UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA CAMPUS DE MARÍLIA Implicações éticas da “virada informacional na Filosofia” João Antonio de Moraes Marília 2012 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA CAMPUS DE MARÍLIA Implicações éticas da “virada informacional na Filosofia” João Antonio de Moraes Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) para Defesa de Mestrado na área de concentração em Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica. Orientadora: Profa. Dra. Maria Eunice Quilici Gonzalez Marília 2012 Moraes, João Antonio de. M827i Implicações éticas da “virada informacional na Filosofia” / João Antonio de Moraes. – Marília, 2012. 111 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2012. Orientadora: Maria Eunice Quilici Gonzalez. 1. Privacidade. 2. Tecnologia da informação. 3. Ética. 4. Filosofia da mente. I.Título. CDD 170 João Antonio de Moraes Implicações éticas da “virada informacional na Filosofia” Banca Examinadora (Qualificação) Profª. Drª. Maria Eunice Quilici Gonzalez (Unesp/Marília) (Presidente e Orientadora) Prof. Dr. João de Fernandes Teixeira (UFSCar) (1º Examinador) Profª. Drª. Mariana Cláudia Broens (Unesp/Marília) (2º Examinadora) Prof. Dr. Antonio Trajano Menezes Arruda (Unesp/Marília) (suplente) Banca Examinadora (Defesa) Profª. Drª. Maria Eunice Quilici Gonzalez (Unesp/Marília) (Presidente e Orientadora) Profª. Drª. Ítala Maria Loffredo D’Ottaviano (UNICAMP) (1ª Examinadora) Profª. Drª. Mariana Cláudia Broens (Unesp/Marília) (2ª Examinadora) Prof. Dr. José Carlos Pinto de Oliveira (UNICAMP) (suplente-externo) Profª. Drª. Plácida Leopoldina Ventura Amorin da Costa Santos (Unesp/Marília) (suplente-interno) Marília, 20 de agosto de 2012 À Débora, minha futura esposa. Agradecimentos Palavras não são suficientes para expressar minha gratidão àqueles que foram essenciais para realização deste trabalho. Mas gostaria de deixar aqui registrado alguns agradecimentos. À minha família pelo apoio recebido em todos os momentos, fundamental para manter meu equilíbrio emocional durante este período que, por vezes, nos conduz a altos e baixos. À Débora Barbam Mendonça, minha noiva, que desde os primeiros anos da minha graduação tem estado ao meu lado, me acompanhando em minhas correrias, estresses, confusões, alegrias, conquistas, decepções, etc., sempre com muito carinho, atenção e amor. Aos companheiros da República “Alta Tensão” e agregados. Foram tantos que passaram e permanecem em minha vida que não citarei os nomes por receio de esquecer alguém. À Amanda Veloso Garcia e Anderson Silva, amigos sempre fiéis que me ajudaram na revisão das muitas versões da dissertação, sempre “do dia para a noite”. Aos amigos do Grupo Acadêmico de Estudos Cognitivo (GAEC-UNESP) e do Grupo Interdisciplinar CLE – Auto-Organização (UNICAMP), com os quais aprendi sobre diversos assuntos, sempre com discussões muito interessantes. Aos professores Mariana Cláudia Broens, João de Fernandes Teixeira e Ítala Maria Loffredo D’Ottaviano por comporem as bancas de Qualificação e Defesa, e contribuírem, de forma muito atenciosa, para o aprimoramento deste trabalho. Aos professores do Departamento de Filosofia da UNESP, que além da amizade propiciaram um ambiente rico para reflexão. Entre eles, Antonio Trajano Menezes Arruda, Carmen Beatriz Milidoni, Lauro Frederico Barbosa da Silveira, Reinaldo Sampaio Pereira, Marcos Antonio Alves, Ricardo Pereira Tassinari e Ubirajara Rancan de Azevedo Marques. Ao professor Frederick Adams, que com muito carinho me recebeu em sua casa durante meu estágio de pesquisa nos Estados Unidos, propiciando um ambiente rico para o estudo, mas também fazendo com que eu me sentisse em casa. À professora Maria Eunice Quilici Gonzalez, minha orientadora, pelo carinho e dedicação em me orientar no desenvolvimento deste trabalho. As professoras Maria Eunice Quilici Gonzalez e Mariana Cláudia Broens merecem ainda um agradecimento especial. Mais que professoras, as considero companheiras de trabalho, amigas e parte da família. Até a conclusão do mestrado foram sete anos de convívio, com os quais aprendi a ver o mundo com outros olhos; na minha concepção, de uma forma melhor. Aos funcionários da UNESP/Marília, que sempre me ajudaram a entender boa parte das burocracias da universidade e também nas organizações dos eventos. Com um maior carinho ao Paulo e à Edna, secretários da Pós-Graduação e da Graduação em Filosofia na UNESP, e Sylvia e Renato, do Escritório de Pesquisa, por serem sempre prestativos. Por fim, à CAPES e à FAPESP pelo auxílio financeiro prestado durante a minha pesquisa de Mestrado, sem a qual não seria possível ter chegado aos resultados aqui apresentados. “Don’t panic!” (Guia do Mochileiro das Galáxias) RESUMO O objetivo desta dissertação é analisar implicações éticas da “virada informacional na Filosofia”, com especial ênfase no problema da privacidade informacional. Este problema pode ser entendido como a dificuldade de se analisar a privacidade à luz da inserção de tecnologias informacionais na vida cotidiana. Para alcançar este objetivo, dividimos a dissertação em quatro capítulos. No primeiro, analisamos os pressupostos centrais da “virada informacional na Filosofia” (Adams, 2003), principalmente no que diz respeito à investigação mecânico-informacional da mente. Uma vez que tal virada também tem por base central o projeto de naturalização do significado, no segundo capítulo, desenvolvemos uma discussão acerca deste tópico. Entendemos que o desenrolar da “virada informacional na Filosofia” foi responsável pela constituição de um cenário informacional na Filosofia, o qual propiciou o surgimento da Filosofia da Informação e da Ética Informacional. Assim, no capítulo três, analisamos os pressupostos dessas novas áreas de estudo da Filosofia. É no contexto da Ética Informacional que o problema da privacidade informacional é investigado. No capítulo quatro, indicamos razões do porquê a privacidade se torna um problema no âmbito das tecnologias informacionais e propomos uma abordagem sistêmica para analisar a privacidade neste contexto. Julgamos que esta abordagem fornece um método de análise que possibilita a compreensão dos limites do que é considerado privado pelos indivíduos, mesmo em ambientes virtuais. Por fim, retomamos as hipóteses levantadas no decorrer da dissertação e apresentamos outros problemas presentes no escopo de estudo da privacidade no contexto informacional de modo a contribuir para a compreensão dos novos rumos da pesquisa filosófica na “Era da Informação”. Palavras-chave: “Virada informacional na Filosofia”. Privacidade. Tecnologias digitais. Filosofia da Informação. Ética Informacional. ABSTRACT The goal of this dissertation is to analyze ethical implications of the “Informational Turn in Philosophy”, with a special emphasis on the problem of informational privacy. The dissertation is divided into four chapters. In the first, we analyze the central assumptions of the “Informational Turn in Philosophy” (Adams, 2003), focusing especially on mechanical-informational research on the mind. Since this “turn” also has the naturalization of meaning at its roots, in the second chapter we discuss this topic. We understand that the course taken by the “Informational Turn” was responsible for the establishment of an informational scenario in Philosophy, giving rise to the Philosophy of Information and Information Ethics. In light of this, in the third chapter we analyze the assumptions of these new areas of research. It is within Information Ethics that the problem of informational privacy is investigated. In the fourth chapter, we show how privacy constitutes a problem in the area of informational technologies, and we propose a systemic approach to analyzing privacy in this setting. We believe this approach provides a method, which allows an understanding of the limits of what is considered private by certain individuals, even in virtual environments. Finally, we review the hypotheses discussed in the dissertation and point out other problems within the scope of research on privacy in an informational context, so as to contribute to the understanding of new directions taken by philosophical research in the “Information age”. Keywords: “The Informational Turn in Philosophy”. Privacy. Digital technologies. Philosophy of Information. Information Ethics. SUMÁRIO Introdução......................................................................................................................11 Capítulo 1 – A “virada informacional na Filosofia”..................................................15 Apresentação......................................................................................................................16 1.1 A “virada naturalista na Filosofia”...............................................................................16 1.2 A “virada informacional na Filosofia”: marco e características centrais.....................20 1.2.1 O desenvolvimento da “virada informacional” após 1950.......................................26 1.3 A novidade da “virada informacional na Filosofia”....................................................31 Capítulo 2 – Informação, conteúdo informacional e significado: uma breve discussão.........................................................................................................................34 Apresentação......................................................................................................................35 2.1 Afinal, o que é informação?.........................................................................................35 2.2 Significado e ação segundo a perspectiva informacional-representacionista..............39 2.3 Informação e ação significativa no viés ecológico......................................................48 Capítulo 3 – Filosofia da Informação e Ética Informacional....................................55 Apresentação......................................................................................................................56 3.1 Filosofia da Informação: um novo paradigma?...........................................................56 3.2 A Ética Informacional..................................................................................................60 3.2.1 A Ética Informacional segundo Floridi.....................................................................63 3.2.2 A Ética Informacional segundo Capurro..................................................................69 Capítulo 4 – O problema da privacidade informacional...........................................73 Apresentação......................................................................................................................74 4.1 Ética Informacional e o problema da privacidade........................................................74 4.2 O problema da privacidade na era da globalização segundo Capurro.........................79 4.3 Por uma abordagem sistêmica da privacidade informacional.....................................84 Considerações Finais.....................................................................................................93 Referências...................................................................................................................104 11 INTRODUÇÃO A expressão “virada informacional na Filosofia” foi cunhada por Frederick Adams em seu artigo The Informational Turn in Philosophy para ressaltar a influência dos estudos sobre o conceito de informação na Filosofia a partir da década de 50. Tal virada iniciou uma corrente de investigação sobre as naturezas ontológica e epistemológica da informação na Filosofia da Mente e na Ciência Cognitiva, fortalecendo a abordagem naturalista da mente e do significado. As principais características da virada informacional são: a) o uso de conceitos da teoria da informação nos vários estudos da Filosofia da Mente, Filosofia da Linguagem, Ciência