KATIUCE LOPES JUSTINO ESBOÇO COM LUZ E SOMBRA: PROBLEMAS DE INSCRIÇÃO E APAGAMENTO DO SUJEITO EM UM SOPRO DE VIDA 2006 KATIUCE LOPES JUSTINO ESBOÇO COM LUZ E SOMBRA: PROBLEMAS DE INSCRIÇÃO E APAGAMENTO DO SUJEITO EM UM SOPRO DE VIDA São José do Rio Preto 2006 Ficha catalográfica Justino, Katiuce Lopes. Literaturas em Língua Portuguesa/Katiuce Lopes Justino – São José do Rio Preto: [sn], 2006. 100 fl; 30 cm Orientadora: Maria Heloísa Martins Dias Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Literatura 2. Clarice Lispctor. 3. Inscrição e apagamento do sujeito. Dias, Maria Heloísa Martins. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto.III. Problemas de inscrição e apagamento do sujeito em Um sopro de vida, de Clarice Lispector. CDU- Katiuce Lopes Justino ESBOÇO COM LUZ E SOMBRA: PROBLEMAS DE INSCRIÇÃO E APAGAMENTO DO SUJEITO EM UM SOPRO DE VIDA Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, Campus de São José do Rio Preto, para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Concentração: Literaturas em Língua Portuguesa). Orientadora: Profª. Dr.ª Maria Heloísa Martins Dias São José do Rio Preto 2006 Para Olinda Cristina Martins Aleixo AGRADECIMENTOS O final de um trabalho, infelizmente, não pode nem deve espelhar toda uma história de formação, mas é possível que esta esteja inscrita de uma forma ou de outra em cada escolha feita e em cada contingência. Por uma formação competente e séria, agradeço à equipe do curso de Letras do Ibilce. Agradeço principalmente aos professores Marcos Siscar, Aguinaldo Gonçalves e Sônia Pitéri, que interferiram de maneira mais próxima em todo o processo de formação de alguém que faz mais perguntas do que encontra respostas. Agradeço a valiosa contribuição, que já dura mais de quatro anos, da professora Maria Heloísa Martins Dias, orientadora deste trabalho e exemplo de seriedade, competência e, principalmente, talento na área do embate teórico-crítico com o texto literário. Agradeço a orientação, a paciência, o rigor e a extrema dedicação do professor Arnaldo Franco Junior, que, se não fosse um grande especialista na pesquisa e formação de pesquisadores interessados na obra de Clarice Lispector, seria, ainda assim, um dos pilares deste trabalho. Agradeço aos interessadíssimos amigos que trocaram horas de papo leve e descontraído por momentos em que eu me via completamente contaminada pelo pathos de que sofrem todos os que se aproximam da obra de Clarice Lispector. Obrigada Olinda Aleixo, Lígia Winter, Shester Cunha, Alexandre Martins, Luís Fernando Protásio, Elaine Narciso e Cristiane Miorim. Agradeço a Deus e à minha família, pela base oculta. Agradeço novamente às pessoas que movem, ininterruptamente, cada uma das estruturas que possibilitam ao IBILCE transformar idéias de ser e existir em possibilidades de estar e fazer. Obrigada a todos os envolvidos nesta história de começo. Agradeço ao CNPq, pelo apoio financeiro destinado a esta pesquisa. Uma vez Ofélia errou. Geografia — disse sentada de fronte a mim com os dedos cruzados no colo — é um modo de estudar. Não chegava a ser erro, era mais um leve estrabismo de pensamento — mas para mim teve a graça de uma queda, e antes que o instante passasse, eu por dentro lhe disse: é assim mesmo que se faz, isso! Vá devagar assim, e um dia vai ser mais fácil ou mais difícil pra você, mas é assim, vá errando, bem, bem devagar. Clarice Lispector SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................p.12 CAPÍTULO I – A PALAVRA E A SOMBRA: A QUESTÃO DO SOPRO..............p.18 1.1 Tensões entre sujeito e linguagem e a questão da autobiografia.................................p.23 1.2 – Inscrição e apagamento e o problema da corrosão da origem..................................p.31 1.3 Paradigmas de contaminação entre as esferas de luz e de sombra em Um sopro de vida....................................................................................................................................p.34 CAPÍTULO II – A LUZ DO TEXTO: A CICATRIZ DA MODERNIDADE.........p.41 2.1. Auto-retrato: o rosto e o texto....................................................................................p.49 CAPÍTULO III - PARCIALIDADE E CRISE NA RETÓRICA DA FICÇÃO MODERNA......................................................................................................................p.62 3.1. Escritura dogmática e escritura dramática..................................................................p.69 3.2.Raízes erradicadas da concepção de autoria................................................................p.72 3.3. Dogmatismo irônico na escritura dramática de Clarice Lispector.............................p.75 IV – A SOMBRA DO CANTO: ARTE E A MORTE..................................................p.87 4.1. O espaço da noite: a inspiração..................................................................................p.90 4.2 - O espaço ausente: o lado de fora...............................................................................p.94 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................p.99 RESUMO: O presente trabalho propõe o estudo dos problemas de representação da voz autoral no livro Um sopro de vida: pulsações, de Clarice Lispector, publicado postumamente em 1978. Diluída em um projeto muitas vezes lido como autobiográfico, a existência da personagem nomeada como Autor, sua atuação diferenciada na trama e seus mecanismos performáticos propõem uma narrativa complexa e que pode ser lida em diversos níveis: desde um mais elementar, no qual a criação literária é mais uma vez encenada como bastidor, até desdobramentos mais filosóficos, em que a própria condição da linguagem é especulada em sua possibilidade de criação de uma realidade autônoma e ritualizada como performance. Portanto, são inseridas as difíceis questões como voz, inspiração e autoria. Palavras-chave: autoria, autobiografia, performance, Clarice Lispector. ABSTRACT: The present paper proposes a study of the issues concerning authorial voice representation in Clarice Lispector’s Um sopro de vida: pulsações, published posthumously in 1978. Diffused into a project commonly understood as autobiographic, the existence of the character named Autor, its unlike performance through the plot, and its performative mechanisms propose a complex narrative read in various levels: from the most elementary, in which literary creation is, once again, performed as an offstage; until more philosophical developments, in which language condition itself is investigated due to its creation possibility of an autonomous reality, ritualized as performance. Hence, problematic issues such as voice, inspiration and authorship are introduced. Keywords: authorship, autobiography, performance, Clarice Lispector. Introdução Esta dissertação tem como objetivo o estudo do livro Um sopro de vida (SV), provavelmente o último projeto artístico de Clarice Lispector, publicado postumamente em 1978, pela editora Nova Fronteira. Iniciado em 1974 e concluído em 1977, pouco antes da morte de Clarice 1 , essa obra dialoga com os pressupostos estéticos e temáticos que orientaram a produção clariceana desde a sua estréia, em 1944, e, ao mesmo tempo, pode ser lido como uma proposta inovadora, calcada na problematização da linguagem e das relações estabelecidas via linguagem, vinculando questões como encenação e dramatização a um questionamento sempre duplo: ―o que é o ser?‖ e o ―que é o escrever?‖ Certamente o livro mais fragmentário de Clarice Lispector, Um sopro de vida distanciou-se de maneira extrema das formas tradicionais da narrativa, ou seja, formas em que um enredo mínimo é mantido em nome de uma progressão temática. Subordinados a mecanismos figurativos que demonstram uma profunda consciência que emerge do texto em relação aos seus próprios processos de construção, os diversos elementos que são acionados pelo texto clariceano indiciam um projeto ficcional consciente e desarticulador em relação às leis tradicionais que balizam criação e recepção do discurso da literatura. Por meio de comentários emaranhados ao processo geral dessa narrativa complexa, podemos encontrar trechos como: Se este livro vier jamais a sair, que dele se afastem os profanos. Pois escrever é coisa sagrada onde os infiéis não têm entrada. Estar fazendo de propósito um livro bem ruim para afastar os profanos que querem 1 Conforme ―Nota Prévia‖, escrita por Marlene Gomes Mendes, na edição publicada pela Rocco, em 1999. ―gostar‖. Mas um pequeno grupo verá que esse ―gostar‖ é superficial e entrarão adentro do que verdadeiramente escrevo, e que não é ―ruim‖ nem é ―bom‖. (LISPECTOR,1999c, p. 21). Agregado ao momento inicial do livro, e funcionando como um prefácio ambíguo (como, aliás, já tinha acontecido em outras obras 2 ), o texto de nove páginas que antecede aquilo que consta no sumário como a primeira das três partes nomeadas do livro (―O sonho acordado é que é a realidade‖, ―Como tornar tudo um sonho acordado?‖ e ―Livro de Ângela‖) comenta, de modo direto, o projeto inovador que guiará as páginas seguintes, afastando de antemão ―os profanos que querem ‗gostar‘‖. Partindo sempre do pressuposto de que Clarice já era uma autora consagrada pelo público e pela crítica na década de 70, percebemos que o livro contém uma ambição diferenciada, que busca eco num pequeno grupo, disposto a ―entrar adentro‖ do que ―verdadeiramente‖ constitui esse projeto artístico. Porém, interpretar esse pequeno grupo como um público fiel, ou seja, em oposição aos ―infiéis que querem gostar‖, também não parece um lugar seguro, já que a seqüência do trecho resvala também nos chamados ―fiéis do templo‖, como mostra o fragmento a seguir (grifo meu): Quando acabardes este livro chorai por mim uma aleluia. Quando fechardes as últimas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão livro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe e então este livro acaba bem. Para enfim eu ter repouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar. (LISPECTOR, 1999c, p. 21). Convocando, portanto, uma renovação no que concerne às expectativas com relação a sua produção e promovendo uma crítica que desestabiliza uma herança de leitores pela qual ela mesma teria sido responsável, Lispector tece a difícil relação entre o 2 Ver, por exemplo, A via crucis do corpo (1984), o fragmento intitulado ―Explicação‖. exercício sempre inédito da composição artística e sua ancestralidade, seja dentro de uma tradição pré-existente, em termos gerais, ou mesmo de uma tradição que rotula um artista a partir de sua ―obra anterior‖. Ao tecer um ―malogrado e afoito e brincalhão livro de vida‖, Lispector apresenta as diretrizes mais marcantes deste seu momento artístico, posicionando como peças de um jogo o improviso, a ironia, a autobiografia, a denúncia ficcional, a experimentação visual, o diálogo com obras anteriores, o questionamento a respeito da morte, etc. Esses elementos tornam possível ler nessa produção, a sobreposição de planos que somente é possível a um artista profundamente comprometido com a linguagem e os problemas relativos à linguagem na qual se expressa. É assim que Lispector agrega à sua escritura, além dos discursos que seu próprio discurso anterior já tinha acionado, todo o repertório capaz de colocar em xeque as formas tradicionais de criação e de recepção de uma obra literária. Como fio condutor desses inúmeros aspectos, este trabalho elegeu as relações do sujeito com a linguagem, em função do fato de que essas relações processam desde a relação mais evidente inscrita no texto (o problema da inserção e problematização da categoria autoral no interior da trama ficcional) até aquelas relações mais distantes, que podem ser aludidas aqui, por exemplo, considerando-se as questões acerca da verdade e da realidade, e muito mais da verdade literária e da realidade literária. Nesse percurso, SV abordará, de maneira indireta, as diversas contaminações existentes na fronteira entre a ficção e a realidade, seja pelo viés da ficção de si mesmo (e nesse sentido podemos pensar a possibilidade de abordar essa obra como autobiográfica), seja pelo viés da dramatização da linguagem, procedimento que enreda diversas implicações, dentre elas, os fundamentos da linguagem literária (essencialmente performática), os fundamentos da própria linguagem como sistema fundador da realidade e não derivado dela e por fim os fundamentos da própria condição humana, que, em última instância, é subordinada à existência da linguagem e, portanto, mediada por um filtro do qual é necessário desconfiar sempre. Como problema central da existência da personagem nomeada como Autor, temos, portanto, as paradoxais relações com a linguagem, já que seu complexo sistema, ao mesmo tempo que se coloca como portal necessário e inescapável no contato com o mundo, se comporta também como fronteira inatingível, mas que conduz a descobertas: AUTOR.