O P A P E L DO C O N T E X T O S O C I A L NA T E O R I A LINGÜÍSTICA 1 Roberto Gomes CAMACHO2 • RESUMO: Discute-se neste trabalho a questão dos limites do objeto de estudo da lingüística e da identificação de sua natureza. Mediante u m esboço da evolução de sua historia recente, observa-se que a interação verbal no contexto social tem sido relegada a u m plano secundário. Conclui-se que o paradigma funcional representa urna das alternativas relevantes para superar esse problema metodo­ lógico. • PALAVRAS-CHAVE: Teoria lingüística; paradigma formal; paradigma funcional; contexto social; sistema lingüístico'; discurso. 1. O objeto é uma questão de ponto de vista Um dos princípios que têm caracterizado a lingüística contemporânea como uma disciplina científica consiste na necessidade de estabelecer uma seleção dos elemen­ tos da realidade a descrever. O argumento mais comumente empregado para asse­ gurar a aplicação desse verdadeiro postulado é um paradoxo entre a descrição e seu objeto. Com efeito, toda descrição, através da qual a ciência apreende e explica seu objeto, é necessariamente finita, ao passo que os fenômenos a se descrever apresen­ tam-se infinitamente complexos e variáveis. Essa característica parece exacerbar-se quando se trata de descrever e explicar os fenômenos da linguagem verbal. Tanto é que acaba tornando-se tema de discussão a possibilidade de delimitar um objeto específico para seu estudo. A dificuldade de contornar esse problema já era reconhecida por Saussure, quando afirmava que "outras ciências trabalham com objetos dados previamente e que se podem considerar, em seguida, de vários pontos de vista; em nosso campo nada de semelhante ocorre ... 1. Este artigo é uma versão reformulada do texto apresentado como conferência de abertura no 1° Encontro de Estudos Lingüísticos de Assis, em 1993. 2. Bolsista do CNPq (Processo n° 301185/91-1) - Departamento de Teoria Lingüística e Literária - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - UNESP - 15054-000 - São José do Rio Preto - SP. Alfa, São Paulo, 38: 19-36. 1994 19 Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, ... é o ponto de vista que cria o objeto" (Saussure, 1977, p. 15). Assim, embora a linguagem possa ser validamente descrita pelo físico, pelo fisiologista, pelo psicólogo, pelo sociólogo e por investigadores de outras áreas de estudo, a determinação de um ponto de vista que preceda a delimitação do objeto permite isolar uma abordagem propriamente lingüística e distingui-la das demais disciplinas científicas, tornando a teoria da linguagem uma ciência autônoma. A criação de um artefato teórico, a língua oposta à fala, é o resultado mais visível desse recorte metodológico. Ao buscar um objeto de estudos bem delimitado e definido, Saussure o idealiza ao mesmo tempo que o cria. A língua saussuriana é, em última análise, uma essência que representa exatamente a subordinação do objeto a uma determinada perspectiva metodológica. Ao distinguir a língua da fala, Saussure separa o que é geral e social do que é particular e exclusivamente individual. Essa nítida idealização, que se completa na noção de sistema de relações, cria um objeto científico. Separando, além disso, o essencial, próprio da língua, do que é acessório e acidental, próprio da fala, os chamados aspectos externos, Saussure cria um objeto de estudos de natureza estritamente lingüística. A posição de Chomsky, que, em vários aspectos, revolucionou a teoria da linguagem, pouco difere da concepção saussuriana no que se refere à delimitação do objeto, ainda que a sua natureza já não seja a mesma. O ponto de vista que se projeta sobre um fenômeno empírico complexo, como é a linguagem, é muito semelhante ao recorte saussuriano. A teoria lingüística tem agora como objeto u m falante ouvinte ideal, situado numa comunidade linguística completamente homogênea, que conhece perfeitamente a sua língua e que, ao aplicar o seu conhecimento no uso efetivo, não é afetado por condições gramaticalmente irrelevantes, tais como limitações de memória, distrações, desvios de atenção e de interesse, e erros (casuais e característicos). (Chomsky, 1975, p . 83) Chomsky concorda explicitamente com Saussure, ao afirmar que a idealização do objeto coincide com a "posição dos fundadores da moderna lingüística geral, e nenhuma razão convincente foi alguma vez proposta para a modificar" (idem, ibid.). A lingüística moderna defronta-se, ainda hoje, com o excesso de "linguagem", que obstinadamente transborda dos limites da "língua", isto é, com fenômenos lingüísticos difíceis de descartar e de remeter a outras áreas, cuja abordagem, porém, põe em perigo a própria possibilidade de fornecer um objeto válido à investigação lingüística. Essa constatação de Maingueneau (1990), sobre a qual se debruça, nos últimos decênios, a teoria da linguagem, é o tópico principal deste trabalho. 20 Alfa, São Paulo, 38: 19-36, 1994 2. Uma crise de identidade? Os dois marcos aqui lembrados da história recente da lingüística representam práticas científicas que arregimentaram muitos adeptos. No que toca ao estruturalis­ mo, quase que unanimemente, os profissionais da área aderiram ao paradigma científico. No fim da década de 60, por exemplo, o estruturalismo era a lingüística. No momento em que foi introduzida nos currículos dos cursos de letras, a prática era - e ainda o é hoje em parte - introduzir os alunos nos parâmetros teóricos e metodológicos da concepção estruturalista de linguagem. Era comum, inclusive, aplicar os conheci­ mentos recém-adquiridos aos estudos literários. Os desenvolvimentos posteriores na teoria da linguagem, como a sociolinguís­ tica, o funcionalismo renascido, a lingüística textual, a análise da conversação e a análise do discurso, decorrem de um desejo de superar a parcialidade imposta ao objeto de estudo em razão de sua idealização. Este é, por sua vez, um subproduto do princípio já mencionado de que é o ponto de vista que cria o objeto. Ao refletir sobre uma possível "unidade" do campo lingüístico, Maingueneau (op. cit.) o vê como radicalmente heterogêneo, e mostra que esse modo de organização deve-se justa­ mente a essa separação original entre língua e discurso. No horizonte desse tipo de dicotomia é possível divisar duas tendências no âmbito da teoria da linguagem que retomam sempre a separação saussuriana entre lingüística interna e lingüística externa. Nesse caso, a área do discurso