Cognitiva e em outras áreas da Filosofia e b) o projeto de naturalização da mente e do significado. Este projeto desenvolve estudos que visam analisar: como a mente funciona, qual a natureza dos estados mentais, do significado, se seria possível elaborar uma explicação naturalista do significado, entre outros tópicos. Nesse contexto, a informação é admitida como ingrediente fundamental para a análise de certos problemas filosóficos através de uma perspectiva mecanicista e representacionista. De acordo com Gonzalez (2005), esta perspectiva desenvolvida em grande parte da Ciência Cognitiva e da Filosofia da Mente emprega um método de investigação conhecido como “método sintético de análise”. Uma das características centrais do “método sintético de análise” é o pressuposto de que, no estudo da mente, é apropriado o emprego de funções mecânicas que podem ser manipuladas por computadores digitais. Através dessas funções, modelos mecânicos da dinâmica e da estrutura do pensamento inteligente são elaborados para ocupar o papel de teorias em sua explicação. Gonzalez (2005, p. 567) destaca que o entendimento que fundamenta tal concepção é o de que a capacidade de manipular, mecanicamente, informação constitui a principal função do pensamento. A aplicação do “método sintético de análise” na construção de modelos da mente na Ciência Cognitiva contribuiu para o desenvolvimento de tecnologias digitais. Este desenvolvimento, segundo Floridi (2002), possui uma íntima relação com a Filosofia. Tal relação pode ser observada com o aumento do número de pesquisas teórico-informacionais produzidas no âmbito filosófico contemporâneo, reestruturando abordagens a problemas clássicos e gerando outros. Diante deste contexto, Floridi 12 propõe a consolidação de uma disciplina autônoma na Filosofia que englobe questões acerca da íntima relação entre a Filosofia e o desenvolvimento tecnológico, e também da contínua remodelagem de problemas clássicos da Filosofia em termos informacionais. Esta área é denominada Filosofia da Informação. Entendemos que os impactos da chamada “virada informacional” extrapolam o âmbito acadêmico-científico (ilustrado pela constituição da Filosofia da Informação), podendo ser sentidos também na sociedade; impactos esses exemplificados com a inserção de tecnologias informacionais na vida cotidiana (câmeras, celulares, notebooks, entre outros), da qual emergem novos problemas e padrões de conduta. Julgamos que tais impactos na sociedade seriam responsáveis pelo surgimento de um ramo ético da Filosofia da Informação, o qual seus estudiosos denominam Ética Informacional. Uma vez que a Ética Informacional se apresenta enquanto área de investigação em constituição, não há uma concepção única de Ética Informacional, mas um consenso sobre a necessidade de reflexão acerca de questões éticas relacionadas aos impactos da inserção de tecnologias informacionais na vida cotidiana (Floridi [2005b, 2008, 2009b], Capurro [2006, 2010], Ess [2006, 2008], Brey [2007], Himma [2008]). Para Capurro (2010, p. 12), por exemplo, o estabelecimento de uma Ética Informacional é uma necessidade global que diz respeito à investigação de normas morais no contexto tecnológico. Tal necessidade decorre da amplitude que as questões morais podem ganhar em virtude da inserção de tecnologias informacionais na ação cotidiana. Diante do cenário apresentado, nosso objetivo é investigar problemas relacionados à “virada informacional na Filosofia”, com especial ênfase nas implicações éticas oriundas de tal virada. Dentre tais problemas, focalizamos o problema da privacidade informacional, um dos principais da Ética Informacional. Entendemos que os impactos da inserção de tecnologias informacionais na vida cotidiana dos indivíduos têm alterado o conceito de privacidade adotado pelo senso comum. A noção ocidental de privacidade enquanto “vida privada”, íntima, que pertence apenas ao sujeito, parece não englobar, por exemplo, situações em que pessoas se expõem na internet sem que esta exposição seja acompanhada de um sentimento de invasão de sua privacidade. Em virtude deste tipo de situação, o problema da privacidade informacional tem como dificuldade central sua análise. Assim, formulamos o problema do seguinte modo: como analisar a privacidade à luz da inserção de tecnologias informacionais na vida cotidiana? 13 Outras questões que estão em torno do tópico da privacidade informacional são: em que medida a inserção de tecnologias informacionais na sociedade afeta a privacidade dos indivíduos? Até que ponto tais tecnologias contribuem para a proteção, desejo e invasão da privacidade? Seria possível, apesar das divergências, desenvolver uma noção global de privacidade informacional? Como analisar a privacidade informacional em meio à constituição de uma “sociedade da vigilância”? Isto é, como analisar a noção de privacidade em meio a um contexto no qual estão presentes tecnologias informacionais e computacionais com alta capacidade de captação e armazenamento de informação pessoal (por exemplo: celulares, câmeras, cartões de crédito, etc.)? A partir da discussão das questões que circundam o tema da privacidade informacional, buscaremos desenvolver uma abordagem sistêmica para analisar a privacidade em meio ao contexto das tecnologias informacionais. A partir desta abordagem, a privacidade é analisada enquanto fruto de relações entre indivíduos e grupos (redes), que apresentaria maior ou menor grau de expansão em virtude das particularidades próprias da localização de cada indivíduo. Investigaremos se tal sugestão metodológica englobaria a compreensão da noção de privacidade em contextos diferentes, como, por exemplo, constituído por caracterizações particulares de indivíduos e grupos, ou entre grupos (interculturais). De modo a investigar o problema da privacidade informacional no contexto da “virada informacional na Filosofia”, dividimos a dissertação em quatro capítulos. No capítulo 1, explicitamos, numa perspectiva histórica, as principais características da “virada informacional na Filosofia”. Iniciamos com a apresentação das raízes naturalistas desta virada e, em seguida, apresentamos seus principais pressupostos. A partir do apresentado, questionamos a novidade trazida pela “virada informacional” para o estudo da mente. No capítulo 2, desenvolvemos uma discussão acerca da natureza ontológica da informação. Analisamos também a distinção entre conteúdo informacional e conteúdo semântico. Dada a complexidade da discussão acerca da noção de conteúdo semântico da informação e da noção de significado, apresentamos duas perspectivas para lidar com este tópico: i) a informacional-representacionista e ii) a ecológica. Tal discussão fornecerá elementos com os quais fundamentaremos uma abordagem sistêmica da privacidade informacional. 14 O capítulo 3 é subdividido em dois momentos. Num primeiro, apresentamos a Filosofia da Informação, tal como proposta por Luciano Floridi (2002). Floridi defende que a Filosofia da Informação constituiria uma nova área de investigação na Filosofia, com problemas, método e teorias próprias. Contudo, indagamos: em que medida esta área poderia indicar um novo paradigma na Filosofia? Além disso, dentre as questões que compõem a agenda filosófico-científica da Filosofia da Informação, também estão as questões de cunho ético. Assim, num segundo momento, analisamos as características centrais da Ética Informacional, na qual se situa nosso problema central, qual seja: o problema da privacidade informacional. No capítulo 4, discutimos o tópico da privacidade e como este se situa enquanto problema na Ética Informacional. Em seguida, aprofundamos a discussão sobre esse tópico a partir da relação que o problema da privacidade possui com a globalização informacional, a partir da análise que Capurro (2005) desenvolve acerca das concepções de privacidade nos países ocidentais e orientais. Por fim, dada a dificuldade de se analisar a privacidade no contexto das tecnologias informacionais, propomos uma abordagem sistêmica da privacidade informacional, argumentando que essa fornece um método de investigação apropriado para o problema de se analisar a privacidade no contexto informacional. Nas considerações finais, retomamos as hipóteses centrais presentes nesse trabalho e apresentamos outros temas situados em torno da privacidade que serão objetos de discussão futura. 15 CAPÍTULO 1 – A “VIRADA INFORMACIONAL NA FILOSOFIA” “Like the Hotel California, once you take the informational turn – you can check in (you even can check out), but you can never leave” (Adams, 2003, p. 496). 16 Apresentação Neste capítulo, investigamos os princípios centrais da “virada informacional na Filosofia”. Enquanto um capítulo de caráter principalmente histórico, destacamos, na seção 1.1, as raízes da “virada informacional” que, conforme ressaltam Gonzalez e Broens (2011), teria ocorrido graças ao cenário constituído a partir da herança deixada pela “virada naturalista na Filosofia”. Na seção 1.2, apresentamos os principais estudos que, segundo Adams (2003), constituem o marco da “virada informacional na Filosofia”, os quais foram responsáveis pela formação de uma perspectiva mecânico- informacional para a compreensão da mente e de outros problemas filosóficos. Na seção 1.3, discutimos em que medida a “virada informacional na Filosofia” traria novidades à Filosofia no que concerne a sua abordagem, método e problemas. 1.1 A “virada naturalista na Filosofia” As questões que guiarão nossa reflexão no presente capítulo são: quais as bases teóricas responsáveis pela ocorrência da “virada informacional na Filosofia”? Ela constituiria uma ruptura com as investigações vigentes? Compartilhamos da hipótese de Gonzalez e Broens (2011) segundo a qual a “virada informacional na Filosofia” seria decorrente de uma virada anterior, denominada “virada naturalista”. Nesta, está o entendimento de que o ser humano é um organismo complexo dentre outros. A retirada do ser humano do centro do universo torna possível, na “virada informacional na Filosofia”, que ele seja estudado como um sistema processador de informação, de modo a resolver questões acerca da natureza da mente sob uma perspectiva mecânica. Além disso, ambas as viradas provocaram o desenvolvimento de explicações da natureza da mente pautada em bases naturalistas. O termo naturalismo, segundo Papineau (2010), não possui um significado preciso. Num sentido geral, esse termo é utilizado para fazer referência a uma vertente da Filosofia que se situa mais próxima da Ciência. A abordagem naturalista na Filosofia descarta o sobrenatural na explicação da natureza e da mente, pois, em geral, concebe a realidade constituída apenas por elementos e leis naturais, as quais são explicadas através de métodos científicos. Cabe ressaltar que empregamos o termo “natural”, ao invés de físico, para não reduzir o naturalismo ao Fisicalismo. O Fisicalismo seria apenas uma das vertentes do naturalismo ontológico. Além do físico, algumas vertentes 17 do naturalismo também adotam uma perspectiva informacional, na qual a informação é o elemento fundamental para a explicação da mente. Neste sentido, o termo natural englobaria outros termos como “físico”, “biológico” ou “informacional” que expressam uma rejeição a pressupostos transcendentes na fundamentação do conhecimento a priori. No mesmo viés, Abrantes (2004) afirma que não há somente um tipo de naturalismo, mas que há diversos tipos que se configuram de acordo com o conjunto de teses adotadas. Abrantes (2004, p. 5) ressalta que entre tais teses destacam-se: i) a defesa do Fisicalismo no estudo da mente; ii) a rejeição do fundacionalismo; iii) a recusa de justificação a priori; e iv) o monismo metodológico. A tese (i) consiste na concepção de que todos os elementos existentes são físicos: tais elementos expressam propriedades físicas ou estão relacionadas com sua natureza física. A tese (ii) é uma refutação à grande parte das teorias modernas da mente, que