POLÍTICA E CULTURA NO BRASIL: 1969-1979. (DES)FIGURAÇÕES Renato FRANCO1 • RESUMO: Análise da trajetória da produção cultural brasileira após a promulgação, pela ditadura militar, do AI-5, em dezembro de 1968. A análise tenta mostrar quais foram os reais objetivos estatais diante da produção cultural na década de 1970 e como esta, violentamente reprimida, pode esboçar - em algumas oportunidades - verdadeira resistência cultural com o aparecimento de obras originais, inovadoras e críticas. • PALAVRAS-CHAVE: Cultura e política; Estado e cultura; produção cultural: anos 70; política cultural brasileira; indústria cultural no Brasil; modernização e cultura. Introdução Em dezembro de 1968, após (breve) período de manifestações estudantis radicais contra a ditadura militar instalada no país, o governo decretou o Al-5 que, entre outros fatos, alterou significativamente a relação do Estado com a vida cultural. Esta, em sua quase totalidade, passou então a experimentar brutal repressão que atingiu, de modo indisoiminado, os mais diversos tipos e gêneros de obras que, em seus frágeis corpos de sons ou letras, conheceram mutilações várias - as quais, de um modo ou de outro, afetaram gravemente seus seres, seus destinos e, claro, suas influências. Como se vê, isto não é pouco. Contudo, decorridos já quase 30 anos, o sentido desta nova postura da ditadura diante da produção cultural ainda não foi suficientemente esclarecido. Deste modo, nada mais atual que, à maneira de Walter Benjamin (1985), interrogar o passado para desvelar nele as camadas de significação que, pelo brilho maciço da história oficial, ficaram ocultas até agora nas regiões mais obscuras da História. De fato, a que experiência, a que pulsar vital da cultura a ditadura almejava transformar em ruínas? Qual a sua pretensão neste setor da vida social? De que maneira ela pretendia imprimir nele as marcas de seu triunfo? 1 Departamento de História - Faculdade de Ciências e Letras - UNESP - 14800-901 - Araraquara - SP. Política e cultura nos anos 60 Durante a década de 1960 - e como já observou Roberto Schwarz (1978) - a produção cultural respirou o oxigênio puro da atividade política, o que lhe garantiu uma razoável saúde social. Sua trajetória, porém, foi afetada decididamente pelo golpe militar de 1964. No início deste período, por exemplo, ainda sob forte influência da acentuada modernização que, entre outros aspectos, afirmou definitivamente a presença da classe operária e das massas na paisagem política do país, os produtores culturais - ao sabor das tendências ideológicas e políticas da conjuntura - desejavam expressar os anseios e sentimentos populares: tematizavam então o próprio processo de modernização, os interesses nacionais, a confiança política no povo, a democrati­ zação da vida social etc. Em parte desta produção brotou até mesmo a predileção por formas de expressão usuais e corriqueiras: enfim, uma verdadeira valorização da "sintaxe das massas" - sinal evidente de que a política "populista" então predominante também se manifestou na atividade cultural. Nesses anos, bom exemplo desses vínculos íntimos entre a produção cultural e a vida política é a atividade dos Centros Populares de Cultura, mantidos por uma entidade estudantil - a União Nacional dos Estudantes -, que chegaram mesmo a almejar o estabelecimento de uma verdadeira cultura popular revolucionária. O CPC desenvolveu um projeto original e único no cenário cultural do Brasil. Tendo em vista que nosso processo de modernização não era homogêneo - ao contrário, era mais intenso em alguns setores do que em outros e, ao mesmo tempo, bastante contraditório, de modo que nem sempre todos os vestígios do passado podiam ser rápida e igualmente removidos -, pode-se entender sem dificuldades que a produção cultural da época não havia ainda sido atingida em profundidade ou mesmo transformada por ele. Deste modo, socialmente assentado nos - por assim dizer - espaços "ocos" desse processo, o CPC pode desenvolver um caráter ambíguo em sua produção, o qual tornou possível o estabelecimento tanto de um certo modo de criar como, ao mesmo tempo, de uma cultura que, sob muitos aspectos, eram contrários às tendências mais modernizantes. De fato, o militante cultural do CPC não buscava seu reconhecimento pelo mercado e sua conseqüente afirmação profissional: deste modo, pôde desenvolver uma prática cultural que envolvia, simultânea e diretamente, vários meios expressivos - como o teatro, o cinema, a poesia, a música popular - e que efetivamente não implicava a figura moderna do especialista. Esta cultura almejava a criação de um vínculo direto entre autor e público: sem a mediação do mercado, o intelectual-criador podia se comunicar politicamente com as camadas populares, particularmente com os membros da classe operária, especialmente visados. É nesta natureza "ambígua" que se encontra seu núcleo mais sólido, o qual lhe confere a capacidade de resistir à modernização conservadora imposta ao país pelos militares. Nisto reside seu caráter explosivo. As chamas de sua rebeldia, sob este aspecto, não eram desprezíveis. Elas despertaram a ira dos militares golpistas que, em 1964, impuseram forte repressão a seus militantes. Com efeito, a primeira providência da ditadura militar, após o golpe, foi a de tentar erradicar definitivamente da paisagem cultural e política todos aqueles movimentos culturais que apresentas­ sem alguma relação com qualquer setor politicamente organizado. Entretanto, sua brutal supressão não deve ocultar o fato de que os CPCs também conheceram um progressivo enfraquecimento interno provocado pela intensificação de algumas de suas contradições básicas - já suficientemente estudadas pela crítica especializada (Holanda, 1981; Ortiz, 1985). Dentre essas fraquezas, cabe porém destacar a natureza ideológica tanto de sua