Heloisa da Cunha Fonseca Ensino e aprendizagem de fraseologismos zoônimos: proposta de interface web e dicionário bilíngue português e francês São José do Rio Preto 2017 Campus de São José do Rio Preto Heloisa da Cunha Fonseca Ensino e aprendizagem de fraseologismos zoônimos: proposta de interface web e dicionário bilíngue português e francês Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Financiadora: FAPESP – Proc.: 2013/07680-7 Orientador: Profa. Dra. Maria Cristina Parreira da Silva São José do Rio Preto 2017 Heloisa da Cunha Fonseca Ensino e aprendizagem de fraseologismos zoônimos: proposta de interface web e dicionário bilíngue português e francês Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Financiadora: FAPESP – Proc. 2013/07680-7 Orientador: Profa. Dra. Maria Cristina Parreira da Silva Comissão Examinadora Profa. Dra. Maria Cristina Parreira da Silva UNESP – São José do Rio Preto Orientadora Profa. Dra. Ana María Díaz Ferrero UGR – Granada/Espanha Profa. Dra. Elizabete Aparecida Marques UFMS – Campo Grande Profa. Dra. Maria Angélica Deângeli UNESP – São José do Rio Preto Profa. Dra. Vivian Regina Orsi Galdino de Souza UNESP – São José do Rio Preto São José do Rio Preto 4 de setembro de 2017 AGRADECIMENTOS Agradeço a todos que, de uma forma ou de outra, passaram por minha vida e influenciaram no resultado desta pesquisa: A meus pais, pelos sacrifícios, pelo trabalho constante, pelo amor incondicional e pelo incentivo. Não há palavras suficientes para demonstrar gratidão. À minha irmã, minha maninha desde sempre, por dizer com o coração o que precisa ser dito e por ser minha referência no mundo. À minha orientadora, Profa. Dra. Maria Cristina Parreira da Silva, por ser um exemplo de competência profissional e, acima de tudo, por ter um coração de mãe. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto, agradeço pelas correções, pelos debates, pelo olhar experiente e, principalmente, pela paciência que tiveram comigo. Aos professores que participaram da banca de qualificação agradeço pela leitura atenta, pelas correções necessárias e pelas críticas construtivas que ajudaram a melhorar o conteúdo e a apresentação deste trabalho. À minha tutora na Espanha, Profa. Dra. Ana María Díaz Ferreiro, pela amizade e por me receber tão bem. Ao José Antônio, Txomin, por se manter confiante e dar leveza à vida. Por fim, agradeço à FAPESP, Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo, por ter acreditado e financiado este trabalho durante todos estes anos. Toda tentativa traz consigo promessas e riscos. (GENOUVRIER; PEYTARD, 1974, p. 218) Este trabalho recebeu ajuda financeira da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por meio da bolsa de doutorado no país (Processo FAPESP número 2013/07680-7) e da bolsa BEPE de estágio de pesquisa no exterior (Processo FAPESP número 2014/15385-8). RESUMO A Fraseologia é uma disciplina em ascensão no Brasil e que vem ganhando espaço e reconhecimento dentro dos Estudos Linguísticos. Nesse contexto, esta tese versa sobre o processo de documentação, tanto teórico como metodológico, que permitiu a triangulação entre Fraseologia (CASARES, 1992 [1969]; ZULUAGA, 1980; XATARA, 1994, 1998, 2008; CORPAS PASTOR, 1996, 2000, 2003; RUIZ GURILLO, 1997, 1998; GONZÁLEZ REY, 2004), Fraseografia (TRISTÁ PÉREZ, 1998; OLÍMPIO DE OLIVEIRA SILVA, 2007; PENADÉS MARTÍNEZ, 2012) e Fraseodidática (CONCA, 2005; BINON e VERLINDE, 2004; ETTINGER, 2008; TIMOFEEVA, 2013; NÚÑEZ-ROMÁN, 2015), com vistas à elaboração de materiais didáticos. O procedimento de análise das unidades fraseológicas é complementado pela abordagem cultural (DOBROVOL’SKIJ e PIIRAINEN, 2005; PIIRAINEN, 2008) que considera o tratamento dos fenômenos culturais como essencial para a análise da linguagem figurada (FAUCONNIER, 1985, 2003; FAUCONNIER e TURNER, 1998, 2002; LOTMAN, 1996; PAMIES BERTRÁN, 2008). Sob essas circunstâncias, fatores extralinguísticos influenciam a formação de fraseologismos, cuja transposição de sentido parece obedecer uma escala crescente de abstração (HEINE, CLAUDI e HÜNNEMEYER, 1991; HEINE, 1997; UNTERNBÄUMEN, 2007; FERRARI, 2011; WILSON e MARTELOTTA, 2016). Como resultado, desenvolvemos a plataforma on-line, FraZoo (www.frazoo.com.br), que disponibiliza um dicionário especial bilíngue para o ensino e aprendizagem de unidades fraseológicas zoônimas do português do Brasil e do francês da França. Esse dicionário eletrônico é alimentado por um banco de dados Access (MICROSOFT, 2016) de 728 fraseologismos zoônimos, o BD-FraZoo, que veicula unidades fraseológicas formadas a partir de nomes de animais cujos registros apresentam contextos autênticos, variantes, sinônimos, correspondentes e informações culturais. No ato da consulta, os fraseologismos podem ser organizados de forma semasiológica ou onomasiológica. As reflexões apresentadas reconstroem o processo de desenvolvimento deste trabalho e, sobretudo, indicam o fato de que a teoria fraseológica pode fornecer bases para um estudo fraseográfico de caráter pedagógico. Como as unidades fraseológicas recobrem elementos extralinguísticos, a compreensão e o ensino são associados a fatores culturais, pois implicam o uso conotado de conhecimentos e abstrações sociais. Portanto, a FraZoo está pautada na premissa de que o estudo fraseológico auxilia no desenvolvimento da linguagem conotada e no aprofundamento das questões culturais. PALAVRAS-CHAVE: Fraseologia, Fraseografia e Fraseodidática. Dicionário bilíngue. Banco de dados de zoônimos. Plataforma Web. Português do Brasil e francês da França. RÉSUMÉ La Phraséologie est une discipline en évolution au Brésil, qui a gagné du terrain et de la reconnaissance dans les Études Linguistiques. Dans ce contexte, cette thèse aborde le processus de documentation, à la fois théorique et méthodologique, qui a permis une triangulation entre Phraséologie (CASARES, 1992 [1969]; ZULUAGA, 1980; XATARA, 1994, 1998, 2008; CORPAS PASTOR, 1996, 2000, 2003; RUIZ GURILLO, 1997, 1998; GONZÁLEZ REY, 2004), Phraséographie (TRISTÁ PÉREZ, 1998; OLÍMPIO DE OLIVEIRA SILVA, 2007; PENADÉS MARTÍNEZ, 2012) et Phraséodidactique (CONCA, 2005; BINON e VERLINDE, 2004; ETTINGER, 2008; TIMOFEEVA, 2013; NÚÑEZ-ROMÁN, 2015), en vue de l’élaboration de matériaux didactiques. La procédure d'analyse des unités phraséologiques est complétée par une approche culturelle (DOBROVOL’SKIJ e PIIRAINEN, 2005; PIIRAINEN, 2008) qui considère le traitement des phénomènes culturels comme essentiels à l'analyse du langage figuré (FAUCONNIER, 1985, 2003; FAUCONNIER e TURNER, 1998, 2002; LOTMAN, 1996; PAMIES BERTRÁN, 2008). Dans ces circonstances, les facteurs extralinguistiques influencent la formation des phraséologismes, dont la transposition du sens semble suivre une échelle croissante d'abstraction (HEINE, CLAUDI e HÜNNEMEYER, 1991; HEINE, 1997; UNTERNBÄUMEN, 2007; FERRARI, 2011; WILSON e MARTELOTTA, 2016). Comme résultats, nous avons développé la plateforme en ligne, FraZoo (www.frazoo.com.br), qui offre un dictionnaire spécial bilingue pour l'enseignement et l'apprentissage des phraséologismes animaliers du portugais du Brésil et du français de France. Ce dictionnaire électronique est alimenté par une base de données Access (MICROSOFT, 2016) de 728 phraséologismes animaliers, la BD-FraZoo, qui véhicule des phraséologismes constitués par des noms d’animaux dont le corpus registre des contextes authentiques, des variations, des synonymes, des correspondants et des informations culturelles. Au cours de la recherche, les phraséologismes peuvent être organisées sous forme sémasiologique et onomasiologique. Les réflexions présentées reconstituent le processus de développement de ce travail et, surtout, indiquent le fait que la théorie phraséologique peut fournir des bases pour une étude phraséographique à caractère pédagogique. Comme les phraséologismes recouvrent les éléments extralinguistiques, la compréhension et l'enseignement sont associés à des facteurs culturels, parce qu'ils impliquent l'utilisation connotée des connaissances et des abstractions sociales. Donc, la FraZoo est fondée sur la prémisse que l'étude phraséologique aide le développement du langage connoté et l'approfondissement des questions culturelles. MOTS-CLÉS: Phraséologie, Phraséographie et Phraséodidactique. Dictionnaire bilingue. Base de données animalières. Plateforme Web. Portugais du Brésil et du français de France. ABSTRACT Phraseology is an emerging discipline in Brazil that has been gaining space and voice in Linguistic Studies. In this context, this thesis addresses the documentation process, both theoretical and methodological, that enabled the Phraseology (CASARES, 1992 [1969]; ZULUAGA, 1980; XATARA, 1994, 1998, 2008; CORPAS PASTOR, 1996, 2000, 2003; RUIZ GURILLO, 1997, 1998; GONZÁLEZ REY, 2004), Phraseography (TRISTÁ PÉREZ, 1998; OLÍMPIO DE OLIVEIRA SILVA, 2007; PENADÉS MARTÍNEZ, 2012) and Phraseodidactic triangulation (CONCA, 2005; BINON e VERLINDE, 2004; ETTINGER, 2008; TIMOFEEVA, 2013; NÚÑEZ-ROMÁN, 2015), with a view to the preparation of practical materials. The phraseological units analysis procedure is complemented by the cultural approach (DOBROVOL’SKIJ e PIIRAINEN, 2005; PIIRAINEN, 2008) that considers the treatment of cultural phenomena as essential for the figurative language’s analysis (FAUCONNIER, 1985, 2003; FAUCONNIER e TURNER, 1998, 2002; LOTMAN, 1996; PAMIES BERTRÁN, 2008). Under these circumstances, extralinguistic factors influence the formation of phraseologisms, and their transposition of meaning seems to obey a growing scale of abstraction (HEINE, CLAUDI e HÜNNEMEYER, 1991; HEINE, 1997; UNTERNBÄUMEN, 2007; FERRARI, 2011; WILSON e MARTELOTTA, 2016). As a result, we developed an online platform, FraZoo (www.frazoo.com.br), which provides a bilingual special dictionary for teaching and learning phraseological units related to animals in Brazilian Portuguese and French from France. This electronic dictionary is fed by an Access database (MICROSOFT, 2016) of 728 zoological phraseologisms, BD-FraZoo, which conveys phraseological units formed with animal terms, and their records present authentic contexts, variants, synonyms, correspondents and cultural information. When conducting the search, phraseologisms can be organized in a semasiological or onomasiological way. The reflections presented reconstruct this work’s development process and, above all, indicate the fact that phraseological theory can provide basis for a phraseological study with pedagogical characteristics. As the phraseological units cover extralinguistic elements, understanding and teaching are associated with cultural factors, because they imply the connotated use of knowledge and social abstractions. Therefore, FraZoo is based on the premise that the phraseological study helps in the cognitive processes, in the development of the connotative language and in deepening cultural issues. KEY WORDS: Phraseology, Phraseography and Phraseodidactic. Bilingual dictionary. Zoological database. Web Platform. Brazilian Portuguese and French from France. http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/with http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/a http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/view http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/to http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/the http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/preparation http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/of http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/practical ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES Figuras Figura 1 - Características das unidades fraseológicas .............................................................. 25 Figura 2 - Organização alternativa das características fraseológicas ....................................... 