são fundamentadas em bases transcendentes. Um exemplo de teoria que compõe o fundacionalismo é a proposta por Descartes (1973a, 1973b), que está fundamentada numa metafísica do cogito pressupondo a existência de um Deus. A tese (iii), por sua vez, diz respeito à rejeição de justificação dada a priori para crenças e a contestação do seu pretenso estatuto na epistemologia. Segundo a vertente naturalista, quando lidamos com a natureza do conhecimento e da crença é necessária uma justificação a posteriori, para que possamos distinguir o conhecimento da mera opinião verdadeira (ABRANTES, 2004, p. 5). Por fim, a tese (iv) decorre do Fisicalismo; ela sustenta que, uma vez que os elementos existentes no mundo são constituídos por elementos físicos, não é preciso utilizar diferentes métodos para explicar os processos e eventos do mundo físico, mas apenas o método científico empregado na Física. As quatro teses apresentadas têm em comum a rejeição ao transcendente como elemento explicativo, metodológico, ou como pressuposto no qual uma teoria da mente poderia se fundamentar. Tais teses foram desenvolvidas, dentre outras razões, como uma proposta para dissolver o dualismo presente no entendimento, por exemplo, da relação mente/corpo. De acordo com Abrantes (2004), podemos destacar três posturas naturalistas: naturalismos ontológico, metodológico e epistemológico. O naturalismo ontológico pressupõe uma concepção realista de mundo: o que é real e inteiramente existente é aquilo que é natural, sem recurso ao transcendente. O naturalismo metodológico busca unificar métodos de explicação da natureza da mente e do comportamento em sua 18 análise filosófica; considera que se a Filosofia tem a pretensão de dizer algo relevante sobre o mundo terá de fazê-lo a partir de métodos e dados das ciências naturais (por exemplo, oriundas da Física ou Biologia). O objetivo direcionador das pesquisas filosóficas seria uma aproximação da ciência em sua prática, com seus métodos e resultados. Já o naturalismo epistemológico assume a tese epistêmica de uma epistemologia evolucionária, herdeira da tradição darwinista. Uma tese de Darwin (1859/2009) relevante para o presente estudo consiste na concepção de que a evolução dos organismos ocorreria por sua relação com o meio, de modo que o meio, e suas variações, atuariam como seletor natural dos organismos que sobreviveriam. Assumir tal tese pode implicar em considerar que para compreendermos os estados mentais é preciso conceber sua ordem evolutiva (DENNETT, 1991a). A perspectiva denominada por Abrantes de naturalismo epistemológico tem por representante John Dewey (1909). Dewey (1909) desenvolve uma análise da influência do darwinismo na Filosofia. Tal análise destaca o nascimento de uma nova lógica de investigação da vida e do conhecimento, a qual possibilita a presença do acaso enquanto recurso explicativo para a evolução dos organismos. A proposta de Dewey rejeita o apelo a entidades transcendentes na explicação dos processos e estados mentais. Sua concepção materialista iniciaria um processo de desconstrução da metafísica da subjetividade1, uma vez que a concepção de ser humano é reconstruída e este passa a ser entendido apenas como mais um animal dentre outros sem qualquer apelo a uma entidade transcendente que justifique sua existência. Por sua posição em relação à influência na Filosofia da publicação de A Origem das Espécies de Darwin, Dewey pode ser considerado um dos arautos da “virada naturalista”. O filósofo considera que a publicação desta obra teve grande influência nos pensamentos filosófico e científico vigentes, em especial, no que diz respeito à rejeição do pressuposto do recurso à transcendência na compreensão da vida. O filósofo destaca o surgimento de uma nova lógica de investigação na Filosofia e na Ciência, que rejeitaria uma visão imutável e fixa dos elementos – visão esta que implica na existência de instâncias metafísicas e transcendentes em suas explicações. Esta nova lógica daria lugar a uma concepção dinâmica de aquisição do conhecimento que admite a ocorrência da mudança em decorrência do acaso e de condições locais, contextuais. 1 Como indicaremos adiante, esta expressão é defendida por Dupuy (1996) em sua análise do papel da Ciência Cognitiva na Filosofia. 19 No entendimento de Gonzalez e Broens (2011), a proposta de Darwin fortalece a concepção de que há processos guiados pelo acaso atuando na evolução dos organismos. O objeto do conhecimento passa a ser investigado numa perspectiva relacional. As filósofas (2011, p. 182) enfatizam a mudança de paradigma que a nova lógica trouxe para o estudo do conhecimento e da vida do seguinte modo: [...] a nova lógica focaliza a interação entre os seres de uma mesma espécie e as variáveis externas de diferentes ecossistemas; interação essa que envolve o acaso e se desenvolve em uma rede que molda e é simultaneamente moldada por variações algumas vezes imprevisíveis. Diferentes redes são geradas pelos distintos polos relacionais que se estabelecem (ou não) no complexo sistema da vida. Conforme destacado na citação acima, o organismo e a natureza passam a ser concebidos num âmbito relacional, o que possibilita a influência do meio no organismo dando origem a processos evolutivos. Compartilhamos com outros estudiosos do naturalismo que a refutação de hipóteses de um dualismo de substância e a busca por soluções ao problema da relação mente/corpo são as principais responsáveis pela ocorrência e desenvolvimento da “virada naturalista na Filosofia”. Neste contexto, o estudo da natureza do pensamento parte da questão “o que é pensar” e a subdivide em subproblemas do tipo: “quais as funções do pensamento?”, “onde ele está localizado?”, “que neurônios são responsáveis pela função ‘x’?”, entre outros. Conforme Dupuy (1996, p. 41), tal empreitada metodológica foi uma das responsáveis pelo desenrolar da desconstrução da metafísica da subjetividade implantada na Ciência Cognitiva. No âmbito da “virada informacional na Filosofia”, principalmente com os estudos de Inteligência Artificial, foi gerada a concepção de que sistemas artificiais também poderiam possuir estados mentais. Esta concepção situa a desconstrução da metafísica da subjetividade não apenas em relação ao corpo, mas também em relação ao pensamento, refutando a tese antropocêntrica de que só os seres humanos possuiriam mente. Neste sentido, na próxima seção, explicitamos as características centrais da “virada informacional na Filosofia” a partir de trabalhos que constituem seu marco. 20 1.2 A “virada informacional na Filosofia”: marco e características centrais A “virada informacional na Filosofia” deu início, segundo Adams (2003), a uma corrente de investigação sobre a natureza ontológica e epistemológica da informação na Filosofia e na Ciência Cognitiva, fortalecendo o projeto naturalista da mente. Na perspectiva naturalista, a informação, entendida como um elemento objetivo existente na natureza, é admitida como ingrediente fundamental para a análise de problemas filosóficos (como, por exemplo, a natureza da mente, a natureza do comportamento intencional, a natureza do significado, entre outros). Os estudos que caracterizam o marco da “virada informacional” são os desenvolvidos por Shannon & Weaver (1949), Turing (1950) e Wiener (1948, 1954). Shannon & Weaver (1949), no desenvolvimento de sua Teoria Matemática da Comunicação (The Mathematical Theory of Communication), propõem um estudo detalhado da medida de informação, que está associada à noção de entropia, a qual pode ser entendida como a medida do grau de desordem de um sistema. Esta concepção técnica de informação forneceria um método para medir a quantidade de informação gerada por um evento, transmitida em mensagens. O objetivo de tal método é garantir a transmissão mais eficiente possível dessas mensagens. A Teoria Matemática da Comunicação envolve conceitos como: fonte – geradora de informação; transmissor – mecanismo pelo qual a informação é conduzida até um receptor potencial; receptor – recebe e decodifica informação gerada na fonte através de mensagens. Além desses conceitos também estão presentes os de ruído, equívoco, canal de comunicação e fluxo informacional. Não aprofundaremos a análise da proposta de Shannon & Weaver, pois esses autores trabalham apenas com um conceito técnico de informação, visando o estabelecimento de equações que permitam medir a sua quantidade presente em determinado evento. Embora não estivessem interessados em explicitar o aspecto semântico da informação, a principal contribuição destes autores (1949, p. 9) para a “virada informacional” é a concepção de que a informação pode ser entendida objetivamente, enquanto medida da liberdade de escolha quando se seleciona uma mensagem. No mesmo contexto de Shannon & Weaver, Turing publica seu artigo Machinery and Intelligence, no qual propõe a tese segundo a qual “pensar é calcular”, a qual denominamos tese de Turing (TURING, 1950, p. 436). Esta tese consiste na defesa do pressuposto de que “pensar é calcular”. Entendemos que computadores digitais 21 operam a partir de cálculos e manipulam regras para organização de símbolos. Se considerarmos que pensar consiste, principalmente, na atividade de manipulação de símbolos, de acordo com um conjunto de regras lógicas, constituindo algoritmos, então computadores digitais poderiam, em princípio, pensar. O impacto que esta tese de Turing gerou na Filosofia é um exemplo da aproximação existente entre Filosofia e Ciência, herdada da “virada naturalista”. Turing procura fornecer respostas a problemas seculares da Filosofia, tais como: i) qual a natureza do pensamento? ii) como explicitar a atividade inteligente na resolução de problemas? Na discussão de tais questões, o pensamento passa a ser entendido, na Ciência Cognitiva, como um sistema mecânico de processamento de informação, cuja estrutura seria dada por um conjunto de algoritmos que, mecanicamente, operam sobre símbolos. A tese de Turing se destacou nos estudos cognitivos, pois propicia a construção de modelos da atividade mental constitutiva do pensamento inteligente, o que, supostamente, possibilitaria explicar (e conhecer) a natureza deste tipo de pensamento. Destaca-se, aqui, o pressuposto norteador da Ciência Cognitiva, segundo o qual “conhecer é fazer”. De acordo com Dupuy (1996, p. 21), este pressuposto está pautado no princípio do “verum factum” proposto por Vico (1984, p. 31). Tal princípio consiste na ideia de que o “verdadeiro” é aquilo que se faz, que se fabrica. Neste sentido, o entendimento propiciado pelo “fazer” é o que fornece ao ser humano o conhecimento racional (por meio de regras) de determinado fenômeno ou objeto reproduzido; entendimento este que o conduz a pensar que se possui um controle explicativo e preditivo dos objetos do conhecimento. É neste viés que o modelo ganha importância. Um modelo, lembra Dupuy (1996, p. 23): [...] se trata de uma idealidade, no mais das vezes formalizada e matematizada, que sintetiza um sistema de relações [...] O modelo é como uma forma abstrata que vem encarnar-se ou realizar-se nos fenômenos. Na “virada informacional na Filosofia”, o modelo adquire o status de ferramenta explicativa da natureza e da dinâmica organizadora do pensamento. O modelo mecânico do pensamento explicaria, quando bem sucedido, os processos que caracterizam o pensar. Este pressuposto embasa o método conhecido como “método sintético de análise”, o qual apresenta as seguintes etapas (GONZALEZ, 2005): 1) Enuncie, com clareza, o problema a ser analisado; 22 2) Divida-o em subproblemas se necessário for; 3) Identifique as funções, bem como as regras de operação, que possibilitam a solução desses subproblemas; 4) Integre as funções das partes menores, identificando uma função mais abrangente que as reúna, a qual possibilite a elaboração de um modelo explicativo do problema analisado. Seguindo os passos acima elencados busca-se a resolução de um problema complexo através de