Perspectivas. São Paulo 7:49-54, 1984. 1968 BARRA 1973: UM TOQUE DO PASSADO Eduardo F. M O N T A G N A R I * RESUMO: Esboço para um estudo dos problemas da juventude e da cultura na relação entre Esta­ do e Sociedade durante a conjuntura brasileira de 1968 a 1973. UNITERMOS: Estado e sociedade; indústria cultural; contracultura; juventude; comportamento social. "Tudo em volta está deserto Tudo certo Tudo certo como dois e dois São cinco" (Caetano Veloso) A maioria entrou "silenciosa" para a história dos anos setenta. No Brasil, de­ pois dos acontecimentos de 68 — quando uma "geração jogou com tudo o que ti­ nha e foi derrotada" —, o corpo da nossa sociedade foi quase que inteiramente to­ mado de assalto pelo arbítrio da classe do­ minante que, através do aparelho militar, passou a promover o destino dos domina­ dos, ao reforçar, na estruturação social, critérios ideológicos de riqueza e poder. Da "geral" fomos forçados a assistir a um "milagroso" espetáculo de sedução que nos conduziu ao "deserto" da nossa paixão sufocada. Era uma "quarta-feita de Cinzas no p a í s " : o começo de uma "quaresma" violenta.** A partir daí, a repressão político- policial, através de atos de exceção como o A l - 5 , mostra a verdadeira face de um poder auto-centrado. Em nome do desen­ volvimento, o Leviatã, transformado em Behemot, coloca tudo que lhe parece con­ trário sob suspeita: o regime autori tár io instalado em 1964, depois de 68, deixa de tolerar qualquer tipo de militância ou ma­ nifestação política das classes dominadas e fecha definitivamente o cerco para as atividades de cunho político de certos gru­ pos (geralmente de intelectuais, artistas, estudantes), dos setores médios. Esses grupos — os "filhos prediletos" da classe média —, foram obrigados a procurar nos "subter râneos" e na clandestinidade um refúgio fora do sistema: capaz apenas de respostas "marginais" em face da ação violenta de um Estado que já não mais permitia a existência, sequer, daquele âm­ bito da dimensão pública que se "consti­ tui em toda conversa em que dois particu­ lares se reúnem para formar um públ ico" (5). Generalizada, a paranóia faz de cada conhecido, quase sempre e em alguma medida, um risco e transforma, cada des­ conhecido, num inimigo potencial. Dessa forma, no momento em que o indivíduo é impedido publicamente de se manifestar como cidadão (embora no Brasil o espaço da cidadania tenha sido sempre restrito); no momento em que sua vida privada, quer dizer, sua própria inti­ midade doméstica já não conta como ga­ rantia de segurança, nesse momento, en­ tão, o seu último e único refúgio parece ser ele mesmo. Portanto, é aí, no seu iso­ lamento, que esse indivíduo vai buscar consolo e acaba por descobrir que todo seu potencial, toda sua energia, ou seja, tudo aquilo que afirma sua identidade, es­ tá encarcerado. * Mestrando do curso de Pos-Graduacão da Arca dc Concentração em "Sociologia Urbana e Ruial" — Instituto de I utas Ciências Sociais e Educação — UNESP — 14 800 — Araraquara — SP *~ A idéia de comparar o período 68/73 a uma quaresma, foi nos dada pela leitura de uma entrevista de Alfonso Romano de Sant'Ana Revista Psicologia/Atual, Grupo Editorial Spagat, n." 30. jan fev. 83 O verso "Quarta-feira de Cinzas no pais" e da canção Saudosismo de Caetano Veloso 49 M O N T A G N A R I , E . F . — 1968 barra 1973: um toque do passado. Perspectivas, São Paulo, 7:49-54, 1984. "Os cidadãos agem como um público quando, não estando submetidos a ne­ nhum constrangimento, isto é, com a ga­ rantia de poder se encontrar e associar-se livremente, de poder exprimir e publicar livremente suas opiniões, discutem pro­ blemas de interesse comum" (5). Assim, no instante em que o poder se autocentra- liza e as medidas de