26 Figura 3 - Fixidez fraseológica ................................................................................................. 32 Figura 4 - Exemplo de um provérbio desautomatizado ............................................................ 47 Figura 5 - Exemplo de dispersão fraseológica ......................................................................... 48 Figura 6 - Relação entre Fraseografia, Fraseologia e Lexicografia .......................................... 52 Figura 7 - Relação entre sentido e nome .................................................................................. 62 Figura 8 - Relação entre vários sentidos e vários nomes .......................................................... 62 Figura 9 - Associação entre unidades lexicais .......................................................................... 63 Figura 10 - Triângulo de Ogden e Richards ............................................................................. 65 Figura 11 - Importância da Competência Comunicativa .......................................................... 73 Figura 12 - As categorias metafóricas .................................................................................... 100 Figura 13 - Modelo de espaços mentais ................................................................................. 103 Figura 14 - Blending em “vírus de computador” ................................................................... 104 Figura 15 - Mescla em “língua de cobra” ............................................................................... 106 Figura 16 - Capacidade dos buscadores web .......................................................................... 110 Figura 17 - Tamanho do Google............................................................................................. 111 Figura 18 - Exemplo de categoria geral.................................................................................. 114 Figura 19 - Campos da pesquisa avançada do Google ........................................................... 115 Figura 20 - Tabelas e formulários do Access ......................................................................... 119 Figura 21 - Formulário de inserção ........................................................................................ 120 Figura 22 - Mala direta para a extração de dados ................................................................... 121 Figura 23 - Tag ....................................................................................................................... 124 Figura 24 - Apresentação FraZoo ........................................................................................... 125 Figura 25 - FraZoo para computadores .................................................................................. 126 Figura 26 - FraZoo para celulares........................................................................................... 127 Figura 27 - 1º Exemplo de atividade ...................................................................................... 128 Figura 28 - 2º Exemplo de atividade ...................................................................................... 129 Figura 29 - 3º Exemplo de atividade (parte 1) ........................................................................ 129 Figura 30 - 4º Exemplo de atividade (parte 2) ........................................................................ 130 Figura 31 - 5º Exemplo de atividade ...................................................................................... 131 Figura 32 - 6º Exemplo de atividade ...................................................................................... 132 Figura 33 - Blending, o novo espaço de mescla ..................................................................... 452 Figura 34 - Campos conceituais e palavras-chave.................................................................. 453 Quadros Quadro 1 - Alterações fraseológicas ......................................................................................... 43 Quadro 2 - Homonímia ............................................................................................................. 59 Quadro 3 - Polissemia .............................................................................................................. 59 Quadro 4 - Variantes e sinônimos ............................................................................................ 61 Quadro 5 - Campos conceituais ................................................................................................ 67 Quadro 6 - Categorias básicas .................................................................................................. 94 Quadro 7 - Listagem de correspondentes, variantes e sinônimos........................................... 433 Quadro 8 - Problematização entre sinônimo e variante .......................................................... 447 Quadro 9 - Variantes registradas como novas entradas .......................................................... 447 Gráficos Gráfico 1 - Proporção de fraseologismos registrados no BD-FraZoo .................................... 432 Gráfico 2 - Comparativo entre animais BR-FR ...................................................................... 436 Gráfico 3 - Visão geral dos zoônimos no BD-FraZoo - BR ................................................... 438 Gráfico 4 - Visão geral dos zoônimos no BD-FraZoo - FR ................................................... 439 Gráfico 5 - Distribuição dos campos conceituais - BR .......................................................... 441 Gráfico 6 - Distribuição dos campos conceituais - FR ........................................................... 442 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13 Precedentes ........................................................................................................................... 17 1. FRASEOLOGIA................................................................................................................. 19 1.1. Fraseologia: uma disciplina autônoma .......................................................................... 19 1.2. Características: do essencial ao potencial ...................................................................... 23 1.2.1. Características essenciais: polilexicalidade, frequência, institucionalização e fixidez ............................................................................................................................... 27 1.2.2. Características potenciais: idiomaticidade e alterações .......................................... 38 2. AS DISCIPLINAS FRASEOLÓGICAS .......................................................................... 49 2.1. Fraseografia ................................................................................................................... 49 2.2. Fraseodidática ................................................................................................................ 68 3. A CULTURA NAS UNIDADES FRASEOLÓGICAS .................................................... 85 3.1. Cultura ........................................................................................................................... 85 3.2. Fraseologia e transposição de sentido ........................................................................... 90 4. MATERIAIS E MÉTODOS ............................................................................................ 108 4.1. A web como fonte de dados ........................................................................................ 108 4.2. Levantamento dos dados ............................................................................................. 113 4.3. O BD-FraZoo ............................................................................................................... 119 4.4. A FraZoo ..................................................................................................................... 123 5. DICIONÁRIO DE FRASEOLOGISMOS ZOÔNIMOS .............................................. 133 5.1. Português-Francês ....................................................................................................... 135 5.2. Francês-Português ....................................................................................................... 284 6. ANÁLISE DOS RESULTADOS ..................................................................................... 432 6.1. O BD-FraZoo em números .......................................................................................... 432 6.2. Teoria e prática ............................................................................................................ 443 6.3. Cultura e sentido .......................................................................................................... 449 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 455 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 460 Dicionários ......................................................................................................................... 477 13 INTRODUÇÃO As unidades fraseológicas estão em todas as esferas linguísticas e estratos sociais, elas fazem parte da comunicação humana como um recurso expressivo, repleto de imagens e referentes culturais. Graças a muitos fraseologismos, podemos expressar aquilo que pretendemos, mediante a junção de elementos díspares que seria absurda à percepção humana, se não fosse o nível de abstração, dispersão e aceitação dessas estruturas pela comunidade. Há muitos anos, essa parcela do léxico, cujo comportamento é diferente das unidades lexicais livres, é tema de estudo. Contudo, enquanto teoria, a Fraseologia teria surgido no século XVIII na Rússia (IÑESTA MENA; PAMIES BERTRÁN, 2002). Foi galgando espaço entre os estudos linguísticos, evoluindo no decorrer dos anos e assumindo novos pontos de vista a partir de desdobramentos de seu objeto. Apesar de a Fraseologia gozar de um período muito frutífero na atualidade, em que seu caráter de disciplina é cada vez mais consensual, ainda há certa discrepância com relação ao objeto de estudo, principalmente, na determinação das propriedades básicas que caracterizam as unidades fraseológicas. Diferindo em conceituação e amplitude, os critérios mais recorrentes nos trabalhos fraseológicas são: fixidez, idiomaticidade, institucionalização, opacidade, cristalização, entre alguns outros, que variam de acordo com as concepções teóricas dos autores. A fixidez, no entanto, tem sido amplamente apontada como característica determinante dos fraseologismos por estabilizar a estrutura, o uso e o significado. Por meio dessa característica, as unidades fraseológicas podem ser retomadas em bloco, como um discurso já realizado, conhecido e aceito pelos falantes. Pelo mesmo princípio, restringem-se às alterações da forma e dos componentes, o que preserva o caráter da composição como um elemento cultural da língua. Por sua vez, a cultura é um forte ponto convergente no tratamento das unidades fraseológicas, visto que concatena elementos linguísticos e extralinguísticos. A exterioridade da língua, manifesta em movimentos históricos-sociais, passa a ser parâmetro e material de composição de unidades linguísticas. Os fraseologismos, criados e difundidos, entram na corrente evolutiva da língua e estão sujeitos aos mesmos processos de especificação de sentido decorrentes das interações discursivas, em que os apagamentos, não ditos e elementos subentendidos ajudam a compor e a negociar sentidos e posicionamentos. https://www.sinonimos.com.br/estabilizar/ 14 Esse leque de implicações, embora natural à interação e à linguagem humana, dificulta o uso