algoritmos que possibilitam a construção de modelos que realizem tarefas, tais como: a resolução de problemas matemáticos ou problemas de jogos, estruturaração de um diagnóstico médico, entre outros. Nas situações práticas, como no preparo de um litro de café, por exemplo, é possível ilustrar a aplicação do “método sintético de análise”, a partir do qual se divide a tarefa em: i) pegar o café, ii) ferver a água, iii) pegar o coador, iv) pegar a garrafa térmica, etc. Após a identificação dos passos necessários para o preparo do café, há a ordenação de tais passos tendo em vista que ao final do cumprimento das etapas seja obtido o “café pronto dentro da garrafa térmica”. Compreendidas as regras e funções subjacentes às relações entre as etapas de preparar o café, seria possível, através do desenvolvimento de algoritmos, a construção de modelos capazes de desempenhar a tarefa de “fazer café” de forma bem sucedida. Conforme ressalta Gonzalez (2005, p. 567), os adeptos do “método sintético de análise” entendem que a explicação de um evento é fornecida a partir da construção de modelos que simulam ou reproduzem, por meio de leis mecânicas, as funções desempenhadas pelo evento original. Neste método o computador é empregado como uma ferramenta fundamental. O “método sintético de análise” tornou possível o desenvolvimento e implementação de modelos mecânicos da mente que gerou, inicialmente, dois desdobramentos na Ciência Cognitiva: Inteligência Artificial forte e fraca. ��A Inteligência Artificial forte defende a hipótese de que os modelos, quando bem sucedidos, além de simular, possuem estados mentais. ��A Inteligência Artificial fraca, por sua vez, defende a hipótese de que os modelos mecânicos apenas simulam, enquanto recurso explicativo, os estados mentais, mas não possuem tais estados. (TEIXEIRA, 1998, p. 167) Em ambos os casos, a construção de modelos desempenha o papel de teorias explicativas. 23 O critério de adequação de modelos para explicar o pensamento inteligente está fundado no que foi denominado teste de Turing (TURING, 1950). Este teste está pautado em um “jogo da imitação”. Resumidamente, o objetivo deste jogo é avaliar em que medida, através de perguntas e respostas, uma máquina poderia confundir um juiz humano de que é uma pessoa. O jogo, em geral, é composto por uma pessoa, uma máquina e um interrogador. Os três componentes do jogo estão situados em salas diferentes, sendo que as respostas às perguntas feitas pelo interrogador são dadas por meio de uma interface. Ao final das perguntas, caso a máquina consiga confundir o interrogador, de modo que este julgue que as respostas dadas pela máquina foram dadas por uma pessoa, então ela teria passado no teste. De acordo com Dupuy (1996, p. 35), uma das implicações filosóficas ocasionada pela concepção mecanicista informacional da mente seria que, se, por hipótese, for possível explicar a atividade mental por meio de modelos que atuam seguindo operadores formais, também seria possível solucionar o problema da relação mente/corpo. O problema da relação mente/corpo é decorrente da concepção cartesiana de ser humano, o qual seria constituído por duas substâncias distintas: a alma, imaterial, e o corpo, material. O problema da relação mente/corpo pode ser colocado do seguinte modo: como explicar a relação entre mente (imaterial) e corpo (material), uma vez que estas são substâncias distintas entre si e respondem a leis também distintas? Dupuy considera que, através da abordagem informacional, a mente, entendida como a faculdade de processar mecanicamente informação, adquiriria, para alguns, um lugar no mundo físico, dissolvendo a dualidade de substância. Como ressalta Dupuy (1996, p. 27), tal suposição considera que: A mente, entendida como o modelo da faculdade de modelizar, reencontrou seu lugar no universo material. Ou, para dizê-lo em outros termos, hoje mais familiares, há informação (e até sentido) no mundo físico. As faculdades da mente são apenas as propriedades de sistemas de processamento de informação. De acordo com Dupuy, a Ciência Cognitiva surge para desconstruir a metafísica da subjetividade, de modo a explicar os fenômenos mentais em termos de informação. Dando sequência ao processo de desconstrução da metafísica da subjetividade, surge a Cibernética, que possui como seu criador Norbert Wiener (1948/1965, 1954). Wiener cria a Cibernética com o intuito de desenvolver uma teoria do controle e da comunicação, tanto em animais quanto nas máquinas. Este interesse conduziu Wiener 24 (1954, p. 17, tradução e itálico nosso) ao entendimento de que: “os comandos através dos quais exercemos controle sobre o nosso meio são um tipo de informação que impomos a ele”2. Para o autor, podemos conceber informação como o conteúdo daquilo que pode ser trocado com o mundo externo para nos ajustarmos a ele (WIENER, 1954, p. 17). Neste sentido, seria por meio da troca de informação com o meio que ocorreria o processo de controle da ação: informações diferentes geram ações diferentes, sendo que é em função da informação disponível no meio que a máquina ou animal desempenha uma ação. Na explicação sobre a troca de informação do organismo com o meio se destaca o conceito de feedback, fundamental na Cibernética. O feedback pode ser entendido como uma propriedade dos sistemas de ajustar seus comportamentos futuros em função das performances anteriores (WIENER, 1948/1965, p. 97). Um exemplo simples de aplicação do feedback é o termostato, que controla a temperatura do ambiente a partir da informação sobre a temperatura presente: se a temperatura da sala for menor do que a programada, o termostato será ligado para deixar a temperatura num grau desejado; caso a temperatura captada ultrapasse o limite programado, o termostato será desligado, e assim sucessivamente. Os processos de feedback, segundo Wiener, estão presentes nos sistemas neurais, artificiais e orgânicos3, na habilidade de preservar, na memória, os resultados das operações realizadas no passado para uso no futuro. O autor (1948/1965, p. 121) destaca dois empregos fundamentais da memória: i) ela é necessária para manter os processos sinápticos atuais; e ii) é admitida como parte de arquivos da máquina ou do cérebro que contribuem para as bases de comportamentos futuros. No caso dos organismos, o estudo da memória é feito a partir da análise de como ocorre o armazenamento de informação no cérebro através da atividade sináptica. Além dos estudos sobre o papel dos processos de feedback no comportamento, entendemos que a principal contribuição de Wiener para a “virada informacional” surge a partir de sua controversa caracterização de informação, segundo a qual: “Informação é informação, não é matéria ou energia. Materialistas que não admitam isso não poderão 2 The commands through which we exercise our control over our environment are a kind of information which we impart to it. 3 Uma vez entendido o cérebro como uma máquina digital e analógica, Wiener considera que a Cibernética pode auxiliar na explicação dos sistemas orgânicos. O cérebro desempenharia suas performances a partir de operações lógicas, de algoritmos. Para o autor, o caráter tudo-ou-nada (all-or- none) das descargas neurais seria análogo aos processos de escolha dos métodos binários, presentes na modelagem mecânica. 25 sobreviver nos dias atuais”4 (WIENER, 1948/1965, p. 132, tradução e itálico nossos). Entendemos que tal afirmação fortalece o projeto naturalista, uma vez que a informação é aí entendida como uma propriedade constituinte do mundo, ao lado da matéria e energia; nesse sentido, explicações dos fenômenos mentais via informação ganham força. É importante ressaltar que a citação acima sobre a natureza ontológica da informação, aparentemente tautológica, é na verdade uma estratégia para indicar a dificuldade de se compreender o plano ontológico da informação, que não se reduz à matéria nem à energia. Tal concepção indica um pressuposto metafísico de Wiener, segundo o qual o universo é composto pela relação entre informação, matéria e energia. Neste contexto, os organismos podem ser compreendidos como padrões de informação, que mantêm uma estabilidade na troca matéria-informação-energia. A proposta de Wiener, por estar pautada numa abordagem biológico- informacional, auxilia o projeto de modelagem do pensamento. Entretanto, ela não foi prontamente adotada (na década de 1950), pois o interesse da Ciência Cognitiva da época era, como apresentamos, o de desenvolver a hipótese segundo a qual “conhecer é fazer” através de processos estritamente simbólicos; isto é, por meio da construção de modelos que operam segundo algoritmos. Uma vez que a proposta de Wiener possui um viés biológico, de atuação da informação nos sistemas complexos, ela é mais difícil de modelagem no domínio simbólico. Fenômenos biológicos aparentemente não apresentam uma relação determinista, mas podem envolver variações e novidades, que escapam do universo causal determinista, dificultando sua reprodução através de algoritmos. Em síntese, procuramos até aqui trazer subsídios para o entendimento de que a “virada informacional na Filosofia” consolida o processo de desconstrução da metafísica da subjetividade. A aproximação da Filosofia com a Ciência possibilitou também a aproximação de problemas filosóficos tratados a partir de metodologias científicas e computacionais. Neste contexto, a tese de Turing de que pensar é calcular, por meio de algoritmos, impulsionou o desenvolvimento de computadores capazes de reproduzir estes mesmos algoritmos. Diante disso, o pressuposto norteador da Ciência Cognitiva de que “conhecer é fazer”, através da construção de modelos, ganha corpo e auxilia o aprimoramento de sistemas artificiais que simulam (ou reproduzem) aspectos 4 Information is information, not matter or energy. No materialism which does not admit this can survive at the present day. 26 da mente, dando origem e fortalecendo os estudos da Inteligência Artificial. Neste sentido, consolida-se a desconstrução da metafísica da subjetividade, pois o ser humano perde seu lugar de “único ser com mente”, como era concebido pelo pensamento Moderno. Vimos que Wiener também contribui para tal desconstrução, uma vez que promove uma análise informacional da mente inspirada na Biologia, visando o desenvolvimento de máquinas que pudessem apresentar características semelhantes àquelas dos organismos através de feedback. É no âmbito da “virada informacional” que pesquisadores na Filosofia da Mente e na Ciência Cognitiva têm desenvolvido suas teorias, apoiadas na elaboração de modelos mecânicos de processamento de informação (MacKay [1963], Rumelhart & Maclelland [1989], Gonzalez [1996], Simon [1998], Brooks, [2002], Gallagher [2007]). Como indicamos, na Ciência Cognitiva os modelos viriam a substituir as teorias. Seguindo este entendimento, a explicação do voo de um pássaro, por exemplo, poderia ser fornecida com a construção de um modelo mecânico do pássaro que fosse capaz de voar. Assim, na próxima seção, apresentamos uma breve reflexão acerca dos primeiros estudos ocorridos após a “virada informacional”, os quais buscavam a compreensão do funcionamento da mente em termos mecânico-informacionais. 