas por meio de atos de violência. No geral, o papel do Estado é o de garantir que a violência não atinja a dinâmica social, o que é sempre um desafio extenso e desgastante para esta esfera de poder. Como a violência era um dos principais fatores para que os contratos sociais fossem fundados e para que o Estado fosse criado, as autoridades centrais frequentemente buscaram formas para gerir a ordem pública e garantir a segurança dos que são alvo destas atitudes hostis (JAKOBI; WOLF, 2013). Por mais que ano após ano, medidas mais nocivas para conter a violência levem a gastos cada vez mais expansivos do Estado, a ascensão de estruturas patrocinadoras da violência como o crime organizado, o terrorismo e a formação de grupos rebeldes também se amplia – muitas vezes inutilizando todo o aparato de defesa interna e externa estadual. A 28 criminalização de medidas passou a ser uma das opções cooptadas pelas autoridades para conter indivíduos, ou atores que não cooperassem ou que causassem problemas, sob a jurisdição local. Ainda neste quesito, se estes atores não-estatais forem uma ameaça a setores estratégicos para o Estado, o objetivo dos governantes, é que não haja a quebra do monopólio da violência e, consequentemente, que se dilua as forças para outros atores. É por este motivo, que os Estados frequentemente buscam manter a estabilidade interna, a fim de evitar reviravoltas (JAKOBI; WOLF, 2013). Uma vez que o Estado crie condições mínimas para que possa haver a convivência estável entre a população, os conflitos são transportados para a arena internacional, palco de confrontações de poder entre os soberanos. Historicamente, em razão desta condição de anarquia que reina sobre o sistema internacional, no qual os Estados estão envolvidos, a forma com que os países buscam garantir a segurança individualmente ou em bloco com seus pares não necessariamente acarreta em menores possibilidades de conflito. Medidas armamentistas suscitam dúvidas sobre a intenção dos Estados e a possibilidade de ataque ou de defesa, criando dilemas de segurança. Desta forma, a paz armada nunca é assegurada e a única saída encontrada por todos os países é se tornar belicamente inalcançável e indestrutível, seja por quantidade de poder de fogo ou pela qualidade de sua tecnologia de defesa (SØRENSEN, 2005). Essa seria a preocupação clássica veiculada entre os Estados: seus maiores inimigos sempre seriam outros Estados com intenções de destruir o seu próximo com todas as suas capacidades materiais. Entretanto, ao longo dos anos, essa afirmação não é mais verdadeira. O uso da força era um tema limitado somente aos Estados em termos acadêmicos, o que começou a sofrer sérias mudanças no decorrer das décadas de 1970 e 1980 perante o conflito bipolar da Guerra Fria (BUZAN; HENSEN, 2009). O que viria a ser entendido como tema de segurança nacional também sofreu alterações dado que as ameaças começaram a se expandir. A autoridade governamental não somente tinha que oferecer segurança, mas também concorrer com outros atores munidos com capacidade de dispor serviços semelhantes à população desprotegida, assim como os próprios atores não-estatais poderiam fazer uso deste poder com o intuito de causar danos estruturais ao Estado (TILLY, 1985). A partir do que fora salientado por Tilly (1985), é primordial considerar também que a gestão da violência e a formação de estruturas que fomentem o conflito entre os atores dependem do Estado enquanto um “carrasco” institucionalizado, com o poder de decidir o que vem a ser certo e errado. Ainda que, ao longo do século XVIII, conforme atesta Foucault 29 (1987), o sistema penal tenha passado por suas reformas buscando diminuir o punitivismo dentro do Estado, a estrutura estatal continua definindo as normas e as leis, assim como também delimita o que não pode ser enquadrado como atividade ilegal (FOUCAULT, 1987, p. 94). Neste sentido, é importante pontuar que a fundação dos Estados e de entidades revestidas com poder e autoridade originam da fundação de nacionalidade e de territorialidade, quesitos fundamentais na formação destes atores. Uma vez que são vistos como entidades superiores no sistema internacional, os Estados se sentem capazes de definir a divisão entre os espaços legais e ilegais, em termos materiais e espaciais. Enquanto uma autoridade que teve de se fazer legal para ser aceita, o Estado (a partir de críticas pós- coloniais) se tornou a única uma estrutura superior e unânime para decidir o que será lei e o que é ilegal, sem que nenhum outro ator pudesse ter tal poderio (LINDAHL, 2010). Nas Relações Internacionais, ao longo dos anos, começou a ficar claro que a entidade estatal não era extremamente solidificada e suas formas de defesa não estavam bem- posicionadas durante toda a sua extensão territorial, o que passou a significar que as fronteiras não eram tão bem vigiadas ou guarnecidas conforme se defendeu efusivamente durante muitos anos na academia (BUZAN; HENSEN, 2009). As ameaças de atores não-estatais perpassam os limites territoriais, ou surgem dentro dos Estados, o que colocaria a administração doméstica em risco, obrigando a entidade governamental a tomar medidas que podem ser nocivas para os perpetradores da violência interna. Em determinados casos, as formas de retaliação podem atingir a população de maneira arbitrária, originando um terrorismo de Estado. Sendo assim, a harmonia de interesses e a estabilidade política interna são tênues e podem mudar rapidamente em