ativo das unidades fraseológicas, sobretudo em língua estrangeira. Nesse contexto, o domínio de unidades fraseológicas é determinante para que o falante possa lapidar seu conhecimento linguístico, melhorando a competência comunicativa e aproximando-se da cultura que serve de base à linguagem humana. É necessário salientar a importância das abordagens fraseológicas no processo de aprendizagem de línguas, tanto estrangeira como materna, dado o papel que desempenham nos processos cognitivos, a capacidade de síntese e transporte de imagens e informações culturais. Objetivamos, portanto, combinar esses aspectos em uma plataforma digital para ensino e aprendizagem de fraseologismos zoônimos (doravante FraZoo) do português e do francês, que está disponível on-line no endereço www.frazoo.com.br. A interface veicula um dicionário bilíngue de unidades fraseológicas compostas por animais e também jogos/exercícios e páginas úteis correlacionadas ao ensino de línguas e unidades fraseológicas. Para a alimentação da plataforma web foi preciso a construção de um banco de dados de fraseologismos zoônimos (doravante BD-FraZoo), pois o site funciona como um monitor que projeta as informações que retira de uma fonte pré-determinada. Como o próprio nome indica, um banco de dados arquiva as informações que nele são inseridas. No que se refere ao BD-FraZoo, as informações são provenientes de fontes diversas, entre elas dicionários monolíngues, bilíngues e multilíngues (listados nas referências) e páginas da web. Nesse sentido, usou-se a web como fonte de dados, visto que todos os contextos de uso foram extraídos dela, em razão da linguagem mais informal e mais próxima à modalidade oral. Tendo em vista o que foi exposto, esta tese está organizada em dois eixos principais: um teórico, composto pelos capítulos 1, 2 e 3, que busca explorar e discutir os pressupostos do campo fraseológico, bem como seus principais conceitos e autores; e um prático, representado pelos capítulos 4, 5 e 6, nos quais há um detalhamento dos procedimentos que permitiram os resultados obtidos e as análises desses resultados em paralelo com as teorias, além da apresentação do dicionánio bilíngue de fraseologismos zoônimos. O primeiro eixo organiza um estudo mais aprofundado da teoria fraseológica, abordando seu posicionamento dentro dos estudos linguísticos e lexicais (1.1.). O percurso que traçamos retoma e descreve alguns aspectos que caracterizam as unidades fraseológicas (1.2.), mas que foram ordenados de acordo com as observações que surgiram durante os trabalhos, dessa maneira, nossa proposta de organização compreende a separação em propriedades essenciais (1.2.1.) e propriedades potenciais (1.2.2.). Os aspectos essenciais compreendem aqueles que 15 são recorrentes em todas as categorias fraseológicas, enquanto os potenciais elencam características que não constituem um critério sine qua non para os fraseologismos. O segundo capítulo compõe-se das ramificações interdisciplinares da Fraseologia (2.) representadas, mais especificamente, pela Fraseografia (2.1.) e pela Fraseodidática (2.2.). Essas ramificações da teoria fraseológica, apesar de distintas, estão implicadas e se complementam. Correspondem a abordagens fraseológicas recentes, se comparadas à Lexicografia, por exemplo, tanto no que se refere ao ensino de línguas, como no tangente à confecção de materiais de consulta. Ambas representam avanços para a Fraseologia e trazem inovações metodológicas por aprofundarem e tratarem, de forma mais completa, o objeto fraseológico. Os segmentos descritos acima, Fraseologia, Fraseografia e Fraseodidática, são o tripé de sustentação deste trabalho, cuja proposta, vale salientar, corresponde à elaboração de uma plataforma web para ensino e aprendizagem de fraseologismos zoônimos, que disponibiliza entre outras coisas, um dicionário bilíngue que contempla as línguas portuguesa e francesa. Não obstante, as unidades fraseológicas tendem a conter informações culturais e padronizações sociais advindas da interação com o entorno não linguístico (3.). Assim, as relações entre cultura e língua, comunidades de fala e identificação linguística, são temas relevantes para esta pesquisa, na medida em que os fraseologismos recuperam, rearranjam e significam laços culturais (3.1.). A observação do cultural e do exterior à língua nas estruturas fraseológicas estimulou a busca e a explicação dos fenômenos que correlacionam entidades, transportando os sentidos de um elemento para outro (3.2.). Por meio do desenvolvimento desses tópicos, buscamos não uma retomada das origens das expressões, mas entender como funciona o processo metafórico, além de tentarmos usar desse conhecimento para o desenvolvimento do material prático, como se deu com a organização onomasiológica e o desenvolvimento dos jogos. Visto isso, ingressamos no que denominamos de eixo prático. Neste segundo eixo, estão descritos os princípios e procedimentos que possibilitaram pôr em prática as propostas teóricas já descritas (4.). Vamos ressaltar os motivos que nos levaram a fazer muitas das escolhas que fizemos, como o uso da web como fonte de dados (4.1.), o caminho percorrido para a seleção das unidades fraseológicas (4.2.), a elaboração e expansão do banco de dados (4.3.). Também é nesse apartado que explicamos as fases do processo de elaboração da plataforma web (4.4.), bem como os testes, os exercícios e as dificuldades enfrentadas durante o processamento do banco de dados. Em seguida, disponibilizamos as informações extraídas do banco de dados, porém, de forma reordenada, adaptando as informações ao suporte impresso, para que seja possível 16 visualizar o dicionário bilingue de fraseologismos zoônimos em sua amplitude: 728 entradas, 380 na direção português-francês e 348 na direção francês-português (5.). Tomando por base as propostas teóricas e o desenvolvimento prático, estabelecemos algumas considerações que podem ser observadas no sexto capítulo deste trabalho. Assim, analisamos o banco de dados de forma numérica (6.1.), concebendo que esta abordagem possa indicar aspectos imperceptíveis de outra forma. Logo, subdividimos as análises entre teoria e prática (6.2.), mostrando como o trabalho fraseográfico exige observações teóricas prévias, incluindo análises culturais que implicam em especificações de sentido (6.3.). Em resumo, esta pesquisa constitui o entrelaçamento de várias frentes, em que se privilegiou o arcabouço teórico da Fraseologia, por meio da teorização produzida, principalmente, pela Fraseologia, pela Fraseografia e pela Fraseodidática. Essa triangulação pareceu possibilitar um relacionamento harmonioso entre teoria e prática, além de manter em vista a grande influência dos aspectos culturais nas construções fraseológicas. Com relação ao ensino, a união dessas disciplinas parece suprir lacunas observadas em cada uma delas em separado, pois não propomos apenas uma obra fraseográfica, restrita à padronização de seus termos técnicos e sua metodologia, mas sim um material que possa ser aplicado e usado com fins didáticos, que possibilite correlações de sentido, que esclareça algumas questões culturais específicas, que possibilite a comparação entre unidades, que permita uma prática, mesmo que pontual, por meio de jogos e exercícios e que seja, sobretudo, prazeroso e fácil de usar. Todo o trabalho que expomos aqui, principalmente o dicionário e a plataforma web, visa ao ensino e à aprendizagem de fraseologismos, portanto, está direcionado para professores e para alunos de diversos níveis linguísticos. A concepção desses usuários ideais não exclui o fato de que essa obra possa ser válida para outros setores da sociedade acadêmica e científica, como tradutores, lexicógrafos e pesquisadores em geral. Por fim, esta pesquisa é fruto de um amadurecimento teórico que, como sabemos, é construído durante os anos. Por esse motivo, indicamos algumas pesquisas precedentes deste trabalho, pois, de certa forma, todas elas contribuíram para a realização deste projeto. 17 Precedentes Esta proposta, da maneira como aqui se apresenta, é o resultado de um percurso que compreende trabalhos anteriores que possibilitaram a elaboração desta tese. Nas próximas linhas, propomos uma retomada, de forma breve, de algumas dessas pesquisas antecedentes com o intuito de esclarecer a motivação e os objetivos estabelecidos para esta investigação. O tratamento das unidades fraseológicas zoônimas nos dicionários constitui tema de nosso interesse desde os trabalhos de iniciação científica na graduação. Por dois anos (2008- 2010), fizemos uma compilação de expressões figuradas zoônimas registradas no dicionário digital Aurélio (1999), por ser um dicionário de português de grande alcance no Brasil. Por meio desse levantamento, objetivávamos verificar o nível de linguagem associado às expressões metafóricas construídas a partir de nomes de animais, assim denominadas naqueles trabalhos, para evitar a problematização que envolveria o uso da terminologia, caso fosse usado o termo “expressão idiomática”, por exemplo, que restringiria o objeto. O nível de linguagem era observado por meio das marcações do dicionário, que supunha usos informais, chulos, pejorativos, jocosos, entre tantos outros. Esses estudos iniciais serviram de incentivo para o desenvolvimento do trabalho de mestrado, financiado pela Fapesp (processo 2011/04611-9), que deu continuidade e profundidade ao tema dos fraseologismos criados a partir de nomes de animais. Durante o mestrado (2011-2013), organizamos uma parte do banco de dados de fraseologismos zoônimos, caracterizado por registrar somente fraseologismos e correspondentes com animais e em apenas uma direção, português-francês. Durante os anos de pesquisa que precederam o trabalho atual, nutrimos o desejo de contribuir de forma mais ativa para o ensino e aprendizagem das línguas portuguesa e francesa, além da intenção de expandir o banco de dados, tanto em unidades fraseológicas zoônimas quanto em informações. Nesse contexto, iniciamos os estudos em nível de doutorado (Processo FAPESP 2013/07680-7) com a proposta de expansão do BD-FraZoo e da construção de uma interface on-line que pudesse facilitar o acesso dos alunos e professores de língua às unidades fraseológicas. Julgamos que a FraZoo possa ser uma aliada para o ensino, uma vez que a plataforma virtual fica disponível on-line e de forma gratuita, podendo ser utilizada de qualquer lugar do mundo. Nesse contexto, somamos nossos esforços ao grande movimento de desenvolvimento 18 de novas tecnologias que têm sido, cada vez mais, procuradas em todos os setores da vida humana. Esta tese pretende contribuir para o desenvolvimento de plataformas cuja língua principal é o português do Brasil, ressaltando e colaborando com a expansão da língua e da cultura brasileiras, uma vez que as unidades fraseológicas são uma espécie de filtro cultural e deixam transparecer, linguisticamente, aspectos que são de ordem extralinguística relacionados à sociedade, à história, ao clima e à maneira de se relacionar com o entorno natural e artificial. Além disso, somos cientes de que muito deve ser feito para o aperfeiçoamento do ensino de línguas como um todo e para o progresso da Fraseologia brasileira. O estudo do léxico merece seu lugar nas salas de aula tanto quanto qualquer outro recurso de ensino. Dessa forma, esta pesquisa se coloca como uma soma aos esforços que se têm feito nesse sentido. Delineamos o desenvolvimento deste trabalho tendo por aporte principal a Fraseologia e sua característica interdisciplinar. Com base nisso, decidimos explorar os limites da Fraseografia, enquanto fundamentação teórica e metodológica de pesquisa para a construção do BD-FraZoo, considerando as contribuições da Fraseodidática, tendo em mente o aperfeiçoamento do processo pedagógico fraseológico em língua materna e estrangeira. Nesse contexto, a pesquisa justifica-se tendo em vista o aporte prático e teórico para essas respectivas correntes que integram o todo fraseológico. Desde o princípio do doutorado, aspiramos à elaboração de um material prático, inicialmente o DB-FraZoo, sob a forma de um banco de dados de unidades fraseológicas zoônimas que culminou na plataforma web. Enquanto resultados de trabalhos acadêmicos, sabemos que o desenvolvimento desses produtos só é possível se observadas questões teóricas e metodológicas anteriores, que correspondem, neste caso, à caracterização da teoria fraseológica, ainda que durante o processo tenhamos observado aspectos que nos possibilitaram ver a teoria com mais parcialidade, principalmente no que se refere às variações e transformações, à separação das características que são essenciais daquelas que são potenciais, entre outras questões. Os produtos que conseguimos desenvolver são a aplicação de bases teóricas determinadas, ou até mesmo, sua adaptação, uma vez que as plataformas digitais não se comportam como os meios impressos. Além disso, são também fruto de um desenvolvimento e amadurecimento teórico que emergem de situações não previstas pelas teorias ou de casos em que se faz necessária a fusão de alguns princípios para que se possa alcançar o objetivo desejado. 