não passaria de uma espécie de presença obstinada do excluído, às margens do sistema. No entanto, qualquer dualismo lhes é difícil de admitir, quando a única representação da área é a de um centro que se oponha à periferia. É, além disso, indefensável falar de uma oposição valorativa como essa, já que a linguagem não é, segundo Maingueneau (op. cit.), o objeto de duas lingüísticas paralelas que levariam em conta, cada qual, uma parte ou um aspecto dos fenômenos observáveis; ao contrário, é a própria lingüística que se desdobra para analisar os mesmos fenômenos. Embora todos reconheçam a necessidade de dar à lingüística um lugar autônomo em relação a outras disciplinas científicas emergentes no início do século, o resultado desse recorte metodológico foi ilusório e frustrante, porque sempre sobrou, no fundo, a desafortunada impressão de que a seleção de um ponto de vista predeterminado torna objeto de estudo apenas um aspecto do real, justamente o aspecto que indica a posição ideológica do investigador. O que se exclui é remetido a outras áreas do conhecimento, sob a rubrica do secundário, acessório, supérfluo, das condições gramaticalmente irrelevantes (Possenti, 1979, p. 10). Há, portanto, duas coisas fundamentais para a teoria da linguagem, dois aspectos diferentes da mesma questão: a delimitação do objeto de estudo e a definição de sua natureza. São problemas de solução difícil, porque o fenômeno verbal se entrecruza com outros fatos sociais e, assim, influenciam-se reciprocamente. A área de estudos do lingüista confina, no interior das ciências humanas, com áreas afins de conhecimento, como a sociologia, a psicologia, a antropologia, a filosofia etc. Esses Alfa, São Paulo, 38: 19-36,1994 21 problemas não são novos - são exatamente os que Saussure tentou resolver - e têm sido discutidos freqüentemente, sobretudo nos momentos cruciais de introdução de outros paradigmas. No entanto, é preciso ter coragem de admitir que, até o presente, a lingüística não foi capaz de formar consenso, entre os profissionais que a integram, a respeito desses dois aspectos fundamentais e, por extensão, dos procedimentos metodológicos mais adequados a serem adotados. São exatamente essas questões que têm estado no âmago do acirrado debate ideológico que dirige a atividade científica em determinadas épocas, como o que travaram gerativistas e estruturalistas na década de 60, como o que se deu, na década de 70, no interior do próprio modelo gerativista, que desaguou na semântica gerativa e na gramática de casos. E são exatamente essas questões que, ainda hoje, movem o confronto entre funcionalistas e gerativistas. Recentemente, uma polêmica que envolveu no Brasil representantes típicos das duas correntes, o funcionalismo e o gerativismo, atualmente em competição aqui e no exterior, pode servir de caso exemplar da disputa pela hegemonia paradigmática. A polêmica iniciou-se com um artigo de Votre & Naro (1989), em que consideram duas hipóteses fundamentais: a de que a forma lingüística deriva de seu uso no processo real de comunicação e a de que a estrutura gramatical é dependente das regularidades das situações de fala, constituindo, então, objeto probabilístico, ambas opostas ao formalismo representado pela gramática gerativa. A réplica veio de um gerativista. Nascimento (1990) desenvolveu, como linha essencial da resposta, o argumento de que Votre & Naro apresentaram gerativismo e funcionalismo como abordagens comparáveis e, por isso, como alternativas para o tratamento do mesmo objeto. E, para Nascimento, não o são de fato, porque os dois enfoques definem diferentes objetos de estudo, na medida em que abordam diferentes aspectos do complexo fenômeno da linguagem. O enfoque gerativista pressupõe, segundo Nascimento, que os falantes sejam dotados de um conjunto de princípios e parâmetros geneticamente determinados, definido como a gramática universal, que lhes permite adquirir e colocar em prática o conhecimento da língua, definido como uma gramática particular. É esse conhecimento da língua que constitui o objeto de estudo do modelo gerativista. Nesse caso, o objeto de estudo do enfoque funcionalista seria identificado com algo diferente, com o domínio do processamento lingüístico que estaria pressuposto no estudo do conhecimento da língua. A situação generalizada que se pode deduzir desse debate é que há uma competição entre os dois paradigmas, e essa polêmica é apenas o reflexo, no Brasil, do que acontece hoje nos Estados Unidos, em que há revistas especializadas no enfoque funcionalista e no formalista. Votre & Naro, baseados em uma distinção incomensurável entre gerativismo e funcionalismo, consideraram-nos enfoques não apenas diferentes, mas mesmo excludentes, e, além disso, conferiram a primazia de um sobre o outro. Nascimento rejeita a distinção, recusando a necessidade de escolha entre os dois enfoques por basear-se no fato de que estudam objetos diferentes. Todavia, para a teoria gerativista, o enfoque do processamento lingüístico depende 22 Alfa, São Paulo, 38: 19-36, 1994 das regularidades peculiares da língua internalizada, o que constitui uma remodelação do conceito original de competência.3 O conflito entre esses dois paradigmas é um exemplo claro de uma atitude maximalista no debate pelo domínio da área. Segundo Maingueneau (op. cit.), por reconhecer o estatuto periférico de seu próprio enfoque, o minimalista se contenta com uma relação de complementaridade entre ele e algum outro, central. Já a atitude maximalista pretende subverter a área, demolindo a própria oposição entre as abordagens; essa oposição é considerada uma hierarquia inadequada entre um centro e uma periferia. É por trás desse desejo de discutir a divisão do campo lingüístico que se desenha um conflito que questiona sua própria autonomia. Debates como esse parecem indicar também que a lingüística tem estado imersa em uma crise de princípios e métodos. Um dos indícios mais evidentes desse estado é que, conforme sugere Botha (1976), ao invés de o lingüista investigar a natureza da linguagem humana, ele venha investigando a natureza da ciência lingüística. Assim, os lingüistas passam a fazer "coisas não-normais", quando disputam acirradamente o que de fato constituem os dados, os limites e os objetivos da teoria lingüística. Para Rajagopalan essa crise institucional "se deve, entre outros fatores, à ausência de um único paradigma que funcione como força centrípeta, que ofereça um conjunto de postulados gerais dentro do qual se possa enquadrar uma parcela significativa da pesquisa lingüística em andamento" (1991, p. 79). 