1.2.1 O desenvolvimento da “virada informacional” após 1950 Até o momento, ressaltamos que os estudos acerca da natureza informacional dos estados mentais são de grande relevância na Filosofia (em especial, na Filosofia da Mente), inspirando, também, o desenvolvimento da Ciência Cognitiva. Explicitamos que, após a apresentação da tese de Turing (1950), a mente passou a ser concebida na Filosofia da Mente e na Ciência Cognitiva como um sistema processador de informação, capaz de armazenar, transportar e representar informação. Neste contexto, o pressuposto central da Ciência Cognitiva de que “conhecer é fazer” ganha força iniciando o desenvolvimento de modelos computacionais para explicar a natureza dos processos e estados mentais. Assim, os estudos filosóficos sobre a natureza da mente e de seus componentes se inter-relacionam com os interesses da Ciência Cognitiva: enquanto a Filosofia da Mente se preocupa com a caracterização do viés ontológico e epistemológico da mente, a Ciência Cognitiva visa, principalmente, o desenvolvimento de técnicas de modelagem para simular as características elencadas pela Filosofia. Diante deste cenário, uma década após o marco da “virada informacional”, MacKay 27 (1963, p. 226, tradução nossa) coloca a seguinte questão: “quão próximo poderia estar, em princípio, o comportamento de um sistema artificial em relação ao da mente humana?”5. Em outras palavras: até que ponto é possível simular a mente humana em um modelo computacional? Na investigação mecânico-informacional da mente, destaca-se a discussão acerca da Intencionalidade, desenvolvida, principalmente, por Searle (1983) e Dennett (1996). De acordo com Searle (1983, p. 1, tradução nossa), por Intencionalidade se concebe: “aquela propriedade de muitos estados mentais e eventos pela qual eles são direcionados à, ou referem-se à, objetos e estados de coisas no mundo”6. É importante ter em mente, destaca Searle (1983, p. 3), que Intencionalidade remete a direcionalidade, enquanto que a intenção de fazer algo é apenas um tipo de Intencionalidade. Encontra-se Intencionalidade original em crenças, medos, desejos, entre outros estados mentais, uma vez que seus poderes de fazer referência são oriundos dos processos evolutivos do organismo. A Intencionalidade derivada, por sua vez, pode ser encontrada em artefatos como: palavras, livros, mapas, figuras e programas computacionais. Estes, segundo Dennett (1996, p. 50, tradução nossa): “possuem intencionalidade somente por cortesia de um tipo de empréstimo generoso de nossas mentes”7. Dentre os tipos de comportamento que envolvem Intencionalidade está o comportamento direcionado à meta (goal-directed behavior). De acordo com MacKay (1963), a construção de um modelo computacional que simule o comportamento direcionado à meta deveria instanciar a estrutura proposta por Wiener. Tal modelo requereria um sistema capaz de processar informação por mecanismos de feedback, de modo que ocorra uma constante supervisão do fluxo da informação captada, alcançando, assim, uma meta pré-estabelecida. Para que o modelo computacional se assemelhe às características humanas, além do sistema operar por mecanismos de feedback, seria necessário que ele apresentasse algoritmos probabilísticos. Esses algoritmos ampliariam a capacidade do sistema, uma vez que reduziriam a limitação determinística comum às máquinas, deixando que os processos subjacentes à obtenção da meta ocorram indeterminadamente. Para MacKay (1963, p. 232, tradução nossa), a partir da construção deste tipo modelo, “qualquer padrão de 5 How closely in principle could the behavior of such an artificial organism parallel that of a human mind? 6 [...] property of many mental states and events by which they are directed at or about of objects and states of affairs in the world. 7 […] have intentionality only by courtesy of a kind of generous loan from our minds. 28 comportamento observável que pode ser definido estatisticamente, em termos de reações prováveis para dadas situações, pode, em princípio, ser apresentado por um artefato”8. Contudo, apesar do entusiasmo dos estudos da Ciência Cognitiva na década de 1960, alguns pesquisadores desta área (dentre eles, Sayre [1963], Searle [1984], Dreyfus [1992]) consideravam que tais modelos realizavam apenas o reconhecimento de padrões formais, sem qualquer conteúdo. Um dos argumentos que ressaltam as dificuldades da manipulação do significado por sistemas artificiais é o argumento do “Quarto Chinês”, formulado por Searle. Este argumento se situa, principalmente, como uma crítica direta à Turing. Para Searle, a tese de Turing não auxiliaria na compreensão da natureza e do funcionamento da mente humana, pois o pressuposto de que “pensar é calcular” não seria satisfatório para construção de um modelo que simulasse (ou reproduzisse) tal funcionamento. Searle entende que a “mera” manipulação de símbolos não englobaria a manipulação de significado. Em resumo, o argumento do “Quarto Chinês” se constitui enquanto um “experimento de pensamento” (thought-experiment) que possui dois momentos. Em ambos os momentos supõe-se a manipulação de símbolos em chinês a partir de um manual em língua inglesa. Num primeiro momento, o experimento sugere um computador que simule o entendimento do chinês. Num segundo momento, Searle refina o argumento e sugere a situação em que uma pessoa está fechada numa sala e manipula placas com caracteres chineses a partir de um manual em inglês. Em ambos os casos, Searle considera que o que ocorre é uma mera manipulação de símbolos sem significado, uma vez que não há o conhecimento do conteúdo que está sendo manipulado. Com o segundo momento do argumento, Searle quer enfatizar que se um sujeito cognitivo não é capaz de aprender chinês a partir da mera manipulação de símbolos através de regras sintáticas, então um computador digital também não possui tal capacidade. Com a evolução da Inteligência Artificial e o desenvolvimento da Robótica Evolutiva, surgiram diversas tecnologias computacionais para superar limitações como a colocada por Searle (1983, 1984). Um exemplo dessa ampliação tecnológica na compreensão do reconhecimento de padrões informacionais são as redes neurais artificiais, que possuem a capacidade de “aprender” a reconhecer padrões através de 8 Any pattern of observable behavior which can be defined statistically, in terms of probable reactions to given situations, can in principle be sown by an artifact. 29 treinamento (Rumelhart & Maclelland [1989], Gonzalez [1996], Simon [1998], Haselager e Gonzalez [2007]). As redes neurais artificiais, segundo Rumelhart & Maclelland (1989), lidam com o conteúdo dos sinais. O conteúdo dos sinais estaria contido nos padrões informacionais emergentes da ativação de certos nódulos da rede ativada pelo sinal recebido no input. Conforme ressalta Churchland (1992, p. 162), as redes neurais são compostas por camadas de entrada (input), de saída (output) e as “intermediárias” (hidden layers - responsáveis pela mediação entre o input e o output). As camadas intermediárias possuem um papel importante no processamento de informação das redes neurais artificiais, pois nelas seriam assimilados os conteúdos informacionais9. Tais redes possuem processamento de informação em paralelo, apresentando diversos nódulos, nos quais um conteúdo informacional se instancia. Quando a rede recebe um sinal em seu input, alguns nódulos são ativados, fazendo emergir, na maioria das vezes, por processos auto-organizados, o conteúdo do sinal recebido nas camadas intermediárias, o qual é direcionado à camada de saída, emitindo a resposta da rede. Em outras palavras, nas redes neurais artificiais o conteúdo informacional não está simplesmente armazenado em estruturas sintáticas lineares, mas sim em partes que são reordenadas de forma não-linear a partir do sinal recebido na camada de input. Um exemplo de rede neural fornecido por Churchland (1992, p. 202) é o de uma rede capaz de diferenciar pedras de minas aquáticas por meio do som que esses objetos fazem ao cair na água. Para que a rede neural desenvolva tal capacidade, ela é treinada, por meio de inúmeras repetições, de modo que seja capaz de obter padrões de conectividade através de um “ajuste fino” que identifique as diferenças entre o som da pedra ao cair na água e o som da mina aquática. Para este ajuste fino, admite-se, por exemplo, que a rede neural seja capaz de reconhecer que o som de algo oco em contato com a água se refere às minas aquáticas, enquanto que o som de um objeto preenchido diz respeito às pedras. De acordo com Churchland (1992, p. 166, tradução nossa): “sob 9 Pautados na teoria representacional da mente proposta por Dretske, Rodrigues & Moraes (2009) consideram que as redes neurais não manipulam, em sentido estrito, o significado da informação, persistindo, assim, o problema de modelagem deste aspecto da mente humana. Conforme apresentaremos adiante, Dretske distingue entre conteúdo informacional e significado. Rodrigues & Moraes (2009, p. 7, tradução nossa) ilustram tal distinção do seguinte modo: “Para ilustrar tal concepção dretskeana podemos citar o exemplo de um livro: este seria apenas um canal para a transmissão de informação e não representaria o significado em si. Nesse sentido, os padrões das redes neurais seriam como os livros”. 30 a pressão de tais correções repetitivas, o comportamento da rede vagarosamente converge para o comportamento desejado”10. Nesse mesmo viés, Juarrero (1999, p. 163) ressalta que as redes neurais, tanto artificiais como biológicas, estabelecem dinâmicas de auto-organização resultantes da possibilidade da influência dos padrões informacionais presentes no meio que atuam através de processos de feedback. Com o desenvolvimento contemporâneo das redes neurais artificiais, a capacidade de aprendizagem de tais redes tem ampliado o poder de interação com o meio (Broooks, 2002). Tal interação tem sido objeto de estudos da Robótica Evolutiva através de robôs que se relacionam entre si buscando a manutenção dos mesmos (Gallagher, 2007). Atualmente não há, ainda, um consenso sobre o poder dos modelos computacionais para explicitar as características da mente humana, porém há um intenso desenvolvimento na área da Ciência Cognitiva que está aprimorando mecanismos para superar os limites destacados pelos filósofos. Podemos perceber, de qualquer forma, um desenvolvimento comum, na Filosofia da Mente e na Ciência Cognitiva, no que concerne ao apoio mútuo (ou a críticas) ao emprego de tais modelos, que constituem a base fundamental do “método sintético de análise” (Haselager & Gonzalez, 2007). Mas seria este método satisfatório para o desenvolvimento de modelos explicativos da atividade do pensamento? Dentre as críticas aos modelos mecânicos, destaca-se aquela que enfatiza o elemento do critério de relevância para a seleção da informação constitutiva do pensamento inteligente. Podemos caracterizar o critério de relevância como um conjunto de indicações ou regras que maximizam a informação e a manutenção da coerência de um sistema em determinado meio. Este critério estaria subjacente as escolhas feitas pelo sistema. Dado que a Ciência Cognitiva possui como ferramenta metodológica e explicativa a construção de modelos mecânicos, e tendo em vista que um dos principais aspectos do pensamento é a capacidade de realizar escolhas, a explicação deste aspecto, neste âmbito de investigação, se daria via construção de modelos que possuíssem a capacidade de escolha. Entretanto, alguns críticos (por exemplo, Dascal [1990]) argumentam que o desempenho dos modelos na execução de escolhas pressupõe o que já está programado pelo engenheiro. Neste sentido, uma vez que os critérios de 10 Under the pressure of such repeated corrections, the behavior of the network slowly converges on the behavior we desire. 31 relevância de escolha não são próprios do modelo, mas remetem ao critério do programador, tal explicação seria deficiente. Atualmente, há discussões acerca desta deficiência no âmbito da Teoria da Auto-Organização (Gonzalez [2004], Haselager & Gonzalez [2008]) e do desenvolvimento de algoritmos genéticos (Falkenauer [1997], Fogel [2000], entre outros). Apresentadas as características principais da “virada informacional na Filosofia”, em que medida ela pode ser considerada uma perspectiva nova no estudo da mente? Discutiremos tal questão na próxima seção. 