Campus de São José do Rio Preto Águida Aparecida Gava PLATAFORMA KUHI PEI Proposta de um modelo de dicionário terminológico onomasiológico multilíngue para crianças, Português-Arara, Kadiwéu, Karitiana, Parintintin, Xavante, Zoró. São José do Rio Preto 2012 1 ÁGUIDA APARECIDA GAVA PLATAFORMA KUHI PEI Proposta de um modelo de dicionário terminológico onomasiológico multilíngue para crianças, Português-Arara, Kadiwéu, Karitiana, Parintintin, Xavante, Zoró. Tese apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Doutor em Estudos Linguísticos (Área de Concentração: Análise Linguística) Orientador: Prof. Dr. Maurizio Babini São José do Rio Preto 2012 2 Gava, Águida Aparecida. Plataforma Kuhi pei : proposta de um modelo de dicionário terminológico onomasiológico multilíngue para crianças, Português – Arara, Kadiwéu, Karitiana, Parintintin, Xavante, Zoró / Águida Aparecida Gava. - São José do Rio Preto : [s.n.], 2012. 329 f. : 35 il.; 30 cm. Orientador: Maurizio Babini Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Lexicografia. 2. Línguas indígenas – Expressões idiomáticas – Dicionários. 3. Terminologia – Dicionários multilíngues. 4. Onomasiologia – Dicionários multilíngues. I. Babini, Maurizio. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – 81’374.82 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE Campus de São José do Rio Preto - UNESP 3 Águida Aparecida Gava PLATAFORMA KUHI PEI Proposta de um modelo de dicionário terminológico onomasiológico multilíngue para crianças, Português-Arara, Kadiwéu, Karitiana, Parintintin, Xavante, Zoró. Tese apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Doutor em Estudos Linguísticos (Área de Concentração: Análise Linguística) BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Hilda Carvalho de Oliveira UNESP – São José do Rio Preto Orientador Profª. Drª. Maria Aparecida Barbosa USP – São Paulo Profª. Drª. Marieta Prata de LIma Dias UFMT - Sinop Profª. Drª. Marilei Amadeu Sabino UNESP – São José do Rio Preto Profª. Drª. Adriane Orenha Ottaiano UNESP – São José do Rio Preto São José do Rio Preto 08/março/2012 4 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho aos meus pais Célia e Devanir Gava (in memoriam), cujo terno amparo me foi sempre devotado. Deles, toda determinação e coragem, o amor à educação e às virtudes, a crença em minha capacidade. Aos meus avôs Mário Gava e Chico Pimenta (in memoriam). Deles, o respeito ao outro e a mim como igual, o amor a terra, à luta e à labuta. Aos meus avôs Aristides e Ramilha Pimenta (in memoriam). Dela, o caminho da espiritualidade. Em seu regaço ouvi histórias que jamais esqueci. Aos meus filhos Fabrício e Célia, aos afilhados Saulo, Neto e Camila. Encerro meu desejo de transmitir o necessário esforço e dedicação em toda conquista: para concretizar é preciso sonhar e acreditar. À Maria Odete, prima querida e entusiasta. À tia Salvina (in memoriam), vítima de nossas peripécias infantis. Aos meus irmãos Ariane e Júnior: O amor fraterno deve ser alimentado e torna-se uma fonte certa de serviço alegre. Responsabilidade de uns pelos outros. (Gn 4.9) A Francisco, que embarcou no meu sonho linguístico nas estradas de Ji-Paraná, me encorajando em vários momentos nos últimos dois anos. A todas as nações indígenas, em especial aos povos Arara, Zoró, Xavante, Kadiwéu, Parintintin e Karitiana. 5 AGRADECIMENTOS Agradeço em especial a Deus, que proveu todas as condições necessárias para a consecução de minha jornada, pautando minha vida pela oportunidade e coragem, me permitindo avançar a cada dia. Bem como à Espiritualidade, protetores incansáveis e sempre presentes na intuição, clareando o caminho do bem, dissipando o desanimo e dando o necessário alento nos desafios de minha vida terrena. Aos meus pais, partícipes de bênçãos, emanando ternas vibrações que permearam o meu trabalho, cujo êxito só posso creditar ao seu apoio. Ao meu filho Fabricio, parceiro de todas as horas, atencioso em todas as minhas conquistas e companheiro nas jornadas tecnológicas. À minha filha Célia, que me acompanhou em vários momentos. Ao Prof. Dr. Eli Bechara, meu anjo de guarda, pela atenção nos momentos de quase abandono, me recolocando de volta no caminho. A todos os mestres que passaram pela minha vida e me deixaram lições preciosas, em especial aos últimos, Prof. Dra. Diva Cardoso, Prof. Dra. Silvia Jorge, Prof. Heleny Fabbry Araújo, Prof. Dra. Lídia de Almeida Barros, Prof. Dra. Maria Aparecida Barbosa, Prof. Francisco Langeani, Prof. Dra. Eliana Morielle e meu orientador Prof. Dr. Maurizio Babini. Aos professores Prof. Dr Adenilson de Almeida Silva e Prof. Dra. Wani Sampaio, UNIR-RO e ao CIMI-RO e a aos funcionários da FUNAI Porto Velho e Jí–Paraná (RO), nas pessoas de Lígia e Cleide. Aos pesquisadores desenvolvedores dos vocabulários e dicionários do córpus de estudo. Aos funcionários da UNESP – São José do Rio Preto, em especial ao pessoal da pós- graduação, em especial à Rosemar, aos porteiros e porteiras que gentilmente me sediam a chave do laboratório independente do meu horário confuso e aos funcionários da biblioteca, senhores da cortesia e da presteza. Aos amigos, em seu incentivo: Agripino, Baba Sivakalyananda Natha Tirtha, Celso Fernando, Karen Yoshizawa, Larissa, Suely Vilella, Maria Lúcia de Almeida Jorge, Celinha Ruiz, Maria Inês e Regina Fidelis. E a todos os que não acreditaram, permitindo que eu agradeça com o fruto da minha perseverança e convicção. 6 São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Art. 231 - CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 7 Sumário PLATAFORMA KUHI PEI ........................................................................................................................... 1 PLATAFORMA KUHI PEI .................................................................................................................... 3 DEDICATÓRIA .................................................................................................................................... 4 AGRADECIMENTOS .......................................................................................................................... 5 Resumo ................................................................................................................................................. 13 Abstract ................................................................................................................................................ 14 Introdução e Justificativa ................................................................................................................... 15 Plataforma Kuhi pei ............................................................................................................................ 