3. Um esboço da evolução do método O leitor terá percebido vestígios marcantes da concepção kuhniana de evolução da ciência (Kuhn, 1975) no discurso não-normal que se vem desenvolvendo neste trabalho. Tem havido muitas críticas ao modelo de Kuhn, dirigidas principalmente aos conceitos implicados nas expressões ciência normal/ciência extraordinária e paradig­ ma. Lakatos (1970) sugere, por exemplo, que a história da ciência tem sido e deve ser a história de modelos competitivos, que Kuhn denomina paradigmas; em contrapar­ tida, não tem sido e nem deve ser uma sucessão de períodos de ciência normal. Sendo assim, é preferível, em sua opinião, o pluralismo ao monismo teórico. Muitas vezes, entretanto, as críticas que levantam questões de natureza teórico-metodológica mal encobrem o descontentamento relacionado ao caráter mais marcadamente ideológico desse modelo de evolução da ciência. 3. Quem quiser acompanhar a polêmica, em todos os seus desdobramentos, deve ler também o artigo conciliatório de Dillinger (1991) e a tréplica de Votre & Naro (1992). Para o que interessa aqui, basta a situação já mencionada, que justifica a competição entre paradigmas e a instalação ou a manutenção de uma dificuldade original de se obterem unidade e consenso nos estudos da linguagem. Alfa, São Paulo, 38: 19-36, 1994 23 Uma das idéias mais inovadoras de Kuhn é sua perspectiva do progresso científico, visto não como um processo cumulativo, como costuma aparecer nos manuais de divulgação. Pelo contrário, a períodos de estabilidade sucedem épocas de convulsão, marcadas por inesperadas rupturas. Nos períodos estáveis, a ciência é governada por um esquema teórico determinado, trabalha dentro de uma tradição de idéias e crenças e se desenvolve sob o controle de objetivos, métodos, técnicas e instrumentos de análise que operam como um paradigma. Por paradigma, Kuhn quer referir-se a "realizações científicas universalmente reconhecidas e que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de pratican­ tes da ciência" (1975, p. 13). Ao adquirir um paradigma, uma comunidade científica adquire igualmente um critério para a escolha de problemas; enquanto ele for aceito, esses problemas são dotados de uma solução possível. Esse tipo de problema, definido por analogia a quebra-cabeça, constitui o que a comunidade admite como autêntico problema, encorajando seus membros a buscar alguma solução (Kuhn, op. cit., p. 60). A esses períodos de estabilidade, sucedem os de ciência extraordinária, em que teorias divergentes competem entre si para impor seu próprio modelo como paradigma. O surgimento desses períodos é provocado pela introdução de anomalias no paradigma vigente. A anomalia resulta do reconhecimento de que a realidade violou as expec­ tativas que governam a ciência normal. Detectado o ponto em que teoria e dados não se ajustam, intensifica-se a investigação em tomo dele até que, mediante ajustes na teoria, consiga-se obter a assimilação da anomalia. No entanto, se persistir por muito tempo e se os cientistas adquirirem conscientização crescente dela, o paradigma entra em crise. É aí que a atividade científica passa por um período de ciência extraordinária, de que pode resultar uma revolução. A crise é o prenúncio da emergência de novas teorias. A forma de responder a ela é, inicialmente, opondo-se-lhe resistência. Ainda que comecem a considerar outras alternativas, os praticantes relutam em renunciar ao paradigma que os conduziu à crise. Instalada a crise que marca o período de ciência extraordinária, sua resolução passa por três alternativas: 1. o paradigma em questão é capaz de resolver a anomalia que provocou a crise, havendo, conseqüentemente, um retorno à situação anterior de ciência normal; 2. o problema pode ser postergado, por não haver solução plausível para ele com os instrumentos disponíveis aos praticantes do modelo; 3. a crise pode provocar a emergência de um novo candidato a paradigma, e a transição de um para outro, após uma competição acirrada, provoca o que Kuhn chama revolução (op. cit., p. 115-6). Essa forma de transição é que não representa um processo meramente cumula­ tivo. Não se trata de uma rearticulação do paradigma em crise. Trata-se de uma modificação no modo de conceber a área de estudos, seus métodos e seus objetivos. Esse novo modo de conceber é tão radical que o modelo que emerge de uma revolução científica é não somente incompatível, mas muitas vezes verdadeiramente incomen­ surável com o paradigma precedente. As teorias científicas são incomensuráveis 24 Alfa, São Paulo. 38: 19-36,1994 porque não possibilitam construir-se um algoritmo de comparação entre elas, o que, segundo Borges Neto (1991), significa também não haver uma espécie de "linguagem neutra" que permita traduzir teorias incompatíveis. Essa versão fraca do conceito de incomensurabilidade remete-o para a área metodológica e se opõe, conforme entende Borges Neto, a uma versão forte, não defendida seriamente por Kuhn, segundo a qual os pesquisadores teriam sua compreensão da realidade determinada pela teoria que adotam. O reconhecimento da incomensurabilidade é, ao mesmo tempo, o reconheci­ mento de que teorias alternativas têm sua construção fortemente motivada por convicções ideológicas, advindo daí a recusa sistemática desse conceito. No entender de Rajagopalan, é uma revelação traumática, "pois acaba com a grande ilusão, sem o que a ciência fica destituída do seu maior distintivo - a tão almejada objetividade" (1991, p. 84). Nos termos de Kuhn, um indício importante de maturidade no desenvolvimento de uma disciplina científica é justamente a aquisição de um paradigma e, conseqüen­ temente, de um tipo mais esotérico de divulgação de pesquisa. Os historiadores da lingüística concordam geralmente que o período histórico-comparativo, inaugurado por Bopp, mas sistematizado pelos neogramáticos, é o primeiro paradigma real da lingüística (Câmara Júnior, 1975). Sendo assim, é possível afirmar que a lingüística só atingiu maturidade científica nos últimos cem anos. Desde a Antigüidade clássica até o início do século XIX, a pesquisa lingüística foi marcada por dois atributos que não a caracterizam como disciplina científica, mas como área auxiliar para outros objeti­ vos. Um deles é o