1.3 A novidade da “virada informacional na Filosofia” Gonzalez, Broens e Moraes (2010) consideram que a novidade da “virada informacional” para a Filosofia estaria principalmente no que concerne à hipótese de Adams segundo a qual a inserção do conceito de informação nas pesquisas filosóficas estaria delineando novos rumos a tais pesquisas. Os autores concordam com tal hipótese, mas consideram que ela seria frágil, principalmente no que concerne aos diversos significados atribuídos ao termo informação11. Além disso, segundo Gonzalez et al, o conceito de informação empregado nas pesquisas filosóficas a partir de Turing, acompanhado do pressuposto de que “pensar é calcular”, teve seu impacto na Filosofia não por seu teor mecanicista, mas por seu caráter representacionista. Nesse sentido, Gonzalez et al (2010, p.138) argumentam que: “a virada informacional na filosofia não seria inovadora, uma vez que, desde os seus primórdios, a reflexão filosófica sobre a natureza da mente se apoia no pressuposto representacionista”. Para reforçar seu entendimento, Gonzalez et al apresentam a posição crítica de Kravchenco (2007, p. 596) acerca da influência da proposta de Turing sobre os estudos desenvolvidos posteriormente na Filosofia da Mente e na Ciência Cognitiva, qual seja: [...] tenho um grande respeito por Alan Turing mesmo que seja por uma única razão: poucos cientistas foram capazes de lançar um feitiço tão forte sobre as mentes dos outros ‘cognitivistas profissionais’, cegando-os para toda evidência empírica e/ou teóricos contra a famigerada alegação de que ‘pensar é computar’ [calcular].12 11 Discutiremos acerca da natureza ontológica da informação no próximo capítulo. 12 I have great respect for Alan Turing even though for one simple reason: few scientists have been able to cast such a strong spell on the minds of other ‘professional cognizers’, blinding them to any empirical evidence and/or theoretical arguments against the infamous claim that ‘thinking is computation’ [...]. 32 Na citação acima, Kravchenco ressalta sua rejeição ao pressuposto de que “pensar é calcular” e ao “método sintético de análise” desenvolvido a partir dos estudos de Turing. Gonzalez et al, entretanto, consideram que o que Kravchenco denomina “cegueira súbita” não teria ocorrido graças aos estudos de Turing, mas seria um eco de concepções representacionistas clássicas da mente que vigoraram no pensamento filosófico (Descartes, por exemplo). O aspecto mecanicista da proposta de Turing, por sua vez, também não seria o aspecto inovador da virada, pois, como apresentam Gonzalez et al (2010, p. 144) e Broens (1998), Blaise Pascal (1623-1662), entre 1642 e 1643, já havia inventado e construído a máquina aritmética13. Em sua análise acerca da “virada informacional na Filosofia”, Gonzalez et al (2010, p. 144) colocam outra questão: “se as hipóteses representacionista mecanicista da mente não são novas na Filosofia, qual seria então o elemento inovador na suposta virada informacional?”. A resposta a esta questão seria a de que é o elemento da informação, inserido nos estudos da Filosofia a partir da década de 50, a novidade nos estudos da Filosofia da Mente e da Ciência Cognitiva. Esta inserção se divide em duas vertentes: a representacionista (internalista e externalista) e a antirrepresentacionista. A abordagem representacionista dos estudos informacionais na Filosofia, que possui como expoentes, principalmente, Dretske (1981, 1995) e Juarrero (1999), não denotaria um grande salto nas pesquisas filosóficas, segundo Gonzalez et al, uma vez que as concepções representacionistas de mente seriam, em certa medida, uma continuação das concepções vigentes. A abordagem antirrepresentacionista da informação, por sua vez, seria, no entendimento de Gonzalez et al, a vertente a partir da qual ocorreria a verdadeira “virada informacional”. Esta abordagem é constituída pela vertente da Filosofia denominada Filosofia Ecológica, que tem como representantes centrais Gibson (1986) e Large (2003), os quais concebem a informação segundo uma perspectiva não representacionista, a partir da relação entre organismo e meio ambiente via percepção/ação (a ser explicitada no capítulo 2). Entendemos que apesar de não constituir uma ruptura com a tradição, os estudos do início da “virada informacional na Filosofia” consolidam uma perspectiva mecânico- informacional para a compreensão e abordagem de problemas da Filosofia da Mente e da Ciência Cognitiva. Compartilhamos a hipótese de Gonzalez, Broens e Moraes no 13 A máquina aritmética é um modelo operacional desenvolvido e construído por Pascal em 1642 capaz de fazer as operações de adição e subtração (cf. http://indunilg.blogspot.com/2008/10/blaise-pascals- arithmetic-machine-1640.html). 33 sentido de que tal abordagem não seria uma postura de análise completamente inovadora. Mas julgamos que a virada informacional se coloca enquanto um marco para os estudos da Filosofia por seu impacto para o desenvolvimento de trabalhos em todo o decorrer da segunda metade do séc. XX. Embora não traga grandes novidades, de método ou pressupostos, parece ser na “virada informacional” que princípios naturalistas, informacionais e de cunho representacionista são sistematizados favorecendo a constituição de um modo de “fazer” Filosofia mais próximo da Ciência, contribuindo para um diálogo interdisciplinar. Mesmo que os primeiros estudos decorrentes da “virada informacional na Filosofia” tenham sido de cunho técnico, é a partir da década de 80, principalmente com os trabalhos de Dretske (1981, 1992, 1995), que a Filosofia atenta para a investigação do conceito de informação propriamente dito. Neste contexto, perguntas acerca da natureza epistemológica e ontológica da informação ganham espaço. Enfim, buscamos apresentar as características centrais da “virada informacional na Filosofia”, quais sejam: i) uso da informação nos estudos filosóficos, ii) abordagem mecanicista e representacionista; sendo que i) e ii) visam à naturalização da mente e do significado. A proposta de Turing ilustra tais características, principalmente a utilização do “método sintético de análise” para compreender a natureza do pensamento inteligente. Contudo, tal proposta sofreu críticas. Como indicamos, Searle argumenta que a abordagem mecanicista simbólica não é capaz de lidar com o significado inerente ao pensamento humano. O que ocorreria seria apenas a manipulação de formas vazias. A partir de tal crítica, foram desenvolvidas outras técnicas de modelagem para englobar também a habilidade de manipular conteúdos informacionais através de uma perspectiva mecanicista. Dupuy (1996, p. 41) entende que Searle não vê a ocorrência de um processo de desconstrução da metafísica da subjetividade proporcionado pela abordagem informacional da mente. O debate sobre a adequação (ou inadequação) da proposta mecanicista de modelagem da mente, lançada por Turing, bem como as implicações que suas ideias causaram no estudo do pensamento humano, iniciou, segundo Dupuy, uma investigação do conceito de informação e da relevância do significado nos modelos mecânicos da mente. Uma vez que focamos nossa análise neste capítulo no entendimento dos pressupostos centrais da “virada informacional na Filosofia” para o estudo da mente, no próximo capítulo discutimos questões em torno do significado. 34 CAPÍTULO 2 – INFORMAÇÃO, CONTEÚDO INFORMACIONAL E SIGNIFICADO: UMA BREVE DISCUSSÃO “In the beginning there was information. The word came later”. (DRETSKE, 1981, p. iv) 35 Apresentação O objetivo deste capítulo é desenvolver uma discussão acerca do conceito de informação e da distinção entre conteúdo informacional, conteúdo semântico e significado. Para tanto, na seção 2.1, apresentamos concepções de informação, dentre elas, as de Stonier (1999) e Gonzalez (2012). Na seção 2.2, iniciamos com a distinção entre conteúdo informacional e conteúdo semântico, conforme proposta por Dretske (1981). Esta distinção e a concepção de informação de Gonzalez auxiliarão no desenvolvimento de uma abordagem sistêmica da privacidade informacional. Ainda nesta seção, analisamos a perspectiva informacional-representacionista de significado, segundo a qual a representação e a aprendizagem são fundamentais para a ocorrência do significado. Esta perspectiva é ilustrada com a teoria informacional de Dretske (1981, 1992) e de Juarrero (1999). Em seguida, na seção 2.3, explicitamos a perspectiva ecológica de significado, pautada nas propostas de Gibson (1986) e Petrusz & Turvey (2010), na qual a percepção direta possui função central para a compreensão daquilo que é significativo para um organismo. 2.1 Afinal, o que é informação? Dentre as questões que estão atreladas à investigação acerca da natureza ontológica e epistemológica da informação estão: seria a informação um elemento que existe objetivamente no mundo, independente de uma mente ou da linguagem, ou necessitaria ela de um sujeito cognitivo para existir? A informação seria uma propriedade física do universo, ou possuiria ela elementos não redutíveis ao físico? Embora o estudo acerca do conceito de informação tenha se iniciado com mais força a partir dos anos 1980, algumas propostas às questões levantadas são datadas de um período anterior, por exemplo, com Peirce (1865-1895). Para os propósitos desta dissertação, nos limitaremos a comentar trabalhos sobre o tema da informação posteriores a 1948, por exemplo, a partir da Teoria Matemática da Comunicação proposta por Shannon & Weaver (1949). Os estudos de Shannon & Weaver (1949) e sua Teoria Matemática da Comunicação, como indicamos no capítulo anterior, constituem um marco no estudo da informação. Apesar de não estarem interessados no estudo do significado da informação 36 propriamente dito, mas em estabelecer uma noção técnica de informação, os autores propõem que ela seja concebida em termos probabilísticos decorrentes da redução de possibilidades de escolha de mensagens. Neste sentido, a geração de informação seria proveniente de processos subjacentes à organização dos eventos ocorrentes no mundo, implicando em uma redução de entropia. A entropia, como indicamos, é aqui entendida como a medida do grau de desordem de um sistema. Uma vez que os processos informacionais são mensurados através do grau da entropia presente na ocorrência dos eventos, a proposta de Shannon & Weaver envolve uma definição objetiva de informação, existente no mundo independente de um sujeito específico, consciente. A quantidade de informação gerada por um evento é medida, na proposta de Shannon & Weaver, a partir da redução da incerteza presente nos eventos. Por exemplo, em uma sala de aula com oito alunos a professora quer escolher um para ajudá-la em uma tarefa. Para se chegar a escolha do aluno é adotado um método binário, como o “cara e coroa”. Num primeiro momento, joga-se a moeda e o grupo de oito alunos é dividido em dois subgrupos de quatro. Joga-se a moeda novamente e o subgrupo de quatro alunos é divido uma vez mais, em dois outros grupos de dois, deixando um dos grupos de lado. Segue-se, então, o processo jogando a moeda até que o subgrupo de dois alunos possua apenas um membro, o qual é o escolhido. Cada um dos três passos tomados no processo de seleção tem por intuito reduzir o número de possibilidades de escolha. Como a Teoria Matemática da Comunicação mede a quantidade de informação (em bits) a partir das tomadas de decisão, podemos dizer que neste processo de seleção do aluno que ajudaria a professora em determinada tarefa a quantidade de informação gerada é de três bits - uma vez que foram necessárias três etapas para se chegar à escolha do aluno, reduzindo-se a incerteza inicial sobre tal escolha de 8 para 1. Num contexto diferente daquele de Shannon & Weaver, Stonier (1990) também desenvolve uma concepção objetiva de informação. A proposta de Stonier, entretanto, se diferencia do olhar procedural da Teoria Matemática da Comunicação, invocando a noção de conteúdo informacional. Nas palavras do autor (1990, p. 21, tradução nossa): [...] informação existe. Ela não necessita ser percebida para existir. Ela não necessita ser entendida para existir. Ela não requer inteligência para interpretá-la. Ela não tem que ter significado para existir. Ela existe14. 