um curto espaço de tempo quando ameaçado por outros atores com capacidades de causar mal ao Leviatã (SØRENSEN, 2005). Neste quesito, o contrato social fica exposto às ameaças de outros atores que não são necessariamente Estados e, além disso, se nenhuma ação for tomada com o objetivo de cessar estas ameaças, o pacto pode perder sua validade e as duas partes não terão mais confiança para manter o acordo. Somado a este fator, deve-se considerar que a presença de terceiros fazendo uso da força para constranger a estrutura estatal fere o princípio definido pelo filósofo contratualista Jean-Jacques Rousseau (1999), ao considerar que a soberania é indivisível. Uma vez que se trata de uma decisão unânime entre os participantes do contrato social, torna-se primordial que a soberania seja sinal de cumprimento com a lei (ROUSSEAU, 1999). 30 Além da própria imprevisibilidade ao lidar com outras entidades não-estatais, o próprio Estado não é uma estrutura única e igual a todos os seus pares assim como suas ações frente às ameaças externas e internas variam. A sua constituição material é muito mais complexa. É importante considerar as diferenças que os fatores coesivos possuem sobre a estabilidade de um Estado e de sua organização governamental. O dilema de segurança tem suas diferenças no que consta sobre Estados pós-modernos e pós-coloniais frente às suas respectivas ameaças. Suas relações são regidas por uma rede interconectada de ideias e de economias altamente agregadas com o sistema internacional, assim como a condução da política governamental tem reflexos transnacionais. Portanto, a distribuição de poder nos Estados é abstrata assim como é variável a veracidade das suas ações a fim de defender sua população (SØRENSEN, 2005). Em parte, de acordo com o estudioso Charles Tilly (1985), o Estado é o principal culpado por patrocinar o surgimento destes próprios atores que se virarão contra ele. Uma vez que é o provedor das medidas de proteção, ele mesmo tem o papel de neutralizar as ameaças da maneira que lhe for adequado, mesmo que em ocasiões desfavoráveis, encontre subterfúgios legais para justificar suas ações desonrosas. Depende do próprio Estado classificar atitudes como corretas em determinadas circunstâncias que resultem no uso da força sem restrições. Portanto, a legitimidade se torna subjetiva para a autoridade central em termos de execução (TILLY, 1985). Além disso, a dinâmica na qual os Estados passaram a vivenciar na globalização e a transversalidade dos temas globais ampliam os desafios dos atores estatais, como já fora afirmado nos casos em que a lei pode ser debatida. Uma vez que os Estados são os próprios criadores deste novo momento do sistema internacional, principalmente entre os seus pares do ocidente, conforme define a autora Susan Strange (1999), a forma como os temas da imigração e do terrorismo atingem as suas respectivas estruturas estatais e a dificuldade existente para resolver ações de magnitude superior leva a um cenário complexo que foi nomeado pela autora como o “Sistema de Falha Ocidental”, resultado de medidas expansivas dos atores estatais tanto por meio do monopólio da violência como pelo capitalismo de mercado (STRANGE, 1999, p. 345-346; BROWN; AINLEY, 2005). Em suma, de acordo com Strange (1999), o sistema westphaliano entrou em crise na primeira década do século XXI, ainda que, assim como em outros momentos no decorrer da história conforme relata Adam Watson (2004), este sistema já tenha sido levado ao seu extremo, considerando eventos no continente europeu como a expansão do Império Napoleônico no final do século XVIII e o frágil Concerto Europeu entre o início do século 31 XIX e o início do século XX (WATSON, 2004). Todo este problema relatado pelos autores acadêmicos ocorre ao longo dos últimos trezentos anos – período no qual os Estados reinaram enquanto estrutura consolidada em meio a conflitos pela hegemonia de poder. Isto não significa, conforme destaca Strange que o sistema internacional esteja à beira de um colapso, mas sim que ele nunca teve equilíbrio ou sustentabilidade conforme menciona a autora (STRANGE, 1999). Por mais que o sistema internacional ainda seja gerido pelos Estados, a ingovernabilidade tem reflexos na dificuldade destes atores em propor alterações neste ambiente em que se encontram inseridos e na vulnerabilidade presente na gestão dos mercados e organizações internacionais (STRANGE, 1999). Portanto, em meio a esta instabilidade estrutural no qual os Estados se enfrentam e desconfiam de quem participa desse sistema internacional, a aparição dos atores não-estatais de natureza agressiva fazem parte de um novo período de contestação da hegemonia dos Estados e de suas formas de impacto sobre a geopolítica. Em meio a este cenário de incerteza e de choque entre as normas clássicas contratualistas que chegaram a garantir a fundação dos Estados e do atual sistema internacional como é conhecido, e considerando as mudanças quanto à forma de gestão e aparecimento de uma série de novos e crescentes desafios que passaram a chamar a atenção dos formuladores de política governamental, que o subcapítulo a seguir irá tratar sobre a formação, o aparecimento e as controvérsias geradas pelo advento dos ditos atores não- estatais violentos no sistema internacional. 