18 Capítulo 1- ............................................................................................................................................. 19 AS LÍNGUAS INDÍGENAS UTILIZADAS EM NOSSO DICIONÁRIO. ......................................... 19 1.1 Línguas Indígenas em território brasileiro ............................................................................ 20 1.2 Arara .......................................................................................................................................... 23 1.2.1 A língua ................................................................................................................................ 23 1.2.2 A História: Primeiros contatos ............................................................................................ 26 1.2.3 Organização e papéis ........................................................................................................... 28 1.2.4 Costumes e Celebrações ....................................................................................................... 29 1.2.5 Vida atual ............................................................................................................................. 30 1.2.6 Situação atual da língua: fala bilíngue ................................................................................. 31 1.3 Kadiwéu ................................................................................................................................ 32 1.3.1 A língua ................................................................................................................................ 32 1.3.2 A História: Os índios cavaleiros ........................................................................................... 32 1.3.3 Organização e economia ...................................................................................................... 35 1.3.4 Vida atual: atitudes preservacionistas ................................................................................. 36 1.3.5 Situação atual da língua ........................................................................................................ 37 1.4 Karitiana ................................................................................................................................ 38 1.4.1 A Língua ........................................................................................................................ 38 1.4.2 A História ........................................................................................................................... 39 1.4.3 População ............................................................................................................................ 39 1.4.4 Crença e mito Karitiana ........................................................................................................ 40 1.4.5 A Evangelização ................................................................................................................... 41 1.4.5 O retorno a antigas práticas: o mito da origem Karitiana ..................................................... 43 1.4.6 Organização e economia ...................................................................................................... 44 8 1.4.7 Vida atual ............................................................................................................................. 45 1.4.8 Habitat .................................................................................................................................. 45 1.4.9 Situação atual da Língua: aspectos pedagógicos .................................................................. 46 1.5 Parintintín – Kagwahiva ............................................................................................................. 47 1.5.1 A Língua ............................................................................................................................... 47 1.5.2 A História ............................................................................................................................. 48 1.5.3 Rito de passagem dos jovens Kagwahiva ............................................................................. 52 1.5.4 Situação atual da língua para os Tenharim ........................................................................... 53 1.5.5 A Transamazônica ................................................................................................................ 53 1.5.6 Sistema de metades Kagwahiva ......................................................................................... 55 1.6 Xavante – A’uwẽ ......................................................................................................................... 61 1.6.1 A língua ................................................................................................................................ 61 1.6.2 Uma história de invasões e correrias: Amanso-te branco! ................................................... 61 1.6.3 Formação das aldeias ........................................................................................................... 63 1.6.4 Vida atual ............................................................................................................................. 64 1.6.5 Migração de nordestinos e a chegada dos posseiros ............................................................ 65 1.6.6 Organização e papéis: Estrutura social xavante ................................................................... 68 1.6.7 Organização da Aldeia Xavante .......................................................................................... 69 1.6.8 Espiritualidade ...................................................................................................................... 72 1.7 Zoró – Pangỹjej ..................................................................................................................... 74 1.7.1 A Língua ............................................................................................................................... 74 1.7.2 A História: Massacres e a estratégia ..................................................................................... 74 1.7.3 Temperamento estrategista ................................................................................................... 76 1.7.4 Organização e papéis ..................................................................................................... 77 1.7.5 Vida na maloca ..................................................................................................................... 80 1.7.6 Desenvolvimento econômico: Sobrevivência ...................................................................... 