19 1. FRASEOLOGIA Neste capítulo, pretendemos evidenciar aspectos do objeto de estudo e dos conceitos centrais da teoria fraseológica, pois eles são necessários para o entendimento de todos os tópicos deste trabalho. Iniciamos por uma definição breve do nosso posicionamento com relação à Fraseologia e seu objeto de estudo, propondo uma reordenação das características fraseológicas, baseada tanto nas experiências teóricas clássicas como nas observações advindas dos dados que coletamos. 1.1. Fraseologia: uma disciplina autônoma Muitas leituras serviram de base para as reflexões que nos levaram a perceber que quase todos, senão todos, os aspectos abordados pela Fraseologia estão imbricados. Assim, apesar de as teorias não serem dissociadas umas das outras, sugerimos, neste apartado, delimitações de alguns dos principais aspectos fraseológicos, mas com ponderações voltadas para a nossa perspectiva. Desse modo, por mais que tenhamos subdivisões e classificações, as diferentes áreas se implicam e se necessitam. Contudo, pode acontecer que algumas linhas de pesquisa passem a ter maior autonomia e reclamem para si uma certa independência de que antes não gozavam. Com a Fraseologia não foi diferente. Concebemos a Fraseologia como uma disciplina pertencente ao grande guarda-chuva dos estudos do léxico, mas não como um apêndice da Lexicologia. De caráter dinâmico, o léxico aborda um conjunto aberto de unidades em pleno movimento, além de ser um identificador cultural, pois mantém relação com a experiência do mundo, “qualquer sistema léxico é a somatória de toda a experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura através das idades” (BIDERMAN, 2001, p. 179). Podemos perceber, ao retomarmos os trabalhos de Corpas Pastor, por exemplo, que em 1996 a autora considerava a Fraseologia como uma subárea da Lexicologia; já nos trabalhos publicados em 2000 e 2003 a autora passa a defender a Fraseologia como disciplina autônoma. A mesma postura poderia ser observada na linguística soviética (TRISTÁ PÉREZ, 1998). 20 Ruiz Gurillo (1997), por sua vez, faz alusão a uma disciplina com características próprias, mas interdisciplinar: […] ao falar sobre Fraseologia deverão ser abordadas questões de morfologia, de sintaxe, de lexicologia e semântica, de pragmática e inclusive, de sociolinguística e psicolinguística etc., similar ao que propunha uma parte da linguística soviética, ou seja, de forma integrada dentro de uma disciplina independente. Por essa perspectiva, não perderá sua idiossincrasia frente a outras disciplinas, apesar de que há relações evidentes com algumas delas1 (RUIZ GURILLO, 1997, p. 27). Para a autora, foi o estreitamento do âmbito de estudo que abriu as portas para a mudança de percepção da natureza da Fraseologia. Como é sabido, o processo de catalogação das unidades lexicais vem de longa data e, nesse decorrer, muitos fenômenos puderam ser observados, entre eles, a existência de unidades lexicais compostas, complexas e textuais (POTTIER, 1974), diferentes das unidades lexicais simples. É um erro pensar que essas unidades complexas e textuais surgiram com o aparecimento da Fraseologia, pois elas já vinham sendo observadas e descritas por inúmeros pesquisadores e teóricos, sob denominação ainda mais variada e extensa, porém, gozavam de pouco prestígio durante os períodos de linguística histórica e estrutural, uma vez que para os estudiosos dessas correntes linguísticas tais unidades não teriam relevância na estrutura do sistema linguístico. Em contrapartida, muitos teóricos observavam que as unidades textuais mantinham um certo grau de fixidez, além disso, esse grupo de unidades lexicais mostrava-se passível de novas subdivisões e agrupamentos, o que, pouco a pouco, foi exigindo uma teorização específica. Uma vez observada a distinção do objeto e a especificação da teoria, o caráter de subárea de estudo parecia obsoleto. Muitos pesquisadores, entre eles Corpas Pastor (2000), González Rey (2004), Olímpio de Oliveira Silva (2007) e Monteiro-Plantin (2012), passaram a delimitar a Fraseologia como uma disciplina independente capaz de uma grande produção teórica, documental e prática, apesar de ainda manter laços com a Lexicologia. A grande quantidade de pesquisas em desenvolvimento (teses defendidas, livros, manuais e projetos de investigação) no Brasil (a partir da década de 90, segundo Ortiz Alvarez, 2011, p. 13) e no mundo (principalmente com os russos, na década de 50, de acordo com Corpas 1 Tradução nossa, assim como as demais: […] a la hora de hablar de fraseología deberán abordarse cuestiones de morfología, de sintaxis, de lexicología y semántica, de pragmática e, incluso, de sociolingüística y psicolingüística, etc., de un modo similar a como propugnaba una parte de la lingüística soviética, es decir, de forma integrada dentro de una disciplina independiente. Desde esta perspectiva, no perderá su idiosincrasia frente a otras disciplinas, a pesar de que manifiesta evidentes relaciones con algunas de ellas (RUIZ GURILLO, 1997, p. 27). 21 Pastor, 1996, p. 11), reafirma a posição autônoma no domínio dos estudos da linguagem. Além disso, ramos de estudos de base fraseológica surgiram e continuam surgindo, abordando aspectos distintos de um mesmo objeto, como os citados por González Rey (2004, p. 116): “a psicofraseologia, a neurofraseologia, a sociofraseologia ou a antropologia fraseológica, chamada também de etnofraseologia”. De maneira geral, a Fraseologia pode ser usada para nomear duas situações: em primeiro lugar, e de forma mais recorrente e institucionalizada, designa a disciplina como acabamos de expor; em segundo lugar, e de maneira menos usual no Brasil, designa a relação dos fenômenos fraseológicos, o objeto em si. Sem entrar no mérito da questão terminológica, atualmente há uma tendência em denominar esta relação de fenômenos como “unidades fraseológicas” ou “fraseologismos”. Neste trabalho, também optamos pelo uso desses termos, pois acreditamos que tal denominação evita a ambiguidade e a confusão de conceitos, separando claramente a disciplina de seu objeto. Além disso, tal determinação segue a distinção das diferentes unidades observadas por Pottier (1974) e usada por muitos autores no âmbito da Lexicologia. Poderíamos, portanto, afirmar que a unidade textual, juntamente com as complexas, propostas por Pottier (ibidem), compõem o âmbito da unidade fraseológica. Concebemos que, ao fazer referência à unidade fraseológica e ao fraseologismo, tais unidades tornam-se mais associáveis à disciplina, a Fraseologia, contribuindo para seu caráter independente e reafirmando seu objeto de estudo. Para além dessas questões práticas, referir-se a um agrupamento de lexias como uma “unidade” faz todo sentido, uma vez que as estruturas analisadas se comportam de maneira especial encerrando, muitas vezes, uma não composicionalidade semântica, ou seja, uma significação que não depende da somatória dos elementos constitutivos, portanto, uma “unidade de sentido”. O termo “fraseologismo” tem sido usado para substituir unidades aparentemente similares como modismos, locuções ou expressões fixas (ZULUAGA, 1980) e, juntamente com “unidade fraseológica”, parece mais adequado ou mesmo satisfatório que o uso de fraseologia para fazer referência ao fenômeno fraseológico. Quanto à delimitação do objeto muito se tem discutido e ainda não há consenso entre os fraseólogos com relação à nomenclatura da área. Para Luque Nadal (2010), a Fraseologia precisaria determinar sua terminologia, pois parece excessivamente abrangente e não dispõe de um repertório que descreva todas as unidades em todos os níveis de análise. 22 [...] infelizmente, ainda não há um repertório completo das sequências fixas de acordo com suas características sintáticas, semânticas e pragmáticas que inclua a grande variedade de provérbios; locuções proverbiais; fórmulas de intensificação; afronta ou desprezo; locuções expressivas; chavões ou lugares comuns; exclamações de assombro, surpresa, raiva, incômodo; circunlóquios humorísticos e frases humorísticas; fórmulas mnemotécnicas; rimas jocosas; revisões de textos religiosos; frases feitas para as situações, etc2 (LUQUE NADAL, 2010, p.186). A variedade de tipos de unidades fraseológicas levou alguns autores a desenvolverem uma taxonomia extensa, tentando enquadrar cada ocorrência fraseológica em categorias que as recobrissem completamente. O que se pode perceber, no entanto, é que quanto mais fechadas e delimitadas as categorias, mais difícil é de se encontrar um rótulo para aquelas unidades híbridas. Neste sentido, há duas possibilidades de visão dos estudos fraseológicos, uma forma restrita e outra mais ampla e abrangente, como é possível ver no trabalho de Ruiz Gurillo (1997). O grupo concebido de forma restrita reúne as unidades que, funcionalmente, se ajustam aos limites da palavra e do sintagma, enquanto que pela concepção ampla se estudam não apenas as locuções, mas também unidades superiores como provérbios, frases proverbiais, aforismos, termos de caráter científico- terminológico, frases feitas3 (RUIZ GURILLO, 1997, p. 35). Aqueles que aderem a uma Fraseologia com sentido restrito admitem a existência de uma disciplina complementar, que seria responsável pelo estudo das unidades que tendem a se comportar mais como textos e menos como palavras, a Paremiologia. A seu turno, e de acordo com a visão restrita, a Paremiologia constitui-se de uma disciplina que integra aspectos etnográficos e antropológicos observáveis nas parêmias. Talvez seja acertado afirmar que esse conjunto de fenômenos é tão antigo como a própria Lexicografia, uma vez que os provérbios foram traduzidos para uma variedade de línguas como uma tentativa dos falantes de levarem consigo as advertências e aconselhamentos morais de suas próprias culturas. 2[…] todavía no se dispone por desgracia de un repertorio completo de las secuencias fijas según sus características sintácticas, semánticas y pragmáticas que incluya la gran variedad de refranes; dichos proverbiales; fórmulas de intensificación; desplantes y desprecios; locuciones expresivas; truismos o lugares comunes; exclamaciones de asombro, sorpresa, ira, fastidio; circunloquios humorísticos y frases humorísticas; fórmulas mnemotécnicas; rimas jocosas; revisiones de texto religiosos; dichos para las ocasiones, etc. (LUQUE NADAL, 2010, p.186). 