aspecto normativo: enquanto regras normativas para o uso, a pesquisa lingüística é auxiliar pedagógico. O outro aspecto é o filológico: enquanto crítica textual, o trabalho com a linguagem não passa de um acessório dos estudos literários e etnológicos. Segundo Percival (1976), o primeiro paradigma foi desenca­ deado pelas investigações filológicas comparativistas TÜQ. início do século XLX, suce­ dendo, com o advento dos neogramáticos e a sua concepção rigorosa de lei fonética, a primeira revolução na lingüística. A primeira ruptura foi a publicação do Curso de lingüística geral, que veio representar uma premissa necessária para toda a atividade de pesquisa que a ela se seguiu, já que sobre essa base conceituai sustentam-se, de certa forma, todas as doutrinas contemporâneas. É um verdadeiro paradigma, e uma revolução conceituai no fazer científico. Perante a heterogeneidade da linguagem, Saussure expõe uma representação interna dos fatos lingüísticos, uma redução unitária e coerente da diversidade da linguagem. Empenha-se em definir conceitos, classificar fatos, esboçar esquemas, que, em sentido estrito, equivale a construir uma teoria. A esse esforço deve-se a determinação de conceitos fundamentais, metodológicos e descritivos da lingüística e a introdução de distinções teóricas de grande fecundidade prática: a linguagem entendida como um sistema de signos de natureza social, sua função primordial na comunicação humana e sua natureza dicotômica e opositiva, além de Alfa, São Paulo, 38: 19-36, 1994 25 princípios fundamentais, como a arbitrariedade do signo e a natureza linear do significante. Saussure apresentou sua teoria o mais compatível e coerentemente possível com a perspectiva estrutural que tinha da própria linguagem, entendida como sistema. A compactividade interna da teoria determina a sua adequação descritiva: se a língua é concebida como um sistema de elementos indissoluvelmente solidários, a teoria que a interpreta e a explica deve apresentar, para ser adequada, a mesma relação entre seus conceitos. Assim é que os elementos conceituais de Saussure, apresentados em sua natureza dualista, apresentam, entre si, relação de oposição e, ao mesmo tempo, interdependência (Carrillo, 1976, p. 57-8). Essa interpretação relacional de sistema tem uma importância fundamental para a história da lingüística, visto que sua elaboração teórica e sua implementação metodológica conduziram ao estruturalismo. Por um lado, o conceito de estrutura, derivado da noção de sistema, apresenta um valor puramente teórico, por caracterizar a natureza formal, relacional e opositiva da linguagem; por outro, a dimensão operacional da noção de sistema, transformada em procedimento rigoroso de análise e descrição, acaba por resultar no próprio método estruturalista. O estruturalismo 4 rompe definitivamente com o paradigma neogramático, na medida em que projeta um olhar descritivista sobre a linguagem e, portanto, sincró­ nico. Isso destrói a concepção científica de linguagem dos neogramáticos, que admite somente o ponto de vista histórico. Embora Saussure não negasse a abordagem diacrônica, mesmo porque permaneceu neogramático em sua concepção histórica de linguagem, é até ocioso dizer que ele distingue nitidamente os dois pontos de vista, contesta qualquer relação entre eles e, sobretudo, privilegia o aspecto sincrónico sobre o diacrónico. Essa prioridade tem uma natureza lógica, já que, enquanto o estudo sincrónico pode realizar-se prescindindo do diacrónico, o estudo diacrónico pressupõe o sincrónico (Saussure, op. cit.). Pode-se assinalar o marco de um novo paradigma na lingüística com a publica­ ção de Syntactic structures, de Noam Chomsky, em 1957, apesar de que sua concepção transformacionalista fosse anterior e tivesse em Zelig Harris um inspirador. O para­ digma proposto por Chomsky é o projeto de uma teoria da estrutura sintática, domínio preterido pela ciência normal, cujo modelo dominante, o estruturalista, tinha interesse primordial pelos componentes fonológico e morfológico. O interesse pelo aspecto sintático decorre da própria concepção racionalista da teoria gerativa, que ainda hoje procura repor a noção de que a linguagem é, antes de mais nada, a expressão do pensamento. Essa é uma função secundária na concepção estruturalista, que identi­ fica a linguagem com um instrumento de comunicação. 4. Embora se esteja usando o termo estruturalismo e seus derivados para denominar o paradigma inaugurado por Saussure, é necessário considerá-lo aqui como um ponto de vista epistemológico e não uma teoria ou um método, tal como formulado por Hrabák (apud Câmara Júnior, s.d.). Como ponto de vista epistemológico, o estruturalismo parte da observação de que todo elemento num dado sistema é determinado por todos os outros elementos do mesmo sistema e que nada tem valor por si próprio. 26 Alfa, São Paulo, 38: 19-36, 1994 Outro aspecto que cabe ressaltar é o caráter recursivo das regras, finitas, mas que permitem gerar um conjunto infinito de sentenças. Com base nesse princípio, Chomsky (1957) negava que fosse tarefa da lingüística descrever um corpus, que é, por definição, um conjunto finito de enunciados efetivamente produzidos. Na perspectiva estrutura­ lista, mediante técnicas heurísticas de segmentação, identificação e classificação, seria possível descrever as unidades funcionais do sistema lingüístico. Chomsky recusava essa tese, apoiado no argumento de que não é possível descrever a linguagem através do estudo de um corpus, finito em si mesmo e, por isso, não representativo do caráter infinito das possibilidades de produzir sentenças. O único modo de representar esse caráter das línguas seria na apreensão da competência intuitiva do falante - ouvinte, que consiste, fundamentalmente, na capacidade que ele tem de emitir e compreender um número indefinido de sentenças, grande parte das quais ele jamais pronunciou ou ouviu anteriormente. Para Chomsky, explicar a natureza dessa aptidão equivaleria a construir um modelo da competência dos falantes. Na implantação do paradigma gerativista, um aspecto político importante, e que se ajusta à teoria kuhniana de evolução científica, é o combate ao estruturalismo no plano filosófico, ético. Chomsky desarmou a idéia de se considerar o ser humano tabula rasa na aquisição de conhecimentos, o que possibilitaria oportunidade de manipula­ ção, programação e robotização de um grupo humano por outro. Isso