exceção passam a ser regras, quando o governo passa a "ser" a Nação e quando a dimensão pública, on­ de nasce e cresce a opinião pública é "a- chatada" ainda mais, então desaparece a arena política — âmbito onde se encon­ tram os meios e os recursos necessários ao agir político. Aos derrotados (dentro e fo­ ra do sistema), só restam o exílio e o mer­ gulho numa subjetividade dilacerada e quanto aos governantes, travestidos de monarcas, passam a apresentar, "podem apresentar; eles apresentam sua domina­ ção, não no lugar do Povo, mas "diante" do Povo" (5). A esfera pública é definida, como sendo " a dimensão mediadora entre a So­ ciedade e o Estado" e a opinião pública que aí aparece é definida como "as tare­ fas de crítica e do controle que o público dos cidadãos exerce de modo informal — e também formalmente durante eleições periódicas — sobre o domínio do Estado" (5). Ora, se ficarmos apenas no movimen­ to que advém da posição que o Estado brasileiro, num acesso de megalomania, adota a partir de 1968, vemos a Sociedade praticamente travada em suas possibilida­ des de op in ião /a tuação , já que o Estado toma para si a maior parte das tarefas que, em outras circunstâncias, caberia à sociedade. Para ficarmos, num só exem­ plo, isso parece claramente na atitude que o Estado adota quando se propõe como únicas obrigações de publicidade (a situa­ ção contrária permitiria à sociedade o controle da atividade estatal), a de divul­ gar apenas suas "grandes obras governa­ mentais, apelando, como nunca, para as nossas tão decantadas riquezas nacionais: o slogan — "Brasi l ame-o ou deixe-o" — resume essa política toda. E eis que o anjo me disse apertando a minha mão Entre um sorriso de dentes Vai Bicho Vai Bicho Desafinar o coro dos contentes (Jards Macalé — Torquato Neto) Acontece que esse movimento, que força a sociedade civil (já que é dessa so­ ciedade que estamos falando) a ocupar um lugar de simples e acomodada especta­ dora, não é único. Apesar de toda e qual­ quer imposição, a sociedade civil ainda tem vida própria e mesmo quando tudo indica o contrário, ela não desaparece as­ sim, de repente, pela vontade absoluta do Estado. A dicotomia Estado-Sociedade, como foi formulada por Gramsci, depen­ de, em cada uma de suas configurações concretas, da complexidade real da situa­ ção global das classes sociais — que ele denomina de "bloco his tór ico" —, onde, mesmo em regimes autori tários, a socie­ dade civil nunca perde por inteiro o seu aspecto ativo e positivo no desenvolvi­ mento histórico * (2). Na época, os serviços dos " m é d i a s " da dimensão pública (jornais, revistas, rá­ dio, televisão, voltados que são para um público mais amplo), são colocados em função quase que exclusiva dos interesses dominantes (controlados que são pela Censura Prévia). Exemplos marcantes tais como o da ascenção da T . V . Globo e o da difusão generalizada dos fascículos da Abr i l Cultural, dão a medida do desenvol­ vimento da Indústria Cultural que procu­ ra acompanhar, nesse período, a "moder­ n ização" do país. O que é produzido por essa indústria cultural crescente, através da ampliação do mercado consumidor, da individualizaçãò dos bens e das formas breves de vida, faz a divulgação, por to­ dos os meios, do espetáculo da superficia- lidade e do consumo. Tudo bem ao gosto da classe média que não consegue deixar * Para Gramsci, a sociedade civil é momento constituído de dois movimentos distintos: um que vai de estrutura para a supe- restrutura e outro que tem lugar na própria estrutura. 