3 El grupo concebido de forma estrecha reúne a las unidades que, funcionalmente, se ajustan a los límites de la palabra o el sintagma, mientras que desde la concepción ancha se estudian no sólo las locuciones, sino también unidades superiores como refranes, frases proverbiales, aforismos, giros de carácter científico-terminológico, frases hechas (RUIZ GURILLO, 1997, p. 35). 23 Aqueles que admitem a Fraseologia em sentido amplo, consideram que todas as unidades fraseológicas, incluindo-se as parêmias e por consequência a Paremiologia, são objeto de estudo da Fraseologia, pois todas elas podem ser consideradas fraseologismos. Nossa concepção de Fraseologia se dá em sentido amplo, em que todas as unidades fraseológicas podem ser analisadas sob o mesmo prisma, contudo, observando-se as distintas características que as identificam. 1.2. Características: do essencial ao potencial As unidades fraseológicas podem ser analisadas por diferentes perspectivas, mas, principalmente, por três âmbitos principais: sob a ótica da sintaxe, os elementos das estruturas e suas correlações, sob a ótica da semântica, os significados e sentidos que os fraseologismos podem despertar e pelo viés da pragmática, do uso, como as unidades fraseológicas se comportam no dia a dia da língua. Também é preciso estabelecer uma diferenciação entre características (ou critérios) e categorias. Usamos critérios para identificar uma estrutura como unidade fraseológica e categorias como conjuntos criados para o agrupamento de unidades fraseológicas que apresentam os mesmos atributos. Propomos, neste tópico, uma organização das características fraseológicas. No entanto, há critérios que transcendem as barreiras entre os domínios e associam propriedades de componentes distintos como é o caso do item “variante”, que é tanto de ordem sintática como semântica. Desse modo, é preciso ter em mente que as categorizações são movediças, que algumas unidades podem transitar entre os critérios de delimitação. As características das unidades fraseológicas são diversas e variam dependendo do tipo de fraseologismo, em outras palavras, há uma gradação de alguns critérios que podem apresentar-se de maneira mais forte ou mais fraca, como ocorre com a idiomaticidade e a cristalização, por exemplo. Por constituírem grandezas variáveis é preciso observar a classificação aqui proposta como um contínuo, de maneira que os limites entre um e outro são pouco precisos e que muitas unidades podem apresentar um caráter híbrido. Nosso posicionamento é o de que identificar aspectos é mais eficiente que identificar categorias, uma vez que essa postura imbrica o comportamento da unidade fraseológica em si mesma e a relação com as demais. Reforçamos que, ao concebermos as características em modelo contínuo, sem fronteiras entre um e outro aspecto, a conceituação dos critérios 24 fraseológicos pode se mostrar complexa, pois ao mesmo tempo que depende, também constitui o outro. Com base nas observações que surgiram no decorrer da elaboração do BD-FraZoo e de muitas leituras teóricas, classificamos as características fraseológicas como essenciais e potenciais, em um continuum, dado que algumas delas não são condição sine qua non para o estabelecimento do objeto. Portanto, apesar de alguns aspectos serem muito recorrentes e bastante difundidos, não constituem, de acordo com nossa observação, características gerais que servem para conceituar de forma ampla o conceito de unidade fraseológica, mas apenas algumas categorias que a constituem, ou mesmo, apenas algumas unidades dentro do conjunto. Algumas características das unidades fraseológicas podem ser observadas no fluxograma abaixo, construído com base em diversos estudos, como os de Casares (1992 [1969]), Zuluaga (1980), Corpas Pastor (1996), Ortiz Alvarez (2000), Tagnin (2005), Nogueira (2008), Xatara (2008), Riva (2009), Rios (2010), Kraicová (2012), Monteiro-Plantin (2012), entre tantos outros. A figura 1 visa apresentar um apanhado das características das unidades fraseológicas, além da tentativa de descrição de cada característica individualmente. Porém, isso não implica em separações absolutas, pois os critérios não são estanques e dissociados, mas sim entrecortados e dependentes um dos outros; são, melhor dizendo, processos em que um aspecto desencadeia outro ou que acontecem de maneira concomitante. 25 Figura 1 - Características das unidades fraseológicas Fonte: elaborado pela autora. 26 Vale ressaltar ainda, que mesmo tendo adotado a distribuição apresentada no organograma anterior, não dispensamos a distinção das características que toma por base a estrutura (sintaxe), o significado (semântica) e o uso (pragmática), pois tais categorias podem se sobrepor. Assim, especificamos essas categorias quando tratamos do item fixidez (um dos elementos que compõem as características essenciais), aspectos bastante discutidos por apresentar cristalizações de todas as ordens (ZULUAGA, 1980). A separação, entre aspectos essenciais e potenciais, é uma entre as muitas alternativas possíveis. Poderíamos, inclusive, separar as características entre aspectos semânticos, sintáticos e pragmáticos, como pensávamos a princípio e como está esquematizado abaixo. Figura 2 - Organização alternativa das características fraseológicas Fonte: elaborado pela autora. Este organograma foi a primeira proposta que desenvolvemos para a disposição das características, uma organização que não deixa de ter validade, mas que não é tão efetiva se observada a concepção de contínuo fraseológico, de fluidez entre um aspecto e outro, apesar de inserirmos a gradação em todos os níveis. Esse esquema também parecia não suportar o que pouco a pouco, com o avançar das leituras, foi ficando mais evidente: o caráter essencial ou potencial de certas características. 27 1.2.1. Características essenciais: polilexicalidade, frequência, institucionalização e fixidez Primeiramente, é preciso esclarecer que utilizamos “essencial” no sentido do “que é inerente”, “que é necessário, indispensável” (HOUAISS, VILLAR, 2009), ou seja, uma condição sine qua non para a confirmação do estatuto de fraseologismo e, de certa forma, as características vistas como potenciais também são essenciais aos fraseologismos, ou seja, são igualmente importantes e bastante recorrentes, mas não estão presentes em todos eles. De acordo com o que propomos, essenciais são as características que perpassam as categorias fraseológicas e que as unidades fraseológicas apresentam, mesmo que em um nível baixo, tomando por base a gradação dos aspectos fraseológicos. Desse modo, podemos citar: A) Polilexicalidade; B) Frequência; C) Institucionalização e D) Fixidez. A) Polilexicalidade Aspecto bastante evocado no tratamento dos fraseologismos é a polilexicalidade e, talvez, venha daí a grande variedade terminológica para se referir ao mesmo fenômeno: unidade pluriverbal, expressão multilexêmica, expressão multipalavra, expressão multivocabular, unidade poliléxica, unidade multiléxica, unidade multivocabular, unidade plurilexemática, unidade poliverbal, unidade frástica e unidade polilexical. Concebemos todos esses termos como válidos, porém, neste trabalho, optamos pelas designações polilexicalidade, multilexicalidade, poliverbalidade, pluriverbalidade, por serem mais frequentes nos textos brasileiros (FONSECA, 2017). A polilexicalidade é a característica que representa a composição da unidade fraseológica por mais de uma unidade lexical. Pode parecer um princípio óbvio, mas dele decorrem implicações para a aplicação dos outros princípios como a frequência, a fixidez e a especialização semântica. B) Frequência Primeiramente, faz-se necessário ressaltar que frequência, neste caso, não se refere ao número de aparições de uma determinada unidade em um corpus, de maneira quantitativa. 28 Trata-se de algo mais abrangente, enquanto fenômeno inconsciente de uso. Refere-se ao fato de que uma determinada estrutura passa a ser amplamente utilizada, em uma dada ordem, com certos elementos e reproduzida por uma coletividade. A frequência funciona em dois níveis: um mais amplo, relacionado ao uso diário da língua, e outro mais restrito à estrutura fraseológica, por meio do qual uma unidade lexical tende a aparecer acompanhada por determinadas lexias e não outras. Mesmo as unidades pouco frequentes, em frequência geral de uso, precisam apresentar uma frequência interna mínima, de coocorrência, pois, se não for assim, trata-se de uma disposição livre de palavras e não de um fraseologismo. Portanto, a frequência é uma característica que desencadeia outros aspectos nas unidades fraseológicas, pois tanto a frequência de coocorrência como a frequência de uso institucionalizam os fraseologismos. Quando institucionalizadas, as unidades fraseológicas passam a ser, de certa forma, uma retomada de um discurso já realizado, obviamente, atualizado no ato enunciativo e suscetível ao contexto. Pela frequência, as unidades fraseológicas ficam gravadas na mente, ocupando um espaço mental específico, que pode variar de acordo com o campo lexical. Ao contrário do que muitos possam afirmar, a institucionalização nada tem a ver com a entrada das unidades fraseológicas nos dicionários, porque a unidade pode ser criada, existir, ser reconhecida e não figurar em obras lexicográficas gerais, como “ser uma mosca”, no sentido de ser imperceptível, como ocorre no exemplo: “quantas e quantas vezes você já falou ou pensou que queria ser uma mosca pequenininha só para estar presente em um certo momento?4”. Pode ainda entrar em desuso e continuar registrada nessas mesmas obras. Por um lado, isso ocorre porque as obras de referência são posteriores ao surgimento das unidades fraseológicas e muitas delas são efêmeras e, por outro lado, porque é difícil comprovar o desaparecimento ou o total desuso de uma unidade, embora atualmente seja possível acompanhar a evolução dos fraseologismos, dados os recursos tecnológicos e o acesso à internet. O processo de reconhecimento das unidades fraseológicas é similar àquele das unidades simples, pois surgem inicialmente como expressões neológicas, gírias de determinados grupos sociais, como por exemplo “fazer a egípcia”, ignorar alguém ou alguma coisa mostrando superioridade. Mas, somente com o tempo, poderemos saber se essa expressão idiomática vai persistir ou desaparecer. Nesse sentido, podemos citar os trabalhos de Riva (2012, 2013, 2014) que tenta acompanhar expressões idiomáticas neológicas nas redes sociais. 4 Disponível em: . Acesso em: 11 maio 2012. 29 Frequência de coocorrência A frequência pode ser observada dentro da própria estrutura dos fraseologismos, uma vez que certas unidades lexicais têm uma espécie de ímã que atrai unidades lexicais específicas. O fato de as lexias ocorrerem sempre juntas é o que contribui para a fixidez da unidade fraseológica. A frequência de coocorrência é um conceito possível quando comparado à distribuição das palavras simples, pois elas se unem em diversos arranjos estabelecidos pelo falante no ato discursivo. A unidade fraseológica é estabelecida quando esse arranjo já não é livre, quando o falante não pode escolher ou tem escolha bastante reduzida de que palavras utilizar. A frequência de coocorrência do sintagma dá-se tanto pela associação das unidades como pelo posicionamento, não admitindo a inversão nem a troca dos elementos por outros, como nos exemplos: Aonde a vaca vai, o boi vai atrás *O boi vai atrás da vaca *Aonde a pata vai, o pintinho vai atrás. Frequência de uso Os fraseologismos apresentam uma frequência de uso no discurso, portanto, algumas unidades tendem a ser mais usadas que outras e mais retomadas na comunicação. Quando há a institucionalização, passamos a identificar as unidades fraseológicas como fatores comuns da língua e identificadoras de um determinado grupo ou sociedade. De acordo com o Díaz Ferrero e Sabio Pinilla (2016), pesquisadores do projeto Mínimo Paremiológico do Português do Brasil, o provérbio “águas passadas não movem moinhos” é frequente, por ser usado e reconhecido por uma maioria de falantes brasileiros, já “araruta tem seu dia de mingau” não compartilha desta frequência entre os mesmos falantes. A frequência poderia ser observada como uma grandeza variável, pois é uma característica relacionada ao contexto discursivo, ao gênero textual, à faixa etária, à situação econômica e ao domínio cultural dos falantes. Por esse motivo, poderíamos afirmar que as pessoas mais idosas conhecem uma gama de provérbios mais ampla que as pessoas jovens. Nesse contexto, mudanças nas estruturas e concepções sociais implicariam, também, em mudanças lexicais e fraseológicas. 