— Quando eu era uma pessoa, e ainda não um rigoroso pleno de palavras, eu era mais incompreendido por mim. Mas era-me aceito na totalidade. Mas a palavra foi aos poucos me desmistificando e me obrigando a não mentir. Eu posso ainda às vezes mentir para os outros. Mas para mim mesmo acabou-se a minha inocência e estou mais em face de uma obscura realidade que eu quase, quase pego na mão. É uma verdade secreta, sigilosa, e eu às vezes me perco no que ela tem de fugidia. Só valho como descoberta. (LISPECTOR, 1999c, p. 40). Tendo como pressupostos essas constatações iniciais, o trabalho se organizará de forma a propor algumas possibilidades de leitura, marcadas por uma relativa liberdade no que concerne a uma filiação severa a uma teoria ou outra, ou mesmo a uma linha de pensamento ou outra. Pelo contrário, o que propomos é a tessitura de um diálogo que, valendo-se da contribuição imprescindível de grandes teóricos e críticos da literatura, possa articular um exercício de leitura e interpretação, sem, contudo, aspirar à aplicação de uma teoria em especial, movimento a que o texto clariceano já se mostrou tantas vezes rebelde. Nessa perspectiva, o primeiro capítulo ―A palavra e a sombra: a questão do sopro‖ se lança a um diálogo que tem como objetivo denunciar a ambigüidade que gerencia qualquer movimento que possa ser lido como índice de um mecanismo autobiográfico no texto. A leitura dessa ambigüidade acabou por repercutir no enfrentamento de um problema mais amplo, disseminado em todo o trabalho dessa pesquisa: o tenso comprometimento entre sujeito e linguagem e as formas metafóricas pelas quais essa tensão pode ser verificada no texto, seja a partir da análise da personagem Ângela como figura para a própria palavra literária, seja a partir da apresentação de um Autor à beira da morte como figura para a questão da autonomia da palavra em relação ao ente que a produziu. Nesse percurso, o segundo capítulo ―A luz do texto: a cicatriz da modernidade‖ aborda a relação dos principais elementos convocados para este exercício de leitura (as relações entre autor e texto, ou entre sujeito e linguagem e a consciência metalingüística) e as convicções geralmente atreladas ao pensamento chamado moderno. Em função disso, foi possível relacionar diversos teóricos que abordaram as implicações observadas na literatura desde que alguns artistas e intelectuais diagnosticaram uma nova relação da arte e da poesia com a natureza, a sociedade e a história (CHIAMPI, 1991, 14). Entendida a Modernidade como processo que se arrasta (modificado, desgastado, problematizado, etc) até os dias atuais, foi possível relacionar esse o texto ao seu contexto, buscando assim interfaces que pudessem auxiliar na compreensão daquilo que, se por um lado, pertencia irrevogavelmente a uma herança, por outro, resistia a ela, sempre fundando o novo, sempre renascendo como potencia de significação. No cerne desse panorama, no terceiro capítulo ―Parcialidade e crise na retórica da ficção moderna‖, buscamos analisar, sob o ponto de vista retórico, a problemática envolvida nas relações entre a personagem do Autor, a categoria narrativa do autor (e as diversas perspectivas que a teoria da literatura oferece em relação a essa categoria) e a imagem que se cria de um autor no texto, muitas vezes relacionado à figura de Clarice Lispector. Finalmente, no quarto e último capítulo ―A sombra do canto: a arte e a morte‖ foi possível criar um paralelo entre a figura mítica de Orfeu, aquele cuja morte se faz canto (BLANCHOT, 1987, p.155) com a intenção de pensar as conseqüências do enredamento do tema da morte bem como do apagamento do sujeito no texto. Visualizar a consciência do aniquilamento (como uma sombra que persegue cada movimento do texto), permitiu redimensionar a dialética da criação e morte, tão visceral no texto, como movimentos de inscrição e apagamento, frutos da e necessários à criação artística. Cabe afirmar ainda que este esboço, portanto, também ciente de seu caráter débil em relação à força dos movimentos críticos convocados por Clarice Lispector em SV, pretende associar às esferas de luz e sombra os mecanismos de inscrição e apagamento do sujeito no texto literário, para, nesse processo, evidenciar o duplo caráter da obra literária, sempre iluminada de e iluminando os seus próprios processos, porém conservando sua essência de sombra, e, por que não, de enigma. I – A PALAVRA E A SOMBRA: A QUESTÃO DO SOPRO Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim. (LISPECTOR, 1999c, p. 16). Possivelmente, determinar com alguma segurança a seqüência de pensamento capaz de promover um diálogo a respeito de uma obra literária moderna, que é a dispersão da palavra em espaços distintos, seu ir e vir de um a outro espaço, sua perpétua metamorfose, suas bifurcações e multiplicações, sua reunião final em um só espaço e uma só frase, como afirma PAZ (1976, p.120), comparando-a a uma festa, pressupõe uma reflexão inicial sobre a natureza, a plausibilidade e as intenções desse diálogo. Nesse sentido, qualquer construção feita com palavras acerca de um objeto que também é feito com palavras encerra um certo risco de desvio, de roubo, de afastamento, de perda. E é justamente para esse risco, inerente ao sistema da linguagem, e que afeta sobretudo o sujeito da linguagem, que voltamos a nossa atenção neste trabalho, partindo de reflexões acerca do último livro de Clarice Lispector, segundo o qual escrever é esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente (LISPECTOR, 1999c, p.15) . Dispondo os problemas do escrever como ponto articulador de um sistema crítico-ficcional, Um sopro de vida propõe um complexo espetáculo sobre a linguagem e sua (im)potência, bem como sobre as relações entre o sujeito e esse sistema que o determina. Podendo, portanto, ser lido como prova de uma potência de linguagem, já que acaba por revelar sua [da linguagem] capacidade de formação, transformação, deformação, ou seja, faculdade de determinação das coisas e do sujeito como tal, o livro também revela-se prova de uma (im)potência da linguagem, tendo em vista que é possível supor que algo, da natureza específica do ser, fique inapreensível, já que sempre entramos em contato com esse algo investido e investidos de linguagem: Eu escrevo por intermédio de palavras que ocultam outras — as verdadeiras. É que as verdadeiras não podem ser denominadas. Mesmo que eu não saiba quais são as ―verdadeiras palavras‖, eu estou sempre aludindo a elas. Meu espetacular e contínuo fracasso prova que existe o seu contrário: o sucesso. Mesmo que a mim não seja dado o sucesso, satisfaço-me em saber de sua existência. (LISPECTOR, 1999c, p. 74). A investida do sujeito na busca das ‗verdadeiras palavras‘ acaba por gerar um mecanismo de alusão: eu estou sempre aludindo a elas, o que o leva a um fracasso premeditado, índice da descoberta da opacidade de um sistema que se sobrepõe àquilo a que estamos acostumados a nomear como ‗coisa‘, revestindo-a. Portanto, a encenação de uma procura que se sabe impossível atua mais como demonstração da natureza e do funcionamento de um sistema, que é o da linguagem. Em torno dessa mesma problemática, DERRIDA (2002, p. 62), afirma: É portanto verdade que as coisas chegam à existência e perdem a existência ao serem nomeadas. Sacrifício da existência à palavra, como dizia Hegel, mas também consagração da existência à palavra. Aliás não basta ser escrito, é preciso escrever para ter um nome. Constatando a preeminência da palavra como objeto essencial, fator determinante em qualquer movimento humano, Lispector uma trajetória de busca pela palavra essencial. Como desejo sempre frustrado de captar cada detestável minuto (LISPECTOR, 1999c, p.14), o narrador, que mais tarde irá se autonomear como Autor, contenta-se em rascunhar pensamentos, como planos de viver e escrever: Saber desistir. Abandonar ou não abandonar — esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles que prosseguem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? Como, digamos, o próprio fim do mundo? Ou seja lá o que for, como a minha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desistência? (LISPECTOR, 1999, p. 14-15). O trecho acima revela uma tentativa de transcrição do pensamento. A profusão de infinitivos aponta para idéias em estado bruto, ainda sem ação, que são como que listadas: saber desistir, abandonar ou não abandonar. As diversas interrogações no meio das orações revelam uma caráter aparentemente caótico, se considerarmos as regras do discurso escrito, porém são imensamente eficientes quando se trata de impor à escrita um tom de pensamento em crise. Sempre se localizando num espaço de fronteira, percebemos que a escrita de Clarice opera um regresso àquilo que seria da ordem do pensamento e que, supostamente, é anterior à escrita, daí o caráter de transcrição do pensamento em sua forma bruta. Por outro lado, a constatação de que esse aparente regresso ao espaço do projeto da narrativa, ou seja, regresso aos planos iniciais que depois dariam origem à narrativa é uma ilusão da forma, é um efeito de sentido que se encaixa perfeitamente na macro-estrutura de Um sopro de Vida. Assim, o livro acaba por impor as matrizes estruturais do esboço: Este ao que suponho será um livro feito aparentemente por destroços de livro (p.20); do sonho: Tive um sonho inexplicável: sonhei que brincava com o meu reflexo (p.27); e da pulsação: Senti a pulsação da veia em meu pescoço, senti o pulso e o bater do coração e de repente reconheci que tinha um corpo (p.50), como elementos de incompletude, que se revelam mais autênticos em relação ao gesto da escrita. Tais matrizes atuam como índices de precariedade, de fronteira e de interrupção e se estruturam no livro fazendo-o reverberar uma atmosfera de caos e agonia, perpassados por um tom de escrita que oscila entre um vaticínio e uma prece, construindo verdades transcendentes e aparentemente ilógicas: Ângela.