50 M O N T A G N A R I , E . F . — 1968 barra 1973: um toque do passado. Perspectivas, São Paulo, 7:49-54, 1984. de se curvar aos acenos de uma " bela car­ reira" e da ascenção social. A cultura bra­ sileira se afirma então, como a cultura da sorte, do jogo, do êxtase de consumo rá­ pido, a ser continuamente reposto, mais e mais, segundo a lógica do lucro. fí por aí que vemos diferenciar, den­ tro do corpo social, algumas formas parti­ culares de resistência. Por um lado, a "modernização" e o "crescimento econô­ mico" buscam divulgar comportamentos padronizados, através de formas standar- tizadas, onde o ufanismo ao lado do con- sumismo dominam quase todos os cam­ pos (notadamente os "campos de fute­ bol"!). Por outro, na época, as chamadas "soluções alternativas", não deixam de refletir respostas "marginais", as quais permitem conceber dentro da sociedade, "focos de resistência". Estes não se iden­ tificam com a simples reprodução da or­ dem estabelecida, ao contrário, veiculam seu protesto da maneira que lhes é possíVel. O silêncio da "maior ia" é a per­ missão para que o " r u í d o " das "mino­ rias" comece a ser escutado. O "modo de ver" a vida nos fornece os elementos para a análise-do comporta­ mento transgressor que vigora durante o início dos anos setenta e que está presente, inclusive, na produção cultural de uma certa área da juventude (ou da parte da­ queles que com ela se identificam). A pró­ pria linguagem verbal exemplifica essa "visão de mundo" comunicada nas entre­ linhas de um repertório permeado por um léxico repleto de novas metáforas. A gíria comunica uma outra dimensão dos signi­ ficados existenciais, revelando, ao mesmo tempo, a não identificação do seu usuário com o estado geral que medra no país. A o implodir, no jovem, o descontentamento individual, as conseqüências são: primei­ ro, o desconcerto da família e em seguida, o abalo da sociedade. Uma análise de textos da música po­ pular que versam sobre o cotidiano e so­ bre as experiênciaa solitárias (as canções de Macalé e Wally); de encenações como "Gracias Senor" (Teatro Oficina); de jor­ nais alternativos (como o " F l o r do M a l " ) , e tc , podem servir como exemplos dessa reação que estamos, agora, re­ conhecendo. Até então, tinha sido apenas sugerida a simples absorção de algumas "idéias estrangeiras", a partir daí: "as su­ gestões da "revolução individual" que es­ tiveram presentes no Tropicalismo, en­ contram um solo fértil. A descrença em relação às alternativas do sistema e à política das esquerdas dá lugar ao flores­ cimento, em áreas da juventude, de uma postura "contracultural". A droga como experiência de alargamento da sensibilida­ de e de mudança de cabeça, a valorização da transgressão comportamental, a mar- ginalização, a crítica violenta à família — nesse momento, mais que nunca "fecha­ da" com o Estado, que lhe oferece as delícias do "milagre econômico"—, a re­ cusa do discurso teórico e intelectual, crescentemente tecnicista e vazio, o senti­ do da viagem, do " i r fundo na existência"— que tem seus aspectos dra­ máticos na vivência—limite da loucura e do desajustamento dão o tom de desbun­ de: (6: 95) " a cultura e a civil ização", gri­ tava Gal Costa na virada da década, "elas que se danem ou n ã o " . * Trata-se, portanto, aqui, de conside­ rar a realidade objetiva que existe no mo­ mento analisado e da qual faz parte essa ideologia que, pode ser entendida como "visão de mundo", vinculada organica- mente a uma norma de conduta, como modo de vida, pertencente muito mais à ordem da crença, da convicção profunda­ mente vivida, da vontade (3). Assim, esse "modo de ver" a vida encontra, em obras com a de, por exem­ plo, Norman Brown (o qual reúne, num único discurso, elementos oriundos do marxismo, da filosofia oriental e da psica­ nálise), os pressupostos de um "movi­ mento" que vê a sociedade industrial (e, portanto, a própria indústria cultural) co­ mo grande inimiga. O "jovem rebelde", anunciado e transformado em arquétipo *Parafraseando Hejoisa Buarque de Hollanda e M . A. Gonçalves (6: 95). 