30 C) Institucionalização A institucionalização é o processo pelo qual novas combinações passam a integrar o repertório lexical, ou seja, são absorvidas e aceitas na norma linguística, termo que usaremos como correspondente de convencionalização. Esta característica depende da frequência, pois se trata de um aspecto que resulta dela. Nesse sentido, em razão de sua repetição, os neologismos fraseológicos são difundidos em uma comunidade, o que culmina, geralmente, na institucionalização, ou seja, na aceitação dessa unidade fraseológica como um componente ativo do acervo lexical e como um elo cultural comum capaz de ser decodificado e alterado pelos falantes. Quando institucionalizada a unidade já não é recém-criada, mas sim madura e aceita pela comunidade de fala. É por meio da institucionalização (e da frequência, baseando-nos na ideia de contínuo) que chegamos a uma das características mais básicas dos fraseologismos: a fixidez, característica que representa a estabilidade da forma pela sua frequência de coaparição e uso. Esse termo é concorrente de fixação ou cristalização e serão empregados, neste trabalho, como equivalentes. D) Fixidez A fixidez é um aspecto mais complexo, se comparado aos outros, pois é uma característica que envolve a associação de aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos, que funcionam em concomitância e se implicam mutuamente. Como referido, esse termo pode ser intercambiado com cristalização, usado no mesmo sentido. Podendo ser observado em pelo menos três ângulos, vamos detalhar, a seguir, algumas questões referentes à estrutura sintática, ao significado e ao uso. Bastante explorado pela Fraseologia nos dias de hoje, esse traço foi suprimido por muito tempo nos estudos linguísticos ou tratado de maneira superficial pelas gramáticas que, apesar de tudo, observaram a existência de construções livres, que gozavam de uma liberdade de combinação, em oposição a construções prontas, que não permitiam uma grande variedade de permutações. Nesse contexto, para Rey e Chantreau (2007, p. VII) as expressões fixas são “formas fixas do discurso, formas convencionais, pré-fabricadas, herdadas pela tradição ou 31 recém-criadas, que comportam uma originalidade de sentido (às vezes de forma) em relação às regras normais da língua”5. Posteriormente, com o desenvolvimento dos estudos fraseológicos, a fixidez tornou-se questão central e a marginalidade com que era tratada deu lugar a uma profusão terminológica ligada, por sua vez, a diversos pontos de vista. De acordo com Gross (1996, p. 3) “o fato linguístico da fixidez foi obscurecido por denominações vagas e muito heterogêneas, de maneira que temos níveis de definição frequentemente incompatíveis”6. Ainda segundo esse autor, e como a trataremos aqui, a fixidez representa fenômenos de natureza muito distinta, mas que estão relacionados e por esse motivo afirma: “uma sequência é fixa do ponto de vista da sintaxe quando ela recusa todas as possibilidades combinatórias ou transformacionais [...] Ela é fixa semanticamente quando o sentido é opaco ou não composicional”7 (GROSS, 1996, p. 154). Com essa afirmação, é possível perceber que o autor se refere a uma fixidez total, segundo a qual as unidades fraseológicas não admitiriam possibilidades combinatórias, sendo opacas com relação à semântica. Atualmente, a fixidez é tratada em termos graduais sendo uma unidade fraseológica mais ou menos fixa, de acordo com as mudanças que admite. Nesse contexto, os critérios geralmente podem ser analisados em termos progressivos, apresentando um “continuum que vai da total transparência (“ter frio”, “fazer justiça” etc.) à opacidade completa (“comer capim pela raiz”), passando por uma transparência mais ou menos fraca e uma opacidade um pouco rarefeita (“vinho rosé”, “ninho de cobras”)”8 (MEJRI, 2008 apud LÉDÉE, 2011, p. 9). Desse modo, a fixidez deve ser vista como uma grandeza gradativa, mas também como um aspecto que pode ser observado desde o ponto de vista estrutural, mais comumente analisado, mas também pelo enfoque da semântica e da convencionalidade do uso. É o que pretendemos representar por meio da figura 3 a seguir: 5 […] des formes figées du discours, formes convenues, toutes faites, héritées par la tradition ou fraîchement crées, qui comportent une originalité de sens (parfois de forme) par rapport aux règles normales de la langue (REY; CHANTREAU, 2007, p. VII) 6 [...] le fait linguistique du figement a été obscurci par des dénominations floues et très hétérogènes, de sorte qu’on est en présence de strates définitionnelles très souvent incompatibles. (GROSS, 1996, p. 3). 7 Une séquence est figée du point de vue syntaxique quand elle refuse toutes les possibilités combinatoires ou transformationnelles [...] Elle est figée sémantiquement quand le sens est opaque ou non compositionnel (GROSS, 1996, p. 154) 8 Continuum qui va de la transparence la plus totale (avoir froid, rendre justice, etc.) à l'opacité complète (manger des pissenlits par la racine), en passant par une transparence plus ou moins altérée ou une opacité quelque peu aérée (vin gris, panier de crabes) (MEJRI, 2008 apud LÉDÉE, 2011, p. 9). 32 Figura 3 - Fixidez fraseológica Fonte: elaborado pela autora. Com o esquema acima, queremos propor uma maneira de se observar e analisar a fixidez, não dispondo barreiras entre domínios, mas respeitando a ideia de continuidade em que um fenômeno leva a outro ou funcionam concomitantemente. Segundo nosso ponto de vista, não só o fenômeno da cristalização estrutural caracteriza a fixidez, mas a frequência de coocorrência e de uso (CORPAS PASTOR, 1996), como também a especialização semântica. De acordo com o esquema, algumas unidades poliléxicas tendem a aparecer sempre unidas, respeitando-se uma sequência que, por meio da repetição do uso, passam a gozar de um caráter de bloco, conjunto, ou seja, cristalizam-se em estrutura e sentido, visto que muitas delas não são composicionais, como “pagar um mico” ou estão relacionadas a contextos específicos, como em “meus pêsames”. Desse modo, essas estruturas institucionalizam-se e passam a ser recuperadas no ato elocutório como um discurso pronto, mas passíveis de adaptações exigidas pelo contexto ou criatividade linguística. A fixidez é gradativa e se dá em diversos níveis, sendo assim, vamos detalhar essa característica pelo viés a) sintático / estrutural, b) pragmático / uso e c) semântico / significado, como estabelecido na imagem anterior. 33 a) Fixidez – sintático / estrutural Como já vimos, a fixidez, cristalização ou fixação, é a tendência ou caráter dos componentes das unidades fraseológicas de aparecerem acompanhados sempre das mesmas unidades lexicais, ou de um grupo reduzido de possibilidades. Observando-se os arranjos sintáticos, podemos estabelecer uma fixidez da ordem, uma fixidez combinatória e uma fixidez gramatical, como disposto a seguir: Fixidez da ordem Corresponde à estabilidade da ordem dos elementos na estrutura do sintagma que compõe as unidades fraseológicas. Esse quesito pode ser observado em quase todas as categorias de unidades fraseológicas e é o que possibilita criações do tipo “velha coroca” que não admite a inversão para “coroca velha”, por exemplo. Já em “filme em preto e branco” há a possibilidade de mudança, porém essa construção ainda é preferida, como em “sexo, drogas e rock’n roll”, “pôr o preto no branco”, entre outras. Fixidez combinatória Algumas unidades fraseológicas, mesmo considerando que sua principal característica seja a fixidez, aceitam a permutação de alguns de seus componentes por outros. É importante lembrar que essas mudanças são efetuadas dentro do que é permitido de acordo com o grau de cristalização, desse modo, a possibilidade de troca de uma lexia por outra não ocorre por mero acaso, mas geralmente tende a ser feita por componentes de um mesmo campo semântico ou que mantenham características comuns. Portanto, o arranjo fraseológico seria fixo, predeterminado e previsto dentro do paradigma composto por cada unidade que compõe o fraseologismo. O nível mais leve de fixidez combinatória é uma das faces constitutivas das variantes, segundo a qual é possível alterar algum item da estrutura, mantendo o significado inalterado. Reiteramos que a fixidez combinatória é um aspecto essencial, enquanto, de acordo com nosso ponto de vista, a variação é uma característica potencial. Assim, todas as unidades fraseológicas apresentam certo grau de cristalização combinatória, mas nem todas permitem alterações, portanto, nem todas apresentam variantes. O exemplo “efeito borboleta” foi cristalizado com o zoônimo borboleta, que não admite permutação nem por “mariposa” que seria um zoônimo 34 próximo. O mesmo ocorre com “cobra criada”, “espírito de porco”, “banho de gato”, por exemplo, que não seriam fraseologismos se fossem “*serpente criada”, “*alma de porco” ou “*banho no gato”. Enquanto isto “entregue às moscas” permite a alteração por “traças”. No corpus do BD- FraZoo, podemos encontrar permutações, como as especificadas abaixo, que não admitiriam muitas outras opções, como em: Tem medo de > teme = gato escaldado tem medo de água fria / gato escaldado teme água fria. Para > pra = conversa para boi dormir / conversa pra boi dormir. Ladra > late = cão que ladra não morde / cão que late não morde. Cão > cachorro = cão que ladra não morde / cachorro que ladra não morde. Águia > lince = olhos de águia / olhos de lince. Fixidez gramatical Refere-se à estabilidade das categorias de número, pessoa, modo etc. Por esse princípio de cristalização, algumas unidades sempre serão invariáveis, mesmo com a mudança de algum elemento que exija concordância como “filho de peixe, peixinho é”, “quem semeia vento, colhe tempestade”, em que o verbo ou os substantivos “vento” e “tempestade” sempre aparecem no singular. b) Fixidez – pragmática / uso Muitas vezes, é o ato comunicativo que dita a necessidade de uso de certas estruturas que, por si mesmas, são construções prévias que o falante atualiza na fala. Portanto, há uma dupla cristalização, uma que se refere ao que já vimos nos itens anteriores de fixidez estrutural e outra que se refere ao que chamamos de fixidez pragmática, pois depende da situação comunicativa, do grau de intimidade entre os interlocutores, dos efeitos que se quer alcançar. Com isso em mente, baseando-nos em Thun (1975), Zuluaga (1980), Corpas Pastor (1996) e Marcuschi (2008) propomos a distinção entre fixidez situacional e fixidez gênero-textual. 