— Sou a contemporânea de amanhã. (...) De agora em diante eu quero mais que entender: eu quero surpreender, eu humildemente imploro que esse dom me seja dado. Eu quero entender o próprio entendimento. Eu quero atingir o mais íntimo segredo daquilo que existe. Estou em plena comunhão com o mundo. (LISPECTOR, 1999c, p.52) Notamos no trecho acima que noções que aparentemente insinuam uma transcendência (De agora em diante eu quero mais que entender) acabam por determinar a busca de uma imanência (Eu quero atingir o mais íntimo segredo daquilo que existe), o que leva, mais uma vez, esses extremos a um ponto em se misturam. Da mesma forma, o tom confessional concentrado num ‗eu‘ que é reiterado ostensivamente acaba por diluir-se num desejo de dispersão e de comunhão plena com o mundo. Dessa forma, todos os movimentos do livro acabam por ser dispostos em eixos contraditórios mas profundamente complementares, que conduzem sempre ao mesmo ponto: a insustentável posição do eu diante da linguagem e a preeminência dela na cena do livro. 1.1 Tensões entre sujeito e linguagem e a questão da autobiografia Faz-se aqui, de imediato, uma ponte cujo esclarecimento é necessário a este trabalho: o apontamento mútuo entre sujeito e linguagem. BENVENISTE (1958), esclarece: É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ―ego‖. A subjetividade de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor como ―sujeito‖. Define-se não pelo sentimento que cada um experimenta de ser ele mesmo (esse sentimento, na media em que podemos considerá-lo, não é mais que um reflexo) mas como a unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da consciência. Ora, essa ―subjetividade‖, quer a apresentemos em fenomenologia ou em psicologia, como quisermos, não é mais que a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem. É ―ego‖ que diz ego. Encontramos aí o fundamento da ―subjetividade‖ que se determina pelo status lingüístico da ―pessoa‖. (p. 286) Baseado, portanto, no fato de que 1) a subjetividade é a capacidade do locutor para se propor como sujeito e 2) essa capacidade transcende a totalidade das experiências vividas, podemos resgatar questões de inscrição do sujeito em Um sopro de vida e problematizar o fato de que este fenômeno é muitas vezes lido como evidência de uma autobiografia 3 . A investigação de um mecanismo confessional em Um sopro de vida mostrou-se, neste trabalho, uma questão secundária, ou, melhor dizendo, uma questão que subjaz tematicamente a estrutura do livro. Se por um lado podemos constatar um certo jogo com elementos autobiográficos, por outro lado, a leitura da uma rede de ambigüidades, de 3 Ver, por exemplo, as constatações de SÁ (1999), dentre as quais é possível ler um anexo, que trata especialmente de Um sopro de vida, denominado ―Uma personagem em busca do Autor-Escritor: Clarice Lispector‖. aparecimentos e desaparecimentos, de referências à vida de Clarice Lispector necessita ser vinculada a uma trama que dispõe essas questões numa teia de intensa contaminação, ou seja, numa estrutura em que qualquer índice de autobiografia traz sempre uma questão mais ampla: a questão do rastro, da inscrição, da tensão entre sujeito e linguagem: Eu sei que este livro não é fácil, mas é fácil apenas para aqueles que acreditam no mistério. Ao escrevê-lo não me conheço, eu me esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. Nunca te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos. (LISPECTOR, 1999c, p.20). É notável no trecho escolhido, única vez em que aparece uma referência clara à autobiografia, uma confissão de cunho temático. Ao anunciar que o livro não se trata de uma autobiografia, o narrador (ainda não declaradamente Autor) confessa um fato: vocês não sabem nada de mim. Ao anunciar nunca te disse e nunca te direi quem sou, notamos um desejo por confiabilidade, pois ele se reveste de um tom de quem poupa alguém de um erro, ou seja, de um tom de quem desarma uma armadilha, em última instância, um tom autobiográfico que assegura que a voz que fala, fala a verdade e desmascara intrigas, fala de uma posição de quem sabe o que fez e supõe a repercussão do que se passou 4 . No caso de darmos crédito a essa voz e associá-la à autora empírica, aceitaríamos a versão de que Clarice Lispector, ao escrever um livro muito parecido com uma autobiografia, conversasse, de dentro do livro, com possíveis leitores, sabendo, inclusive, que eles alimentam o desejo de saber quem ela é. 4 Encontramos uma referência a essa questão no DICIONÁRIO AURÉLIO ELETRÔNICO, no verbete ‗mentiroso‘ que cita o paradoxo atribuído a Eubúlides de Mileto (séc. IV a.C.), cuja forma mais simples é: se alguém afirma "eu minto", e o que diz é verdade, a afirmação é falsa; e se o que diz é falso, a afirmação é verdadeira e, por isso, novamente falsa, etc.; O Cretense. [Pode-se concluir ou que uma asserção é ao mesmo tempo verdadeira e falsa, ou continuar indefinidamente por recorrência ora a concluir que é falsa ora que é verdadeira.] Acreditar nessa versão seria justamente desarticular a tese ‗antiautobiografia‘ e ler o livro de Clarice Lispector como o narrador de Clarice Lispector indica. Porém, analisando a estrutura lingüística que abriga essa ‗confissão‘, notamos, por exemplo, a seguinte seqüência, formatada de maneira a sublinhar aspectos fonéticos, temos: Ao escrevê-lo → não me conheço, ↓ eu → me esqueço → de mim. ↓ Eu → que apareço → neste livro ↓ não sou eu. É possível identificar, na seqüência destacada, um mecanismo circular de reiteração do eu em direção ao me e ao mim, que indica um movimento combinatório entre pronomes de primeira pessoa que ora são colocados na posição de sujeito, ora na posição de objeto, recurso bastante expressivo no livro todo. A equivalência sonora que localizamos na coluna central revela uma progressão semântica, apoiada numa combinação da vogal fechada [e] com a sibilante [s]: não me conheço/ me esqueço / apareço. O abaixamento da vogal final de cada verbo [conheço para conheçu, etc] determina o prolongamento do som sibilante, já que esses verbos, na pronúncia, praticamente terminam com esse som. Essa combinação de sons instaura uma atmosfera de sussurro, muito próxima ao tom de uma oração baixa, uma reza, uma prece ou mesmo um vaticínio, como já notamos anteriormente. Essas três noções ficam subordinadas a uma circunstância bastante relativa: ao escrevê-lo. Ao escrevê-lo quer dizer ‗enquanto escrevo‘, ou ‗em razão de estar escrevendo‘, o que gera uma postura ambígua entre atividade x passividade, submissão x controle. Na mesma linha, conhecimento e aparição, valores afirmativos e afirmados, porque escritos, submetem-se às negativas do eu: não me conheço / eu que a apreço não sou eu. Já esquecimento, signo de valor negativo, porque indica perda, omissão, não figura negativado, apenas afirmado: eu me esqueço. Dessa forma, tudo que é escrito é imediatamente negado, tudo que é inscrito é, ao mesmo tempo apagado. O quadro em que diagramamos a citação, tentativa de materialização de um movimento de leitura, estabelece, por fim, uma relação, na primeira coluna, entre eu / Eu / não sou eu, mecanismo que ratifica esse movimento oscilante em relação à presença do sujeito. A visualização do emaranhado temático, semântico, sonoro e conceitual do trecho mostra que a fundamentação da discussão do problema da autobiografia assenta- se em questões advindas da própria tensão entre sujeito e linguagem, suscitando a dúvida recorrente do livro, ou seja, em que medida a linguagem pode esconder um sujeito e, por outro lado, em que medida um sujeito pode esconder sua linguagem, ou esconder-se em sua linguagem. A precariedade da posição do sujeito que fala no texto, seu caráter ativo ou passivo diante da linguagem, é mantida no texto de Lispector pela forma como o livro faz de seu próprio espaço o território da ruína, do escombro, daquilo que jamais fora terminado. Um sopro de vida possui uma estrutura bastante fragmentada, em que diversas formas de texto são costuradas como num projeto inacabado. Esse caráter pode nos conduzir a um fato que pode ser levado em: Clarice não publicou seu último livro, foi sua amiga Olga Borelli que concatenou os originais em 1978, no ano que se seguiu à morte da autora. Esse fato biográfico, ou tanatográfico, como diversos outros, se associa à isotopia criada neste livro póstumo e transforma essa combinação entre fato artístico, ou seja, o escrever sempre como algo rebelde a um acabamento, e o fato real, a morte do autor impedindo de antemão esse acabamento, numa combinação extremamente intensa para o leitor, que é obrigado a interagir com um sistema cuja única regra é a da traição. A traição ao leitor seria, portanto, o comportamento ambíguo desse sistema que, quando analisado como espaço de inscrição de um sujeito na escrita, revela-se como palco do assassinato desse mesmo sujeito e, quando analisado como despedida de um sujeito em risco de morte, revela-se como espaço de nascimento: E a morte já não pode mais comigo porque EU NÃO TENHO MAIS MEDO! Nado e refuljo em estados de vibratória fruição divina. (...) Ah, como é ampla a eternidade. Pois foi isso o que eu vi: a amplidão serena da eternidade, o gosto do eterno. Então o corpo antes todo fraco e trêmulo tomou um vigor de recém-nascido no seu primeiro grito emplástico no mundo da luz. (LISPECTOR, 1999c, p.136). É mantendo a escrita como local de subversão do medo da morte que assombra o livro que o efeito de transformação do ser em linguagem torna-se representativo. No trecho como é ampla a eternidade, perdemos o contato humano com o sujeito dessa frase, dada a impossibilidade da experimentação desse estado de eternidade por um sujeito empírico. Porém, transformando essa voz que fala na voz da própria escrita, o vínculo permanece, já que o próprio ato de leitura dessas palavras, que no momento são somente palavras, ou seja, totalmente libertas do ser que as escreveu, é a prova de que há algo de imortal nelas, que é próprio da natureza da escrita. A escrita funciona, portanto, como uma escrita para o futuro, um deslocamento para fora da vida e da morte e para dentro do livro, palco mal disfarçado que conta uma história que não é senão a de seu autor: Autor. — Você — digo a qualquer pessoa — você é culpado das formigas roerem minha boca destroçada elo mecanismo da vida. Ângela não morre porque já morre em vida: é assim que ela escapa do final fatídico em tendo uma amostra de morte total em dias cotidianos. (LISPECTOR, 1999c, p. 144). O trecho acima demonstra, de maneira exemplar, esse deslocamento para no tempo e no espaço: a voz que fala, embora fale no presente, refere-se a uma circunstância em que a morte já estaria no passado: as formigas roerem minha boca, desloca-se para o espaço do túmulo. O signo ‗boca‘, índice da parte subjetiva inerente à voz, ou seja, referência ao sujeito da voz, aparece em estado de deterioração, como que num flagrante expressionista de um estado completamente impossível – mas que representa, de modo enfático, uma situação em que a toda a questão da escrita e do autor é posta: escrever é sempre o passado pressupondo um futuro, visto em cada ato de leitura como um presente precário. Sendo, portanto, assunto do livro, sujeito e sacrifício do livro, o autor promove a dobra que possibilita o ato de representar-se. Nesse sentido, afirma DERRIDA (2002, p.55): Portanto o poeta é na verdade o assunto do livro, a sua substância e o seu senhor, o seu servidor e o seu tema. E o livro é na verdade o sujeito do poeta, ser falante e conhecedor que escreve no livro sobre o livro. Este movimento pelo qual o livro, articulado pela voz do poeta, se dobra e se liga a si, torna-se sujeito em si e para si, este movimento não é uma reflexão especulativa ou crítica, mas em primeiro lugar poesia e história. Pois o sujeito se quebra e se abre ao representar-se. Reverberando o mesmo tom de A hora da estrela, história que acontece em estado de emergência, Um sopro de vida apresenta frases enigmáticas, porém com uma estrutura sintática simples, que realçam o caráter declamatório da linguagem, iconizando a encenação que fundamenta o signo literário: a obra se abre ao representar-se. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos. (LISPECTOR, 1999c, p. 13) O trecho acima é primeira página corrida do texto e manifesta esse tom. As pausas que, sintaticamente, poderiam ser marcadas por vírgulas, são sublinhadas com ponto final, inserindo uma certa duração ao discurso, típico da interpretação de um ator. A intensa reiteração de alguns signos e de seus correlatos, como por exemplo, ‗salvar a vida‟, ‗minha própria vida‟, ‗Viver é‟, ‗Vivam os mortos‟, cria um amálgama que sugere intensa coesão, porém essa coesão nem sempre acarreta coerência. Aliás, uma certa incoerência colabora para a urdidura de uma tensão, advinda de uma perceptível distorção da realidade que fundamenta o discurso do livro, e agrega à sua atmosfera uma certa loucura: Peço vênia para passar. Eu me sinto culpado quando não vos obedeço. Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam. (LISPECTOR, 1999c, p.13). A ambigüidade da frase ―peço vênia para passar‖, ou seja, a ambigüidade entre ‗peço permissão‘ e ‗exijo cumprimentos‘ reforça a instabilidade entre submissão e autoridade, além de contribuir para o caráter performático da narrativa, dado o exagero do gesto de ‗pedir vênia‘, essencialmente actorial. Observamos, ainda, que logo após essa frase, que encerra um exagero próximo da mímica, temos uma seqüência disfórica que desarticula a superficialidade do gesto pretensamente cortês. Alternar entusiasmo e reverência a um certo pessimismo, como se o narrador não conseguisse manter o teatro de artificialidade a que se propõe, acaba por movimentar o pêndulo da tensão entre inscrição e apagamento, muitas vezes lida como índice de autobiografia. 1.2 – Inscrição e apagamento e o problema da corrosão da origem Constatada, portanto, a tensão indissolúvel entre inscrição e apagamento, podemos tatear o universo de Um sopro de vida pelo viés da discussão do problema, destacado no livro, entre o ser e a linguagem, ou seja, em que medida a linguagem torna-se um construto que afasta do sujeito das coisas, ou, por outro lado, até que ponto a própria linguagem é capaz de denunciar a possibilidade de visão além dela mesma. Nesse sentido, desestabilizar a posição da voz que fala no livro aciona um problema que merece mais atenção, ou seja, o processo de corrosão da origem que subjaz a escritura, a força que inscreve no livro um rastro de presença na mesma medida em que o apaga, conforme palavras de DERRIDA (2002, p. 55): Este [o poeta] encontra-se, na própria experiência de sua liberdade, entregue à linguagem e liberto por uma palavra da qual é contudo senhor (...) A escritura escreve-se mas estraga-se também na sua própria representação. Assim, no interior deste livro, que se reflete infinitamente a si próprio, que se desenvolve como uma dolorosa interrogação sobre a sua própria possibilidade, a forma do livro representa-se a si própria. Representar é, portanto, representar-se e representar uma história de dilaceramento, em que o sujeito se quebra em dois: escriba e silêncio, ou seja, aquele que apenas anota algo que outro lhe dita (movimento posterior à palavra) ou então aquele de onde provêm as palavras (movimento anterior à palavra): Autor.— Além da minha involuntária mas incisiva função de pobre escriba — além disso é o silêncio que invade todos os interstícios de minha escuridão plena. (...) (LISPECTOR, 1999c, p. 85) Esse ardiloso jogo acaba por levar a um resultado bastante intratável, próximo à ruína, à estrutura de um texto teatral teatralizando-se a si mesmo, espaço não de alternância mas de convivência entre o pessoal e o impessoal, a primeira e a terceira pessoas, o sujeito e objeto, o final e a origem, a linguagem e o sujeito: É assim que desta vez me ocorre o livro. E, como eu respeito o que vem de mim para mim, assim mesmo é que eu escrevo. O que está escrito aqui, meu ou de Ângela, são restos de uma demolição de alma, são cortes laterais de uma realidade que se me foge continuamente. Esses fragmentos de livro querem dizer que eu trabalho em ruínas. (LISPECTOR, 1999c, p.20) A intensa grafia do ‗eu‘ não ameniza diversos aspectos de assujeitamento, como, por exemplo, a imposição do ‗mim‘, pronome oblíquo, que ocupa lugar de objeto, como analisamos anteriormente. ‗Eu‘ acaba por ligar-se ao gesto: é sempre eu que escrevo, porém aquilo que vem, vem para mim. Assim como ―ocorre o livro‖, ou seja, o livro trata-se de um acontecimento. Porém, uma evidência mais clara dessa dupla focalização, está na duplicação pronominal em uma realidade que se me foge. Novamente, a articulação de vários verbos a pronomes oblíquos de primeira e terceira pessoa demonstra a erosão do sujeito e em sua maneira de apreender a realidade: Autor.— Mas não-eu é magnífico e me ultrapassa. No entanto ela me é eu. (p.37). Criando a personagem Ângela como metáfora da palavra literária em sua existência material, o Autor acaba inscrevendo-se nela e esvaindo-se com ela, a ponto de tornar-se uma consciência que apenas coincide com o presente da linguagem: Ângela é minha vertigem. Ângela é minha reverberação, sendo emanação minha, ela é eu. Eu, o autor: o incógnito. É apenas por coincidência que eu sou eu. (LISPECTOR, 1999c, p. 30) É dessa forma que Ângela passa a metaforizar a palavra e, ao mesmo tempo, o nascimento da palavra, a inspiração, o sopro, assim como nas considerações de Derrida a respeito de Artaud: A generosidade da inspiração, a irrupção positiva de uma palavra que vem não sei de onde (...) essa fecundidade do outro sopro é o impoder: não a ausência mas a irresponsabilidade radical da palavra, a irresponsabilidade como poder e origem da palavra. Relaciono-me comigo no éter de uma palavra que me é sempre soprada e que me furta exatamente aquilo com que me põe em contato. A consciência da palavra, a consciência pura e simples, é a ignorância de quem fala no momento e no lugar em que profiro. (DERRIDA, 2002, p. 118) Evocando essas diversas questões, Um sopro de vida: pulsações torna-se um livro complexo e bastante singular já que, desde a circunstância de sua produção e divulgação, passando pela sua forma pouco tradicional de apresentação e culminando com a pouca recepção crítica que teve – se comparado a outros livros de Lispector -, lança o pesquisador a uma série de desafios e polêmicas, atrelados, por exemplo, à discussão da forma última do livro, em relação à qual a interferência de Olga Borelli torna-se problemática. Um outro ponto chave no que diz respeito a este livro é seu título quase que coloquial, e cuja significação é facilmente associada a questões autobiográficas, inclusive pelo subtítulo ‗pulsações‘, que pode remeter a considerações últimas e fragmentárias de um autor à beira da morte. Porém, vendo nesse título um alto potencial de abertura a diversos processos de significação, pretendemos nos deter um pouco mais nessa questão, traçando relações que se revelaram pertinentes a essa linha de análise. 1.3 Paradigmas de contaminação entre as esferas de luz e de sombra em SV Compartilhando a atmosfera agônica de A hora da estrela, em que até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos de geléia trêmula (LISPECTOR, 1998b, p.12), SV sustenta-se no difícil limite que percebe o jorrar do sangue como índice imediato da vida que pulsa – ainda – mas o percebe, paradoxalmente, como presságio da morte que se aproxima. Localizado sempre nesse espaço obscuro, nesse esboço com luz e sombra, SV problematiza ininterruptamente o vínculo entre criação e morte, recrutando essas duas instâncias como faces de um mesmo processo oscilante mas completo, um processo pulsante. O resultado mais evidente dessa escrita (cuja tinta é exatamente esse sangue que é vida e veneno) é uma esteira de impressões que mesclam uma fina apreensão da realidade com uma profunda distorção dos fatos. A técnica já pormenorizada por NUNES em relação ao primeiro romance, que sintoniza a apreensão artística da realidade na ficção moderna, cujo centro mimético é a consciência individual enquanto corrente de estados ou de vivências (1995, p.13), recebe uma camada que evidencia o „trauma‟ que a consciência desses temas desperta naquele que escreve, como analisa RONCADOR (2002, p.14), já com base nos últimos escritos de Clarice Lispector. E é nesse ritmo oscilante que a metáfora básica do texto é construída e disseminada: o sopro de vida, gesto que resulta na evidenciação da fragilidade diante da morte e, ao mesmo tempo, na reiteração da vida através da criação, nesse sentido poderíamos dizer que o livro trata da palavra com luz ao mesmo tempo em que projeta o artista como sombra da palavra. Essa metáfora pode ser lida como um leitmotiv, se tomarmos sob uma perspectiva mais abrangente o termo recolhido por TOMACHEVSKI (In: EIMKHENBAUM, 1973, p.180), conforme podemos ler a seguir: ―Quando o motivo é repetido mais ou menos freqüentemente e sobretudo quando é livre, isto é, exterior à fábula, fala-se de um leitmotiv.‖ Aproveitando-se de seu aspecto livre, relacionado ao gênesis, o sopro de vida singularizado no texto apresenta-se como uma poderosa metáfora de começo e fim, uma imagem capaz de envolver o sentido da morte e tornar-se inclusive o seu oposto – vida – como o título reiterará num mecanismo infinito, ou seja, os motivos vida / morte figurarão numa só identidade, capaz de abarcar a composição como um todo e que se dissocia e se multiplica à medida que avançamos na leitura (horizontal e verticalmente). É o que podemos constatar já nos primeiros momentos: Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos. (grifo meu) (LISPECTOR, 1999c, p.11). O impacto trazido pela força dessas que são as primeiras palavras do livro estabelece um processo intensificador que, ambicionado por Clarice, acompanhará toda a narrativa: Corto o dispensável e procuro apenas o clímax de mim. Cada frase minha ou de Ângela quero que diga. Digam o quê? Só me interessam em clímax ou o auge. Mesmo que esse auge seja uma pergunta sem resposta. (BORELLI, 1981, p.86) De fato, as frases curtas, as imagens duras, intensificadas por uma profunda consciência da linguagem conotativa conferem a profundidade necessária a uma obra complexa e perturbadora. É preciso sublinhar, por exemplo, na abertura do livro, a primeira palavra: ―isto‖, eternizada por Fernando Pessoa como título de um famoso poema justamente porque aponta mais para um espaço do aqui e do agora da linguagem (porque é um dêitico), do que para qualquer referente externo, anunciando o acontecimento da linguagem, ou seja, seu início e abertura e também sua inerência. Quando avançamos pelos predicativos deste ―isto‖ que em si já é vazio, temos um acúmulo de índices de maus presságios: ―o grito da ave de rapina‖, ―o beijo no rosto morto‖. Essas imagens, portadoras de uma mensagem inquietante, são intensificadas pela forma como são manipuladas pelo poderoso discurso de Lispector: o grito da ave de rapina de alguma forma traz um índice de humanização, criando uma encenação sombria. Da mesma forma, o beijo no „rosto morto‟ é diferente do beijo no ‗rosto do morto‘ porque propõe um contato imediato com a morte, sem preposição. Como vemos, o intrincado tecido (a mortalha) entre forma e conteúdo e organização (que, em sentido amplo é outra forma e outro conteúdo) carrega, ao mesmo tempo que uma intensa luz que é fruto de um conhecimento sobre si mesmo, como que uma sombra, transfigurada sempre na imagem que sobra: a morte. Na última frase do período destacado, ―Vivam os mortos porque neles vivemos‖, temos pelo menos quatro possibilidades de leitura: duas delas calcadas na percepção do sintagma ―Vivam os mortos‖ como sinônimo de saudação, felicitação, aplauso. Assim, a oração causal que segue, ―porque neles vivemos‖, pode ser lida como a prova de uma posterioridade e a confiança na persistência da memória (vivemos segundo a memória que temos daqueles que já se foram), o que dá à felicitação um tom positivo e tradicionalista. Por outro lado, podemos entender essa segunda oração como a afirmação de um apego ao mórbido (vivemos centrados neles), o que dá a essa saudação um aspecto vilipendiador e soturno, como se vivêssemos para eles. Assim, temos a) o louvor da eternidade, da memória e b) o louvor da morbidez. Mas o sintagma ―Vivam os mortos‖ guarda ainda um aspecto ainda mais transgressor, porque, lido em seu modo imperativo, indica um apelo à ressurreição. Assim, subordinada ao mesmo mecanismo duplo, a significação é novamente reavalidada em a) afirmação de uma posterioridade (num desejo de que a memória sobreviva, por exemplo) e b) revelação de um desejo mórbido de ressuscitamento, de transgressão das leis naturais de vida e morte. Oscilando sempre em estruturas duplas e complementares, o texto clariceano promove a articulação dos paradigmas de luz e sombra, o que aponta para a isotopia inscrita no título do livro, ou seja, Um sopro de Vida que origina, portanto, um sopro que é vida ou um sopro que resta da vida, ou seja, o resquício de vida no limiar da morte. Conjugando essa duplicidade, a morte habita o livro como condição do ato criador, e este, por outro lado, funciona como resistência e rebeldia a ela. Nesse sentido, a convocação dos termos corpo e alma, que seriam tão previsíveis nesse contexto, se abre a possibilidades novas, atreladas à macro-estrutura do livro, conforme mostra a seqüência a seguir: A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra da minha alma. Este livro é a sombra de mim. (LISPECTOR, 1999c, p. 11). Conforme mostra a diagramação, A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra da minha alma. Este livro é a sombra de mim. a reiteração do sentido do corpo como sombra da alma (ora na posição de sujeito, ora na posição de predicativo do sujeito), além do aspecto circular gerado pela inversão dos termos, redistribui a importância desses elementos, pois ambos ocupam a posição de tópico discursivo. Análogo aos processos de reversão paródica analisados por SÁ (1999), o procedimento que desloca o aspecto corpóreo do ser para uma esfera menos palpável (a sombra) reitera a complexidade dessas duas instâncias que, normalmente, são assim concebidas: uma sendo visível, palpável, perecível (o corpo), e a outra, invisível, intocável, perene (a alma). Frente à morte, ao aniquilamento do corpo, o apego ao espírito como sobrevivência é uma alternativa serena, porém, o que o texto de Clarice nos propõe é que há uma profunda interdependência dessas instâncias, o que torna essa circunstância muito mais tensa e problemática: No ano 40.000 estou tão morta. Que nem você. Cuidado, muito cuidado, meu senhor. Socorro, oh céu azul inclemente. Eu disse o mais calminha que pude: so-cor-ro. Está ficando escuro. E eu sem comida nem bebida. Fiquei histérica, desculpe. Sou por acaso por avesso? Não, que Deus me acuda. Quero ser pelo lado direito, está bem? Mas está tão difícil. AUTOR: — Você — digo a qualquer pessoa — você é culpado das formigas que roem minha boca destroçada pelo mecanismo da vida. Ângela não morre a morte porque já morre em vida: é assim que ela escapa do final fatídico em tendo uma amostra de morte total em dias cotidianos. (LISPECTOR, 1999c, p.144). Ao criar um presente discursivo em que autor e leitor já estão mortos e imediatamente voltando a momentos em que essa morte se vivifica em fatos cotidianos somos levados a considerar essa experiência de uma maneira pessoal, sem recorrer ao coletivo impessoal das visões transcendentes. Portanto, ao transcrever corajosamente a experiência agônica e distorcida das ―formigas que roem minha boca‖, o texto confunde esferas de consciência e inconsciência que tradicionalmente aparecem estritamente separadas. Ou seja, não pode haver consciência no corpo além túmulo, até porque essa seria uma experiência de horror. Mas é justamente essa experiência de horror que é trazida como problematização, ou seja, em linhas gerais, temos um mecanismo ameaçador que projeta luz em espaços em que ela não pode estar: no corpo morto, no futuro ilógico, no presente da escritura (que não existe por definição, já que é sempre passado). SV, portando, trará em seu processo o mecanismo de inserção e subversão do mito judaico-cristão, criando uma simetria entre a figura do artista (Autor) e a figura de Deus. Essa relação será problematizada à medida que a própria personagem do Autor for se transformando e se tornando diferente da imagem que, normalmente, temos de um Deus (onisciente, onipotente, onipresente), como no exemplo a seguir: Minha pergunta é do tamanho do Universo. E a única resposta que me preenche a indagação é o próprio Universo. (...) Quero justificar a morte. Será que, depois que a gente morre, de vez em quando acorda espantado? (LISPECTOR, 1999c, p.145) Em segundo lugar, a aproximação entre a obra de Lispector e o discurso bíblico lança uma série de questionamentos a respeito da idéia que normalmente temos a respeito da categoria autoral, tradicionalmente considerada como uma instância quase demiúrgica. É nesse sentido que a escritura de Clarice Lispector opera a natureza complexa do título, aproveitando-se dela, de sua dupla herança, fazendo com que o leitmotiv que é o sopro de vida seja disseminado em sua forma dialética por toda uma escritura e por todo um pensamento sobre a escritura, formando uma estrutura artística complexa – estrutura essencialmente pulsante. Emoldurada de forma tão exata pelo título, essa escritura, portanto, fica abrigada num formato em que sua significância possa ser reiterada ad infinitum, como anunciam as primeiras frases do texto: Existe por acaso um número que não é nada? Que é menos que zero? Que começa no que nunca começou porque sempre era? E era antes de sempre? Ligo-me a essa ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. (LISPECTOR, 1999c, p.13). A busca desse lugar para além de qualquer sistema organizador, mas entrevisto por meio de um sistema organizador, guiará, portanto, esse universo de libertação e ‗alegria absurda‘, como diz uma das epígrafes do livro 5 , porém determinará a ordem de sacrifício daquele que dá a vida, abrindo mão dela, por diversas vezes. É nesse absurdo alegre porém irracional que Lispector inscreve reiteradamente seu último projeto artístico. 5 Um sopro de Vida traz a seguinte epígrafe, atribuída a Nietzsche: ―A alegria absurda por excelência é a criação‖. II – A LUZ DO TEXTO: A CICATRIZ DA MODERNIDADE Por outro lado, aquilo que Baudelaire via como “perda da auréola” na configuração de um certo tipo de poeta, que não era senão ele mesmo, explicita as conseqüências sociais deste processo de estranhamento da consciência na criação. João Alexandre Barbosa Lido como um texto complexo e contaminado pela consciência de sua capacidade de debilitar sistemas unidirecionais de leitura, SV enredará uma série de questionamentos acerca do ser, da criação, da linguagem, etc e convocará uma discussão que se projeta para além de um livro ou mesmo de uma obra inteira: o instante-já da criação (de um produto estético e de uma potencialidade de significação) a partir do instante-já da morte (de um ente produtor e de um resultado previsível), como processos e percursos necessários à existência de algo que prescinde ao mesmo tempo de uma origem e de um final, ou seja, a escritura. Essa intensa mobilização de problemas universais fará com que este último livro escrito por Lispector, algumas vezes, seja interpretado como ―fragmentário e desconexo‖ (SÁ, 1999, p.206). Porém, incursionando por um outro caminho, refletiremos sobre as possíveis conexões que habitam o texto clariceano, relacionando-o a certa uma maneira de fazer e pensar a literatura, maneira essa que começa a ser iluminada com os ‗fundadores‘ da chamada Modernidade. Dando início, portanto, ao desmoronamento de uma série de utopias em torno das possibilidades de progresso, tanto no âmbito social como no intelectual, aquilo que conhecemos como Modernidade, como a entendia, sobretudo, Charles Baudelaire, inaugura ―uma nova relação da arte e da poesia com a natureza, a sociedade e a história‖ (CHIAMPI, 1991, p.14). Nessa nova relação está inscrita uma forma de pensar o texto, uma possibilidade de pensá-lo tornando-o liberto de uma série de determinações a que ele tinha sido aprisionado até o contexto romântico. Como afirma CHIAMPI (1991), Se, na origem da modernidade estética o conceito de Friedrich Schlegel de ―poesia universal progressiva‖, por exemplo, se interpreta com a unificação da poesia com a filosofia —, vale dizer, da imaginação com a razão — para intervir na vida ou para poetizá-la, depois de Baudelaire é sensível que a reflexão sobre o poético se vai concentrando cada vez mais na idéia do poema como realidade em si, auto-suficiente. (p.17). Esse alheamento da linguagem em relação a tudo que a cerca é uma questão complexa, ainda em pauta, mas que contribuiu intensamente para a história da linguagem no sentido de possibilitar uma grande revolução voltada para um conhecimento de suas bases, de sua materialidade, de sua inerência e, antecipando, de seu poder de transformação. Avaliar a potencialidade de uma estrutura que tem um funcionamento autônomo, em última instância, ressoará na busca pela natureza dessa estrutura e esse movimento evidenciará o fato de que a linguagem não traduz (aliás, nem a tradução traduz), mas cria a possibilidade de uma dia ser. Como iniciadora de uma lógica de pensamento, a Modernidade discutirá uma série de pressupostos que, se esmiuçados pelas recentes teorias, já figuravam no pensamento do final do século XIX. Esse percurso tem por objetivo compreender as conquistas no sentido das possibilidades de expressão artística de um sistema epistemológico que o texto de Lispector certamente insere e discute. Segundo PAZ (1984), Em todas as sociedades as gerações tecem uma tela feita não só de repetições, como de variações; e em todas elas realiza-se, de um modo ou de outro, aberta ou veladamente, a ‗querela dos antigos e dos modernos‘. Há tantas ‗modernidades‘ quanto épocas históricas. No entanto, nenhuma sociedade ou época alguma denominou-se a si mesma moderna – salvo a nossa. (grifo do autor) (p.39) Ainda segundo o autor, o conceito de modernidade se relaciona à cisão entre Deus e o Ser, o que, de alguma forma, implica na crença na força da razão como princípio suficiente, como base do mundo. Porém, explica o teórico, esses sistemas não tardam a ser substituídos por outros, nos quais a razão é sobretudo crítica. Origem e vítima da derrisão do pensamento crítico, a modernidade se coloca como o tempo de separação: daquilo que era seguro, daquilo que era imutável, daquilo que era perene. Porém, paradoxalmente, a modernidade tornou-se uma lógica se que arrasta, de modo que estamos aprisionados a ela, conforme questiona PAZ (1984): A literatura moderna é moderna? Sua modernidade é ambígua: há um conflito entre poesia e modernidade que começa com os pré-românticos e se prolonga até nossos dias.