2.2 Os Atores Não-Estatais Violentos Dentro das diversas categorizações e debates acerca do fenômeno que envolve os poderes que se situam para além do Estado, encontram-se os Violent Non-State Actors (VNSAs 2 ) – responsáveis por causar danos que potencialmente podem elevar Estados à categoria de frágeis. Uma vez que este retrospecto se torne real para àquele que é afligido pelas VNSAs, o Estado passa a perder autonomia e atuação frente aos expoentes deste modelo não-estatal, como é o caso de grupos rebeldes e células terroristas (ALIJEV, 2017). Ainda que possa haver esta possibilidade de fragmentação da estrutura de uma nação por meio de terceiros, é importante considerar que Estados-nação nunca foram tão resilientes 2 Tradução em português para Atores Não-Estatais Violentos (ALIJEV, 2017). 32 como se pensa. Se os Estados-nação falharem em fornecer seus bens públicos a sua população, além de perder uma de suas características mais centrais como a legitimidade, rapidamente a situação pode se deteriorar, a ponto de tornar a autoridade nacional em um “Estado Falido”, de acordo com Rotberg (2002). Desta forma, ainda que outros atores tenham capacidade de neutralizar todo um Estado, a ponto de fragmentar sua força pública, estes atores podem ser facilmente suscetíveis a esta situação (ROTBERG, 2002). Historicamente, a presença dos Atores Não-Estatais Violentos remonta a Antiguidade Clássica, sendo alguns dos principais responsáveis por levar à derrocada de impérios como o Romano. As VNSAs adquiriram maior ênfase no século XX perante o período de Descolonização que deram origem a Estados deficientes e de infraestrutura precária (WILLIAMS, 2008). De acordo com Phil Williams (2008), a classificação destes grupos varia assim como os seus objetivos políticos e econômicos. Por exemplo, as VNSAs podem ser desde redes terroristas a criminosos das mais variadas organizações. Cada ator não-estatal tem que enfrentar um Estado moldado de acordo com suas dificuldades regionais. No caso da América Latina, apesar dos poucos conflitos interestatais, o enfrentamento de forças entre classes sociais – motivadas principalmente pela elite política dos Estados da região é parte dos desafios dos Atores Não-Estatais (WILLIAMS, 2008). Neste caso, o intuito com a qual a violência é utilizada entre os VNSAs leva a uma série de debates e indagações. Por exemplo, de acordo com Hesselman e Lane (2017), atores não-estatais podem exercer papéis tanto positivos como negativos. Por mais que a maioria destes atores realizem atividades que garantem o bem-estar dos civis em perigo, não há constante regulamentação sobre o papel que atuam em conflitos. Desta forma, atores não- estatais como empresas multinacionais podem se aproveitar da situação para desrespeitar, por exemplo, regulamentos ambientais (HESSELMAN; LANE, 2017). Portanto, parte dos atores não-estatais descritos nesta dissertação até então (ONG’s e entidades multinacionais) são frequentemente vistos dentro da academia como “bons exemplos” – principalmente por lutarem por “causas justas”, de forma que “suplementam e persuadem o Estado”. Por outro lado, arquétipos como grupos mafiosos e organizações terroristas exercem uma má influência. Desta forma, definir um ator não-estatal ímpar como grupos criminosos tem suas particularidades uma vez que, as operações realizadas no exterior (como evasão fiscal) trazem o transnacionalismo como uma característica-chave que distingue a criminalidade transnacional (HALLIDAY, 2001, p. 25). 33 Apesar das diferenças, Phil Williams (2008) destaca que todas as VNSAs no geral são ameaças a estrutura na qual se encontram inseridas. Os Atores Não-Estatais Violentos conforme surgem, se afirmam como novos núcleos de poder graças à perda de legitimidade – característica considerada essencial para a prevalência do Estado. Em determinados casos, o poder que traduz a capacidade de gestão e de presença do Estado em espaços sociais se torna diminuto ou inexistente (WILLIAMS, 2008). O resultado disto em termos teóricos se dá por meio dos chamados “Black Spots” ou “Ungoverned Areas”. Nesta abordagem em particular, grupos criminosos tendem a se tornar entidades paraestatais que passam a forjar uma nova dinâmica de governança em locais onde a rede de poder estatal não alcança. Entretanto, nestes espaços, não há uma predominância de uma única entidade no poder. Uma vez que haja o assentamento de uma liderança local (por menor que seja), os grupos ilegais poderão exercer suas atividades sem interferência externa, ainda que estejam territorialmente sob a jurisdição de um Estado (SOUZA, 2013). Sendo assim, vale ressaltar que a construção de uma região como espaço não- governado faz parte de um discurso estatal voltado a transformar as estruturas de atores não- estatais violentos como ilegais. A partir deste discurso aceito publicamente, os Estados passam a ter o apoio popular e legal para fazer uso da força a fim de neutralizar os seus alvos (independentemente do tipo de atores não-estatais e suas intenções) (LINDAHL, 2010). Diversos acadêmicos se aprofundam nesta nova conjuntura de conflitos assimétricos não-estatais que envolvem os Estados – conforme norteia Herfried Munkler (2005). A privatização da guerra (barateamento dos conflitos), a simplificação das estratégias militares, a luta contra a desintegração do Estado, o cenário globalizador, e o transnacionalismo dos conflitos nacionais estabelecem condições férteis para a existência do Crime Organizado Transnacional em meio às “novas guerras”. De acordo com Munkler, estes fatores têm relação intrínseca com a conflagração de novos conflitos indiretos, alterando a forma tradicional de condução dos enfretamentos envolvendo o uso da força (MUNKLER, 2005, pp. 4-21). A partir deste cenário de eclosão do crime organizado, do conflito entre Estados e atores não-estatais e o impacto das ações ilegais, é importante considerar os fatores que propiciam e levam ao desenvolvimento de características que irão nortear a fundação dos Atores Não-Estatais Violentos, conforme é demonstrado na Tabela 1. 