35 Fixidez situacional Essa cristalização é proposta por Thun (1978 apud CORPAS PASTOR, 1996) como um subgrupo do que define uma fixidez externa, ou seja, aquela cristalização que já não é da ordem do sistema e da estrutura linguística, mas do exterior linguístico, da interação, das relações, das situações, dos contextos. Ele ainda propõe uma fixidez analítica, que compreende a escolha de uma unidade frente a inúmeras possibilidades; fixidez passemática, que surge da função do falante no discurso; e fixidez posicional, que se refere à posição das unidades fraseológicas nos textos. Neste trabalho, acreditamos que a cristalização situacional já compreenda os tipos de fixidez analítica e passemática, uma vez que o falante deve julgar a adequação na unidade fraseológica ao contexto e aos interlocutores e, sempre o faz, tendo em conta as relações de poder, as regras sociais e os efeitos que se quer alcançar. Segundo nosso enfoque, é a fixidez analítica que exige do falante fórmulas de rotina do tipo “bom dia” para a primeira parte do dia e nunca para a noite, ou “meus sentimentos”, “meus pêsames” para um velório e nunca para um aniversário. Em outras palavras, a situação comunicativa (extralinguística) dita o uso de unidades linguísticas, a cristalização, portanto, está na convenção social da situação, que acaba por acarretar usos de unidades que também estão fixadas. Desse modo, o falante, quando exposto a uma das situações sociais marcadas, antevê o discurso que pode utilizar e escolhe entre as possibilidades fraseológicas aquela que melhor se aplica. Do mesmo modo, a adequação pode ser concebida tendo em vista não só o contexto e a situação, mas também os efeitos de sentido da elocução. Apesar de constituir uma oração interrogativa, inclusive com sinal interrogativo, “que bicho te mordeu?”, por exemplo, nem sempre quer questionar, algumas vezes pode apenas afirmar um descontentamento pessoal em relação ao outro, sem de fato, haver uma intenção de descobrir o que há de errado; constitui quase uma fórmula vazia, pois a intenção não é questionar e sim chamar a atenção. Fixidez gênero-textual Como mencionamos acima, decidimos por reformular a classificação de Thun (1975, 1978 apud CORPAS PASTOR, 1996) sobre a fixidez externa. Desse modo, inserimos neste tópico o que o autor denomina de fixidez posicional, que seria o lugar em que o fraseologismo ocupa no texto, como “caro amigo” para a abertura de uma carta ou “desde já, agradeço” para 36 o seu fechamento. Assim como ele, entendemos que algumas unidades ocupam lugares determinados, mas não apenas isso. Baseados principalmente em Marcuschi (2008, p. 147), concebemos o gênero textual como um texto característico para exercer uma função social determinada. Vale ressaltar que texto, para nós, não é apenas o texto escrito, mas qualquer tipo de comunicação social. Assim, adequamos os textos que produzimos às situações comunicativas e, dada a frequência com que recorremos aos mesmos textos para as mesmas situações, acabamos por criar textos que possuem uma série de características que os identificam, como um ofício ou uma bula de remédio, por exemplo. Cada um deles possui uma gama de unidades fraseológicas especializadas, que podem não determinar a área do conhecimento em si, mas seguramente indicam o tipo textual. Desse modo, há uma categoria de unidades fraseológicas especializadas que constituem termos de uma área do saber, mas há outras que ajudam a construir gêneros textuais, sem necessariamente estar relacionadas a um único âmbito do conhecimento. Portanto, construções do tipo “é possível observar”, “de acordo com”, “deste modo”, não indicam unidades especializadas da biologia ou do direito, mas de textos dissertativos, de teses, de revisões bibliográficas. Com base no exposto, queremos apontar que há unidades fraseológicas fixadas por aspectos extralinguísticos, algumas das quais surgirão como estruturas exigidas pelos próprios tipos e gêneros textuais e, de acordo com a especificidade do texto e da área, podem constituir termos específicos, unidades fraseológicas especializadas, como: “uso oral”, “fila única”, “caixa preferencial” e “ponto eletrônico”. c) Fixidez – semântica / significado De acordo com nossa organização, a fixidez semântica constitui o terceiro caso de fixidez. Assim como as unidades fraseológicas possuem graus de fixidez no que diz respeito à estrutura, à maneira como são construídas, apresentam também uma especialização do sentido, que relaciona esta estrutura pré-fabricada a um sentido determinado. Apesar de manterem a mesma disposição, “elefante branco” e “mosca branca” não podem ser tomados por variantes ou sinônimos, pois o primeiro representa algo pouco prático e muito dispendioso e o segundo refere-se a algo raro, difícil de ser encontrado. Nos exemplos citados, a fixidez dos componentes leva a uma fixidez semântica. 37 Especialização semântica A especialização semântica é uma característica decorrente do processo de fixidez e representa a possibilidade de alteração do significado do fraseologismo, seja por acréscimos ou subtrações de sentidos. Essa característica não pode ser confundida com cristalização, pois é posterior a ela. Desse modo, há processos para o surgimento de uma unidade fraseológica e um deles é a especialização semântica em que, estando fixada a unidade, fixa-se também o sentido, que em muitos casos não é composicional. Por meio desse processo, a expressão idiomática “boi de piranha”, parte de um uso denotativo no contexto dos tropeiros e vai sofrendo alterações, acréscimos, até ser aplicada com o sentido conotativo de “o primeiro a ser sacrificado, chamando para si a atenção e o perigo, para o bem do restante do grupo”. Assim, de maneira metafórica, podemos atestar um uso como: “Globo cria boi de piranha no Fifalão. Rede Globo se desfaz do executivo que comandou por mais de vinte anos todas as negociações de direitos esportivos”9. Pela mesma razão, mas por meio de subtrações de sentido, de apagamentos e de obscurecimentos de sentido, cristaliza-se o sentido de expressões cotidianas que já não significam pela individualidade de suas unidades lexicais, mas sim enquanto bloco. Desse modo, o falante pode usar a fórmula “Bom dia! Tudo bem?”, sem que, de fato, o objetivo seja questionar, pois é uma fórmula para boa convivência fixada nos níveis sintático, semântico e pragmático. Quem usa essa fórmula não necessariamente quer saber se está tudo bem e, de fato, o interlocutor pode responder “Tudo bem, e você?”, mesmo que tenha um problema. A especialização semântica só pode ser equivalente à idiomaticidade quando relacionada a “seu grau mais elevado”, como podemos observar nos trabalhos de Corpas Pastor (1996, p. 26). Além disso, apesar de especificarem seu significado de acordo com o contexto, as unidades fraseológicas apresentam uma propensão a certos campos lexicais. Entretanto, nada impede que uma unidade pertença a dois campos relacionados, porém, distintos. Geralmente elas apresentam uma tendência semântica, mas podem ganhar outros sentidos, observados o contexto e a intenção do falante. 9 Disponível em . Acesso em 08 dez. 2016. 38 Contexto O contexto pode acrescentar conotações às unidades fraseológicas, diferentes daquelas que as compõem normalmente. Em “o bicho vai pegar”, por exemplo, temos que o significado geral é de previsão ou ameaça de alguma confusão, de algo negativo que vai acontecer, como podemos observar em “Olha, para não piorar a coisa e não arrumar confusão, eu vou arrumar o meu material e sair da sala, porque o bicho vai pegar para o seu lado!"10 e “O bicho vai pegar! Operador do mensalão quer fazer delação”11, mas quando observamos o trecho “Essa semana tô aproveitando cada segundinho, porque o bicho tá pegando pro meu lado. Mas não é sobre isso que eu quero falar com vocês. Daqui a pouco eu conto o motivo da correria”12 percebemos que o contexto não é tão negativo, continua sendo o de confusão, mas relacionada ao excesso de trabalho e à falta de tempo. Por fim, a unidade fraseológica mantém o sentido geral básico, mas vai ganhando novas nuanças de sentido de acordo com o contexto e com os novos arranjos feitos pelos falantes. 1.2.2. Características potenciais: idiomaticidade e alterações Durante a coleta das unidades que constituem o BD-FraZoo e no decorrer do processo de análise dos dados à luz da teoria fraseológica, chamou-nos a atenção o fato de que algumas características não são essenciais na constituição das unidades fraseológicas, enquanto outros aspectos são uma possibilidade, que devem ou não ser aplicados a todas as unidades. É importante salientar que potencial não significa menos importante, ao contrário, todas as características, essenciais ou potenciais, são igualmente relevantes para a análise dos fraseologismos. Por conseguinte, aspectos como idiomaticidade, por exemplo, afetam de forma contundente a estrutura e o significado da construção fraseológica, inclusive, dando nome a uma categoria inteira de fraseologismos, as expressões idiomáticas. 10 Disponível em . Acesso em 11 out. 2016. 11 Disponível em . Acesso em 06 dez. 2016. 12 Disponível em . Acesso em 06 dez. 2016. 39 Idiomaticidade Anteriormente, vimos que a especialização semântica é a cristalização do sentido da unidade fraseológica. O mesmo conceito pode ser aplicado à idiomaticidade, pois também é um tipo cristalização do sentido. A esse respeito, Tagnin (1989, p. 13) afirma: “no momento em que a convenção passa para o nível do significado entramos no campo da idiomaticidade”. Estamos de acordo com a afirmação de Tagnin, mas queremos complementar e realçar alguns outros aspectos. É pela idiomaticidade que uma junção de unidades passa a representar algo diferente do significado de cada lexia em separado, mas isso também se aplica à especialização semântica, portanto, entendemos a idiomaticidade sempre relacionada ao uso conotado, seja por meio de metáforas ou metonímias. A idiomaticidade pressupõe uma opacidade semântica e uma subjetividade adjacente que transponham o uso do literal ao conotado. Uma unidade fraseológica idiomática, a nosso ver, deve, necessariamente, passar por um nível de abstração, ser figurada mesmo que seu significado tenha sido anteriormente motivado. Retomaremos mais adiante, ao tratar dos processos cognitivos que envolvem tais estruturas, a questão da motivação metafórica dos fraseologismos. Por esse enfoque, a cristalização sintática, semântica e pragmática é um processo normal que está na base de todas as unidades fraseológicas. A especialização semântica se estabelece em todas as unidades, mas a idiomaticidade não. A idiomaticidade recobre as estruturas de significado fixo e conotado, representa algo além das unidades lexicais que participam da composição dos fraseologismos, como podemos observar em “pagar um mico”, “gatos pingados”, “abanar mosca”, “barata descascada”, “comer pé de cachorro”, entre muitas outras, que apresentam especificações e transposições de sentido que são partilhados pelos falantes da língua. Vale ressaltar também, que a idiomaticidade pode transitar entre característica essencial e característica potencial dependendo do enfoque fraseológico. Se a Fraseologia é entendida de maneira restrita, como disciplina que se ocupa de unidades que perdem o valor das lexias componentes, então poderia tomar como elementos determinantes de seu objeto a fixidez e a idiomaticidade. Contudo, se passa a ser observada por uma abordagem mais ampla, que correlaciona colocações e provérbios cujos significados podem ser composicionais, então a fixidez e a especialização semânticas se tornariam traços comuns, ao passo que a idiomaticidade 40 seria um aspecto de algumas unidades fraseológicas específicas, como as expressões idiomáticas, por exemplo (GONZÁLEZ REY, 1998; WOTJAK, 1998). Opacidade A opacidade é uma característica que está estreitamente ligada a alguns outros conceitos, principalmente, os de especialização semântica e idiomaticidade, sendo inclusive parte constituinte deles. Nesse sentido, vamos iniciar esta discussão por meio do texto de Timofeeva (2013a): Sem entrarmos em mais detalhes sobre esta questão [...] queremos destacar que uma UF é resultado de um processo de idiomatização e que, portanto, é uma representação mais relacionada ao holismo linguístico. Se entendermos que uma estrutura holística responde à definição de que o significado de toda a construção é motivado pelos significados das partes, mas