(p.52) É evidente que tais considerações são conflituosas no pensamento acadêmico atual, que alguns consideram indiscutivelmente pós-moderno. Porém, as finalidades que justificam a existência de discussões que adotem uma nomenclatura ou outra não representam o escopo deste trabalho. Em razão disso, nos apoiaremos na premissa elaborada por PAZ (1984, p.46) segundo a qual o conflito entre poesia e modernidade que começa com os pré- românticos e se prolonga até nossos dias. Fica claro, no entanto, que interessa a este trabalho uma vinculação aos pressupostos que determinaram mudanças radicais no pensamento como um todo a partir movimento conhecido como Iluminismo e que, ainda hoje, interferem no panorama estético, filosófico e político. É necessário reconhecer, no entanto, que o pensamento originado no Iluminismo foi objeto de uma intensa exacerbação (a crítica dessa exacerbação, para alguns, se chama pensamento ‗pós-moderno‘, em função do afastamento que opera em relação a seu próprio nascimento). Como esclarece LYOTARD (1993), A modernidade, uma modernidade pelo menos (Agostinho, Kant), é crítica, elabora a finitude, dá a razão que proíbe raciocinar sobre o fundamento do raciocínio. A pós-modernidade seria antes empírico- crítica ou pragmatista: a razão da razão não pode ser dada sem círculo, mas a capacidade de formular regras novas (axiomáticas) descobre-se à medida que ―a necessidade‖ delas se faz sentir. (p.77) Em outras palavras, a pós-modernidade se verifica a partir de uma compreensão mais abrangente do estatuto do pensamento enquanto movimento circular, ou seja, que se desconstrói na medida em que é construído. Nesse sentido, este trabalho, no momento em que observa as relações do sujeito com o pensamento, ou do autor com o texto, ou do poeta com a linguagem literária, não pode negligenciar a revolução ocorrida na passagem do século XIX para o século XX, ou seja, momento em que avaliamos o começo de um certo tipo de relação entre o poeta e a linguagem da poesia e, mais do que depressa, entre o leitor e o poema. (...) Entre o poeta e linguagem, o leitor do poema deixa de ser consumidor para se incluir como latência de uma linguagem possível. (...) Entre a linguagem da poesia e o leitor, o poeta se instaura como operador de enigmas, fazendo reverter a linguagem do poema a seu eminente domínio: aquele onde dizer produz reflexividade.(BARBOSA, 1986, p. 14) Considerando em primeiro lugar três instâncias (poeta – linguagem – leitor), o teórico deixa em branco dois espaços, que logo aparecem como complicadores: entre o poeta e a linguagem, o leitor se coloca como finalidade pressuposta, como resultado já inscrito. Além disso, essa instância aparece também como outra face da instância do poeta, que é ―leitor da história de seu texto‖. Esse é o primeiro espaço em branco. No próximo intervalo, entre a linguagem da poesia e o leitor, é o poeta que ressurge como elo fetichizado, o operador de enigmas, necessariamente fragilizado em relação à força daquilo que se instaura a partir dele. Mediando, portanto, espaços movediços, o artista moderno lidará como uma espécie de dialética da continuidade, que se expressa na explicitação de sua consciência em relação à precariedade de sua posição como origem dos sentidos de sua obra e, ao mesmo tempo, na constatação da alta tensão corrosiva da consciência enquanto sintoma de uma leitura incessante.(BARBOSA, 1986, p.15). Ao projetar, portanto, na figura do Autor, uma personagem marcada pelos conflitos em relação ao ato criador, Lispector abre um precedente para alegorizar as tensas relações entre as formas de inscrição do sujeito no texto e o próprio texto. Esse problema, também desenvolvido em A hora da estrela, narrativa cuja complexidade crítica toca em pontos variados de discussão (por exemplo, a miséria social e humana, a ―utilização‖ que o intelectual faz dessa miséria quando escreve sobre ela, o lugar marginal do artista na sociedade, etc), abre-se, em SV, a possibilidades mais abstratas, lançando-o a um projeto quase que exclusivamente metaficcional. Será, portanto, em função de sua estrutura explicitamente metalingüística (na qual, por exemplo, um personagem é nomeado de acordo com a categoria que representa – Autor), que SV irá revelar-se como um legado crítico-ficcional, capaz de assinalar, de forma implacável, a consciência artística dessa autora que um dia revelou ser uma dona-de-casa que criou os filhos com uma máquina de escrever no colo. Assim, ao acompanharmos a trajetória dessa personagem complexa – o Autor – enveredamos necessariamente pelo caminho da metalinguagem, ou, como afirma BARTHES (2003, p.29), pelo caminho trágico da pergunta edipiana que a literatura se faz: quem sou eu. SV endossa, portanto, as seguintes palavras do ensaísta francês: a verdade da nossa literatura não é da ordem do fazer, já não é mais da ordem da natureza: ela é uma máscara que se aponta com o dedo: Minha vida me quer escritor e então escrevo. Não é por escolha: é íntima ordem de comando. E assim que percebi o sopro de vida que fez de mim um homem, sopro em você que se torna uma alma. Apresento você a mim, te visualizando em instantâneos que ocorrem já no meio de tua inauguração: você não começa pelo princípio, começa pelo meio, começa pelo instante de hoje. (LISPECTOR, 1999c, p.29). Podendo localizar nesse ‗você‘ com quem o discurso evidentemente dialoga o próprio discurso literário, esse trecho traz uma profunda reflexão explícita em relação à literatura e seus métodos, seus objetivos e fracassos, sua contingência, o faz deste livro um projeto marcado pelo tom ensaístico, em que certas posições a respeito do que é escrever tornam-se argumentos de uma tragédia, a tragédia do escritor moderno. No cerne dessa problemática, SV se estabelece, portanto, como uma forma possível de articular essas tensões, agrupando discursos em núcleos ficcionais paralelos: Autor e Ângela, sua personagem. Essas instâncias organizarão pelo menos cinco espaços de significação, aqueles mesmos entrevistos por BARBOSA (1986) e que podem ser expressos, ainda que de forma incompleta, nos seguintes itens: autor, imagem do escrever, linguagem escrita, imagem do ler, leitor. Tudo que escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura. (...). Às vezes a sensação de pré-pensar é agônica: é a tortuosa criação que se debate nas trevas e que só se liberta depois de pensar — com palavras. Vós me obrigais a um esforço tremendo de escrever; ora, me dê licença, meu caro, deixa eu passar. Sou sério e honesto e se não digo a verdade é porque esta é proibida. Eu não aplico o proibido mas eu o liberto. (LISPECTOR, 1999c, p. 18). Articulados, portanto, no plano geral da narrativa, tais instâncias colaborarão para fazer do texto clariceano mais do que uma história expressa por meio da linguagem escrita; ele será também a história da linguagem escrita e das categorias implicadas nela. Ao entrar em contato como uma escritura como a praticada por Lispector, prioritariamente em seus últimos livros, notamos a grande relevância da figura do artista, representada em SV pelo personagem Autor, que conta uma história com poucos fatos sobre Ângela Praline, ao mesmo tempo em que conta a sua história, que se confunde com a história da origem do texto. Aqui uma redundância se faz necessária: quando dizemos que o Autor conta explicitamente a história da história, ou seja, quando ele promete iluminar os bastidores de uma história que seria ―a principal‖, temos a encenação de algo que é subliminar a qualquer história contada: a inscrição de uma historicidade textual na obra. Novamente, essa constatação aponta para uma questão bastante produtiva no pensamento sobre a linguagem (literária ou não), ou seja, a interdependência entre discurso e sujeito. Outra questão a que se alude, nessa linha de pensamento, é a impossibilidade de isolamento de um texto, já que esse sempre efetuará uma mesaliance com textos anteriores. Essas duas perspectivas centram num impasse a questão da autoria, ou pelo menos, as formas tradicionais de abordagem da autoria, ou seja, aquelas que lêem a figura do autor como centro irradiador de significados premeditados. Pensando a relação do sujeito com o texto clariceano como um movimento circular, em que se projeta, no cerne dos problemas do escrever, a figura daquele que escreve. E a figura daquele que escreve, incessantemente, projeta a imagem do escrever. Dessa forma, esse ‗sujeito discursivo‘ posiciona-se num limite que se coloca no horizonte da própria escritura, como uma margem que avança à medida que avançamos em direção a ela, revelando, em última instância, que o espaço ficcional, embora esboce um limite, acaba por ampliar sua área na medida em que a perseguimos. A narrativa, dessa forma, articula uma série de questionamentos que acabam por problematizar as fronteiras entre ficção e realidade, causando, por meio desses questionamentos, uma reflexão no próprio leitor, arbitrariamente deslocado para um pantanoso mundo ficcional, ou seja, no momento em que o leitor identifica-se com o Autor e considera a hipótese de também ser personagem, ou seja, de pertencer a um mundo sobre o qual ele não tem domínio (e há tantos indícios para se crer nisso), ele acaba de morder a isca do texto. Entramos numa cadeia infinita de relações, sempre inseguras pelo fato de uma parte nunca ser dita, somente insinuada. Por outro lado, a empatia com a personagem Ângela leva-nos a uma descoberta do próprio texto como personagem do livro, num paralelo entre Ângela e palavra soprada pelo autor. 2.1. Auto-retrato: o rosto e o texto ÂNGELA A última palavra será a quarta dimensão. Comprimento: ela falando Largura: atrás do pensamento Profundidade: eu falando dela, dos fatos e sentimentos e de seu atrás do pensamento. Eu tenho que ser legível quase no escuro. (LISPERCTOR, 1999c, p. 25). A citação acima funciona como uma espécie de abertura de SV e figura no início da parte que se intitula ―O sonho acordado é que é a realidade‖ e está disposta na parte superior de uma página em branco. O campo semântico que norteia a escolha do léxico parece combinar conceitos relacionados à técnica da arte pictórica (comprimento, largura e profundidade). Numa espécie de roteiro pouco preciso, em que aparecem termos recorrentes da poética clariceana, como ―quarta dimensão‖ e ―atrás do pensamento‖. Como uma referência ao discurso da técnica, esse roteiro pode ser lido segundo um viés irônico (se recebido como encenação paródica de um projeto falho), pois, embora simule um caráter objetivo, sabota essa mesma objetividade quando contrasta um sistema métrico a resoluções tecnicamente vagas, como o espaço do ―atrás do pensamento”. Visto dessa forma, essas anotações pré-textuais podem ser lidas como uma subversão da necessidade de premeditação lógica dos efeitos de uma obra, já que Clarice, segundo Borelli (apud LISPECTOR, 1988, p. XXIII): quando escrevia não pensava num possível leitor e nem mesmo em si: “é a coisa que importa”. A sobreposição de um esquema técnico a um discurso quase que coloquial ―eu falando dela, dos fatos e sentimentos...