80 1.7.7 Espiritualidade ...................................................................................................................... 82 1.7.8 Vida atual ............................................................................................................................. 84 1.7.9 Situação atual da língua: Estudo e transmissão .................................................................... 84 1.8 Reflexão sobre as línguas ........................................................................................................ 85 Capítulo 2- ............................................................................................................................................. 88 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ........................................................................................................ 88 2.1 História dos dicionários no Brasil .......................................................................................... 88 2.2 Terminologia -Terminografia , Lexicologia - Lexicografia ............................................. 98 9 2.3 Conceito e análise conceptual terminológica .................................................................. 103 2.4 Macroestrutura e Microestrutura .......................................................................................... 106 2.5 Sinonímia, parassinonímia e quase-sinonímia ...................................................................... 107 2.6 Repertórios lexicográficos e terminográficos ........................................................................ 109 2.7 Modelo de Pottier ................................................................................................................. 117 2.8 Etnoterminologia ................................................................................................................... 122 Capítulo 3- ........................................................................................................................................... 131 METODOLOGIA .................................................................................................................................... 131 3.1 Contexto da pesquisa ................................................................................................................. 131 3.2 A constituição do córpus e a coleta dos termos ......................................................................... 132 3.3 Sistemas conceptuais em português e nas línguas indígenas ................................................... 136 3.4 A Elaboração da base de dados terminológica .......................................................................... 137 3.5 Macroestrutura .......................................................................................................................... 146 3.6 Microestruturas ......................................................................................................................... 147 3.7 O Sistema de remissiva ............................................................................................................. 155 Capítulo 4 - .......................................................................................................................................... 157 DICIONÁRIO KUHI PEI: Dicionário terminológico onomasiológico multilingue para crianças da fauna brasileira ................................................................................................................................ 157 4.1 Sistema Nocional Português ..................................................................................................... 157 4.2 Sistema Nocional Arara ........................................................................................................... 163 4.3 Sistema Nocional Kadiwéu ....................................................................................................... 168 4.4 Sistema Nocional Karitiana ...................................................................................................... 174 4.5 Sistema Nocional Parintintín .................................................................................................... 179 4.6 Sistema Nocional Xavante ........................................................................................................ 186 4.7 Sistema Nocional Zoró ............................................................................................................ 191 4.8 Versão eletrônica: Dicionário terminológico onomasiológico multilingue para crianças ....... 197 Capítulo 5 - .......................................................................................................................................... 292 ANÁLISE DOS DADOS .................................................................................................................... 292 5.1 Layout do modelo...................................................................................................................... 292 5.2 Componente de Inserção ........................................................................................................... 294 5.3 Componente Busca: semasiológica e onomasiológica .............................................................. 296 5.3.1. Função Semasiológica ....................................................................................................... 297 5.3.2 Função Onomasiológica ..................................................................................................... 299 5.4 Componente Dicionários ........................................................................................................... 306 10 5.5 Componente Línguas indígenas ................................................................................................ 312 5.6 Componente Fontes ................................................................................................................... 313 5.7 Componente Notas .................................................................................................................... 314 5.8 Componente de sistema ............................................................................................................. 315 5.9 Limitações da pesquisa e Resultados Obtidos ........................................................................... 316 CONSIDERAÇÕES FINAIS E TRABALHOS FUTUROS .............................................................. 318 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................ 321 ANEXO 1 – Massacre do Paralelo 11 ............................................................................................. 332 11 Índice de Tabelas Tabela 1 - Classificação das línguas Indígenas SIL-ISA ................................................................................... 