51 M O N T A G N A R I . b . F — 1968 barra 1973 um toque do passado. Perspectivas. São Paulo, 7 49 54, 1984 já nos anos 50, desde a "beat genera- t ion", surge, agora como verdadeiro fe­ nômeno. A resistência pacífica, a visão " b ú d i c a " , encarna, nesse momento, a conduta que a esquerda tradicional deno­ mina de "alienada" e que a direita consi­ dera como "transviada". Droga e sexo são os principais traços de um fenômeno cultural que tem, na trangressão do com­ portamento social, sua principal caracte­ rização. A " r a z ã o " encarada mais como forma de mistificação do que forma de clarificaçâo, deixa de ter crédito e a "ciên­ c ia" , acusada de possuir um discutso au­ toritário (saber é poder), e a grande res­ ponsável por uma civilização que só pro­ duz infelicidade. A descrença nos valores estabelecidos termina, enfim, na conclu­ são de que, a "educação resultou em asfi­ xia de nosso instinto criador e a obediên­ cia, em mutilação do próprio sexo" (7:70). Como escreve Luís Carlos Maciel, propaga-se a crença de que uma revolução cultural está em marcha. Uma revolução que, mudando apenas o aqui e o agora, não se pretende destruidora para ter de começar tudo de novo. Prefere assumir a tarefa, montada sobre os ombros da tra­ dição mas sem qualquer compromisso, de colher forças antes desprezadas: o êxtase, o ritmo, a cor, o sonho, a paz (7: 70-71). " N ã o preciso de gente que me oriente Se você me pergunta: como vai? Respondo sempre igual: tudo le­ ga l . . . " (Macalé-Waly). Julien Beck e o Living Theatre visi­ tam o Brasil em 1971. Dessa viagem, que termina com a prisão de todo o grupo tea­ tral, existe um relato sobre o tratamento que, nesse tempo, também era dispensado aos "brasileiros rebeldes": " L a polícia secreta del Brasil, el Departamento de Or­ dem Político y Social, se ocupa de dos co­ sas, y sólo de dos cosas: la subversión' (revolución) y las drogas. E l Departamen­ to de Ordem Político y Social (normal­ mente denominado Dops) es famoso por los médios que utiliza para obtener infor- mación de los revolucionários. Tienen un pequeno generador de eletricidad manual, made in U S A , que las fuerzas estadouni- denses en Vietnam utilizan para hacer funcionar los teléfonos de campana, y los cables se conectan a las manos, pies o pe­ nes de la víctima, o se enroscan bien apre- tados a sus testículos o pechos. En ocasio­ nes, si la víctima cuelga suspendida de la 'percha de loro' - una vara que se introdu- ce entre la parte posterior de las rodillas y los codos después de que se han atado las munecas a los tobillos y la vara asi alzada se apoa en dos mesas -, en ocasiones los cables se fijan en la vagina e en el ano. Luego 'el hombre' hace funcionar el gene­ rador. E l Dops también administra fuer- tes palizas, rompen huessos, aplastan de­ dos, introducen tubos de goma en la gar­ ganta y en la nariz y meten agua por ellos. Las victimas se ahogan de ese modo.../Vo carece de intéres que tales métodos para conseguir información se utiticen no sólo a revolucionários, sino rutinariamente, cada dia de la semana brasileira, a gente detenida por acusaciones de marihuana, gente detenida por haber fumado una vez,- He estado fuera de la habitación, impo­ tente, destrozado por mi incapacidad para hacer algo mientras los gritos de los fuma­ dores me desgarraban".