‖ afirma a existência de dois pólos diversos e promove uma contaminação entre eles. Esses dois pólos podem ser pensados como modelos de concepção crítica da arte. Num primeiro momento, a apreensão do texto revela um esvaziamento da objetividade da técnica, o que indicia uma postura que busca minar a idéia de que uma obra é fruto predominantemente do intelecto, e isso equivale a endossar a afirmação da autora em relação à sua própria obra. Por outro lado, a própria inserção dessa postura na obra pode significar justamente o contrário, ou seja, um apontamento crítico e articulado para a consciência do autor em relação aos procedimentos mobilizados por ele em sua própria arte - o que problematiza a idéia de que sua obra seja resultado apenas de uma intuição. Essas questões se ligam à conhecida discussão proposta por VALÉRY (1991, p. 216) em Poesia e pensamento abstrato 6 e a forma como elas aparecem problematizadas no texto parecem evidenciar a idéia de os verdadeiros artistas são sempre conscientes de seus projetos estéticos e, necessariamente, críticos em relação a eles. Assumindo essa postura, olharemos para o texto clariceano como extremamente consciente de seus métodos e trabalharemos a hipótese de que, justamente em função desses recursos críticos, é que SV figura como uma obra complexa e inscrita na perspectiva da desarticulação de pressupostos básicos pelos quais se costuma ler a obra literária. Essa desarticulação, conforme pretendemos mostrar, não cumpre o papel de afirmar uma nova perspectiva, mas de dissolver fronteiras historicamente construídas e que, de alguma forma, às vezes impõem um limite à criação do artista. 6 Todos os poetas verdadeiros são necessariamente críticos de primeira ordem (...) Todo poeta verdadeiro é muito mais capaz do que se pensa geralmente de raciocínio exato e de pensamento abstrato. Como exemplo dessas desarticulações, podemos citar as o trabalho com as categorias diegéticas, que se manifestam em SV não como categorias autônomas, mas como instâncias relacionais, que se constituem em função umas das outras e que constroem uma rede articulada capaz de simular um alcance no nível extradiegético, que, aliás, no texto, se identifica com o metafísico. Vejamos o exemplo: O que é que eu sou? sou um pensamento. Tenho em mim o sopro? tenho? mas quem é esse que tem? quem é que fala por mim? tenho um corpo e um espírito? (LISPECTOR, 1999c, p.19). No trecho apresentado fica claro um certo questionamento da personagem do Autor em relação à sua própria existência autônoma. Sua crise existencial e sua desconfiança de que é somente um discurso O que é que sou? sou um pensamento. Tenho em mim o sopro? acaba por deflagrar uma série de associações, dentre elas uma alusão bíblica, fundada no mito judaico-cristão de que então Javé Deus modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente (GÊNESIS 2, 7). Tal alusão, ligada à própria dinâmica do livro, em que o Autor soprou a vida em Ângela, e assim assemelhou-se a um ser que um dia o criou, pulveriza a consciência do Autor no que diz respeito a sua autonomia, tanto em relação a si mesmo quanto ao seu personagem. Nesse questionamento, ele acaba por concluir que: Ângela é mais do que eu mesmo. Ângela não sabe que é personagem. Aliás eu também talvez seja o personagem de mim mesmo. Será que Ângela sente que é um personagem? Porque, quanto a mim, sinto de vez em quando que sou o personagem de alguém. (LISPECTOR, 1999, p. 29). Os trechos apresentados esboçam, dessa forma, uma técnica de composição que obedece a uma estrutura lógica e desarticuladora. Sempre apontando para problemas existenciais ligados à autonomia do ser no mundo bem como às suas origens e possibilidades de transcendência e, articulando esses problemas aos problemas do escrever, Lispector articula dois procedimentos fundamentais da criação artística: a imagem, que pode ser lida no texto como processo metafórico, e a metalinguagem, ou seja, posicionamento crítico em relação a seus métodos e preceitos. A diferença colocada entre Autor e personagem, então, se resolve na desconfiança que o primeiro tem em relação às circunstâncias de sua existência e isso implicará um questionamento da possibilidade de afirmação de uma identidade, já que, seguindo a continuidade básica da metáfora, todo ―ser vivente‖ pode ser portadora de um discurso que desconhece e que pertence a um nível superior ou metafísico. Assim, todos serão personagens e representarão papéis pré-definidos. Essa idéia pode ser lida como metáfora básica de um dos contos mais enigmáticos da autora, O ovo e a galinha: O meu mistério que é eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. (...) Mas durmo o sono dos justos por saber que a minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como um justo. Eles me querem ocupada e distraída... (LISPECTOR, 1999b, p. 53). A grande descoberta do Autor (e do narrador de O ovo e a galinha) seria o descortínio dessa previsibilidade que é a própria condição humana. No trecho do famoso conto, há também uma instância superior, entrevista pela narradora (eles) que, em nome de um projeto maior, subjuga sua existência, prevendo inclusive atos de rebeldia e aglutinando-os ao projeto final. Apoderando-se dessa construção estruturada entre os níveis diegéticos e fazendo-a reverberar em questionamentos existenciais muito mais sérios, Lispector promove uma discussão sobre o lugar da margem que separa a parte do todo e conseqüente dificuldade de estabelecimento de uma identidade segura e autônoma, seja no universo intra ou extradiegético. Dessa forma, a personagem, sendo parte do Autor, pode representá-lo ou mesmo substituí-lo e o Autor, sendo todo o personagem, atua livremente nos dois planos discursivos: Ângela.— ... e me indago a mim mesma se estou perto de morrer. Porque escrevo quase em estertor e sinto-me dilacerada como numa despedida de adeus. Autor.— Isto é afinal um diálogo ou um duplo diário? (...) Ângela é minha tentativa de ser dois. (LISPECTOR, 1999c, p.36) Sempre se referindo, ao mesmo tempo, ao próprio discurso que produz, à sua condição de quem produz e à sua condição de produto, o Autor desenvolve-se (e desenvolve seu trabalho criador) na difícil conjugação da metáfora e da metalinguagem. Ainda pensando no fragmento proposto como abertura do livro temos, em função da disposição do texto, uma definição de Ângela (título do fragmento e, portanto, assunto do qual se fala) que se confunde como uma definição do próprio livro. Assim, Ângela torna-se também metáfora da construção da obra e do olhar autoral. Ângela torna-se ela falando, eu falando dela, de seus sentimentos e de seu atrás do pensamento. O nome Ângela traz em sua etimologia o conceito de anjo, ou seja, entidade que transita entre os planos humano e divino, que podem ser entendidos aqui como metáforas para os planos da personagem e do autor. Essas diversas associações revelam, ainda, que modo de funcionamento dessa estruturação metafórica é essencialmente sinedóquico, ou seja, quando lemos Ângela, que é, em última instância uma parte do Autor, estamos lendo o Autor. Essa constatação é um modo de dizer que, quando estamos lendo o Autor, estamos lendo SV, o livro de Clarice Lispector, enfim, quando estamos lendo um livro de Clarice Lispector, por lógica estaríamos lendo Clarice Lispector. Entre essas três instâncias (Ângela, Autor, Clarice Lispector) há uma implicação lógica e a referência seria clara se não houvesse uma margem, que não podemos transpor tão facilmente: Ângela e Autor pertencem ao universo ficcional e Clarice Lispector ao mundo real. Portanto, as categorias relacionais, ou seja, estruturas diegéticas que só se definiriam por contraste, ganham em SV um funcionamento sinedóquico, funcionam como instâncias que, pertencendo umas às outras apontam-se mutuamente, e que engendram em sua essência o problema da representação autoral na obra da autora. Em função de seus elos intrínsecos, muitas vezes lemos o Ângela como instância que se identifica inteiramente com o Autor (mesmo porque se identifica parcialmente) e, o que se torna muito temerário, lemos o Autor como instância sob a qual se esconde Clarice Lispector. Esse jogo de interdependências, que fica claro à medida que a personagem do Autor se constitui na obra e que, para isso, constitui sua personagem, como no trecho: Será que criei Ângela para ter um diálogo comigo mesmo? Eu inventei Ângela porque preciso me inventar...(LISPECTOR, 1999c, p. 31), estabelece uma rede estruturada que aponta para o universo extratextual, à medida que implica a encenação de uma produção fictícia do ponto de vista do criador. Porém, quando supomos essa relação, o que resta é a tentativa de desvendamento da formulação dessa ponte inacabada, tentativa que se mostraria inútil se partisse do ―real‖ ou mesmo se partisse em direção ao ―real‖. A representação autoral inscrita na obra, ou seja, a problematização da relação entre o artista e a obra e o apontamento da margem entre o universo ficcional e o universo real (corrompendo, rasurando, e, indiscutivelmente afirmando-a) revela que temos um projeto que inclui seu próprio rascunho, ou pelo menos porções de textos que se pretendem rascunhos e que parecem ter sido feitas pelo artista antes de concepção da obra, simulando assim as circunstâncias de sua produção, aproximando o ‗instante-já‘ da escritura do ‗instante-já‘da leitura. Para SANTIAGO (1999, p. 24), o microrrelato do acontecimento desconstruído dramatiza uma propensão do ―instante-já‖ das coisas, das circunstâncias cotidianas, para que o ser humano se coloque em plena, concreta e instantênea experiência das virtudes utópicas: o bem, o amor, a luz, a alegria. Esse tipo de efeito circunstancial, ou seja, fragmentos que pretendem recriar o momento da escritura e que, na recepção, confundem-se com o momento da leitura é propiciado pela escolha temporal obsessiva do presente – solução que conjuga o aspecto inacabado do texto. Essa combinação envolve uma nítida proposta de sinceridade, de uma suposta sinceridade. Vejamos como isso se realiza no texto: Este ao que suponho será um livro feito aparentemente de destroços de livro. Mas na verdade trata-se de retratar rápidos vislumbres meus e rápidos vislumbres de meu personagem Ângela. (...) Minha vida é feita de fragmentos e assim acontece com Ângela. A minha própria vida tem enredo verdadeiro. (...) É assim que desta vez me ocorre o livro. E, como eu respeito o que vem de mim para mim, assim mesmo é que eu escrevo. (LISPECTOR, 1999c, p. 20). Observe-se a frase que se inicia com ―mas na verdade”. Conjugada ao seu complemento ―trata-se de retratar rápidos vislumbres meus e rápidos vislumbres de meu personagem”, ela se coloca numa perspectiva analítica, e que pretende a sinceridade. Essa verdade permeia a combinação de dois níveis distintos ―vislumbres meus e vislumbres de meu personagem”, que de certa formam indiciam mais uma vez a margem entre ficção e realidade, se considerarmos o plano da personagem mais ficcional do que o plano do Autor. Esse Autor supostamente fará um livro com a verdade do momento e essa é a razão de seu aspecto fragmentário. Portanto, embora se sustente a hipótese que resulta de uma leitura que identifica esse personagem-autor à autora empírica de que uma ―liberdade criadora‖, entrevista na obra de Lispector a partir da década de 70, tenha norteado uma escritura mais despojada, em que aspectos menores da obra tenham ganhado importância, ou, para dizer com RONCADOR (2002, p.14), [os trabalhos finais] tendem a ser menos um todo unificado que repositórios de fragmentos dispersos, é preciso compreender as diversas desarticulações críticas que o texto promove a partir da inclusão desses fragmentos de forma consciente e autocrítica no interior do texto. A respeito da marcante opção pelo registro no presente por parte da autora temos, por exemplo, a importante contribuição de Olga de Sá (1999). Ela destaca: Clarice já não escreve ‗de memória‘; abandona aos poucos o uso do tempo ‗passado‘ – tempo da memória – para assumir o tempo ‗presente‘, o tempo das vivências. (p.203) É notável, porém, o comprometimento do sintagma ―tempo das vivências‖, especialmente em se tratando de uma obra na qual, claramente, há o