21 Tabela 2 - Grupo linguístico Arara e suas denominações - AC ..................................................................... 24 Tabela 3 - Grupo linguístico Arara - RO ................................................................................................................ 25 Tabela 4 - Grupo linguístico Arara - PA ................................................................................................................. 25 Tabela 5 - Grupo linguístico Arara - MT ................................................................................................................ 25 Tabela 6 - Classificação Kagwahiva (KUROVSKI, 2009) ................................................................................. 58 Tabela 7 - Imagens do termo .......................................................................................................................................140 Tabela 8 - Microestrutura .............................................................................................................................................148 Tabela 9 - Inserção de termos para a língua indígena .........................................................................................149 Tabela 10 – Verbete usado para remissivas ...........................................................................................................155 Tabela 11 - Estatística de equivalência ....................................................................................................................308 Índice de Figuras Figura 1 – Indígenas cobram pedágio de “brancos” na Transamazônica ....................................................... 54 Figura 2 – A última vez que viram sua terra ........................................................................................................... 66 Figura 3 - Ônibus da Prefeitura de Alto Boa Vista e grileiros bloqueiam a BR 158 .................................. 67 Figura 4 - Calendário Zoró ............................................................................................................................................ 81 Figura 5 - Árvore de conceitos. ...............................................................................................................................105 Figura 6 - Animais - Característica de classificação: habitat ...........................................................................105 Figura 7 -Aves: Característica de classificação: tipos de atributos .................................................................106 Figura 8 - Percurso onomasiológico (POTTIER, 1992, p. 16).........................................................................118 Figura 9 - Percurso semasiológico (POTTIER, 1992, p. 17). ...........................................................................119 Figura 10 - Os conceitos gerais e os conceitos universais (POTTIER, 1992, p. 78). ...............................120 Figura 11 - Vocabulário Zoró .....................................................................................................................................135 Figura 12- Semema Gambá - características do animal .....................................................................................154 Figura 13 -Layout do modelo .....................................................................................................................................293 12 Figura 14 - Aba de Inserção ........................................................................................................................................294 Figura 15 - Inserção de atributos onomasiológicos .............................................................................................296 Figura 16 - Busca Semasiológica ..............................................................................................................................298 Figura 17 - Resultado a busca semasiológica ........................................................................................................298 Figura 18 - Busca onomasiológica ............................................................................................................................300 Figura 19 - todos os mamíferos ..................................................................................................................................301 Figura 20 -Busca onomasiológica: todos os mamíferos herbívoros ...............................................................301 Figura 21 - Resultado da busca onomasiológica: mamíferos herbívoros ......................................................302 Figura 22 - Busca Onomasiológica: mamíferos herbívoros, que comem frutas .........................................302 Figura 23 - Resultado Mamíferos Herbívoros, que comem frutas ..................................................................303 Figura 24 - Busca semasilógica e onomasiológica ...............................................................................................303 Figura 25 –Resultado de busca: letra “a” e réptil .................................................................................................304 Figura 26 - Busca semasiológica: cobra para as línguas Arara, Kadiwéu, Parintintín, Zoró. ................304 Figura 27 - Busca semasiológica nas línguas Arara, Kadiwéu, Parintintín e Zoró: cobra ......................305 Figura 28- Tem pelos, rabo, pecilotérmico, onívoro , 4 patas ..........................................................................305 Figura 29 - Mamífero com asas .................................................................................................................................306 Figura 30 - Aba Dicionário ..........................................................................................................................................307 Figura 31 - Início da cena Aves .................................................................................................................................311 Figura 32 - Cena Aves...................................................................................................................................................311 Figura 33 - Aba Línguas indígenas ...........................................................................................................................312 Figura 34 - História da língua e de seus falantes ..................................................................................................313 Figura 35 - Fontes do dicionário ................................................................................................................................314 13 Resumo O presente trabalho tem como objetivo principal propor um modelo de dicionário terminológico