* (1:163-164). Essas pessoas, geralmente jovens de classe média, que vivem entre a explosão da indústria cultural, atrelada à "moder­ nização" do país e entre o sufoco da re­ pressão policial, muito embora não te­ nham um "Vie tnan" como experiência efetiva, aceitam uma versão do pacifismo, como a única forma possível de " t régua pessoal". Eles encontram nos pressupos­ tos da contracultura um ant ídoto , uma saida prática e momentânea, mesmo que parcial, para uma situação na qual não se reconhecem e na qual não sabem quem são. Dentro desse contexto, não se pode negar o papel que as chamadas "drogas" tiveram; "especialmente as drogas aluci­ nógenas consideradas em muitas culturas * Celdas de Detencion, Departamento de Ordem Político y Social. Belo Horizonte, Brasil, 15 agosto 1971 O grifo é nosso 52 M O N T A G N A R I , E . F . — 1968 barra 1973: um loque do passado. Perspectivas, São Paulo, 7:49-54, 1984. primitivas, como drogas sagradas, feito a mescalina, o peiote, os cogumelos mági­ cos, a própria cannabis em algumas cultu­ ras. E a essas drogas tradicionais, que fo­ ram utilizadas com finalidades religiosas por culturas primitivas, juntou-se uma droga alpcinógena criada pelo nosso mun­ do tecnológico, que foi o L S D (...). De qualquer maneira, quer houvesse drogas, quer não houvesse - e parece que é um da­ do estatístico que a maioria das pessoas envolvida nessa mudança de comporta­ mento pelo menos experimentaram uma ou mais dessas drogas - o fato é que estava surgindo uma nova maneira de sentir as coisas, de sentir a vida e, portanto, de se comportar em relação a ela. E isso apare­ cia em vários níveis (...) na trilha da redes- coberta do corpo e da valorização dos sentidos". (7:76-77). "Tente usar a roupa que estou usando Tente esquecer em que ano estamos". (Luís Melodia) É bem verdade que a contracultura (sem considerar a contradição do vocábu­ lo), não conseguiu trilhar o caminho para uma transformação mais radical. Na rea­ lidade, a contracultura não passou de um movimento "per i fé r ico" e que foi diluído pelos agentes do sistema — da mesma for­ ma como fazem com todo e qualquer "movimento rebelde" —, ganhando rapi­ damente o estatuto da "moda" : próprio da lógica do capitalismo monopolista. Quanto ao comércio das drogas (que não entra, aqui, como pretensão de análi­ se, uma vez que ele é contingente a todo esse processo), poderíamos entendê-lo melhor, a partir de uma análise que reti- vesse o seu aspecto de economia intersti- cial ao sistema capitalista em geral. Esse comércio se presta a aspectos os mais es­ cusos, como aliás todo o comércio farma­ cêutico, embora não estejamos conside­ rando, aqui, as drogas químicas autoriza­ das. Agora, porque os jovens, ou as pes­ soas em geral consomem drogas, é outra questão e de difícil compreensão para quem quer que queira se inclinar no estu­ do do problema. Os caminhos que levam ao consumo delas são os mais variados. Pasolini, por exemplo, ao tentar respon­ der essa questão numa de suas "Crôn icas Pol í t icas" — Droga e Cultura —, acha que "todos os que se drogam são cultural­ mente inseguros". Para ele, " a passagem de uma cultura humanista para uma cul­ tura técnica coloca em crise a própria no­ ção de cultura". Assim, as vítimas dessa crise seriam sobretudo os jovens cuja re­ volta todavia é inútil, precisamente por­ que, privada de cultura ou fora dela (8:100-101). De certa forma, essa questão remon­ ta ao aspecto sobre o qual, ingenuamente, a contracultura se debruçou — simples negação de valores estabelecidos —, uma vez que ela própria se intitulava como uma cultura de ignorantes, uma anticultu- ra, "alguma coisa que desmentisse toda a estrutura da vida civilizada do nosso tem­ po (...), algo que desmanchasse esse ver­ niz da nossa civilização. Alguma espécie de volta a uma visão mais direta das coi­ sas e a uma maneira mais primitiva de vi­ ver". Assim é que, "no nível estético, por exemplo", a arte aparecia como uma arte de ignorantes... "que vinha do lixo, que vinha de baixo" (7:76-78) mas que expu­ nha a