daria justificativa ideológica para sistemas políticos autoritários, que, nesse caso, seriam perfeitamente coerentes com a suposta forma natural de comportamento humano (Lemle, 1984). Os argumentos contra a gramática descritiva do estruturalismo e a favor de uma representação dos fatos lingüísticos em estrutura profunda e estrutura de superfície podem ser resumidos em três pontos: 1. interdependência entre constituintes descon­ tínuos; 2. estruturas ambíguas; 3. estruturas formalmente distintas, mas semantica­ mente similares. Assim, a concepção dualista de representação mediada por trans­ formações negava o modelo estruturalista de gramática, e o mentalismo filosófico tornava inviável o modelo behaviorista de aprendizado. A relação entre o aspecto lingüístico e o filosófico estava no fato de que o aprendizado por reflexos condicionados exige uma explicitude total do sinal físico que constitui o estímulo. Com a introdução dos conceitos de estrutura profunda e estrutura superficial, Chomsky quer provar que a forma física externa do sinal lingüístico não explicita todas as indicações semânticas (Lemle, op. cit.). Ao interesse pelo componente sintático, a perspectiva gerativista acresceu idéias gerais que desembocaram na capacidade criadora e no inatismo da linguagem humana, fundamentos sobejamente conhecidos. Não é a primeira vez que a constru­ ção de uma teoria local conduz à elaboração de uma teoria global. No caso de Chomsky, esse processo se cumpre exemplarmente, porque, na passagem do parcial para o global, cada etapa é o resultado das necessidades inerentes à solução de um problema particular: a teoria da sintaxe requer uma teoria da gramática. Esta, por sua vez, depende de uma teoria da linguagem, que remete a uma teoria geral das faculdades humanas. Segundo Carrillo (op. cit.), trata-se do percurso que se inicia com Alfa, São Paulo, 38: 19-36, 1994 27 as estruturas sintáticas e se conclui com uma inesperada reatualização do inatismo cartesiano. Embora a teoria gerativista parecesse resolver satisfatoriamente os quebra-ca­ beças da lingüística, numerosas dificuldades acabaram por se opor à sua cabal aceitação. Há objeções de ordem teórica e outras de ordem técnica. As de ordem teórica concernem à concepção de linguagem que lhe serve de fundamento, assim como às hipóteses que Chomsky desenvolveu sobre inatismo, poder criativo inerente às regras gramaticais, universalidade das estruturas gramaticais, legitimidade da intuição como fonte de conhecimento científico, questão da centralidade do compo­ nente sintático em seu modelo gramatical e sobre a distinção, até então fundamental, entre estrutura profunda e estrutura superficial. Alguns problemas de ordem técnica concernem à extensão e à eficácia das regras transformacionais, hoje reduzidas a deslocamento, à instrumentalização da noção de estrutura profunda - hoje deslocada para outros tipos de níveis de representação -, à complexidade formal da análise de algumas estruturas sintáticas muito simples, à omissão quanto a fenômenos típicos do processamento lingüístico, como entonação, pressuposição e fenômenos pragmá­ ticos diversos, à validade dos resultados, geralmente limitados à língua inglesa. Esses problemas propiciaram a formação de tendências divergentes, como a gramática de casos e a semântica gerativa, mais próximas do modelo original, e de outras, como o renascimento do funcionalismo, a sociolinguística, a lingüística textual, a análise da conversação, além das várias tendências da análise do discurso. Além disso, tem havido freqüentemente a revisão de muitos conceitos e a introdução de novas teorias, cada qual oferecendo um aspecto complementar à teoria geral. Assim, o resultado da reação à semântica gerativa foi a elaboração da teoria padrão ampliada; ainda, a resposta às críticas de que o poder descritivo das regras transformacionais era mais forte que os sistemas formais mais irrestritos conduziu a uma limitação do poder das regras transformacionais, que resultou na teoria padrão ampliada revista. Tudo isso em, aproximadamente, vinte anos. Hoje, com o componente transformacional extremamente reduzido, com o desenvolvimento da chamada hipótese lexicalista no interior do modelo gerativista, Lemle (op. cit.) reconhece que a contribuição da teoria transformacional foi mais ideológica que empírica e que cumpriu satisfatoriamente o papel de exorcizar o que a concepção behaviorista do homem tinha de mais negativo e perigoso do ponto de vista político. Acredito que o papel ideológico tenha sido bem outro: o anti-behavio- rismo serviu para implementar um novo paradigma na lingüística e para arregimentar adeptos, uma questão estritamente política no processo de evolução da ciência. Para enfatizar mais a controvérsia ideológica em torno do assunto, observe-se a opinião de um funcionalista: Quando a linguagem é separada do contexto social natural em que é usada e adquirida, qualquer forma de aprendizado torna-se um mistério que não se pode compreender senão assumindo-se que a linguagem esteve aí presente o tempo todo, na forma de uma estrutura geneticamente pré-programada da mente humana. (Dik, 1989, p. 6) 28 Alfa, São Paulo, 38:19-36,1994 Apesar dos percalços por que passou o modelo gerativista, um historiador da lingüística como Percival (op. cit.) considera que, ao menos na década de 60, essa teoria passou a ser o paradigma predominante e sua emergência recente conforma-se plenamente com o padrão de evolução da ciência, nos termos kuhnianos. É uma conquista de um único indivíduo que atraiu um grupo consideravelmente grande de seguidores, que deixaram o paradigma pós-bloomneldiano, nos Estados Unidos, e o pós-saussuriano, na Europa. Os conflitos surgidos são indícios de que as posições eram de fato incompatíveis. Assim, a gramática gerativa parece ter os atributos que permitem caracterizá-la como um autêntico paradigma. Entretanto, causa problema, na opinião de Percival (op. cit.), sua dimensão social, já que não obteve consenso uniforme dos profissionais da área: por um lado, muitos continuam a investigar no campo teórico e metodológico de outras tendências, por outro, os próprios seguidores do paradigma chomskiano dividiram-se em escolas concorrentes. O que parece indiscutível é que o paradigma chomskiano questionou os princípios do estruturalismo em suas diversas formas, pondo em evidência algumas de suas anomalias e, sobre o pano de fundo de suas