identificação entre o intelectual e o povo, como a de sua valorização da linguagem "das massas" que, de fato, é a base de sua referida ambigüidade. Afinal, a preocupação com a fácil e imediata comunicação com seu público, ainda que ditada por imperativos políticos, revelava também um inconfessado desejo de integrá-lo. Essa preocupação, por exemplo, coincide com a dos críticos do cinema novo, que o atacavam pelo hermetismo de sua linguagem: tais críticos, no fundo, defendiam a necessidade do estabelecimento de uma linguagem convencional e popular nos filmes brasileiros para que o mercado cinematográfico pudesse final­ mente se consolidar. Neste sentido, não é descabível pensar que essa postura estética do CPC pudesse posteriormente ser absorvida pela indústria cultural, particularmente pela televisão. Entretanto, a ditadura militar não reprimiu nesse momento - ao menos com a mesma violência - os outros setores da vida cultural: a produção especializada das universidades, por exemplo, ou aquelas que se desenvolviam em setores tradicionais ou institucionais (como é o caso da música popular, que começava a ser divulgada pela televisão; ou antes, pela indústria cultural), não conheceram impedimentos objetivos que de fato afetassem significativamente sua produção ou circulação. O resultado da trajetória - particularmente entre 1964 e 1968 - desta cultura já foi apontado por notável ensaio de Roberto Schwarz (1978). Ela sofreu intensa radicali­ zação ideológica -, particularmente na música popular e na experiência teatral que, efetivamente, eram os meios expressivos mais valorizados por uma cultura atada à tradição política "populista" que não só tornou possível a tematização das questões políticas capitais da conjuntura como ajudou a desencadear formidável movimentação política de setores da classe média - como os estudantes - que saíram vigorosamente às ruas para protestar contra a ditadura militar capitaneando, deste modo, a resistência política a ela. O AI-5 e a censura: a cultura da derrota Todavia, o trajeto da produção cultural desses anos e a conseqüente mobilização política de seu público produziu uma anomalia - ainda segundo Roberto Schwarz - na vida brasileira: por um lado, a direita tinha efetivamente a hegemonia da vida política; por outro, a esquerda era hegemônica na vida cultural. Contradição, como é fácil notar, nada desprezível. Diante deste conjunto de fatos, o Estado Militar, em dezembro de 1968, promulgou o AI-5 e desencadeou violenta repressão (mais uma vez): ele almejava então tanto estancar imediata e definitivamente a contestação política quanto suprimir a cultura politizada e ideologicamente radicalizada do período. Mas se essas eram de fato suas metas momentâneas, pode-se perfeitamente indagar se elas não implicavam também a postulação de novos objetivos estratégicos para a produção cultural. Efetivamente, o que ele pretendia, com tal postura, para o futuro desta atividade? A ação imediata do Estado Militar após a edição do AI-5, por meio do qual ele alterava sua postura diante da vida cultural, foi basicamente repressiva. Ele estava de fato determinado a suprimir efetivamente qualquer herança ou conseqüência da prática cultural anterior a 1968. Para isso, por meio da censura, suprimiu toda forma expressiva que pudesse ter qualquer eventual significação política; reprimiu indistin­ tamente todo tipo de obra ou criou dificuldades objetivas para a circulação e distribuição de grande número delas; atacou a produção cultural universitária, afetando gravemente tanto seu destino como sua qualidade; demitiu professores e perseguiu (alguns) produtores culturais. Em outras palavras: seu objetivo imediato era o de calar a voz da sociedade e impedir suas manifestações culturais. Além disto, exerceu árdua censura diária à imprensa que, em alguns casos, se viu forçada, para resistir à proibição de informar e denunciar tal ato de violência, a publicar constante­ mente receitas culinárias imaginárias - jocosas, algumas vezes - ou trechos de poemas de Camões, particularmente de Os Lusíadas. Enfim, o Estado Militar, tomado por este desejo de suprimir a cultura do período anterior, parecia almejar o estabelecimento de um formidável silêncio social; uma espécie de "vazio cultural". Claro está que, com tais atitudes, comprometia a qualidade da formação dos cidadãos e estabelecia uma atmosfera cultural desanimadora e incipiente. A atividade criadora dos primeiros anos da década de 1970 foi, desde sua gênese, forçada a romper o vínculo estreito com a vida política, que caracterizou o período anterior. Deste modo, obrigada a objetivo processo de despolitização, ela se viu impelida - como no caso da literatura - a se lançar em aventuras experimentais. Esses anos conheceram um verdadeiro "surto de vanguarda" que, entre outras característi­ cas, praticava "a supressão dos eixos temáticos do discurso em busca de uma ordenação não linear do texto; substituição da metáfora pela paronomásia e busca de ficção não-mimética", como anotou o crítico e professor Antônio Cândido (1985). Essa literatura do início da década foi detalhadamente pesquisada por Heloísa Buarque de Holanda (1981), que estudou seus principais traços - assim como seus modos de intervenção - e reconheceu nela a existência de duas tendências predomi­ nantes: a dos "pós-tropicalistas" e a da "geração do mimeógrafo". Anotou também o áspero debate travado entre elas, que foi o principal no início dos anos 70. Entretanto, suas divergências não são propriamente originais e muitas datam da década anterior. O principal ponto da polêmica entre elas, por exemplo, consistiu numa espécie de revisão do debate travado entre os adeptos do concretismo e os cepecistas: em que condições deve-se dar a produção cultural e, particularmente, a literária? Como esta deve ser socialmente concebida? Ou, dito de