não é computável a partir delas (Lakoff 1987: 465), parece clara a relação deste conceito e não composicionalidade semântica que subjaz à noção de idiomaticidade na Fraseologia13 (TIMOFEEVA, 2013a, p. 395). A autora se vale do conceito de holismo linguístico para explicar o processo de idiomatização, nesses termos, o holismo representa uma abordagem que dá maior importância à visão integral, à completude de um fenômeno, a seu entendimento geral, opondo-se aos processos de análise que tomam os constituintes de forma isolada. Poderíamos chamar de opacidade o apagamento dos significados individuais de cada unidade componente dos fraseologismos. Segundo esse conceito, a decodificação passa a relacionar-se com o significado com base em uma outra esfera que constitui a totalidade, o todo que constitui a unidade fraseológica e não a individualidade de suas unidades lexicais. Assim, a imagem, que surge do bloco como unidade, é peça fundamental para a compreensão, pois condensa a essência que há entre o signo e a representação, é o que nos esclarece Matos (2016): Como conclusão, pode-se observar claramente que, no caso do holismo linguístico fraco, a adequada compreensão de um fenômeno depende da capacidade do intérprete de suspender a distância entre intenção e referência, 13 Sen entrarmos en máis detalles sobre esta cuestión [...] queremos subliñar que unha UF é resultado dun proceso de idiomatización e que, polo tanto, é unha representación máis do holismo lingüístico. Se entendemos que unha estrutura holística responde á definición de the meaning of the whole construction is motivated by the meanings of the parts, but is not computable from them (Lakoff 1987: 465), parece clara a relación deste concepto e a non composicionalidade semántica que subxace á noción de idiomaticidade na fraseoloxía (TIMOFEEVA, 2013a, p. 395). 41 sem, ao mesmo tempo, deixar que a linguagem perca o seu caráter de imagem, o que depende, sobretudo da compreensão do tipo de ocasionalidade envolvida no momento da compreensão (MATOS, 2016, p. 281). Como apontado, os conceitos de idiomaticidade, opacidade e imagem estão imbricados, complementam-se e esclarecem-se mutuamente. Por fim, vale destacar que “tal ponto de vista implica que a partir de um todo podemos entender e explicar o comportamento de suas partes, mas não o inverso” (TIMOFEEVA, 2013b, p. 323). Em outras palavras, segundo a visão holística da autora é possível explicar as partes pelo sentido do todo, mas não o contrário, pois há o apagamento dos valores individuais, que se tornam cada vez mais opacos até o nascimento de um valor unitário. Motivação Trata-se de uma noção que vem ganhando espaço na Fraseologia atual e refere-se a uma conexão implícita ou explícita, aparente ou pouco aparente, entre os componentes lexicais que constituem as unidades fraseológicas e seu significado, principalmente, conotado. Ao conceito de motivação subjaz o de imagem, ou imagem mental, que poderia ser um dos responsáveis pela escolha do fraseologismos em lugar de uma lexia simples. Quando o falante faz a escolha de uma unidade fraseológica, está de maneira consciente ou inconsciente, optando pelo uso mais expressivo da língua, desse modo, os envolvidos no ato discursivo precisam relacionar fatores de níveis distintos, então, dizer “dar um bolo” ou poser un lapin é mais marcado e mais expressivo que dizer que alguém não apareceu. Pode parecer contraditória a noção de motivação após falarmos de especialização semântica e idiomaticidade, segundo as quais o significado não pode ser obtido pela soma das lexias simples. Aquele conceito não anula e nem impede a ação destes dois, pois são fenômenos temporalmente distintos. A motivação estaria relacionada à criação do fraseologismo neológico que seria, em algum momento ou em algum nível, motivado e relacionado com modos de percepção do entorno não linguístico. Os outros dois fenômenos, especialização semântica e idiomaticidade, seriam desencadeados a posteriori, pois constituem uma etapa avançada da cristalização em unidades que já foram institucionalizadas. Nessa fase, geralmente, a motivação perde o sentido tornando-se menos explícita ou totalmente apagada, como sugerem Wilson e Martelotta (2016): 42 O que muitas vezes ocorre com as palavras aparentemente imotivadas ou arbitrárias, ou seja, aquelas cujo sentido não pode ser previsto a partir de sua estrutura, é que sua motivação se perde com o tempo. A dinâmica da comunicação vai fazendo com que as palavras tenham sua estrutura e seu sentido modificados, e nesse processo os falantes vão perdendo consciência das origens dos vocábulos e das expressões (WILSON; MARTELOTTA, 2016, p. 81). Desse ponto em diante a motivação passa a ser como um evocador, como um ativador da imagem, como lembra Timofeeva (2013a, p. 400): “portanto, de acordo com esta proposta, uma UF é sempre motivada para o falante, ainda que a dita motivação seja associada, às vezes, a uma situação ou, mesmo, a uma pessoa, objeto ou lugar específicos que exercem esse efeito evocador”14. O uso de uma unidade fraseológica não retoma necessariamente o que motivou sua formulação, mas sim a imagem mental que ficou fixada. Nesse contexto, as imagens podem ser distintas de língua para língua, pois os referentes motivados podem ser outros. No exemplo acima, vimos que o fato de não comparecer a um encontro é relacionado à imagem de coelho (lapin) na língua francesa e de bolo na língua portuguesa. Ambas as lexias simples apresentam acepções relacionadas ao significado atual da expressão. No Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa (2009) podemos verificar os seguintes registros, na entrada “bolo”: 11 Regionalismo: Brasil. Uso: informal. ato ou efeito de faltar a compromisso, ger. a encontro Exs.: deu b. na namorada levou um b. ontem 12 Regionalismo: Brasil. Uso: informal. ato ou efeito de ludibriar; logro O mesmo pode ser observado em língua francesa em que a expressão teria sido influenciada por uma das significações de lapin do início do século XVII, em que o coelho era utilizado como moeda de pagamento; mais adiante, no Larousse Universel, de 1923, há a acepção de “não cumprir uma promessa”, por extensão à promessa verbal do encontro poser un lapin é não cumprir uma obrigação, não comparecer. 14 polo tanto, acorde a esta formulación, unha UF sempre resulta motivada para o falante, aínda que a devandita motivación vaia asociada, en ocasións, a unha situación ou, mesmo, a unha persoa, obxecto ou lugar concretos que exercen ese efecto evocador (TIMOFEEVA, 2013a, p. 400). 43 Alterações Um fraseologismo pode ou não ser alterado e o que determina a alteração é o contexto, o efeito de sentido desejado e o nível de fixidez estrutural. A proposta de separação de características sob o rótulo “alterações” surge com o intuito de analisar os distintos fenômenos que permitem mudanças nas unidades fraseológicas, dando vez a alguns processos sintáticos e semânticos, pouco estudados pelos fraseólogos. As alterações são um combinado de processos e de características já vistas, desse modo, quando dizemos “os últimos serão os últimos” há uma óbvia mudança na estrutura, mas também há uma mudança de sentido. Para compreender essa unidade, retornamos à imagem de “os últimos serão os primeiros”, pois é este o fraseologismo institucionalizado e do qual sabemos o sentido. Nesse contexto, as alterações, que apresentam aspectos distintos, constituem a) variações, b) desautomatizações ou modificações e c) derivações ou transformações, conforme é possível observar no quadro 1: Quadro 1 - Alterações fraseológicas FORMA SENTIDO INTENÇÃO Variação x - - Derivação ou transformação - x - Desautomatização ou modificação x x x Fonte: elaborado pela autora. A variação implicaria, então, uma mudança de forma; a derivação uma mudança de sentido e desautomatização uma mudança de forma e sentido, comandada pela intenção do falante. Vamos expor cada um desses aspectos, mais detalhadamente, a seguir. 44 Variação A variação fraseológica é o fenômeno que consiste em uma alteração na forma que não interfere ou influi no significado da unidade fraseológica, como ocorre na variação verbal em “pegar o boi pelos chifres” e “agarrar o boi pelos chifres”; ou na variação lexical “pegar o boi pelos chifres”, “pegar o touro pelos chifres” ou “pegar o touro à unha”. Nesse caso, podemos perceber, por meio dos exemplos, que alguns fraseologismos permitem um leque de variações, que são previstas, não são infinitas e estão relacionadas a um campo semântico determinado. Nesses exemplos, é possível identificar: Variação do verbo – pegar / agarrar / segurar Variação do nome – boi / touro Variação do modo – pelos chifres / à unha No primeiro caso, apesar da proximidade, a unidade fraseológica não admite verbos do tipo “conter”, “reter” ou “tomar” sem que haja uma modificação de sentido. Já no segundo, não é possível a substituição por “vaca”, por exemplo, pois vaca estaria associada a imagens que não coincidem com a ideia de “ferocidade”, “bravura” e “coragem”. No terceiro caso, por sua vez, a substituição de chifres por unha manteria a representação do grau de dificuldade e responsabilidade que caracterizaria o ato de agarrar o animal, nesse sentido, o uso de “no laço” não teria a mesma conotação. Por meio desses exemplos, percebe-se que a variação em si mesma é restrita a algumas possibilidades determinadas por campos semânticos e pela própria arbitrariedade da escolha, pois “*agarrar o boi pelo pelo”, por exemplo, representaria o mesmo grau de dificuldade de execução da tarefa e, no entanto, não é utilizado. Já chifre e unha têm uma estrutura muito parecida, como elemento de defesa sobressalente em uma extremidade. A variação é um fenômeno natural nas línguas e seu conceito tem sido bastante explorado com respeito às modificações detectadas na forma, mas esse tipo de alteração não é a única possibilidade, apesar de ser, geralmente, o mais estudado. 45 Derivação ou transformação A derivação ou transformação, ao contrário da variação, abarca um tipo diferente de alteração que se caracteriza por afetar a carga semântica das unidades fraseológicas sem a mudança estrutural. Essa transformação ainda é pouco estudada na Fraseologia brasileira, pois, para ser comprovada, precisa de exemplos e contextos atualizados de uso. Além disso, é necessário um estudo sincrônico, de um recorte de tempo considerável, a fim de verificar se a transformação não é momentânea. Assim como as variantes, as transformações fraseológicas são empregadas pelos falantes de modo inconsciente. Utilizamos o fraseologismo “onde come um, comem dois”, que não faz parte do BD-FraZoo, mas que ilustra uma mudança de sentido que pode ser percebida em determinados contextos, principalmente entre os jovens e que talvez não seja reconhecida por pessoas de uma faixa etária mais avançada. Essa mudança surge na oralidade, com uma interpretação também conotada de uma estrutura já existente. Quanto ao fraseologismo citado acima, refere-se a uma situação em que dois homens mantêm relações sexuais com uma mulher, ou seja, compartilham a mesma parceira. De fato, esse uso pode ser observado na web, inclusive corroborado pela letra de um funk: “onde come um, come dois / onde come dois come o bonde / tava eu e o DJ. e tinha mais quatro homem” (Música Mc Fernandinho - DJ's Chorão & Toddy). A mudança do sentido da lexia simples imprimiu a mesma mudança na unidade fraseológica, assim a conotação de comer que denota “ter relações sexuais” passou também para a unidade fraseológica, porém restrita ao uso masculino, visto que “dar” é o verbo geralmente associado ao ato feminino de manter relações sexuais, enquanto “comer” refere-se ao masculino. “Onde come um, comem dois”, não muda a forma, mas definitivamente muda o sentido. O mesmo pode ser observado em “caiu n