34 Tabela 1 – Dimensões centrais dos Atores Não-Estatais Violentos Dimensão Definição Motivação/Proposta Os fatores que regem o objetivo dos grupos criminosos. Força/Escopo Tamanho da organização e seu espaço de atuação – podendo ser tanto de dimensão local como transnacional. Técnicas de Financiamento e Acesso a Recursos Como estes grupos não-estatais se financiam e de que forma mantém seu patrimônio dada a sua relação com a economia local, nacional ou global. Estrutura Hierárquica Modos de organização interna e de administração dos atores não- estatais. Papel da Violência Parte essencial destes indivíduos – apresentando diferenças na forma como o uso da força é utilizado por estes grupos. Relação entre as VNSAs com o Ator Estatal Neste critério, a forma do Ator Não-Estatal Violento pode originar reações variadas: enfretamento direto, conivência, medidas de cooperação indireta, entre outras. Funcionalidades Qual é o papel que este grupo não-estatal rege na sociedade em que normalmente o Estado está ausente – pode variar desde políticas paternalistas a manutenção da ordem social. Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos dados de Williams (2008). Em termos de crime organizado, o Estado é forçado a engajar-se em um conflito primariamente causado por “atores não-estatais violentos”. Em particular, no caso da América Latina, a região e seus governantes frequentemente enfrentam narcotraficantes e que estão envolvidos no consumo de produtos ilegais (AVILA, 2017, p. 2). Estes atores são os representantes de um crime organizado ilegal e extremamente danoso à sociedade. Cada autoridade nacional age de uma forma, porém, sempre envolvidos em conflitos custosos. Por exemplo, durante os governos de Felipe Calderón e Enrique Peña Nieto, o Estado mexicano travou um duelo pela sua estrutura legal com os cartéis que assolam o país. O mesmo ocorre no Brasil e com a presença do Primeiro Comando do Capital (PCC), originário do estado de São Paulo, porém presente em diferentes regiões do país, além de possíveis associações com o exterior (AVILA, 2017). Os grupos criminosos citados anteriormente se encaixam na descrição de organizações criminosas e facções como características centrais destes Atores Não-Estatais Violentos. De acordo com Phil Williams (2008), estes grupos criminosos atingiram uma estrutura de nível onipresente – uma vez que estes atores podem tanto se limitar a territorialidade local assim como uma expansão de atuação a nível transnacional. A diversidade de exemplos de grupos criminosos independente da vastidão geográfica também é um fator de discussão dentro da academia acerca dos atores não-estatais, assim como as suas características organizacionais e formas de projeção de poder. Entretanto, a utilização da violência pode trazer debates variados acerca dos efeitos sobre os grupos criminosos tanto locais como transnacionais. Ela 35 pode variar tanto como um meio de ataque localizado assim como um ato de agressão amplo e indiscriminado (WILLIAMS, 2008). Ainda no quesito do uso da violência, é importante considerar a finalidade moral que existe ao se usar a força por parte do Ator Não-Estatal Violento. Esta dualidade entre o bem e o mal eleva discussões. Por exemplo, para a pesquisadora Natasha Ezrow (2017), tudo começa a partir do pressuposto de que a violência é muito mais complexa do que se imagina – é por este motivo que os estudos de Segurança se encontram cada vez mais críticos quanto as motivações relacionadas ao uso da violência. Em termos de moralidade e legitimidade, muitas vezes estes grupos não-estatais são tratados como imorais dentro do sistema internacional; por outro lado, é primordial levar em conta que em determinadas ocasiões, os Atores Não-Estatais Violentos auxiliam a estrutura do Estado em assuntos militares, econômicos ou de natureza territorial (EZROW, 2017). A presença destes atores altera a forma como a violência é presenciada na visão dos Estados. Entretanto, ao se tratar dos próprios Estados, o uso da força pode ser exercido por outras dimensões. Na visão desta autoridade central, os criminosos são, sem dúvida, uma ameaça à integridade da população e de sua soberania. Ainda sim, é necessário pautar que, por mais que seja comum o uso da segurança e do interesse nacional como pretexto de proteção, em Estados considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, as lideranças políticas frequentemente agem para defender as elites e não a população ao todo dado que os valores nacionais são deturpados, por exemplo, na constituição de muitos países. Isto leva a indagações acerca da própria legitimidade em torno do objetivo dos Estados e de seus poderes centrais (quem faz parte do plano de segurança do Estado, o que é segurança para o Estado e quem seriam os eventuais inimigos). O Estado passa a ser a fonte da insegurança para determinados grupos. Em muitas ocasiões, o inimigo do Estado é interno (EZROW, 2017). Sendo assim, é primordial entender que a complexidade e os objetivos dos Atores Não-Estatais Violentos é mais profunda. Exemplificando, determinados