outro modo: a obra deve ser produzida por sujeito não especializado, em condições independentes e sem que recaia sobre ele as determinações imediatas do mercado consumidor ou, ao contrário, por escritor especializado que a concebe - e ao livro - como produto sofisticado que recorre, por isso mesmo, às mais modernas técnicas de composição gráfica e editorial? A rivalidade diz, pois, respeito ao modo de ser da cultura e de sua relação com a modernização social. Ao lado dessas questões aparecem outras não menos importantes: qual é agora a origem social da figura do escritor? Qual sua relação com o aparato tecnológico de produção concentrado nas indústrias culturais? As publicações mais notáveis dos pós-tropicalistas são Os últimos dias de paupéría, de Torquato Neto (1973) e a revista Navilouca (1973) - criação coletiva da qual participaram os concretistas. Nelas, podemos verificar quais são os traços estéticos mais marcantes desta prática literária. Um deles provém dos concretistas: é aquele que valoriza a "competência técnica" na elaboração do texto; postura que aprofunda a tendência dominante no processo cultural desde o final da década de 1940 e que reforça, cada vez mais, a necessidade de também o escritor, como qualquer outro profissional, se especializar. A "competência técnica" agora exigida, porém, apresenta uma face repressiva: ela é corporativa e visa a eliminar do mercado o produto autônomo construído pelo amador. Em dia com o processo de modernização, tal atitude afirma o produtor especializado como garantia de qualidade da cultura lançada ao mercado. Todavia, tomar partido pela especialização profissional significava à época uma adesão às tendências mais fortes e opressivas da realidade social, que apontavam para a liquidação do modo autônomo e tradicional da existência cultural. No entanto, é interessante realçar que Heloísa Buarque de Holanda observa em Navilouca uma tentativa de "introduzir elementos de resistência e desorganização nos canais legiti­ mados do sistema" (1981). Porém, o que a autora não parece perceber é que os produtores reunidos na revista não estavam de fato ampliando o raio de ação da literatura mas, ao contrário, começavam a abandoná-la em favor de outros meios expressivos mais valorizados - acelerando sua liquidação ou integração à nova realidade produtiva. Não parece haver projeto crítico em Navilouca; apenas o "desejo de se estar na ponta". A revista parecia cultivar explicitamente uma atitude de inconformismo, de recusa da situação presente - mas esta atitude encontrava seu fundamento em outra: a do cultivo do sentimento de marginalidade, que se adequava a uma parcela do mercado cultural, então ansioso por consumir obras que parecessem "criticas". É justamente contra este aspecto da concepção literária dos autores reunidos na revista Navilouca que se rebelam os jovens escritores pertencentes à "geração do mimeógrafo". Estes, em certo sentido, se apresentavam como os herdeiros da cultura cepecista (e de esquerda) que vigorou nos anos 60. Defendiam a forma artesanal e autônoma da produção literária e a possibilidade de qualquer um se transformar em autor, sem a mínima necessidade de se especializar. Esses jovens escritores eram, de algum modo, também os herdeiros do antigo movimento estudantil que, impossibili­ tados de continuar a fazer política, se transformaram em militantes culturais. A defesa da produção artesanal não especializada levada a cabo por eles, porém, apresenta duplo caráter: ela é - ao mesmo tempo - "cínica" e "patética", como diria Edoardo Sanguinetti(1972). O aspecto cínico - que predominou após 1974 - é facilmente notável: sem terem acumulado um razoável capital literário para serem aceitos pelo mercado - que se tomava cada vez mais competitivo - e sem recursos financeiros para poderem suportar os custos de uma produção mais requintada - como as obras produzidas pelas empresas editorais - eles forçavam a porta de entrada do mercado cultural com o pé-de-cabra da atividade amadora. Seus textos, por exemplo, eram mimeografados (como os do movimento estudantil). Esses escritores trouxeram para a literatura o modelo da pequena empresa e se comportavam de fato como qualquer pequeno empresário: executavam, por exemplo, as diferentes tarefas implicadas no processo de produção do livro. Heloísa Buarque de Holanda destaca que este aspecto lhes conferia evidente vantagem, pois a produção artesanal implica caráter lúdico. No entanto, a maior parte dessa geração não logrou superar as dificuldades objetivas para estabelecer de fato uma prática poética conseqüente. Ao contrário, seus poemas eram quase sempre vítimas de uma linguagem desleixada e muito próxima da música popular destinada ao consumo fácil. O aspecto patético - predominante antes de 1974-1975 - desta atividade se revelou capaz de ir muito além do mero pragmatismo econômico que objetiva apenas disputar o mercado de qualquer maneira. Ao defender o modo artesanal da produção literária, esses autores se insurgiam contra as poderosas forças históricas que sustentavam a modernização da sociedade. Eles reagiam - às vezes, sem saber disso - contra a tendência que apontava para a transformação definitiva da obra em merca­ doria: eles, enfim, multavam contra a organização industrial da produção cultural. Procuravam preservar, ainda que sem esperanças, a própria condição tradicional do fazer literário e, com isto, a autonomia da obra. Esta posição conferia ao movimento uma dimensão estética e histórica significativa: pela primeira vez nos anos 70 surgia uma resposta propriamente literária às exigências do momento histórico - resposta que é também forma de resistência cultural às novas condições econômicas do país. Ela procurava defender a prática literária das hostilidades da conjuntura que, de certo modo, a quer suprimir. O essencial aqui é