onomasiológico multilíngue para crianças, com o propósito de divulgar as línguas indígenas. Tal dicionário é composto de 258 termos da fauna brasileira, organizados em anfíbios, aves, mamíferos, peixes e répteis, com equivalentes nas línguas indígenas Arara, Kadiwéu, Karitiana, Parintintín, Xavante e Zoró. Os termos foram coletados a partir dos corpora compilados de dicionários e vocabulários nas línguas empregadas. O protótipo é fundamentado no modelo de dicionário terminológico onomasiológico proposto por Babini (2001b), no qual esse autor trata a recuperação da informação lexical em um dicionário onomasiológico. Para que seja possível efetuar buscas de tipo onomasiológico foram utilizados semas costumeiramente existentes na fala infantil, em língua portuguesa, que descrevem as características dos animais. Além da busca onomasiológica o dicionário permite também buscas de tipo semasiológico, tradicionalmente implementadas na maioria dos dicionários eletrônicos. O dicionário foi realizado em uma plataforma eletrônica que poderá ser futuramente utilizada para a confecção de outros dicionários terminológicos eletrônicos. Palavras chaves: Dicionário terminológico onomasiológico multilingue; Dicionário terminológico onomasiológicos multilingue para crianças; Línguas indígenas. 14 Abstract The main objective of this thesis is to propose a model of a terminological onomasiological multilingual dictionary for children, aimed at promoting the indigenous languages. Such dictionary is composed of 258 terms of the Brazilian fauna, categorized into amphibians, birds, mammals, fish and reptiles, with equivalents in these indigenous languages: Arara, Kadiwéu, Karitiana, Parintintín, Xavante e Zoró. The terms were collected from corpora compiled from dictionaries and vocabularies in the studied languages. The prototype relies on a model of onomasiological terminological dictionary, proposed by Babini (2001), in which the author tackles lexical information retrieval in an onomasiological dictionary. In order to perform onomasiological searches, existing semes in children´s speech were used, in the Portuguese language, which describe animal features. Besides the onomasiological search, the dictionary also allows semasiological searches, traditionally implemented in most electronic dictionaries. The dictionary was developed in an electronic platform that may be used in the future so as to build other eletronic terminological dictionaries. Keywords: terminological onomasiological multilingual dictionary; terminological onomasiological multilingual dictionary for children; indigenous languages. 15 Introdução e Justificativa O presente trabalho nasce do anseio de colaborar com as investigações terminológicas no desenvolvimento de dicionários multilíngues eletrônicos onomasiológicos e tem como objetivo principal a realização de um modelo de dicionário terminológico onomasiológico multilingue para crianças, que permita buscas de tipo onomasiológico e semasiológico. O protótipo é fundamentado no modelo de dicionário terminológico onomasiológico proposto por Babini (2001) que, por sua vez, é baseado no modelo semântico de Bernard Pottier (1992), no qual ele trata a recuperação da informação lexical em um dicionário onomasiológico e, para nosso propósito, nos utilizamos dos sememas costumeiramente existentes na fala infantil, em língua portuguesa, que descreve as características dos animais. Por ser um modelo, a ferramenta possibilitará sua utilização em cenários plurais, como, por exemplo, na criação de dicionários terminológicos para diferentes dialetos ou para outros idiomas ocidentais, no âmbito de novas investigações. Como forma de representar nosso modelo, nós o empregaremos no desenvolvimento de um dicionário para o público infantil, utilizando termos da fauna brasileira nas línguas indígenas Arara, Kadiwéu, Karitiana, Parintintín, Xavante e Zoró. A finalidade deste modelo é permitir buscas de tipo semasiológico e onomasiológico, tendo como ponto de partida termos e traços semânticos de língua portuguesa. Ao mesmo tempo, este dicionário é um modo de promover o intercâmbio linguístico entre povos indígenas e de divulgar, entre as crianças brasileiras, a equivalência dos termos da fauna brasileira nas seis línguas indígenas apresentadas. Ante a empreitada ora alçada, indagamo-nos se o modelo de dicionário eletrônico proposto permitiria a utilização de funções onomasiológicas e semasiológicas em um mesmo escopo, de modo a atender às solicitações de buscas eletrônicas feitas pelo consulente. Outrossim, indagamo-nos se o modelo semântico de Pottier se mostrará satisfatório no desenvolvimento da problemática imbricada na construção da plataforma. Atualmente, os dicionários tradicionais não possuem a interatividade e recursos multimídia de dicionários eletrônicos; já os dicionários eletrônicos ainda carecem de melhorias no tocante a funções semasiológicas e onomasiológicas concomitantes. Acreditamos que o modelo proposto privilegiará tais funcionalidades, agregando ao dicionário terminológico recursos multimídia de armazenamento, cores e imagens da fauna 16 brasileira nas seis línguas indígenas coletadas, objetivando aguçar a imaginação e o interesse infantil. Outro fator de destaque no desenvolvimento do trabalho é a divulgação de algumas línguas indígenas entre as crianças brasileiras e, nesse sentido, esperamos abrir novo veio de divulgação. Com relação ao nome de nosso dicionário, demos-lhe o nome de “Kuhi pei” que, em língua Karipúna, quer dizer “correr o mundo” ou “pelo mundo”. A elaboração deste embasa-se, também, nos autores que referenciam a Terminologia e a Lexicografia, como Barros (2004), Cabré (1999) e Patrizzi (2007). Para alicerçarmos os conceitos de onomasiologia, empregamos Babini (2001, 2006a), Biderman (1984, 2001), Bertoldi (1935), Faulstich (2007) e Silva (2009). E apoiamo-nos em Babini (2001), a fim de estruturar a obtenção do verbete em busca eletrônica. Os objetivos específicos consistem em: analisar dicionários semasiológicos e onomasiológicos, com o intuito de identificar o modelo de dicionário eletrônico mais apropriado à nossa proposta; constituir um córpus de repertórios lexicográficos e terminográficos das línguas indígenas Arara, Kadiwéu, Karitiana, Parintintín, Xavante e Zoró; coletar termos para nomes de animais da fauna brasileira (mamíferos, aves, peixes e répteis) para as seis línguas de pesquisa e analisar o funcionamento do dicionário para buscas de tipo semasiológico e onomasiológico. Fundamentalmente, nosso Modelo de Dicionário Eletrônico Onomasiológico terá como público-alvo crianças brasileiras alfabetizadas, com idade entre oito e doze anos, com o propósito de divulgar as línguas indígenas e auxiliar na compreensão dos termos empregados para caracterizar a fauna brasileira. Todavia, por