conquistas, continua a introduzir-se o aspecto da crise. Givón (1979) entende que a lingüística dos últimos cinqüenta anos permanece sitiada, numa crise aparentemente sem fim de filosofia e de metodologia. Inicialmente, a crise pode ter sido atribuída ao impacto da visão mecanicista das ciências físicas sobre Saussure, por um lado, e da psicologia behaviorista sobre Bloomfield, por outro. O dogma estruturalista que se seguiu tem, para ele, três características principais: 1. a redução apriorística e arbitrária dos dados de base relevantes; 2. a ascensão do formalismo como teoria; 3. o negligenciamento ou a desvalorização da noção de explicação. Ao surgir, nos fins dos anos 50, a gramática gerativa trouxe esperança de superação desses três pontos. Contudo, a experiência acumulada nas duas últimas décadas sugere que, no fundamental, a revolução gerativo-transformacional permaneceu no mesmo ponto que a metodologia estruturalista. Ao desencadear-se, a crise de identidade não afeta apenas os princípios da ciência, mas incide também sobre o próprio trabalho do lingüista, que se acha numa situação de incerteza, mais propícia a perguntas que respostas. Se deve haver uma ciência normal da linguagem, qual seria ela? Que teorias são mais adequadas e quais os métodos mais eficazes? Como decidir entre as várias correntes existentes e onde situar a gramática tradicional, a filologia, o comparativismo, que ainda sobrevivem marginalmente? 4. Ponto de vista e objetivismo abstrato Considerando o olhar que Bakhtin (1979) projeta sobre a lingüística, é possível identificar quatro pontos fundamentais que caracterizam os dois paradigmas mais Alfa, São Paulo, 38: 19-36, 1994 29 consensuais da história recente, embora se saiba que a análise dele abordou só o modelo saussuriano. São os seguintes: 1. A língua é u m sistema estável, imutável, de formas lingüísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual e peremptória para esta. 2. As leis da língua são essencialmente leis lingüísticas específicas, que estabelecem ligações entre os signos lingüísticos no interior de um sistema fechado. Estas leis são objetivas relativamente a toda consciência subjetiva. 3. As ligações lingüísticas específicas nada têm a ver com valores ideológicos;... 4. Os atos individuais de fala constituem, do ponto de vista da língua, simples refrações ou variações fortuitas ou mesmo deformações das formas normativas. Mas são justamente esses atos individuais de fala que explicam a mudança histórica das formas da língua; enquanto tal, a mudança é, do ponto de vista do sistema, irracional e mesmo desprovida de sentido. Entre o sistema da língua e sua história não existe nem vinculo nem afinidade de motivos. Eles são estranhos entre si. (op. ci t . , p. 68) Esses pontos caracterizam a posição a que Bakhtin alude como objetivismo abstrato, em oposição ao subjetivismo idealista de Vossler, Croce e de outros. Estendo essas observações, sem hesitação, à corrente gerativista, até porque Bakhtin atribui as origens do objetivismo abstrato ao racionalismo cartesiano, que serviu de fonte para Chomsky. Caracteriza o racionalismo a idéia de uma língua convencional, arbitrária, bem como a do paralelo existente entre os códigos lingüístico e matemático, tão caro aos gerativistas. Ao espírito orientado para a matemática não é a relação do signo com a realidade que interessa, mas a relação do signo com outro signo no interior de sistemas fechados. Conforme entende Bakhtin (op. cit.), a história é, para os racionalistas, um domínio irracional que corrompe a pureza lógica do sistema, cujas unidades características são os signos matemáticos. A questão central refere-se ao grau em que um sistema de normas imutáveis - seja ele chamado língua ou competência - se conforma de fato com a realidade. Enquanto conjunto de formas normativas, o sistema lingüístico constitui um fato objetivo, externo à consciência individual e independente dela. Esse princípio contra­ diz o fato de que é só para a consciência individual, e do ponto de vista dela, que a língua se apresenta como um sistema de normas rígidas e imutáveis, isto é, do ponto de vista subjetivo. Já, de um ponto de vista objetivo, o sistema sincrónico não equivale a nenhum momento efetivo no processo histórico da linguagem, que é uma corrente evolutiva ininterrupta. É possível interpretar essa idéia de uma forma em que o subjetivismo do observador não se neutralize, como se pensa: no momento em que executa uma descrição sincrónica de um determinado sistema lingüístico, não é senão o seu próprio sistema de formas normativas que ele representa, isto é, o sistema de formas rigidamente normativas tal como se apresenta à consciência individual do usuário em geral. Isso tem muito a ver com o método gerativista, ao trabalhar com intuições do falante - ouvinte, que são, via de regra, as do próprio observador, na medida justa em que ele é um dos usuários da língua em questão. Esticando um pouco mais o arco, considera Labov (1972) que muitos lingüistas que dizem trabalhar com a parte social 30 Alfa, São Paulo, 38: 19-36.1994 da linguagem não tratam absolutamente do aspecto social: consideram que quaisquer explicações sobre os fatos lingüísticos devem ser extraídos de outros fatos lingüísticos, não de algum dado externo, próprio do comportamento social. Trabalham, ademais, com um ou dois informantes ou examinam seu próprio conhecimento a respeito do sistema lingüístico, o que se identifica, nos termos de Bakhtin, com um sistema de formas normativas, que é como a língua se apresenta à consciência individual. O equívoco aqui é afirmar que a língua, ou a competência (Língua-I), enquanto sistema de formas imutáveis, possua uma existência objetiva. Embora fosse objetivo afirmar que a língua constitui, relativamente à consciência individual, um sistema de normas imutáveis, não é ainda esta a única condição de existência para a consciência subjetiva do usuário. Pelo contrário, um sistema assim definido consiste numa mera abstração, produzida pela posição epistemológica do investigador. Segundo Bakhtin, o que importa para a consciência subjetiva do locutor não é a forma lingüística enquanto sinal estável e sempre igual a si mesmo, mas a forma lingüística enquanto signo variável e flexível, característica que lhe permite figurar num dado contexto e que a torna adequada às condições do contexto situacional, seja do ponto de vista fonológico, morfossintático