grupos terroristas acreditam que suas medidas (sem entrar nos detalhes de suas ações – se são legítimas ou não) podem estabelecer o bem e a harmonia entre populações. Mas, no que tradicionalmente consta sobre os grupos criminosos, seus objetivos operacionais envolvem o enriquecimento material. Ainda que seja um exemplo raro, poucos são os casos no crime organizado em que organizações possuem aspirações políticas (EZROW, 2017). Tradicionalmente, esta foi a clássica visão que predominou ao longo dos anos sobre a índole e os objetivos de grupos criminosos. As abordagens teóricas permaneceram em sua maioria focada sobre a “ilegitimidade” que seria a característica central dos membros do 36 crime organizado. Entretanto, estes atores não-estatais também são muito mais complexos do que se aparenta (RODGERS; MUGGAH, 2009). Sendo assim, é importante ressaltar que o próprio Estado erige as estruturas que levam à fundação do crime organizado. O objetivo do Estado não é necessariamente a destruição do crime organizado, mas sim se aproveitar de sua estrutura para fortalecer-se em termos de mercados e de monopólio. Em determinados casos de Estados, ao invés de exercer a violência como tal, se realiza o inverso: se apropria de espaços e de organizações erigidas pelo crime organizado. Necessariamente, as estruturas não-estatais tendem a reagir frente a tais processos. Natasha Ezrow (2017) ainda destaca as duas formas que grupos criminosos podem fomentar poder: primeiro, naturalmente eles podem exercer controle por meio da violência, assim como por meio de medidas de coerção como taxas de proteção e tarifas de serviços. Medidas de assistência social e de paternalismo criminal também podem ajudar o crime organizado a exercer popularidade em determinados espaços. Por último, o crime tem a possibilidade de se aproveitar da estrutura corrupta do Estado para realizar chantagens junto a autoridades estatais corrompidas (EZROW, 2017). Desta forma, pode-se verificar como os Atores Não-estatais Violentos estão ganhando espaço em termos de Política Internacional – além de estarem próximos de atingir uma perspectiva eminentemente expansiva. De acordo com o estudioso Ersel Aydinli (2015), o resultado desta mudança de percepção nas Relações Internacionais e em diversos pensamentos teóricos pode ser expresso a partir do fato de que há um amplo processo de reconstrução das noções clássicas que davam prevalência de poder aos Estados (AYDINLI, 2015). Levando em conta os exemplos de utilidade da violência para atores criminais citados anteriormente, é importante considerar a relação dúbia que os grupos criminosos exercem dentro do Estado. Invariavelmente, o campo é submetido a esta série de reformulações em relação a definições já consolidadas nas Relações Internacionais. Aydinli ressalta que a tarefa de definir os Atores Não-Estatais Violentos não é um processo simples: é por este motivo que, artigos e análises como as de Williams (2008) enumerando a variedade de tipos de organização que se encaixam na definição de VNSAs criam uma rede de categorias (AYDINLI, 2015). Em razão deste grau de complexidade em definir os Atores Não-Estatais Violentos, Aydinli desenvolveu três características que segundo o autor, produziriam estudos mais robustos acerca destes atores: a sigla ARI (Autonomia, Representação e Influência). O primeiro conceito – relaciona-se ao quanto o Ator Não-Estatal estaria desprendido das 37 relações entre um ou mais Estados. A autonomia também serviria para analisar o quanto as medidas tomadas pelos VNSAs são vinculados à estrutura do Estado. No caso da Representação, Aydinli passa a questionar o quanto a estrutura do ator não-estatal seria independente o suficiente para se desvincular do Estado ou dependente deste. É importante considerar também, se o ator possui a capacidade de renovar seu corpo organizacional a ponto de continuar promovendo mudanças locais. Por último, há a Influência, que basicamente se resume na capacidade que Atores Não-Estatais Violentos possuem em alterar a arena política que se encontram inseridos. Na Influência, um dos fatores que varia é o quanto o ator pode causar tais alterações de forma independente ou unida a um agente institucional (AYDINLI, 2015). Considerando o impacto que todos estes fatores presentes nos Atores Não-Estatais Violentos, é primordial ressaltar que além da Autonomia, Representação e Influência, determinados grupos não-estatais possuem vínculos com o exterior, expandindo suas atividades em outros Estados. Em determinadas ocasiões, as VNSAs assumem aspirações patentes de controle de porções territoriais a fim de alterar o “status quo” (MANDEL, 2013, p. 42). Para que a projeção de atuação extrafronteiriça venha a se tornar realidade, o grupo depende do fenômeno transnacional sobre a atuação das VNSAs. A introdução deste fator no sistema internacional e na forma de como o crime organizado atua é o centro do modus operandi de diversos grupos não-estatais que dependem da violência para exercer a sua vontade. Desta forma, para o próprio Estado-nação em sua versão mais modernizada, o crime se tornou uma atividade potencializada que faz uso da barreira geográfica para continuar atuando (renovado pelas profundas mudanças geopolíticas vindas após o fim do período bipolar soviético-estadunidense no início da década de 1990) (MANDEL, 2011). A partir de todos os fatores que foram levantados anteriormente, é importante considerar que os Atores Não-Estatais