tratar-se de um modelo, a ferramenta eletrônica permitirá sua aplicação em diferentes contextos, sendo então destinada a lexicógrafos, terminólogos, pesquisadores e docentes na construção de obras lexicográficas. O presente estudo justifica-se por sua contribuição aos trabalhos terminológicos voltados ao público infantil e por possibilitar a criação de novas obras terminológicas a partir do modelo empregado. Nosso trabalho está organizado do seguinte modo: no capítulo um, distanciados das questões linguísticas, faremos um sobrevôo antropológico a fim de adentrarmos o panorama indigenista brasileiros, perpassando pela cultura das línguas indígenas presentes em nosso dicionário para compreendermos os ditos e os não ditos dos primogênitos de nosso território. No capítulo dois abordaremos nosso embasamento teórico, no qual são elucidados os conceitos capitais e os princípios que nos assistiram no amadurecimento e direcionamento do 17 modelo de dicionário proposto. Os tópicos fundamentais serão a macro e microestrutura que norteiam uma obra lexicográfica terminológica, a onomasiologia e os modelos onomasiológicos, bem como o modelo de Pottier. Por fim falaremos sobre a etnoterminologia, o semema e os semas, parâmetros dirigentes de nossa pesquisa. No capítulo três, descreveremos nosso contexto metodológico de pesquisa, a constituição do córpus, como se deu a coleta de termos, o sistema de remissiva e a microestrutura dos verbetes. O capítulo quatro tratará do sistema nocional em português e nas línguas indígenas Arara, Kadiwéu, Karitiana, Parintintín, Xavante e Zoró e, então apresentaremos dos verbetes de nosso Dicionário terminológico onomasiológico multilingue para crianças dos termos da fauna brasileira nas seis línguas indígenas já mencionadas. No capítulo cinco, analisaremos os dados e os principais componentes de layout de nosso modelo, bem como o emprego das funções onomasiológica e semasiológica. Por fim, discorreremos sobre as limitações e os resultados obtidos. Ulteriormente, descrevemos as referências bibliográficas que tornaram possível o desenvolvimento e aprofundamento do tema. Desse modo, no presente trabalho seguiremos com um breve esclarecimento sobre a Plataforma Kuhi pei e, na ordem, apresentaremos no capítulo um o estudo das línguas indígenas do nosso dicionário, pois acreditamos que para se conhecer a língua é preciso conhecer o Homem que a representa, sua história, cultura e seu caráter. Adentremos, então, ao princípio da criação de nosso modelo de dicionário: 18 Plataforma Kuhi pei O princípio da criação de nosso modelo de dicionário pressupõe a criação de um sistema computacional web que receberá os termos e seus atributos, formados pelo nosso córpus de pesquisa, dispondo-os na posição adequada para constituírem uma obra lexicográfica, no caso, nosso dicionário terminológico. A partir de sua criação para a confecção de nosso dicionário, o sistema estará disponível e organizado para a inserção e composição de novos dicionários, vocabulários e glossários terminológicos. Devido à adequação do sistema para uso em múltiplas finalidades lexicográficas terminológicas, nós o chamaremos de plataforma. Dessa maneira, a plataforma receberá os termos e os condicionará em formato de obra terminográfica eletrônica. Durante sua concepção ativemo-nos em cuidados com sua estrutura para não restringi-la apenas à criação atual, mas pensamo-na com amplitude, e a capacitamos com funcionalidades primordiais para que, mais à frente, torne-se uma ferramenta eficiente a lexicógrafos e terminólogos. Seu nome complementar será Kuhi pei, que em língua karipúna quer dizer pelo mundo, correr o mundo. Empregaremos o nome Kuhi pei também ao dicionário terminológico onomasiológico que nos propomos a desenvolver, uma vez que nesse momento o amadurecimento de ambos caminha em uníssono. A princípio, a plataforma receberá o nosso córpus de pesquisa, sendo capaz de acomodá-lo e estruturá-lo no modelo de dicionário terminológico onomasiológico indígena. Salientamos que a Plataforma Kuhi pei possibilita a inserção de termos de forma interativa e dinâmica, feita por usuários diferentes e de diferentes pontos de acesso, simultaneamente, a partir da publicação web da obra. Sua estrutura empregará um sistema de banco de dados web, o qual eventualmente poderá ser utilizado de maneira off-line, isto é, localmente sem acesso à Internet. E nessas condições, sua utilização se restringirá às consultas semasiológicas e onomasiológica aos termos do dicionário já finalizado, não sendo pertinente seu uso para a inserção de novos verbetes. Feitas nossas considerações iniciais sobre o sistema computacional que alicerça nossa investigação da perspectiva tecnológica, iniciaremos com breve relato sobre as línguas indígenas e o universo indigenista brasileiro. 19 Capítulo 1- AS LÍNGUAS INDÍGENAS UTILIZADAS EM NOSSO DICIONÁRIO. Para mim, os maiores sofrimentos e dor foram gerados pelos castigos de efeitos morais e psicológicos, como uma das modalidades de que fui várias vezes vítima. Tratava-se de um pedaço de pau grande com uma corda que continha uma frase em português: “Eu não sei falar português”. Quando algum aluno da escola era flagrado falando uma língua indígena, a placa assustadora era pendurada em seu peito ou nas costas e ficava com ele até que descobrissem um novo violador da regra, para quem a placa era passada (LUCIANO BANIWA, 2006) Neste capítulo, faremos uma breve descrição das línguas indígenas em território brasileiro e daremos ênfase às línguas empregadas em nosso dicionário. Consideramos imperioso retratar as comunidades indígenas falantes dessas línguas, sua representatividade histórica, seu modo de vida e seu posicionamento no cenário brasileiro. Buscaremos pela origem dessas línguas e por elementos que indiquem: se a essência e originalidade foram mantidas por seus falantes; se estando a língua materna concorrendo diretamente com a língua dominante, o português, como se dá o uso da primeira língua; qual o posicionamento de autoridades e governo em projetos que subsidiem a língua materna e como as comunidades indígenas são vistas por eles. por fim, qual a visão do indígena diante de si e de seu idioma e sua inserção no panorama brasileiro. No item a seguir, apresentaremos um panorama geral das línguas indígenas em território brasileiro. 