ou semântico. Para tornar essa idéia mais clara, convém explicitar aqui uma distinção funda­ mental entre signo e sinal: "O essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas em compreendê-la num contexto preciso, com­ preender sua significação numa enunciação particular. Perceber em suma, seu caráter de novidade e não de conformidade à norma" (Bakhtin, op. cit., p. 79). Assim, enquanto o signo é compreendido, o sinal é identificado. O sinal é uma entidade que, oposta ao signo, possui um contexto imutável, e como tal não pode substituir, nem refletir, nem refratar nada, pois não pertence ao domínio da ideologia. Desse modo, o sistema lingüístico, tal como é postulado pelas tendências rotuladas de objetivismo abstrato, não é acessível à consciência individual do falante, não corresponde à realidade da linguagem em uso no contexto social, pois o sistema lingüístico assim definido resulta de uma análise abstrata, que isola os elementos das unidades reais do uso. 5 Idéia interessante de Bakhtin é a de que, por trás desse reducionismo a um sistema de normas imutáveis, acham-se os procedimentos práticos e teóricos elabo­ rados para o estudo das línguas mortas que se conservaram em documentos escritos. Desse modo, a abordagem filológica com a qual a lingüística do início do século pensava romper é determinante para a apreciação de todo o pensamento teórico contemporâneo. Desde os primeiros estudos hindus e gregos, que remontam aos séculos IV e V a.C, a teoria da linguagem vem elaborando seus métodos e categorias ao trabalhar com monólogos mortos, como as inscrições em textos ou monumentos antigos. O mais antigo tratado sobre a linguagem, na índia, é uma interpretação das 5. Vê-se claramente que o postulado fundamental a que alude Bakhtin é o de que a linguagem constitui um sistema de signos, tal como originalmente propôs Saussure. Não é impossível estender essa dicotomia crítica a concepções sintáticas da natureza da linguagem. Alfa, São Paulo, 38: 19-36, 1994 31 palavras do Rig-veda, que já se haviam tornado obscuras. O objetivo principal do estudo lingüístico em Alexandria, durante o período helenístico, foi também a explanação dos textos dos antigos poetas, principalmente Homero (Câmara Júnior, 1975). A própria enunciação monológica é uma abstração, nos termos de Bakhtin, pois mesmo na forma imobilizada da linguagem escrita uma enunciação implica uma resposta a alguma outra coisa, constituindo, assim, um elo numa cadeia de atos de fala. Entretanto, os filólogos não viam as enunciações em seu caráter dialético, mas num todo isolado que se basta a si mesmo, e não lhes aplicavam uma interpretação ideológica ativa. A concepção de uma língua isolada, fechada e monológica, desvin­ culada de seu contexto, corresponde à compreensão passiva que os filólogos e os sacerdotes tiveram, ao longo da história, de uma língua morta, escrita e estrangeira. Dessa maneira, a orientação dos paradigmas dominantes da lingüística contemporâ­ nea para a criação de um objeto estável e uniforme, desligado da realidade social, reflete o papel histórico que a palavra estrangeira desempenhou na formação de todas as civilizações. Pode-se sintetizar em cinco pontos essenciais o pensamento de Bakhtin, que, a meu ver, direta ou indiretamente, é subjacente a algumas tendências atuais da lingüística contemporânea em competição com o paradigma formalista: 1. a lingua­ gem como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que não explica adequadamente sua realidade concreta e que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares; 2. a linguagem constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação verbal social dos interlocutores; 3. as leis de evolução lingüística são essencialmente leis sociais; 4. a criatividade na linguagem não pode ser compreendida independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que se ligam a ela; 5. a estrutura da enunciação é puramente social, de modo que o ato de fala individual é uma contradição nos termos (op. cit., p. 113). 5. O papel do contexto social O programa que se surpreende entremeado nas malhas dos argumentos críticos de Bakhtin permite delimitar claramente um objeto alternativo para a investigação lingüística: o uso efetivo num contexto determinado - a enunciação dialógica entre indivíduos socialmente determinados, que é, além disso, dinâmica em si mesma, pois pressupõe um processo evolutivo que não admite interrupção. A lingüística vem, entretanto, ignorando esses princípios simples, por uma razão não tão simples, que aqui se retoma. A lingüística moderna, representada por seus dois paradigmas predominantes, respondeu à questão da definição do objeto de estudos adotando caminhos diferentes, que ainda assim conduziram ao mesmo ponto. Ao buscar 32 Alfa, Sâo Paulo, 38:19-36,1994 critérios de cientificidade, a lingüística necessitou operar, ao mesmo tempo, uma seleção dos fatos que lhe competia abordar e, como uma conseqüência disso, uma separação no próprio objeto criado. Esses procedimentos criaram rótulos como lingüística central e lingüística periférica, que mal recobrem uma atitude política e que mascaram, sem propor qualquer solução, o problema que o lingüista experimenta de dominar a ilusória unidade de seu próprio campo de pesquisa (Maingueneau, op. cit.). Assim é que, na medida em que é um objeto produzido pelo ponto de vista adotado, a língua saussuriana é, no fundo, uma espécie de artefato. Abstrai a linguagem do uso e esvazia definitivamente a influência do contexto social. O advento da gramática gerativa colocou o sujeito como o centro do processo de produção verbal. Entretanto, sua idealização, associada aos postulados universalistas, leva a conse­ qüências ainda mais drásticas a concepção de que a linguagem é um sistema inteiramente independente do contexto social em que se manifesta, o que descarta a relação entre teoria e dados de base. A interação complexa entre dados, modelo formal e explicação, no interior de uma disciplina científica, representa justamente o núcleo fundamental do que ultima­ mente emerge como teoria. Contudo, nenhum desses três parâmetros pode ser, por si só, a teoria, nem é possível construir uma teoria viável ignorando-se o papel de um desses três aspectos ou distorcendo-se a natureza de sua interdependência. Uma das práticas mais prejudiciais na história da lingüística tem sido, por exemplo, a delimi­ tação arbitrária e