14 Information exists. It does not need to be perceived to exist. It does not need to be understood to exist. It requires no intelligence to interpret it. It does not have to have meaning to exist. It exists. 37 Para Stonier (1997, p. 18), a informação está no plano físico, sendo que os teóricos da Física, por sua vez, teriam que ampliar seu vocabulário e admitir os infons (partículas de informação) enquanto um elemento constituinte do mundo. Stonier (1997, p. 118) propõe a medida da quantidade de informação a partir do seguinte exemplo. Uma criança deixa uma peça de um quebra-cabeça em um canto da casa. A empregada que está limpando a casa encontra a peça do jogo, mas aquilo não lhe traz muita informação. A empregada entrega a peça para a mãe da criança, que sabe que aquela peça é de um jogo que seu filho possui; neste sentido, a mãe do menino possui mais informação em relação à peça do que a empregada. A mãe, por sua vez, entrega a peça ao menino, para quem aquela peça é altamente informativa, uma vez que sabe a utilidade daquela peça e de que modo ela se encaixa no quebra-cabeça. Sendo assim, a quantidade de informação presente em um evento depende do contexto, num sentido específico ligado ao emprego do que é possível fazer com ela. Tendo em vista a concepção de informação proposta por Stonier é possível constatar que, ao mesmo tempo que a informação existe objetivamente no mundo, a quantidade de informação presente num evento depende do contexto. Como ilustrado, há mais informação quando o sistema que percebe tal informação tem conhecimento de sua utilidade (no caso do exemplo, o menino que sabia como utilizar a peça). Como lidar com esta possível incompatibilidade, uma vez que a subjetividade do sistema entraria na discussão? Gonzalez (2012) discute esta questão. De acordo com Gonzalez, não haveria uma incompatibilidade em admitir a informação enquanto existente objetivamente no mundo e concebê-la como contexto- dependente. Isto porque, ser contexto-dependente não implicaria no recurso a uma subjetividade que dependa de estados conscientes de primeira-pessoa. Mesmo no caso do exemplo sugerido por Stonier, a informação seria objetiva, pois não apenas aquele menino poderia captar aquela informação, mas qualquer indivíduo que seja jogador de quebra-cabeças. Para Gonzalez, a informação possuiria uma ontologia própria; ela pertence ao universo dinâmico das Relações, estando associada à forma, organização e ao movimento: é o fazer-se. A noção de informação é, então, concebida como uma rede dinâmica, auto-organizada15, de relações legiformes, que não se limita ao físico, mas 15 Segundo Debrun (1996), a auto-organização pode ser entendida como a organização de elementos não alimentada por algum coordenador externo de modo que se gere uma forma (seres ou situações).Os 38 pode ser instanciada no físico. A filósofa compartilha com Ryle (1949) o entendimento de que o domínio das relações possui uma ontologia própria, o da qualidade, cuja característica central não é a materialidade, mas a organização. Ao conceber a informação enquanto uma rede dinâmica, auto-organizada, de relações legiformes, dois elementos se destacam: sistemas e invariantes16, ambos presentes no mundo. É a partir da relação entre sistema e invariante que a informação seria gerada. Por exemplo, é na relação entre o ambiente que a pessoa está inserda e uma torneira que surgiria a informação “beber água”. Apesar do status relacional e contexto-dependente da informação, não existiria, necessariamente, um aspecto subjetivo, pois, a relação entre qualquer pessoa e uma torneira pode produzir a informação “beber água”. Porém, para não deixar de lado este aspecto, Gonzalez se apoia no conceito de attendance proposto por Turvey (1987), segundo o qual o aspecto subjetivo em relação à informação captada é uma relação informacional de segunda- ordem. No caso da relação entre uma pessoa e a torneira que gera a informação “beber água”, o aspecto de “ter sede” diria respeito a um fator específico de uma pessoa específica em um determinado momento. Em síntese, segundo Gonzalez (2012), a informação existe objetivamente no mundo, no domínio das formas auto-organizadas, mas não é material. A matéria seria apenas uma receptora, uma instanciadora de formas; a informação se expressaria através da materialidade e, possivelmente, não existiria sem ela. Ela argumenta que a informação não se reduz à matéria, pois não é possível “quebrar” a informação ou “atear fogo” sobre ela; o que se pode fazer é pegar ou queimar seus receptáculos materiais (CDs, livros, etc.). Sendo assim, a informação não seria uma “coisa”, um “ser” ou mesmo uma “substância”; a informação necessitaria de elementos materiais para ser criada, mas após gerada se descolaria deles. O conceito de informação proposto por Gonzalez (2012) auxiliará no desenvolvimento de uma análise sistêmica da privacidade informacional. Outro elemento que fundamentará esta análise é a distinção proposta por Dretske entre processos auto-organizados dependem unicamente de seus próprios elementos. No entendimento de Debrun (1996, p. 4): “há auto-organização cada vez que o advento ou a reestruturação de uma forma, ao longo de um processo, se deve principalmente ao próprio processo – as características nele intrínsecas – e, só em menor grau as condições de partida, ao intercâmbio com o ambiente ou a presença eventual de uma instância supervisora”. Existem, segundo Debrun, dois tipos de auto-organização: primária e secundária. Rapidamente, podemos dizer que a auto-organização primária é aquela relação de elementos que não parte de nenhuma forma já constituída para vir-a-ser; enquanto que a secundária, pode ser entendida como uma reestruturação ou reorganização de uma forma sedimentada. 16 Explicitaremos este termo na seção 2.3. 39 conteúdo informacional e conteúdo semântico. Nas próximas seções apresentaremos tal distinção e duas perspectivas que discutem o significado, quais sejam: a informacional- representacionista e a ecológica. 2.2 Significado e ação segundo a perspectiva informacional-representacionista A abordagem informacional-representacionista do significado tem como representantes centrais Dretske (1981, 1992, 1995) e Juarrero (1999). Segundo esta abordagem, a informação é entendida como uma commodity, que existe objetivamente no mundo, independente de uma mente consciente de primeira-pessoa que a capta. Para Dretske (1981, p. iv, tradução nossa): “no princípio existia informação. A palavra veio depois”17. A informação pode ser percebida, armazenada e trocada, diz respeito ao conjunto de regularidades no ambiente e está ligada à verdade. Além disso, Dretske considera que a informação constitui um artefato, a partir do qual conhecimento, representação, ação e significado são manufaturados. Os processos de manufatura ocorrem em virtude da constituição de um fluxo informacional, entre a fonte e o receptor, no qual a fonte é o mundo e o receptor é o sujeito cognitivo. Um fluxo informacional só se estabelece quando a relação entre fonte e receptor constitui uma relação nômica (legiforme), na qual a quantidade de informação presente no receptor é a mesma gerada na fonte. Dretske (1981, p. 57, tradução nossa) argumenta que a manutenção desta relação nômica requer o que ele denomina Princípio do Xerox, o qual consiste em: “Se A carrega a informação que B, e B carrega a informação que C, então A carrega a informação que C”18. O Princípio do Xerox é fundamental para a manutenção do conteúdo do fluxo informacional, pois assegura um elo comum aos elementos que conectam A, B e C. Tal princípio seria um regulador que preserva um mínimo de informação necessário para a constituição da relação informacional do sujeito conhecedor com a informação disponível no mundo. O filósofo considera que se este princípio não for válido, não há como preservar o conteúdo das mensagens durante o processo de transmissão da informação. Na passagem da informação em cada elo, por exemplo, de A para B, de B para C, parte desta informação poderia ser perdida. Contudo, é possível, por meio do 17 In the beginning there was information. The word came later. 18 If A carries the information that B, and B carries the information that C, then A carries the information that C. 40 Princípio do Xérox, fazer o caminho de volta, a partir do receptor, e encontrar a mensagem original gerada na fonte. Desse modo, é assegurada a relação de dependência entre o receptor e a fonte. Ao garantir a transitividade da informação entre uma fonte e um receptor, o Princípio do Xerox é utilizado por Dretske, por exemplo, para fundamentar sua análise informacional do conhecimento. Para o filósofo, informação e conhecimento estão intimamente relacionados. O conhecimento é um produto, devidamente representado, da informação percebida. Nesse contexto, ampliando a clássica caracterização platônica de conhecimento19, Dretske o concebe como: uma crença verdadeira “justificada” em informação. Uma vez concebido o conhecimento como originário da informação disponível objetivamente no mundo, um sujeito cognitivo conhece algo a partir da percepção e representação desta informação. A relação com a informação faz com que o conhecimento de algo esteja ligado direta, ou indiretamente, com sua fonte. Nas palavras de Dretske (1981, p. 86, tradução nossa): “K sabe que s é F = [se, e somente se] a crença de K de que s é F é causada (ou causalmente sustentada) pela informação de que s é F”20. A crença é causalmente assegurada em virtude do fluxo informacional presente na aquisição do conhecimento. Como indicamos, um fluxo informacional se constitui quando há uma relação nômica entre a fonte da informação e seu receptor. No caso da aquisição de conhecimento, a fonte de informação é o mundo (onde a informação está objetivamente disponível) e o receptor é o sujeito (que é capaz de gerar representações sobre a informação percebida). Em outras palavras, um sujeito S sabe que p é q se sua crença de que p é q é causalmente sustentada pela informação de que p é q. Ao relacionar o processo de aquisição do conhecimento à informação, Dretske assegura uma relação “direta” do conhecimento com sua natureza. Assim, o que podemos conhecer é limitado pela quantidade de informação captada. Nas palavras de Dretske (1981, p. 44, tradução nossa): [...] a informação que um sinal carrega é o que ele é capaz de nos dizer, enquanto verdade, sobre o estado de coisas. Grosso modo, 19 Brevemente, em sua obra Teeteto, Platão caracteriza o conhecimento como uma crença verdadeira e justificada. A dificuldade que surgiria de tal definição é uma circularidade viciosa, uma vez que a justificação desta crença verdadeira seria obtida através do próprio conhecimento. 