a preservação do caráter autônomo da obra de arte, que é o fundamento de seu poder crítico. Além disso, tematizaram o mal-estar e o desconforto geral experimentado pela cultura após 1968. Retornemos, porém, ao início da década: nesse momento, o uso intensivo da censura serviu, paradoxalmente, para revelar a natureza limitada de seu poder repressivo. De fato, embora logre provocar consideráveis anomalias na vida cultural, sua ação jamais é demasiadamente ampla, pois só consegue atingir certos objetivos mais ou menos restritos. Ela, por exemplo, não logra efetivamente suprimir toda manifestação cultural ou controlar a qualidade das obras produzidas. Ao contrário, a censura ainda apresenta - para quem a usa - a desvantagem de estabelecer certas ambigüidades ou contradições: com freqüência, suas proibições e impedimentos, que procuram suprimir certos traços ou aspectos da cultura, podem perfeitamente servir de estímulo criativo para alguns produtores culturais. Em tais circunstâncias, a censura provoca o aparecimento de novos modos de se usar os repertórios expressivos que, em alguns casos, podem mesmo ser até bastante inusitados. Também o público consumidor - que é sempre sua primeira grande vítima - pode criar uma espécie manhosa de decodificação, fato que resulta na aparição de uma espécie singular de cumplicidade entre autor-público que parece contrariar os interesses mais imediatos das instituições repressivas. É o que ocorreu entre nós com a música de Chico Buarque no momento mais truculento da ditadura militar. Contudo, a censura - no caso apontado - revela uma natureza diversa daquela até agora reconhecida: ela é também eficaz instrumento econômico do Estado, que a utiliza para tornar viável o desencadeamento de uma onda de modernização das condições materiais da produção cultural. Vale dizer, ela o auxilia a erradicar a vigência daquelas antigas condições que, por exemplo, possibilitaram o nascimento e desen­ volvimento de uma cultura como a do CPC para estabelecer uma nova forma de atividade cultural, agora inteiramente regida pelas exigências do mercado. Desse modo, toda criação artística ou literária se veria então forçada a se dirigir ao rosto anônimo do consumidor, o que tomaria mais difícil a manutenção de um vínculo político entre autor-público. A consolidação desse mercado pressupõe a expansão e modernização da indústria cultural entre nós. Para desenvolvê-la, o Estado criou todo tipo de facilidade, de modo que sua presença no cenário cultural passou a ser cada vez mais intensa e decisiva. O caso da cumplicidade entre autor e público nesta nova conjuntura, como no exemplo da música de Chico Buarque, pode, paradoxalmente, também servir aos interesses então dominantes: a cultura dessa época, por exemplo, tornou-se forte­ mente seletiva e seu publico foi atomizado para melhor se integrar. Assim, além de ampliar o mercado e diversificar a produção (cultural) - que aparecia aos olhos dos consumidores como "mais democrática" - esses interesses de fato lograram transfor­ mar a crítica em mercadoria anulando assim a tradicional natureza "subversiva" da arte e de quase toda a cultura. Tal processo autoritário de modernização da cultura suscitou rápidas acomoda­ ções ou reações diversas. Dentre estas, merece destaque o caso da poesia de Ana Cristina Cesar, que tematizou o desaparecimento do vínculo político entre o escritor e seu público: ela começa por constatar que "escritor não existe mais", mas mesmo assim tenta ainda, em suas "correspondências", movida por forte desejo de "gritar verdades", a escrever poesia lírica. Diante, porém, da acentuada retração do público leitor que parece condenar a poesia a uma espécie de exílio, percebe a incapacidade real do poema, nesta nova conjuntura histórica e cultural, de suscitar em seu leitor qualquer reação: "Querida. É a terceira com esta a quarta que te escrevo sem resposta" (Cesar, 1982, p.105). Desolada, reconhece a gratuidade do poema e seu objetivo alheamento diante da sociedade, que lhe é de fato francamente hostil: Houve um carteiro que foi enfim processado poi enterrai as cartas de cada dia no porão da casa; ele enterrava e passava o resto da jornada vadiando contente pelas redondezas de uma cidade chamada Bradford-on-Avon Uma dessas que ele enterrou no mês de maio continha todo o meu pathos derramado, belo e secreto como os fatos. Me revolto quando dois ou três dias depois sei que errei lamentavelmente, errei de destinatário na pressa furiosa do derrame... (Cesar, 1982, p.103) Todavia, uma das reações mais importantes a este processo de modernização da produção cultural está assentada na obra de Caetano Veloso. De fato, ao tematizar a situação nova e original da canção popular - que perdeu sua força mobilizadora tão notável, por exemplo, nas canções de Geraldo Vandré anteriores a 1968 - sua música inicia trajetória mais radical e verdadeiramente crítica. Pela extrema fragmentação, provocantes antíteses, de finas ironias, surpresas causadas pela súbita inversão de certezas tradicionais ("tudo certo/ como dois e dois são cinco") ou pela radicalização experimental que busca explorar ao máximo novos elementos sonoros integrando-os à linguagem da canção, o compositor confecciona universo musical novo e original que parece não se prestar - ao menos imediatamente - ao consumo do ouvinte distraído. Por sua própria estrutura, a canção agora inviabiliza seu consumo "digesti­ vo" e requer uma alteração em profundidade em sua relação com o público. Mais precisamente: ela exige alterações nas próprias relações de produção vigentes no universo da música. Em 1972, com o lançamento de Araçá Azul, Caetano Veloso radicaliza ainda mais sua trajetória experimental. Neste disco, sua música fratura tanto a percepção usual da realidade quanto a própria linguagem tradicional da canção, além de introduzir