problema colocado da relação do criador com sua criatura, ou seja, tal sintagma pode remeter a uma perspectiva de análise que utiliza a biografia da autora como ponto de partida, perspectiva esta cuja problematização resulta em profícuas análises sobre os modos pelos quais a escritura nos fornece dados para que, a partir dos jogos da linguagem, possamos recuperar procedimentos que projetam / ocultam um ente responsável por ela, mesmo que este ente seja um lugar discursivo. De fato, a fixação pelo presente se manifesta muito além da ambientação do livro num tempo ou em outro. A utilização quase obsessiva do presente quer reproduzir o ―instante-já‖ da escritura, transmutá-lo no momento da leitura e fazer da obra clariceana um discurso vivo e mutável, que se atualiza a cada vez que é retomado: Só sei uma coisa: neste momento estou escrevendo: ―neste momento‖ é coisa rara porque só às vezes piso com os dois pés na terra do presente: em geral um pé resvala para o passado, outro pé resvala para o futuro. E fico sem nada. (LISPECTOR, 1999c, p. 36). A leitura do trecho anterior implica na constatação a) de que existe um ―presente da escritura‖, que é, para o leitor, fatalmente o passado, pois a existência de uma escritura no presente já implica num passado em que ela foi escrita e b) de que essa escritura irá se realizar num futuro (imediato ou longínquo). No trecho a seguir vemos novamente esse efeito adensado pela consciência da morte, o que, em termos absolutos, melhor define os tempos, passado, presente e futuro: Será que estou com medo de dar o passo e morrer agora mesmo? Cuidar para não morrer. No entanto eu já estou no futuro. Esse meu futuro que será para vós o passado de um morto. Quando acabardes este livro chorai por mim uma aleluia.(LISPECTOR, 1999c, p.21). Tal atualização (re)cria a ilusão insidiosa da presença viva de todos os rituais que envolvem a produção e recepção da obra e, portanto, se liga à problemática da representação autoral na obra da autora, ou seja, a encenação da presença de Clarice Lispector (real) em sua obra (ficcional). Muitas vezes, tal fenômeno, tendo seu caráter irônico e crítico desprezado, é lido, por diversos críticos, como aspecto de uma narrativa confessional. Porém, o trecho se assemelha a uma comunicação viva e próxima (presentificada) de um autor que já venceu a morte ou a ludibriou no momento exato do nascimento da escritura. Assim, o livro torna-se, ao mesmo tempo, certeza de vida e consciência da morte. Essas pulsações são transferidas à escritura, que, por si mesma e independente de qualquer evento real, sobrevive autônoma, ou, nas palavras de DERRIDA (1992, p.23), tem um estatuto inegavelmente parricida: Esta miséria é ambígua: aflição do órfão, certamente, que tem necessidade não só de que se o assista com uma presença, mas que se lhe traga assistência e se venha em seu socorro; mas se o órfão se queixa, também o acusamos, assim como à escritura, de pretender afastar o pai e dele emancipar-se, com suficiência e complacência. Da posição de quem tem o cetro o desejo da escritura é indicado, designado, denunciado como desejo de orfandade e subversão parricida. Vale notar aqui o papel da escritura que, ao mesmo tempo assegura a presentificação do texto no momento da leitura e mostra seu potencial parricida. Em A farmácia de Platão (1992), obra que retoma os diálogos platônicos e que busca na tradição a gênesis filosófica para a destituição valorativa da escritura perante a fala, assistimos à errância da escritura parricida, o que, se alguma forma, reflete o texto moderno. Imerso numa atmosfera de profunda meditação, SV mostra-se, inicialmente, como uma esteira de impressões que mesclam a tentativa de captar o tempo presente com a manifestação de uma subjetividade que se percebe ameaçada por este tempo. Atravessado por um tom amargo, este relato contempla, do ponto de vista do espírito, a desagregação da matéria como índice inexorável da passagem do tempo: o apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como que um verme dentro de um fruto. (LISPECTOR, 1999c, p.14). A escrita de Lispector mostra-se, neste livro, muito próxima de um estado de graça, muito embora ela seja constantemente assombrada pela distorção da angústia, o que deflagra um ritmo ao mesmo tempo fluido mas também ofegante e intenso, como no parágrafo a seguir: Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna. (...) Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de um violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão de abelha do dia florescente de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de cada dia. (LISPECTOR, 1999c, p. 14). Proveniente do duelo constante entre ser ―Satisfaço-me em ser. Tu és? (p.13)‖ e estar ―Devo me interessar pelo acontecimento? (p.15)‖, o monólogo oscilante que abre SV atinge momentos de intenso vigor artístico, ou seja, momentos em que as frases curtas e precisas são capazes de lançar-se como teias metafóricas em direção ao universo estético, filosófico e psicológico, ou seja, prenhes de uma capacidade universal de significação. A esses momentos, seguem-se frases de uma simplicidade desconcertante, como se voltássemos ao âmbito pessoal de uma maneira brusca e envolvente: Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por conta própria e auto-risco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever. Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Oferecidas no cerne de um discurso marcado por uma sutil fluidez, as frases aparentemente desconexas tecem a complicada estrutura que abriga, num só livro, um emaranhado de questionamentos que contrapõem insistentemente sujeito e escritura, instaurando-se no difícil entre a possibilidade da criação de algo que sobrevive ao tempo e a ameaça da interrupção desse processo. A morte do Autor é assumida, portanto, como única pressuposição do texto e o texto, assassino e sobrevivente, ganhará a potência de uma máquina capaz de renovar-se em sua possibilidade de significação, ou seja, liberta-se de num contexto ou de um evento ou de uma referência. III - PARCIALIDADE E CRISE NA RETÓRICA DA FICÇÃO MODERNA Autores como, por exemplo, Thckeray, Balzac e H.G.Wells ... estão constantemente a contar ao leitor o que se passou, em vez de lhe mostrarem a cena: dizem-lhe o que há-de pensar dos personagens, em vez de o deixarem ajuizar por si próprio ou de deixarem os personagens contarem-se uns aos outros. Penso que é preciso estabelecer a distinção entre os romancistas que contam e os outros (como Henry James) que mostram. JOSEPH WARREN BEACH Um dos aspectos mais evidentes de que SV era, para Lispector, uma narrativa ousada, em que novos limites tentam ser transpostos, é a interferência do discurso do teatro, ou seja, a referência ao gênero dramático que é evidente na aparência do texto, constituído predominantemente como rubricas que determinam gestos, falas, características e atuações ordenadas segundo o nome das duas únicas personagens, Autor e Ângela: Autor.— Ângela, você é uma espantada num mundo sempre novo. A hora deste instante nunca será repetida até o fim dos séculos. Ângela.— Eu sou um ser privilegiado porque sou a única no mundo. Eu enovelada de eu. A música dodecafônica extrai o eu. Ai que não posso mais. Eu que danço doida. Quem me quer assim seja. Sinos badalam. Orfeu canta. Não me entendo e é bom. Tu me entendes? Não, tu és doido e não me entendes. Sinos, sinos, sinos. (LISPECTOR, 1999c, p.47). A noção de espetáculo permeia a construção do livro em diversos aspectos. Além da estrutura cênica da linguagem, distribuída e organizada por rubricas, o que alude a um livro que fala, há diversos enquadramentos do texto, diversas molduras e citações prévias, o que impõe à leitura um ritmo entrecortado, como que marcado por um abrir e fechar de cortinas: Ângela.— ―Senhoras e senhores: temo que o meu assunto seja apaixonante. E como não gosto da paixão vou abordá-lo com cautela timidamente e com muitos rodeios‖. [MAX BEERBOHM] ―Mas eu amo a paixão‖ [ÂNGELA PRALINE] ―Só me interessa o que não se pode pensar — o que se pode pensar é pouco demais para mim‖ [ÂNGELA PRALINE] (LISPECTOR, 1999c, p.101). O texto acima é o início da terceira parte nomeada do livro, O LIVRO DE ÂNGELA. Tendo como moldura em primeiro lugar o fato de ser um espécie de terceiro ato deste espetáculo que é Um sopro de vida, e ao mesmo tempo figurando como livro dentro do livro, o trecho apresenta-se nitidamente como declamação pois a rubrica indica Ângela falando mas a citação vem entre aspas e é atribuída a Max Beerbohm, o que indicia que, em seu livro, Ângela fala com uma voz que não é dela e fala para uma grande platéia, em tom grandiloqüente. Porém, imediatamente à citação que é antecedida pelo vocativo formal Senhoras e senhores, a mesma voz, porém em tom substancialmente mais baixo, nega a citação grandiloqüente, fazendo desmoronar a artificialidade do tom anterior. A configuração do texto na página dialoga explicitamente com o gênero dramático, mas não obedece a regras muito específicas. No trecho citado, notamos a heterogeneidade das elocuções. A princípio, subordinada à atuação do ‗Autor‘, temos uma frase que contém um vocativo, o que aponta, necessariamente para o diálogo. Depois dela, há uma frase declarativa, como que constatando a atmosfera em que se situa o pretenso ‗diálogo‘. Posteriormente, no discurso subordinado à Ângela, não há a confirmação desse diálogo, como se a personagem não escutasse o Autor. Ângela ‗fala‘ sobre si mesma, e na medida em que ‗se fala‘, vai existindo ‗do modo que se fala‘ aos olhos do Autor e do leitor subentendido: Não me entendo e é bom. Tu me entendes? Não, tu és doido e não me entendes. Essas oscilações entre diversos tons cria uma ilusão muito forte de movimento, de discrepância entre as vozes (que às vezes são do mesmo personagem), como se cada consciência pudesse migrar para outra, seja citando, seja negando a si mesmo, seja estilhaçando-se entre criador e criatura, seja tolhendo-se. Isso fica claro com a chegada do Autor, personagem que parece falar, embora na seqüência da cena, ainda de um outro espaço, separado por uma outra cortina, de onde pode falar sem que Ângela não o ouça: Autor. — Preciso tomar cuidado. Ângela já está se sentindo impulsionada por mim. É preciso que ela não perceba a minha existência, quase como que não percebemos a existência de Deus. Ângela ao que parece quer escrever um livro estudando as coisas e objetos e sua aura. Mas duvido que ela agüente o compromisso. (...) Como ela gosta de escrever, eu quase não escrevo sobre ela deixo ela mesma falar. (LISPECTOR, 1999c, p.101). Considerada como interferência do discurso do teatro, a forma visual do texto assume o valor de significante primário, enquadrando todas as possíveis significações que começam a ser tecidas. É notável que essa forma só vem iconizar uma das propostas mais marcantes da escrita clariceano, que é a dramatização da linguagem. Benedito NUNES, em 1961, já sublinhava o aspecto performático da retórica clariceana: a concepção da escrita como encenação, um dos mais importantes traços característicos da poética de Clarice Lispector (...) já se dá a ver com clareza na estrutura, na concepção e na linguagem deste romance (...) É preciso ler [em A cidade sitiada] um evidência do projeto literário clariceano que concebe a escrita como processo performático, e o escritor como um encenador. (NUNES, 1995, p.41). O último livro de Lispector, portanto, acaba por sublinhar as relações do sujeito com a linguagem, sempre balizadas por papéis discursivos, que instauram, digamos, uma secundarie