Violentos possuem um grau de complexidade maior do que se aparenta. Frequentemente, a linha de pensamento acadêmica clássica costuma associar estes atores a grupos ilegais que fazem uso da força para somente reprimir a estrutura do Estado e infligir dano a seu território, economia e população. Por este motivo que era primordial considerar que a estrutura que deu origem a grupos não-estatais violentos podem ser uma resposta a um Estado que causa danos a sua própria população ou surgem como um aparato de apoio social e de resistência. Logo, a partir deste contexto e do impacto que o crime organizado passou a causar em Estados por todo o globo, o capítulo seguinte desta dissertação abordará a origem do fenômeno transnacional, assim como a sua etimologia nas 38 Relações Internacionais, o desenvolvimento teórico dentro da área e os impactos sobre o crime organizado. 39 3 O TRANSNACIONALISMO E O CRIME De acordo com o acadêmico Samuel Huntington em seu artigo “Transnational Organizations in World Politics” de 1979, ao se tratar da temática transnacional, alguns aspectos ajudam a traduzir um ator que incorpora as seguintes características: primeiro, o tamanho da estrutura organizacional. Segundo, a acumulação de uma função técnica e em terceiro, se o ator tem a capacidade de realizar operações para além das fronteiras de um ou mais países. Desta forma, é possível definir se uma organização pode atuar transnacionalmente. Huntington considera outras características a mais que definem uma organização deste porte: crescimento exponencial ao longo dos anos, expansão das funções administrativas, e contato recente com o cenário global – e que não era realizável nos anos anteriores para o ator. Desta forma, o transnacional se traduz em atravessar a fronteira de dois ou mais Estados-nação. Como consequência, a capacidade de administrar negócios em diversos territórios permite pouco controle das autoridades fronteiriças. O autor ainda considera que a criação e o desenvolvimento de um cenário transnacional originam condições para um avanço tecnológico e político. É a partir deste cenário que estratégias de comunicação e de transporte internacional se tornam uma alternativa viável ao transnacionalismo (HUNTINGTON, 1979). Estes fatores sustentam o fato de que, as organizações transnacionais podiam atuar entre os Estados e até mesmo, junto a eles. Porém, a maioria das organizações que atingem o estágio transnacional – de acordo com Huntington – está interligada a estruturas estatais que orientam a ação destes grupos. Uma vez livres deste controle operacional, os atores transnacionais teriam todas as capacidades disponíveis para realizar suas ações sem grande interferência. Sem a presença de uma vigilância constante realizada pelo Estado ou por alguma outra autoridade regulamentada, a organização transnacional possui liberdade suficiente para exercer seus próprios projetos e objetivos por além dos limites geográficos nacionais (HUNGTINGTON, 1979). Isto significa, de certa forma, que atores transnacionais (principalmente os não- estatais) possuem maior liberdade de atuação. Entretanto, diferentemente de outros órgãos globalizados, grupos criminosos não são sujeitos a uma autoridade estatal. As organizações multinacionais e associações pertencentes ao Estado citadas pelo autor possuem a “capacidade tecnológica de operar em uma sociedade somente se tem a permissão do governo daquela sociedade” (HUNTINGTON, 1979, p. 342). Notavelmente, em um exemplo demonstrado por 40 Huntington, entidades transnacionais estariam submetidas a autoridades superiores da seguinte forma: Organizações transnacionais podem ser controladas por governos nacionais, grupos nacionais não-governamentais, ou corpos governamentais internacionais ou não- governamentais. Durante um quarto do século após a Segunda Guerra Mundial: (1) A maioria das organizações transnacionais eram nacionalmente, não internacionalmente controladas. (2) A maioria das organizações transnacionais nacionalmente controladas eram controladas por americanos. (3) As mais proeminentes organizações transnacionais eram as agências governamentais dos EUA e corporações ‘multinacionais’ situadas nos Estados Unidos 3 (HUNTINGTON, 1979, p. 347, tradução nossa). Intrinsecamente relacionado ao transnacionalismo, está a governança de diversos regimes internacionais que podem ser impactados por medidas de caráter internacional. Porém, como foi afirmado anteriormente, o crime organizado e aqueles que compreendem o transnacionalismo podem exercer um tipo de influência diferenciada sobre a estrutura estatal. Para efeitos de esclarecimento teórico, os estudiosos Anja Jakobi e Klaus Wolf destacam que “atores não-estatais causam problemas de governança através da violação de normas”. Potencializado com a capacidade de agir transnacionalmente, os grupos criminosos enquanto grupos não-estatais podem romper a ordem que se encontram inseridos (JAKOBI; WOLF, 2013, p. 257). Desta forma, é primordial discutir o papel dos atores criminosos transnacionais dada a capacidade de superar as barreiras legais de diversos Estados e a utilização de estratégias para corromper a estrutura que enfrenta o Crime Organizado Transnacional (WERNER, 2009). Já no que concerne ao Estado, também é importante destacar que os grupos não- estatais, como o crime organizado, são estritamente relacionados a uma série de novas ameaças que circundam diversos governos. Isto demonstra novamente a complexidade existente