20 1.1 Línguas Indígenas em território brasileiro Em território brasileiro, a maioria das línguas indígenas conhecidas estão agrupadas nos troncos linguísticos Tupi e Macro-Jê, com os quais elas partilham traços ancestrais comuns, ainda que sutis. Por sua vez, o tronco linguístico reúne as línguas e dialetos em famílias linguísticas que partilham características fonéticas, gramaticais e lexicais semelhantes. De acordo com o SIL, formalmente, Summer Institute of Linguistics, no Brasil, Associação Internacional de Linguística, que utiliza a classificação de Aryon Rodrigues, estão no tronco Tupi as famílias linguísticas: Mondé, Arikém, Aweti, Juruna, Mawé, Puroborá, Ramarama, Mundurukú, Tupari e a grande família Tupí-Guaraní; e, no tronco Macro-Jê estão as famílias: Bororó, Crenaque, Guató, Karajá, Maxakali, Ofayé, Rikbaktsá, Iatê e a mais representativa delas, a família Jê (SIL, 2010: FOLHA, 2009). O SIL também considera as famílias linguísticas ou propriamente línguas, que não possuem semelhanças com outras famílias conhecidas ou mesmo com os troncos linguísticos Tupi e Macro Jê. E recebem tal classificação as famílias: Aikaná, Arawá, Arúak (Arawak, Maipuré), Guaikuru, Iranxe, Jabuti, Canoê, Carib, Catuquina, Koazá (Kwaza), Makú, Mura, Nanambikwára, Pano, Trumái. Tikúna, Tukano, Txapakúra, Yanomami. Ainda temos diversos povos que vivem longe do contato com a sociedade não- indígena e, sobre eles, as informações são escassas. Pouco ou quase nada se conhece das línguas faladas por essas comunidades que se mantiveram afastadas e, desde o descobrimento, conservam as mesmas tradições culturais de seus antepassados e sobrevivendo da caça, pesca, coleta e agricultura incipiente, isolados do convívio com a sociedade nacional e com outros grupos indígenas (FUNAI, 2011). Apenas como curiosidade, gostaríamos de registrar que a língua Canoê, contatada em 2008, encontra-se com o reduzido número de cinco falantes, dos quais, apenas dois falam o português (SIL, 2010: FOLHA, 2009). Segundo o SIL, nosso dicionário é composto de famílias linguísticas provenientes do Tronco Tupi, a família Monde (língua Zoró), família Arikém (língua Caritiana ou Karitiana) e a grande família Tupi Guarani (o Parintintín, que é classificado como dialeto da língua Kawahib); do tronco Macro Jê temos o Xavante, que possui sua origem na família linguística Jê e é tratado pelo SIL como dialeto pertencente à língua Akwen; Por último, as famílias 21 Guaicuru ou Guaikúru (língua Kadiwéu) e Karib (designada apenas como Arara do Pará), ambas com tronco linguístico não determinados (SIL, 2010: FOLHA, 2009). Utilizando a classificação do SIL e a classificação do ISA (Instituto Socioambiental), descreveremos a classificação das línguas indígenas encontradas em nosso dicionário na Tabela 1. Notamos que, segundo o ISA, a língua Arara recebe novas designações: Língua Outra designação Família Linguística Localização Tronco Fonte Arara do Pará Karib PA Indeterminado SIL Arara Arara do Pará, Ukaragma Karib PA Indeterminado ISA Arara do Rio Amônia Apolima-Arara, Arara Apolima - AC Indeterminado ISA Arara do Rio Branco Arara do Beiradão, Arara do Aripuanã - MT Indeterminado ISA Arara do Shawanaua Arara do Acre, Shawanaua Pano AC Indeterminado ISA Karo Arara de Rondônia, Arara Karo, Arara Tupi, Ntogapíd, Ramaráma, Urukú. Urumí, I´târap Ramaráma RO Tupi ISA Zoró Mondé RO Tupi SIL/ISA Xavante Akwe (ISA), A´uwe (ISA) Jê * classif. dialeto da língua Akwen (SIL) MT Macro-Jê SIL/ISA Kadiwéu Kaduveo (ISA), Caduveo (ISA), Kadivéu (ISA), Kadiveo (ISA) Guaikuru MS Tronco indeterminado SIL/ISA Parintintín Cabahyba (ISA) Tupí Guarani. * classif. dialeto da língua Kawahib (SIL) AM Tupi SIL/ISA Karitiana Caritiana (ISA), Yjxa(ISA) Arikém RO Tupi SIL/ISA Tabela 1 - Classificação das línguas Indígenas SIL-ISA 22 De acordo com a Tabela 1, observamos que a língua Arara recebe diferentes designações e classificações de acordo com seu posicionamento geográfico, isto é, seu estado brasileiro. O que nos induz a aprofundar nossas pesquisas para compreender qual a família linguística da língua Arara de nosso córpus. Focaremos, em seguida, alguns aspectos dos falantes das seis línguas utilizadas em nosso dicionário, da língua Arara a Zoró. Em particular, para a língua Arara, esmiuçaremos as diferentes indicações de sua origem linguística. 23 1.2 Arara Eu não sabia que minha língua e minha cultura eram importantes, porque sempre foram desprezadas e desvalorizadas pelos brancos (PROFESSOR JABUTI; SEDUC, 2003; ISIDORO, 2006). 1.2.1 A língua No sítio do Instituto Socioambiental, ISA, em Povos indígenas no Brasil, a língua Arara é classificada como língua da família Karib, de tronco linguístico não determinado. Mas, a designação recebida é apenas Arara e a designação Arara do Pará é tida como segundo nome (ISA, 2011). No sítio Sua Pesquisa: Povos Indígenas do Brasil, os Arara recebem classificação muito próxima à classificação do ISA, díspares apenas no tronco linguístico da família Araras do Aripuanã. São elas: Araras do Pará, provenientes da família Karib (PA), Arara do Acre, provenientes da família Pano (AC) e Arara-do-aripuanã, provenientes do Tupi (MT) e Arara-Caro, da família Ramarama (RO). Em concordância com o ISA, Meira (2006), na revista de Estudos e Pesquisas - FUNAI, classifica a língua Arara encontrada no Sul do Pará como língua da família Caribe (grafia diferente): As línguas Caribe modernas concentram-se no interior do Maciço das Guianas e na região entre o rio Orinoco, na Venezuela, e o estado de Roraima, no Brasil. Fora desta área, encontramos apenas algumas línguas no sul: o Arara, no sul do Pará; o Ikpeng e o Kuikuro (com seus dialetos Kalapalo, Nahukwa e Matipu), no Alto Xingu (MEIRA, 2006. p. 161). No relatório anual 2010 do Projeto de documentação de Línguas indígenas, desenvolvido pelo Museu do Índio e FUNAI, a língua Arara é classificada como língua pertencente à família Pano ( PRODOCLIN , 2010, p. 31): 24 Habitam a região do alto Juruá, no estado do Acre. O grupo indígena Jaminawa- Arara possui uma língua denominada Arara que é um membro da família Pano. Nesta região do rio Bagé há mais ou menos 108 pessoas vivendo nas comunidades que estão distribuídas em duas aldeias: São Sebastião e Buritizal. Ambas as comunidades pertencem ao município de Marechal Thaumaturgo, no Estado do Acre. Um outro grupo falante da língua Arara é o Shawãdawa; que possui 7 falantes em um universo de aproximadamente 230 pessoas, localizadas às margens do igarapé Humaitá, município de Cruzeiro do Sul, Acre. Na mesma página, nos chamou a atenção o item ‘c’, que faz referência ao Jaminawa- Arara, falado na comunidade que é descrito como língua seriamente ameaçada, uma vez que as crianças não têm mais contato com a língua e o português brasileiro tornou-se a língua de prestígio dentro da comunidade ( PRODOCLIN , 2010, p. 31). O artigo1 Línguas indígenas e tradições orais na Amazônia brasileira, do Museu Nacional (UFRJ), escrito por Kristine Stenzel (2006) nos aclara o assunto, quando descreve os grupos linguísticos e suas denominações de acordo com os estados brasileiros, organizados em tabelas que incluem dados sobre o tamanho de cada população indígena e, na maioria dos casos, o número de falantes. Considerando apenas os grupos linguísticos que recebem a denominação de Arara e o estado brasileiro do grupo indígena, transcreveremos as tabelas de Stenzel (2006), organizadas por grupo linguístico, outros nomes, família linguística, local, população, número de falantes: Acre Grupo Linguístico Outros nomes Família Linguística Local População Falantes Apolima- Arara - - AC 278 - Arara Shawãdawa Shawanauá Pano AC 332 9 Fonte: (STENZEL, 2006. p.3) Tabela 2 - Grupo linguístico Arara e suas denominações - AC 1 Versão atualizada e traduzida do texto original em espanhol publicado pela UNESCO em 2006: Lenguas y Tradiciones Orales en la Amazonia Brasileña. Lenguas y Tradiciones Orales de la Amazonia - diversidad en peligro? Havana: Oficina Regional de Cultura para América Latina y el Caribe, UNESCO/Casa de las Américas. 