perturbações em seu desenvolvimento "lógico". O resultado é culturalmente devastador. Contudo, o ponto maior de interesse do disco reside na analogia entre seu radicalismo estético e o da esquerda armada que, de modo clandestino, pretendia, à época, enfrentar a ditadura militar. O disco é, de fato, como esta última, "terrorista" à medida que pretende impor às massas uma revolução - ainda que musical - mesmo que elas efetivamente não aspirem nem mesmo remota­ mente a isso. Assim como à radicalização política da esquerda correspondia uma real apatia das camadas populares, a música de Caetano se radicalizava em meio à atmosfera musical cada vez mais bonachona e comportada - cada vez mais integrada e neutralizada pela indústria da cultura. Por estas razões, o disco foi um fracasso comercial e deve mesmo ter sido o mais devolvido pelo público na história da indústria fonográfica no país. Entretanto, esta via pouco percorrida dos trilhos urbanos musicais redundou, por sua delicada construção, em obra avessa - como já foi salientado - ao ouvido rotineiro. Tantos refinamentos sonoros, porém, provocaram verdadeira contestação ao aparato indus­ trial que os divulgou. A crítica a essa nova condição material da produção cultural encontra aqui um de seus momentos mais virulentos da década. Ela é a própria carne da música; ou antes, é voz e não se cala. A qualidade de Araçá Azui é - o que não deixa de ser uma das mais significativas inovações culturais do período, a qual marcará a transformação do próprio modo de resistência da cultura às hostilidades gerais que a conjuntura histórica e política praticou contra ela - prioritariamente determinada por sua ousadia experimental. Sua qualidade estética suporta outra decisiva qualida­ de: a de ser também uma obra política. Esses primeiros anos da década de 1970, que coincidem com o momento mais truculento da ditadura militar e com o predomínio da luta armada contra ela pela esquerda armada, não foram de fato favoráveis à produção cultural. À cultura elaborada nesses anos, dadas suas objetivas dificuldades e seus reais impedimentos - além de sua separação radical, traumática e forçada da vida política -, podemos denominar de "cultura da denota", segundo sugestão de Gilberto Vasconcelos (1977). De fato, o decisivo para a vida cultural desses anos foi a política repressiva adotada pelo Estado, a qual, porém, sofrerá sensível abrandamento após 1975. Por meio dela, a ditadura não apenas suprimiu todo vestígio da experiência cultural da década anterior ou cortou abruptamente seus laços mais intensos com a experiência política, como sobretudo procurou desenvolver uma política agressiva de transformação rápida e intensa das condições materiais de sua produção (com isso, no entanto, desprezou a possibilidade de elaborar uma cultura nacional, popular e mobilizadora). Ao modificar essas condições, preparou o solo para o nascimento de uma outra experiência cultural: aquela voltada para as necessidades objetivas do mercado, que também foi fortalecido e disciplinado. As sementes que brotaram rapidamente mostraram sua natureza diversa: elas redundaram na consolidação e na hegemonia da indústria da cultura. Deste modo, pode-se afirmar que os objetivos estratégicos do Estado com a edição do AI-5 foram finalmente alcançados, pois ele modernizou - à sua maneira - a produção cultural por meio do estabelecimento de monopólios - como o da Editora Abril ou o da Rede Globo de Televisão - que tomaram viáveis o planejamento e o controle da vida cultural. O resultado desse processo, em todos os aspectos positivos para a ditadura militar, tornou possível afirmarmos - ainda que com boa dose de desconfiança - que o Estado resolveu, desta maneira, aquela situação anômala que, segundo Roberto Schwarz, caracterizava a experiência social brasileira em 1968: de fato, a direita agora não apenas detinha a hegemonia da vida política como também a da cultura. A cultura de resistência: 1975-1979 Com o início do governo Geisel, a tendência "castelista" das forças armadas voltou ao poder e alterou significativamente a estratégia política do Estado, que parecia então decidido a obter maior sustentação política para o regime pela supressão do "Estado de exceção", anteriormente organizado pela ditadura militar. Para isto, passou a desenvolver nova política - "a política de abertura", ainda que "de modo lento e gradual". Esta alteração reforçava seu poder: aliás, tanto tal política como o próprio ritmo histórico da sua implementação passaram de fato a ser seus novos instrumentos de dominação. O "processo de abertura" constituiu a face mais moderna de sua organização repressiva. Tal política atingiu também a produção cultural. Neste terreno, seu principal efeito, mais ou menos imediato, foi a necessidade da supressão da censura, pois ela havia se tornado um anacronismo: mais que isto, um trambolho a estorvar a conquista das metas almejadas. De resto, a censura podia ser abolida porque seus objetivos essenciais já tinham sido atingidos. A implementação da "política de abertura" trouxe ao poder vantagens imediatas. Primeiramente, porque ele pôde aparecer, aos olhos do público, como "mais demo­ crático", inclusive por consentir a livre produção cultural. Além disto, pôde desenvol­ ver eficiente política de cooptação do intelectual. À época da censura, esta se fazia sobretudo por razões econômicas: afinal, o criador cultural aceitava as normas impostas pela censura porque esta ameaçava diretamente sua sobrevivência material. Nesta nova situação, contudo, a cooptação passava a ser de natureza política. Os intelectuais ou afrouxavam a crítica à ação estatal - com receio de perder o pouco espaço conquistado - ou passavam a apoiar diretamente tal ação porque depositavam nela alguma esperança. Para o Estado, portanto, o saldo político desta alteração foi