ferida e colocava à mostra aquilo tudo que de " c i m a " tentavam esconder: a impotência, a morte, o medo, o dejecto, a dor. "Mas isso faz muito tempo No fundo do peito esse fruto Apodrecendo a cada dentada." (Macalé - Duda) Será também um fator de instabilida­ de se se deixar de considerar o conteúdo dos movimentos que puderam se desenca­ dear a partir de então . Mesmo que, a princípio, eles pareçam insuficientes e in­ capazes, temos de levar em conta as várias determinações que conquistam espaços e, a partir daquele período, transcedem tudo aquilo que até então era considerado co­ mo fazendo parte da arena política. Essas determinações — o movimento 53 M O N T A G N A R I . E . F . — 1968 barra 1973: um toque do passado. Perspectivas. São Paulo, 7:49-54, 1984. ecológico, as manifestações místicas, as "minorias sexuais e é tn icas" (pelo menos sociologicamente falando), recolocam a questão de trazer o corpo para a política e a política para o corpo e apesar de pos­ suírem caráter de ruptura parcial, influem atualmente, até mesmo, nos discursos teórico-científicos os quais, ao abandona­ rem posições logocêntricas, definitivas, atuam significativamente na transforma­ ção da própria relação entre o que é públi­ co e o que é privado. Essas transforma­ ções que terminaram por estabelecer no­ vas dimensões sociais, foram favorecidas inclusive, em alguns casos, pelo próprio desenvolvimento da indústria cultural: pe­ las "condições objetivas das comunica­ ções (... já) que ninguém foge a essas con­ dições, nem mesmo o virtuoso, que indig­ nado com a natureza inumana do univer­ so da informação transmite o próprio protesto através dos canais da comunica­ ção de massa" (4:11). Assim, é sobretudo depois de 1973, para aqueles que vivenciaram a ideologia da contracultura o momento em que "o deserto" começou a ser deixado para trás; quando, por fim, "os santos" já podem ser "descobertos". É o fim do "milagre". A crise mundial do petróleo é o primeiro dentre os muitos problemas pelos quais a nação vai ter de passar dada a crise geral do capitalismo. Uma série de redefinições — fim do governo Mediei — principia lentamente a construção da nova estrutu­ ra que irá compor o presente perfil do país. A repressão, deslocando seu centro de ação /a tenção , para o plano econômi­ co, vai ter de adotar novas estratégias de dominação. Com isso, durante a década de setenta, a sociedade civil , em geral, já desacomodada, vai ter também de se rear- ticular. Neste contexto, a indústria cultu­ ral, suficientemente fortalecida diante da ampliação do mercado consumidor, pode e deve absorver as idéias e produtos que, anteriormente, lhe pareciam tão desafina­ dos ao seu gosto. M O N T A G N A R I , E . F . — 1968/1973: a touch of the past. Perspectivas.São Paulo, 7:49-54, 1984. ABSTRACT: An outline to the study of the problems concerning youth and culture in the relation State versussociety in the Brasilian social context from 1968 throught 1973 KEY-WORDS: State versus society; Mass Media; Counter culture; youth; social behaviour. R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S 1. B E C K , J . — El Living theatre. Madrid , E d . Fun­ damentos, 1974. 2. B O B B I O , N . — Gramsci y Ia concepción de la so- ciedad civi l . In: G A L L I N O . L . et alii — Gramsci y Ias ciências sociales. Buenos A u - res, Siglo X X I , 1974. p. 65-93 (Cuadernos de Pasado y Presente, 19). 3. B R U N I , .1. C . — Ideologia e cultura. São Paulo, U S P , 1980(mimeog.). 4. E C O , H . — Apocalípticos e integrados. São Pau­ lo, Perspectiva, 1970. 5. H A B E R M A S , J . — Cultura e critica. Torino, E i - nandi, 1980. 6. H O L A N D A , H . B . de & G O N Ç A L V E S , M . 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