20 K knows that s is F = the belief of K is that s is F is caused (or causally sustained) by the information that s is F. 41 informação é aquela commodity capaz de produzir conhecimento, e a informação que um sinal carrega é aquilo que podemos aprender com ele.21 Além de conhecimento, a informação, existente objetivamente no mundo, também pode produzir significado. Neste sentido, para Dretske, a informação existe no mundo destituída de seu aspecto semântico; quando um sinal carrega informação, ele está carregando apenas um conteúdo informacional. A noção de conteúdo informacional é diferenciada por Dretske (1981) daquela de conteúdo semântico. O conteúdo informacional pode ser entendido como aquilo que o signo indica através das relações de dependência dos elementos que o compõe. Assim, por exemplo, “fumaça” é um signo indicativo da presença de fogo para receptores sensíveis a ele. Essa indicação não é mediada; ela decorre de uma rede de relações de dependência entre elementos dos quais o fogo é um deles. O conteúdo semântico, por sua vez, segundo Dretske, é aquele constituído por uma estrutura de signos que possibilita a apreensão de certa informação de forma mediada; o conteúdo semântico envolve mecanismos de representação adquiridos através de aprendizagem, constituindo uma crença ou um ajuizamento. Para ilustrar este conceito podemos considerar o mesmo exemplo da fumaça, agora a partir de uma perspectiva representacional. Neste caso, esse signo possuiria um conteúdo semântico constituído a partir de informação adquirida por um falante da língua portuguesa ao representar, com o auxílio dessa língua, a presença do fogo. Um estrangeiro teria que aprender e conhecer os signos da língua portuguesa para poder captar apropriadamente o conteúdo semântico da afirmação que “fumaça significa fogo”. Em síntese, para Dretske, o conteúdo informacional estaria presente na informação compartilhada pelos organismos, percebida diretamente no mundo. O conteúdo semântico, por sua vez, não é diretamente apreendido, mas requer uma mediação. Este conteúdo necessitaria de crenças e ajuizamentos acerca da informação carregada por uma estrutura de signos. Na perspectiva dretskeana o conteúdo semântico e o significado, embora relacionados, são distintos. O significado é uma propriedade emergente que envolve, além da mediação e aprendizagem, a capacidade de pseudorrepresentação (misrepresentation). O significado emerge quando o conteúdo semântico percebido é 21 What information a signal carries is what it is capable of “telling us”, telling truly about another state of affairs. Roughly speaking, information is that commodity capable of yielding knowledge, and what information a signal carries is what we can learn from it. 42 associado a uma estrutura interna do organismo que corresponde a um objeto ou evento do meio, adquirindo função “indicativa” com papel causal na dinâmica de ajuste de suas representações internas (crenças, por exemplo) do meio, no plano da ação. Assim, a ação possui uma íntima relação com a emergência do significado. Na perspectiva informacional-representacionista, a ação é concebida como um movimento guiado por informação. Se aprofundarmos um pouco mais esta análise, a ação pode ser entendida como um comportamento Intencional regido por informação significativa. Para Dretske (1992, p. 33, tradução e itálico nossos): “o comportamento não é a causa interna, nem o efeito externo. É um produzindo o outro – um processo, não um produto”22. Juarrero (1999, p. 85, tradução nossa) se apoia na concepção dretskeana e acrescenta que a ação se constitui a partir de um: “[...] fluxo [informacional] inequívoco do conteúdo de uma intenção de uma fonte cognitiva até o comportamento final”23. Crenças, desejos, propósitos, entre outros estados mentais, constituem, segundo a perspectiva informacional-representacionista, as causas das ações, as quais disparam e estruturam o fluxo informacional do comportamento. Tais estados mentais, segundo Dretske (1995, p. 8), são representações naturais geradas a partir das informações disponíveis no meio. São naturais, pois sua função de indicar um objeto ou estados de coisas é oriunda da própria história evolutiva do organismo. Por serem naturais, esses estados mentais possuem uma Intencionalidade original (natural), ou seja, uma Intencionalidade que não é derivada de algo externo. Dretske e Juarrero destacam que tais elementos Intencionais contribuem para a explicação da ação por possuírem um conteúdo semântico. Mas qual seria a relação causal entre o conteúdo semântico e o significado? Dretske (1992, p. 80) propõe que o significado não teria uma causa em si mesmo, mas emergiria da ação do organismo no mundo em seu processo de ajuste e correção de representações mentais. Sendo assim, em tal processo, o papel causal é dado pelo conteúdo semântico que representações internas, como as crenças, carregam, sendo no decorrer deste processo que o significado emerge. Neste sentido, crenças são estruturas representacionais que adquirem seus aspectos semânticos por utilizarem informação no direcionamento (ajuste e controle) do sistema do qual são parte. As 22 […] the behavior is neither the internal cause nor the external effect. It is the one producing the other – a process, not a product. 23 […] unequivocal flow of an intention’s content from cognitive source to behaviorial terminus. 43 crenças constituem indicadores internos de significado natural à medida que ganham poder causal sobre o output de um processo informacional. O poder causal dessas estruturas internas, segundo o filósofo (1992, p. 88), é oriundo do próprio desenvolvimento natural dos organismos. Por si sós, elas não significam ou indicam algo, mas quando relacionadas a objetos em certos contextos passam a indicar e significar as características externas presentes, das quais dependem os movimentos periféricos de um sistema. Nas palavras de Dretske (1992, p. 88, tradução e itálico nossos): Nos processos de aquisição de controle sobre os movimentos periféricos (em virtude do que eles indicam), tais estruturas adquirem uma função indicativa e, também, a capacidade de representar [algumas vezes] erroneamente como são as coisas. Essa é a origem do significado genuíno e, ao mesmo tempo, uma explicação a respeito de como esse significado se torna relevante para o comportamento24. O significado genuíno surge, segundo Dretske, na tentativa de controle e ajuste dos movimentos dos organismos no meio com o auxílio de representações internas. Uma vez que as estruturas internas adquirem o papel de representar o mundo e, por conseguinte, a capacidade de direcionar e controlar os movimentos do sistema, pode ocorrer que elas o façam de modo equivocado, não indicando adequadamente o que está presente no meio. Tal representação equivocada (pseudorrepresentação) gera resultados inadequados no plano da ação. É, justamente, no processo de correção das representações que ocorre a emergência da informação significativa. A partir desse processo, a ação resulta da associação entre estruturas internas do organismo e as disposições do meio. Um exemplo de situação em que ocorre tal processo é o aprendizado individual. Isto porque, segundo Dretske, este tipo de aprendizado possibilita que estados internos assumam adequadamente controle sobre movimentos periféricos em relação ao meio ambiente. O aprendizado, diz Dretske, só pode ocorrer quando os indicadores internos de um organismo complexo estiverem desempenhando alguns mecanismos de um modo apropriado; quando produzirem adequadamente o movimento do sistema. Segundo Dretske (1992, p. 99), o aprendizado comporta duas capacidades: i) de reorganizar o 24 In the process of acquiring control over peripheral movements (in virtue of what they indicate), such structures acquire an indicator function and, hence, the capacity for misrepresenting how things stand. This, then, is the origin of genuine meaning and, at the same time, an account of the respect in which this meaning is made relevant to behavior. 44 controle de como incorporar os indicadores no interior de uma cadeia de comando, e ii) de fazer isso porque esses indicadores indicam o que eles têm que fazer. Em outras palavras, o que o aprendizado faz é, não somente conferir uma função a esses indicadores, mas moldar sua função causal e o comportamento do sistema do qual eles são uma parte. Embora a abordagem dretskeana auxilie na compreensão do processo subjacente à emergência do significado e de sua íntima relação com a explicação da ação, como poderíamos explicar o surgimento do campo de possibilidades a partir do qual uma ação foi escolhida? E como compreender o modo como essa escolha é feita? Uma resposta à questão acima é fornecida por Juarrero (1999, p. 34) da seguinte maneira: i) o agente forma uma Intenção primeira25 (prior intention) do ato; ii) inicia-se um processo cognitivo que admite um conjunto de possibilidades de ação; iii) a partir das opções disponíveis o agente considera algumas delas; e iv) toma a decisão de fazer “x”. A geração de possibilidades de ação, segundo Juarrero, ocorre pela operação de constrains, que demarcam o escopo das possibilidades de ação a um número “x” de comportamentos possíveis em virtude das características do agente e das disposições do meio. Segundo Juarrero (1999, p. 132-133, tradução nossa): O termo [constrain] sugere [...] não uma força externa que empurra, mas uma conexão de algo com outra coisa [...] bem como o local no qual o objeto está situado. [...] Contrains são, consequentemente, propriedades relacionais que as partes adquirem em virtude de estarem unidas – não somente agregadas – em uma totalidade sistêmica.26 De acordo com Juarrero, os constrains podem ser de dois tipos: os independentes-de-contexto (context-free constrains) e os sensíveis-ao-contexto (context- sensitive constrains). O primeiro tipo pode ser entendido como uma imposição externa ao sistema27; algo presente no meio que impõe a ele alguma limitação ou regularidade. 25 Optamos por traduzir prior como primeira, ao invés de anterior, para não cairmos no problema da regressão infinita. 26 The term suggests […] not an external force that pushes, but a thing’s connection to something else […] like as well as to the sitting in which the object is situated. […] Contrains are therefore relational properties that parts acquire in virtue of being unified – not just aggregates – into a systematic whole. 27 A noção de sistema utilizada por Juarrero está sitauda na Teoria dos Sistemas Complexos. Veremos tal definição no capítulo 4. Contudo, no momento, pode-se entender um sistema como: uma estrutura com 45 Exemplos deste tipo de constrain são a gravidade e a luz, que se impõem independente do tipo de sistema ou contexto no qual está presente. Já os contrains do segundo tipo, sensíveis-ao-contexto, dizem respeito às limitações dadas pela história, cultura e dinâmica interna dos organismos. Este tipo de constrain refere-se à limitação imposta ao organismo em virtude da relação que este possui com o contexto e com o meio; não é apenas uma imposição colocada pelo meio, como a exercida pelo primeiro tipo de constrain, mas há também uma delimitação contextual e/ou por parte da própria estrutura do organismo. Por exemplo, um falante de língua portuguesa que frequenta uma palestra sofre as limitações colocadas pelas invariantes do meio (gravidade, luz, temperatura, etc.), mas, além disso, sua compreensão do que está sendo discutido depende de sua capacidade de compreensão linguística. Esse segundo tipo de constrain faz com que, idealmente, as partes do sistema e o meio se tornem coordenadas. O aspecto relacional dos constrains inclui, segundo Juarrero, uma Intenção primeira – como crenças, desejos, entre outros estados Intencionais - e as disposições do meio. A partir dessa Intenção, o sistema reduz o campo de possibilidades de ação a um subgrupo, sendo esse um primeiro passo para a escolha de uma ação. O processo de redução de possibilidade de ação está relacionado com a seleção de alternativas que sejam significativas ao sistema. Um exemplo do processo de seleção de alternativas de ações que são significativas para um sistema complexo pode ser ilustrado com a seguinte situação. Num dia frio, chuvoso e com vento forte a ação de um indivíduo de se resguardar pode ser considerada uma ação significativa em virtude das imposições das invariantes do meio (constrains independentes-de-contexto). Caso o indivíduo necessite sair de casa por algum motivo, o modo como ele o faria – seja de carro, guarda-chuva, barco – ilustra o constrain sensível-ao-contexto, uma vez que envolve suas características e limitações. Em resumo, Juarrero (1999, p. 180) considera que as Intenções primeiras reestruturam o espaço multidimensional de possibilidades de ação a uma organização caracterizada por uma dinâmica, estruturando planos de ação, nos quais estão canalizadas deliberações futuras28 presentes nas alternativas dos subgrupos delimitados. funcionalidade, informacionalmente aberta, composto por um conjunto de elementos que interagem entre si em várias dimensões espaço-temporais. Tal entendimento é proposto por Bresciani Filho & D’Ottaviano (2000). 28 Juarrero (1999, p. 197-198) ressalta que nem todos os comportamentos pressupõem uma escolha do agente.