extremamente lucrativo. A cultura foi, neste sentido, eficientemente administrada mediante a gradativa supressão da censura e a conseqüente adoção da política de abertura. O Estado, neste setor, continuava a desenvolver condições capitalistas modernas para a produção cultural pela implantação dirigida da indústria cultural, mas almejava, neste processo, "dar as diretrizes e prover as facilidades": em outros termos, sua meta última era poder controlar e administrar - ainda que indiretamente - toda a vida cultural. Exemplo marcante dessa intenção pode ser encontrado num discurso proferido em 1976 pelo general Geisel: "Desse controle não poderá governo algum abrir mão, sem que falte ao cumprimento do dever jurado ou ponha em risco a segurança da nação" (1976). Os primeiros veículos culturais favorecidos pelo processo de abertura foram o jornal e o livro que, tradicionalmente, são instrumentos da classe dominante ou de setores próximos a ela, os quais se viram assim beneficiados pelo fim da censura e passaram a apoiar, ainda que discretamente, o regime militar. Logo, os editores se empenharam em ampliar o número de consumidores literários, bem como em desenvolver hábitos novos visando integrar ao mercado setores não tradicionais do público. Tais fatos alteraram nitidamente a situação social do escritor que, como qualquer outro trabalhador, também foi obrigado a vender sua força de trabalho - ou o produto dela - no mercado. Estes fatos causaram profundo impacto na vida cultural. No caso da literatura, pareceram fundar duas possibilidades distintas: por um lado, havia forte determinação econômica na origem da obra; por outro, antigás exigências e forças históricas soterradas pela forte repressão do inicio da década pareciam voltar à superfície das preocupações estéticas - espécie de retorno das questões reprimidas que colocava na ordem do dia os elementos outrora recalcados pela censura. Note-se também o fato de que, nesta nova conjuntura, a poesia perdeu espaço para a prosa de ficção, pois a transformação da literatura em mercadoria parece se adaptar melhor ao romance. Deste modo, pode-se observar que os anos finais da década de 1970 foram marcados pela existência simultânea de duas tendências literárias bastante distintas. Uma delas está mais intimamente ligada às pressões das editoras - que exigem dos escritores uma produção ficcional voltada para as necessidades mais imediatas do mercado cultural. Nesta tendência, pode ser incluída tanto a série de obras denomi­ nadas "romances-reportagens" (que explorou imediatamente este abrandamento da censura ao tematizar a violência urbana de forma jornalística), como também a literatura "jovem" (editada pela Brasiliense na coleção "Cantadas literárias"), espe­ cialmente alguns textos que se aproveitaram do êxito do memorialismo político para o saquearem sistematicamente - como é o caso de Um telefone é muito pouco, de Silvia Escorei. A outra tendência prevaleceu entre 1975 e 1978, perdendo gradativa- mente o impulso original. Ela pode ser denominada "Literatura de resistência". Socialmente, sua origem também se encontra na modernização das editoras. Ela não se resumiu, porém, em criar ou substituir os gêneros literários apenas para satisfazer às exigências do mercado: elaborou, de forma literária, as mais graves imposições do contexto histórico. Entre estas, é preciso realçar ao menos duas: a necessidade de se esclarecer literariamente a história recente do país e suas rápidas transformações e, sobretudo, a exigência política de se combater - ainda que esteticamente - a opressão imposta à nação pela ditadura militar. Este conjunto original de problemas conduziu os escritores desta tendência a romper com a ficção consagrada pela tradição. Deste modo, puderam pesquisar formas accionáis mais adequadas à nova realidade social e tecnológica do país. Essas obras - aqui chamadas de "resistência" - são aquelas do memorialismo político e a ficção dos anos de 1975 a 1978, e incluem autores como Renato Tapajós, Fernando Gabeira, Antonio Callado, Renato Pompeu, Ivan Ângelo e Carlos Sussekind. Contudo, talvez seja possível afirmar, com certa segurança, que este conjunto de atitudes e medidas francamente hostil à experiência cultural adotado pelo Estado Militar após 1968 não logrou êxito completo, embora efetivamente tenha criado enormes dificuldades - algumas verdadeiramente intransponíveis - principalmente para alguns setores da produção cultural, como a música popular e o cinema, que experimentaram quase completa atrofia criativa. Essas duas formas de expressão foram de fato quase inteiramente suprimidas e substituídas pela produção musical e cinematográfica estrangeira, o que pode ser considerado um real retrocesso em nossa vida cultural. Entretanto, é preciso também considerar que a cultura, em linhas gerais, teimou em resistir a seu controle ou planejamento e que a ditadura também não conseguiu eliminar certo tipo de obra mais apegada à experiência crítica de sua época. A produção cultural mais avançada desse período, todavia, foi forçada a inventar procedimentos artísticos ou literários originais para poder reagir à radical transforma­ ção de nosso cenário cultural, que conhecia então uma espécie de hegemonia da imagem televisiva - hegemonia que, por outro lado, provocou também um surto de desprestígio social da palavra; vale dizer, da literatura. Como diz Adorno, ante o poderio esmagador da indústria cultural, a arte sofre uma espécie de "hibernação''. Ou seja, ela se retrai e freqüentemente abandona tanto seu papel social tradicional como sua matéria histórica para concentrar-se criticamente sobre seu próprio univer­ so. Isto é notável, por exemplo, no itinerário do romance desse período, particular­ mente aquele mais atado à política, o que analisaremos a seguir. A trajetória desse romance de resistência tem