nas noções de segurança. Ersel Aydinli (2010) destaca que, primeiramente, os Estados estão sendo movidos a um cenário no qual, ao invés de seus maiores inimigos serem seus pares, eles são colocados contra atores que não seguem uma orientação estatal e que são fortalecidos por uma lógica transnacional. Os Estados são obrigados a ampliar seus laços cooperativos em termos de compartilhamento de informações e de inteligência. Em segundo lugar, o espaço transnacional impede com que os Estados formem agências ou formas de 3 Transnational organizations may be controlled by national governments, national non-governmental groups, or international governmental or non-governmental bodies. During the quarter-century after World War II: (i) Most transnational organizations were nationally, not internationally controlled. (2) Most nationally controlled transnational organizations were controlled by Americans. (3) The most prominent transnational organizations were U.S. Government agencies and U.S.-based ‘multinational’ corporations. 41 institucionalização de suas atividades. As ações fora deste espaço se tornam menos efetivas. Enquanto o Estado não conseguir formar um monopólio sobre tais territórios, o transnacionalismo continuará a ser uma área insegura para Estados, as medidas legais tomadas serão paliativas e o crime organizado continuará a fazer uso desta área de domínio não-estatal (AYDINLI, 2010). Todos estes problemas citados anteriormente também são indiretamente destacados pelo teórico Stephen Krasner (1995). Para o autor, as principais teorias de Relações Internacionais como o neorealismo não sabem de que forma explicar a presença do transnacionalismo sobre a atividade interna e externa dos Estados. Mas ao mesmo tempo, a estrutura transnacional que ele se refere deriva de atores que estão sob o controle dos Estados. Independente de serem controlados por países ou não, Krasner é categórico: por mais que os Estados pudessem exercer controle sobre suas fronteiras e pudessem resguardá-las utilizando a disponibilidade máxima de suas forças, dificilmente poderiam impedir a expansão de negócios e iniciativas transnacionais nocivas ao Estado (KRASNER, 1995). Sendo assim, a relação do transnacionalismo com os Estados é turva: Transnacionais podem frustrar ou promover os objetivos de atores estatais. Em conflitos entre os Estados (organizações de tomada de decisão centrais) e multinacionais, atores estatais tem recursos formidáveis. Eles muitas vezes vencem. Mas não sempre 4 (KRASNER, 1995, p. 260, tradução nossa). Autores como Guilherme Cunha Werner (2009) vão ainda mais longe sobre como o Estado tem sérias dificuldades para lidar com problemas de amplitude transnacional: segundo o autor, os países enfrentam o crime organizado a partir de estruturas muito antiquadas para deterem associações ilegais – os países surgiram como formas de controle social e territorial há aproximadamente 400 anos e suas outras composições internas de funcionamento são tão antiquadas quanto à própria condição central – sistema judiciário, forma de entendimento do sistema criminal, além de não possuir tecnologia suficiente para deter tais criminosos (WERNER, 2009). Uma vez que os grupos criminosos fazem uso do transnacionalismo como meio central de atuação, vale ressaltar que o PCC, enquanto um grupo criminoso com características transnacionais, é parte fundamental para o desenvolvimento desta dissertação, sendo imprescindível descrever a estrutura teórica que compreende a presença dos atores não- estatais de caráter ilegal, como cada teoria remete ao tema e de que forma o transnacionalismo 4 […] Transnational may frustrate or promote the objectives of state actors. In conflicts between the state (central decision-making organizations) and multinationals, state actors have formidable resources. They win often, but not always. 42 origina novas discussões a fim de aprofundar-se no termo “Crime Organizado” e sua ação para além das fronteiras. Sendo assim, no próximo tópico, será abordada a atuação que envolve os grupos criminosos transnacionais (classificação, características e formas de impacto sobre o Estado), definida entre os estudiosos de Relações Internacionais, como Crime Organizado Transnacional. 3.1 O Crime Organizado Transnacional nas Relações Internacionais: Perspectivas e Desafios Para se definir de maneira mais coerente o crime organizado transnacional, é primordial entender a etimologia que envolve a formação deste termo em seu estado de origem e emulando as condições políticas e sociais que originaram a sua fundação. O termo “crime organizado” nasceu primeiramente nos Estados Unidos, entre 1875 a 1900. Inicialmente era relacionado a um evento histórico no país. A primeira classificação de crime organizado envolvia atividades consideradas de resistência e de combate irregular (que ficou conhecido como a Teoria do Partisan) praticados no Sul dos Estados Unidos durante a eclosão da Guerra Civil Americana (1861-1865). Além de serem vinculadas a táticas bélicas surgidas em meados do século XIX, ações cometidas pelo grupo Klu Klux Klan (KKK) também foram definidas como práticas de crime organizado. Mais tarde, o termo foi utilizado por periódicos como The New York Times para descrever protestos por mais direitos trabalhistas em 1907 (LAMPE, 2016; SCHMITT, 1984). Contudo, prevaleceu ao longo do tempo a visão de que o crime organizado seria voltado a atividades ilegais e a grupos especializados em roubo e ações anexas (LAMPE, 2016). A alteração desta visão sobre ilegalidade veio sustentada por um contexto de expansão da imigração e de chegada de milhões de italianos nos Estados Unidos entre 1891 a 1920. Com a ascensão de associações criminais como as máfias – mais notadamente o caso da Cosa Nostra – que o crime organizado passou a ser associado a este grupo. Foi graças à estratégia de inserção da máfia no cerne das estruturas legais e jurídicas do Estado que práticas de extorsão foram vistas também como crime organizado. Portanto, entre 1920 a 1950, o crime organizado tinha a face de associações mafiosas estabelecidas nos Estados Unidos há pelo menos 30 anos. Esta visão só virá a ser alterada novamente na década de 1950 (PEREIRA, 2015). Com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, os Estados Unidos saíram do conflito alterando a forma como o crime organizado é pensado. As medidas de Law 43 Enforcement chegaram ao alto escalão do poder americano, de tal forma que se transferiu a responsabilidade dos problemas criminais para o exterior. A “pureza” da sociedade americana estaria sofrendo deste mal que deveria ser detido em vários campos (PEREIRA, 2015, p. 84- 92). Academicamente, o primeiro grande modelo teórico criminal surgido a partir das décadas de 1950 e 1960 foi nomeado de “Teoria da Conspiração Alienígena”. Apesar do nome, seu contexto deriva da expansão das máfias italianas em direção aos Estados Unidos e sua eventual estabilização durante a Grande Depressão. Em razão da explosão de casos de mafiosos italianos operando em diversas capitais norte-americanas, em 1951, as audiências públicas realizadas pelo Comitê Keffauver 5 chegaram à conclusão de que os Estados Unidos estava sob ataque de uma “conspiração alienígena conhecida como ‘máfia’” (KLEEMANS, 2014, p. 33). Em razão do discurso norte-americano sempre alegar estar sob ameaça externa de potenciais rivais ou inimigos do Estado e pautados em um forte sentimento de nacionalismo contra os invasores (SMITH JR., 1976), os imigrantes italianos seriam os responsáveis por causar a expansão do crime organizado em solo norte-americano. Paralelamente, de acordo com os defensores desta teoria, a expansão de atividades ilegais ocorria somente nas democracias liberais, de tal forma que poderiam destruir as instituições públicas destes países mediante corrupção e violência (KLEEMANS, 2014, p. 33). O alarmismo era tão evidente na sociedade americana que, de acordo com Dwight Smith Jr. (1976), poderia existir “em algum lugar ‘lá fora’ (...) um grupo alienígena, secreto, organizado que está pronto para se infiltrar na nossa sociedade e minar nossas crenças democráticas fundamentais”. A máfia já havia sido determinada anteriormente como uma das maiores ameaças aos EUA na década de 1890 em razão da atividade imigratória e que voltaria a ser alvo de preocupação nacional nos anos 1950 e 1960. Em razão da cultura de paranoia enraizada entre os americanos, a máfia atingiu esta condição de ameaça estrutural – porém em níveis menores em comparação ao comunismo, também visto como um dos maiores inimigos americanos (SMITH JR., 1976, p. 76). Portanto, o problema do crime organizado era transportado para atores tidos como os “exportadores” da desordem pública e dos danos à sociedade. Algumas das ideias desenvolvidas por esta teoria ainda se mantiveram em modelos teóricos posteriores. Apesar de ter perdido força ao longo dos anos – principalmente durante a década de 1980 – a Teoria da 5 O Comitê Keffauver faz alusão a Estes Keffauver, ex-senador americano do Partido Democrata, responsável por gerir uma das maiores investigações de crime organizado até então, durante o início da década de 1950, atraindo massiva atenção popular (REUTER, 1986). 44 Conspiração Alienígena ecoou em outros países para além dos Estados Unidos, sempre procurando imigrantes para se tornarem alvos de acusações e de serem criminosos, reforçando estereótipos étnicos (KLEEMANS, 2014). Com o sucesso desta primeira teoria, rapidamente ascendeu entre acadêmicos e criminologistas o Modelo Burocrático – resultado dos trabalhos de interrogatório com membros da máfia pelo Senado dos EUA durante a década de 1960. No campo acadêmico, a virada teórica ocorreu a partir da publicação de “Theft of the Nation” por Donald Cressey em 1969 (KLEEMANS, 2014). De acordo com o próprio autor, desde que ex-mafioso Joe Valachi descreveu para o Comitê McClellan o modus operandi da máfia nos Estados Unidos, tornou-se uma tendência entre os pesquisadores criminais, classificar organizações como grupos extremamente organizados e que propõem uma “divisão do trabalho” em suas atividades. Seguindo esta linha nos estudos, Cressey declarou que sua análise teórica também se voltou uma a descrição minuciosa das capacidades ilegais: Eu tenho seguido esta tendência, acreditando que a organização Cosa Nostra é tão extensa, tão poderosa, e tão central que a descrição precisa e seu controle poderia ser a descrição de tudo, mas uma pequena parte de todo o crime organizado. Mas esta tendência tem seus riscos decorrentes. [...] Deve ser entendido que a Cosa Nostra tem um núcleo interno, e que a única frase descrevendo adequadamente as posições da Cosa Nostra mais as posições ocupadas por outsiders (de vários backgrounds nacionais, étnicos, e religiosos) é um pouco desajeitada: ‘confederação e cartel criminal nacional’ 6 (CRESSEY, 1969, p. 109, tradução nossa, grifo do autor). A partir das análises de Cressey, as organizaçõe