apriorística dos dados de base. Das várias maneiras de se operar essa delimitação, pode-se, seguramente, apontar duas: primeiramente, pode-se adotar um formalismo incompatível com um certo conjunto de dados e depois rejeitar os que o formalismo não é capaz de digerir. Alternativamente, pode-se escolher limitar o alcance dos parâmetros explanatórios em relação aos fenômenos estudados e daí excluir vários segmentos de dados potencialmente cruciais, como que pertencentes a outras disciplinas. Ambos os métodos são práticas correntes na lingüística moderna (Givón, 1979). A história da lingüística contemporânea está, segundo Givón (op. cit.), inundada de argumentos estéreis, de ascensão e queda de pseudoteorias e de questões ilusórias, cuja relação com os fatos reais da linguagem são, no máximo, muito tênues. No curso dessa história, minaram-se os alicerces da lingüística em sua aspiração de tornar-se uma ciência empírica. "Um uso cada vez mais perverso de terminologia-chave, como dado, teste empírico, teoria e explicação, privou de sentido e utilidade para a lingüística esses conceitos fundamentais da ciência" (Givón, op. cit., p. 1). Parece que os problemas surgidos entre teoria, modelo formal e dados são decorrentes da dicotomia fundadora produzida por Saussure, de modo que a lingüística necessita operar urgentemente a purgação de seu pecado original. Os caminhos apontados por Bakhtin conduzem todos para um e mesmo ponto: uma interação estreita entre o modelo adotado e a linguagem em uso no contexto social. Seria o paradigma funcionalista uma alternativa viável? Alfa, São Paulo, 38: 19-36, 1994 33 O paradigma funcionalista vê a linguagem como instrumento de interação social entre seres humanos, usado com a intenção de estabelecer comunicação. Conseqüen­ temente, a interação verbal, definida como a interação social mediante o uso da linguagem, constitui uma forma de atividade cooperativa estruturada, já que é governada por regras, normas e convenções; é uma atividade cooperativa, porque necessita pelo menos de dois participantes. Esse princípio parece óbvio, mas assegura, na realidade, um princípio sonegado pelo objetivismo abstrato: a relação entre interlocutores reais. Nesse caso, de um ponto de vista funcional, a lingüística necessitaria tratar de dois tipos de sistemas de regras: 1. as regras que governam a configuração das expressões lingüísticas, especificamente regras semânticas, sintá­ ticas, morfológicas e fonológicas; 2. as regras que governam os padrões de interação verbal em que as expressões lingüísticas são usadas, especificamente regras pragmá­ ticas (Dik, 1989, p. 3). 6 As expressões lingüísticas não são, assim, objetos formais abstratos; ao contrário, suas propriedades são sensíveis às determinações pragmáticas da interação verbal. Outro princípio importante a assinalar é a relação entre o sistema lingüístico e seu uso. Em função do fato de ser a linguagem um instrumento de comunicação, a questão de como funciona como sistema estruturado jamais poderia ser abstraída da questão de como é organizada, dado as funções que exerce no processo de interação verbal. Esses aspectos parecem apoiar-se em Halliday (1985), cuja teoria tem forte comprometimento funcional no fato mesmo de destinar-se a explicar como a lingua­ gem é usada. Assim, como todo texto, escrito ou falado, desenvolve-se em algum contexto, são os usos da linguagem que modelaram, durante milhares de gerações, o sistema lingüístico, que, por isso, não é arbitrário. O modo como é organizado é funcional porque se desenvolveu para satisfazer as necessidades humanas. Segue daí que, no paradima funcional, vê-se a relação entre os componentes mais visíveis da organização lingüística - o pragmático, o semântico e o sintático - de um modo tal que o primeiro é o mais abrangente, dentro do qual devem-se examinar os outros dois; não há, assim, qualquer espaço para algum tipo de "sintaxe autônoma", tal como aparece no paradigma formalista (Dik, 1989). Se é verdadeiro, como afirma Givón (op. cit.), que a lingüística assume sua validade como teoria através da prática, descobrindo, por si mesma, de que modo a prática esclarece as vastas disposições de fatos da linguagem humana, sem argumen­ tos metodológicos apriorísticos, também parece verdadeiro que o modelo funcionalista é uma alternativa teórica capaz de executar com o êxito desejável um programa dessa natureza. 6. O paradigma funcionalista não se esgota na escola holandesa. Pode ser rastreado, nos E.U.A., desde a tradição antropológica, fundada no trabalho de Sapir; na teoria tagmêmica de Pike e no trabalho etnológicamente orientado de Hymes; na Escola Lingüística de Praga, desde seu inicio, nos anos 20; na escola inglesa, de Firth e Halliday; está presente mesmo na abordagem filosófica dos atos de fala de Austin e Searle (apud Dik, 1989). A preferência aqui por Dik deve-se a seu empenho, seguidas vezes, desde Functional Grammar (1978), em construir uma teoria funcional completa. 34 Alfa, São Paulo, 38: 19-36, 1994 CAMACHO, R. G. The role of social context in linguistic theory. Alfa, São Paulo, v. 38, p. 19-36, 1994. • ABSTRACT: At issue in this paper the question of delimitating the object of linguistics and identifying its real character. An outline of the evolution of the recent history of Linguistics, shows that verbal interaction in social context has been relegated to a secondary level. The conclusion of this paper is that the functional paradigm represents one of the most relevant alternatives to overcome this methodological question. • KEYWORDS: Linguistic theory; formal paradigm; functional paradigm; social context; linguistic system; speech. Referências bibliográficas 1 BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979. 2 BORGES NETO, J. A incomensurabilidade e o relativismo lingüístico. Boletim da Abralin, Campinas, v. 12, p. 75-84, 1991. 3 BOTHA, R. On the analysis of linguistic argumentation. In: WIRTH, J. (Ed.) Assessing linguistic arguments. Washington: Hemisphere Publishing, 1976. p. 1-35. 4 CÂMARA JÚNIOR, J. M. O estruturalismo lingüístico. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 15/16, p. 5-42, s.d. 5 . História da lingüística. Petrópolis: Vozes, 1975. 6 CARRILLO, V. L. Las tres lingüísticas. Revista Venezolana de Filosofia, Caracas, v. 4, p. 53-84, 1976. 7 CHOMSKY, N. Syntactic structures. Haia: Mouton, 1957. 8 . 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