início ainda nos anos 60 com a publicação, em 1967, de Pessach: a travessia, em que Carlos Heitor Cony nana a trajetória de um escritor pequeno-burguês, alienado, com dúvidas sobre sua naciona­ lidade, preocupado em escrever, sob encomenda, contos eróticos que, porém, por razões diversas mas também influenciado por uma jovem mulher (que exerce sobre ele grande atração), é impelido lentamente a uma ligação decisiva com uma organi­ zação política clandestina de esquerda, a qual prepara a luta armada no país por meio da implantação da guerrilha. Ao final do livro, após o massacre de seu grupo político, ele foge com alguns companheiros em direção ao Uruguai. Já perto da fronteira, sua companheira é morta em combate com o Exército. Desolado, sohtário, faminto, ele atravessa o rio que separa os dois países e, já do lado uruguaio, percebe-se no exílio mas não derrotado; ao contrário, decide agora parar de escrever para preparar a luta revolucionária e a volta triunfante ao Brasil. Trata-se, aqui, do narrador que abdicou da narração para fazer política revolucionária - atitude comum à época, que se acostumou de fato a trocar a experiência cultural pela experiência política, causando evidentes prejuízos à primeira. Em 1976, Fernando Gabeira publica O que é isso, companheiro?, texto memo- rialístico que, logo no início, apresenta o narrador correndo desabaladamente por uma rua de Santiago em direção a uma embaixada e, portanto, em busca de um exílio dentro do exílio. Ora, o narrador-revolucionario do romance de Cony - que era ainda tomado pela perspectiva da rápida transformação revolucionária do país - dá lugar, aqui, ao revolucionário incapaz de continuar a fazer política. Ou, antes, para fazê-la, é agora obrigado a recorrer à narração de suas memórias, nas quais conta sua trajetória de militante para refletir criticamente sobre ela e, assim, propor novas atitudes e alternativas à vida política. Ao contrário dos anos 60, escrever se tomou o único meio de se fazer política. Também nessa época é publicado Em câmera lenta, de Renato Tapajós (1977). Este romance autobiográfico transforma, de modo original, o ato de escrever em eficiente arma política para desferir no inimigo vitorioso um último golpe que, porém, não o deixara ileso. No mesmo ano, aparece a publicação de romance decisivo para a década: Quatro-olhos, de Renato Pompeu (1976). Este romance conta, por meio de narrativa densamente fragmentada, a luta de seu narrador-personagem para recuperar um livro que, entre os 16 e os 29 anos, escreveu com disciplina e dedicação. Tal livro, no entanto, lhe foi confiscado pela polícia política quando, à procura de sua mulher - professora universitária e militante política de esquerda - esta invadiu sua casa. Após esses acontecimentos, nos quais perdeu a esposa e o livro, e um período de experiências dolorosas vividas em um hospício, Quatro-olhos empreende, pelos locais mais exóticos ou insuspeitos, minu­ ciosa tentativa de encontrar o livro desaparecido até perceber que, de fato, tal tarefa era mesmo impossível: o destino de sua obra escapava-lhe inteiramente. Decide-se, assim, urgentemente, a reescrevê-lo - mesmo sem nada lembrar dele. Esta delicada trama literária está assentada em dois aspectos de nossa história recente: de fato, sua matéria histórica emana tanto de nosso processo de moderniza­ ção - que efetivamente transformou de modo radical o cotidiano urbano e devastou a paisagem social mais tradicional - como da específica conjuntura política que brotou com a experiência da ditadura militar após 1964. Deste modo, o narrador é forçado a enfrentar essas mudanças que o afetaram diretamente; afinal, ele persegue a lembran­ ça de algo que, em outra época, ele mesmo havia escrito e que, contudo, agora não consegue mais rememorar. Sua luta é pela recuperação da história que, paradoxal­ mente, ele outrora contou - o que pode ser um modo alusivo de narrar a contrapelo a objetiva dificuldade de, nesta época, manter-se viva a experiência social mais recente. Seu relato revela, portanto, uma fratura: ele atesta uma falta; ou antes, a (quase) impossibilidade atual - dada a truculência geral do momento histórico - de narrar e, por força desta ausência, nos remete a um tempo passado no qual tal ato era ainda perfeitamente viável. Diante do impacto provocado por essa transformação, Quatro-olhos é também obrigado a alterar o rumo de suas próprias expectativas pessoais. Assim, aos poucos, abdica daquelas esperanças políticas que, durante os anos 60, alimentaram os sonhos da esquerda brasileira para conhecer uma consciência infeliz (embora aguda) sobre o massacre do projeto revolucionário no Brasil. Suas súbitas alterações de comportamento, suas indisposições físicas, suas incômodas angústias - que constantemente abalam seu sensível sistema nervoso - são, em última instância, determinados pela percepção do desmoronamento de todos esses ideais e pela conseqüente evidência sobre a natureza repressiva das novas condições de vida. Todavia, a aparente estrutura caótica de sua narrativa é, por força de uma reviravolta dialética, a denúncia do caráter autoritário da sociedade brasileira. Ela não é apenas uma reação à censura da época, mas poderosa acusação à brutalidade da nova configuração das forças opressivas da atualidade, que parecem exigir o definitivo aniquilamento de toda a diferença ou singularidade. Além disso - o que não é certamente pouco - o romance efetua também decidida crítica dos ideais vigentes entre a esquerda dos anos 60 e início da década de 1970. Dentre estes, cumpre destacar a crítica da idealização, pelo intelectual, de sua identidade com o "povo". Tal idealização servia não apenas para harmonizar as contradições que o envolviam como para sublimar a percepção de sua própria posição social. Também critica, em notável passagem, a natureza populista de grande parte da esquerda - que costuma glorificar tudo que emana do povo ou que é percebido como coletivo sem desconfiar que, com tal postura, apenas compactua com as tendências mais repressivas do presente ao não valorizar o indivíduo, a singularidade e a diferença. Enfim, o romance de Renato Pompeu, por estas notáveis características, repre­ senta a elaboração privilegiada de sólido momento de resistência cultural durante a década de 1970, no qual se forja uma consciência literária capaz de entender que um bom modo de reagir a quem deseja calar a voz da cultura (ou controlá-la) é escrever ainda. Não sem algum prejuízo, é certo, seu romance também logra superar nossa antiga inclinação para exigir de qualquer obra uma postura política revolucionária para aderir à percepção do caráter político inerente ao ato de narrar. Inconclugões Com o fim da década de 1970, o itinerário complexo e contraditório experimen­ tado pela produção cultural após 1968 tendeu efetivamente a atenuar sensivelmente sua dinâmica. Isto, é claro, não ocorreu por acaso. Afinal, pela primeira vez em nossa história, a indústria cultural obteve um desempenho sem precedentes: em poucos anos - por exemplo - a tiragem de uma revista infantil passou de 83 mil exemplares para cerca de 70 títulos, totalizando 90 milhões de exemplares. Esta diversificação atingiu praticamente todos os setores da indústria cultural a partir dos anos 70. Desta maneira, a indústria cultural, cuja expansão e modernização foi patrocinada pela ditadura militar em detrimento dos outros setores mais tradicionais da produção cultural, transformou-se rapidamente em indústria "de dimensões nacional e interna­ cional: sétimo mercado mundial de televisão e publicidade, sexto na produção de discos" (Ortiz, 1988, p.202). Neste novo cenário cultural, a televisão passou certamente a desempenhar um papel destacado. Com a veloz transformação das condições materiais de sua produção e retransmissão - que implicou a utilização de modernas tecnologias e vultosos investimentos - ela se tomou apta a atingir nacionalmente um público aproximado de 70 milhões de telespectadores diariamente, os quais passaram a dispender em média cerca de 3 horas (por dia) de suas vidas diante do aparelho de TV. A televisão logrou promover entre nós uma verdadeira "integração nacional": ela integrou os habitantes das mais diferentes regiões do país e os transformou em consumidores; ao mesmo tempo, superou e destruiu toda cultura ou identidade regional. Também disseminou um certo tipo de informação - a única acessível para grande parte da população - que trata sempre de tornar o fato próximo em algo distante; simultanea­ mente nos torna familiar tudo aquilo que é verdadeiramente distante e, em geral, não possui relevância maior para nossas existências miúdas. É evidente, porém, que não podemos mais continuar a considerar a televisão de modo apocalíptico. Aliás, é evidente que, neste processo, ela foi também capaz - ao menos em alguns momentos - de operar com uma lógica cultural significativa. Em outros, logrou conquistar alguma originalidade e chegou mesmo até a vincular uma visão algo crítica ou problematizadora de nossos hábitos, idéias e comportamentos ou de nossas condições materiais da existência. Isto ocorreu - por exemplo - com algumas das telenovelas brasileiras que, em alguns casos especiais, foram tributárias do ideário estético do teatro e da cultura promovidas pelo CPC. Para quase todos os outros setores da produção cultural, entretanto, os anos 80 foram difíceis. Esses setores culturais não experimentaram apenas o isolamento (socialmente provocado, que isto fique claro): conheceram também, em seus frágeis corpos de signos, a objetiva dificuldade de elaborarem uma imagem diferente do presente e do futuro. Deste modo, talvez possamos até afirmar que a intervenção dos governos militares na vida cultural logrou gerar uma espécie de cultura pacificada, sem tensões e inquietações. As conseqüências mais marcantes deste novo cenário cultural ainda não se tomaram claras. Não obstante, talvez seja possível indagar: em que medida a atual Disseminação da prática da violência, ou a proliferação de grupos e atitudes "fascistas" mantém estreitas relações com esse cenário? É ele responsável pelo aparecimento de manifestações populares espetaculares como o "arrastão"? Contudo, a questão principal é saber se há ainda possibilidade real de resistirmos à liquidação da subjetividade promovida por esse processo e se conseguiremos elaborar obras originais, capazes de criar uma outra imagem da vida e de um futuro diferente do momento presente - além de, evidentemente, eliminarmos o atual isolamento social da cultura mais significativa. FRANCO, R. Politics and culture in Brazil: 1969-1979. Perspectivas (São Paulo), v. 17-18, p.59-74,1994/1995. • ABSTRACT: Analysis of the relationships between Politics and Culture in Brazil after 1968. This article discusses the political actions of the State and its influence on the cultural production. • KEYWORDS: Culture andpotitics; history and culture; Brazilian culture after1968; culture and resistance; state and culture. Referências bibliográficas BENJAMIN, W. O autor como produtor. In: . Obras escolhidas. São Paulo: Brasi- liense, 1985. v . l . CÂNDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Átíca, 1985. CESAR, A. C. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1982. CONY, C. H. Pessach: a travessia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. GABEIRA, F. O que é isso, companheiro? 29.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. GEISEL, E. (Presidente, 1974-1979). Discurso proferido em 4 out. 1976. HOLANDA, H. B. de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde. São Paulo: Brasiliense, 1981. IVAN, A. A festa. 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