71-121 25 Rondônia Grupo Linguístico Outros nomes Família Linguística Local População Falantes Karo Arara Ramarama RO 170 % alta Fonte: (STENZEL, 2006. p.8) Tabela 3 - Grupo linguístico Arara - RO Pará Grupo Linguístico Outros nomes Família Linguística Local População Falantes Arara Ukarãgmã, Ukarammã Karib PA 271 % alta Fonte: (STENZEL, 2006. p.9) Tabela 4 - Grupo linguístico Arara - PA Mato Grosso Grupo Linguístico Outros nomes Família Linguística Local População Falantes Arara do Aripuanã Arara do Beiradão Mondé MT 57 - Fonte: (STENZEL, 2006. p.11) Tabela 5 - Grupo linguístico Arara - MT Observamos nas tabelas acima que há uma variação de denominação e classificação linguística de acordo com a origem do grupo linguístico Arara, dependendo do estado brasileiro no qual ele se localiza, podendo o grupo ser originário das famílias Mondé, Karib, Ramarama, Pano. Desse modo, consideraremos a localização dos grupos indígenas em território nacional e o início do nosso trabalho em Rondônia, com o vocabulário Arara organizado pelo CIMI-RO, para adotar como família linguística de origem a família Ramaráma, tronco Tupi. Nossa escolha baseia-se também no trabalho de Isidoro (2006), devido à proximidade encontrada entre alguns termos provenientes da língua Arara utilizados pela autora e os termos do vocabulário Arara que compõe nosso corpora e, ainda, pela análise detalhada da situação sociolinguística da comunidade Karo–Arara do estado de Rondônia em 2006, feita pela autora, que nos deu um panorama da língua arara e a situação atual de seus falantes. 26 Retomaremos logo à frente o trabalho de Isidoro (2006) para descrever um pouco do povo Arara. Citamos que a autora também adota o Ramaráma como família linguística e tronco Tupi, baseada em Rodrigues (ISIDORO, 2006 p. 30). Esclarecidas nossas escolhas, prosseguiremos com uma breve descrição dos falantes da língua Arara, em que destacaremos a história do primeiro contato, a organização, economia e sobrevivência, celebrações, vida atual e a fala, baseados em Isidoro (2006). 1.2.2 A História: Primeiros contatos Segundo Isidoro (2006, p. 16), os primeiros contatos com os Arara do município de Ji-Paraná – RO aconteceram entre os anos de 1940 a 1960, período nomeado pelos indígenas como marco inicial de sua relação com a sociedade nacional: O povo Karo, também conhecido como Arara, autodenomina-se “Karo-Rap”, que significa “Nós Arara”. Suas terras tradicionais correspondem a quase todo o território do Município de Ji-Paraná, no Estado de Rondônia. Segundo esses indígenas, havia uma grande maloca que se localizava no centro da atual cidade de Ji-Paraná, onde hoje se encontra uma das primeiras construções oficiais do município. Tal construção serviu de posto telegráfico e de alojamento para o Marechal Cândido Rondon e sua comitiva no início do século XX. A autora menciona relatos dos Arara sobre o período da implantação do telégrafo e um depoimento de Pedro Arara, da aldeia Pajgap que, pela visão de indígena, retrata um Marechal Rondon conquistador que utilizava o indígena como mão de obra: “Marechal Rondon diz que queria salvar os índios, mas ele também fazia os índios trabalhar pra ele, minha mãe contava” (ISIDORO, 2006. p. 18). De acordo com a autora, os Arara destacam seis períodos importantes para a história de seu povo. São eles: Anterior a 1940: Tempo das malocas: período anterior ao contato com os não-indígenas. A partir de 1940: Primeiros contatos, vida nos seringais: contatos com os seringalistas. Período do trabalho semi-escravo dos Arara nos seringais (a partir de 1940); A partir de 1966: O realdeamento: volta dos Arara à vida comunitária em suas aldeias; Década de 80: A luta pela terra: a luta pela posse de suas terras; 27 Década de 80 e 90: A venda de madeira: a exploração da terra Arara; Período atual (2006): Conflitos, as mudanças e os novos aprendizados (ISIDORO, 2006, p. 18-19). No primeiro ciclo da borracha, entre os anos de 1877 a 1914, os extrativistas ocuparam todos os rios formadores da bacia do rio Madeira, que abrange as terras do estado de Rondônia. Isidoro (2006, p. 24) cita Medeiros (2003), que nos relata o cenário da época: No decorrer do primeiro ciclo da borracha, não existia lei, ou orientação qualquer, no sentido de evitar conflitos entre o civilizado e o índio. A lei era determinada pelo patrão e executada pelos seringueiros. A lei era matar, trucidar o índio. Para o seringalista e seringueiro, o que importava era a área e produzir borracha. O índio, se ali estava, era um empecilho; portanto, devia ser eliminado, expulso do território produtivo. (MEDEIROS, 2003, p.83). Para Isidoro (2006, p.24) o ciclo econômico da borracha, tanto quanto os demais (da cassiterita, diamante, ouro), são ditos como período “das correrias” pelos indígenas. Banidos, os indígenas vagavam pela floresta, esperando por novos enfrentamentos com o homem civilizado ou com outros grupos indígenas na disputa pelo mesmo espaço geográfico. Tal situação provocava a desestruturação dos indígenas que não mais cultivavam suas roças: Neste contexto, os indígenas não tinham mais tempo de caçar, pescar, ou cultivar suas roças, o que resultava em uma desorganização, até mesmo na desestruturação tribal (MEDEIROS, 2003). Com o final do ciclo da borracha, os seringais caíram no abandono e os grupos indígenas puderam retomar sua vida comunitária e houve certo crescimento populacional, segundo a FUNAI – Fundação Nacional Índio (2006). No segundo ciclo da borracha, quando o povo Arara foi contatado pelo seringalista Barros, de acordo com seus relatos. Eles trabalhavam em regime de barracão e, como os demais trabalhadores, sofriam os processos de endividamento e dependência nos seringais (ISIDORO, 2006, p. 24). O trabalho dos Arara nos seringais da região de Ji-Paraná amparava-se numa relação de conflito e dependência. Esse povo sofreu com a imposição de uma nova forma de vida, com as explorações, com o trabalho semiescravo e com as doenças, das quais se tornavam cada vez mais reféns, uma vez que os seringalistas supriam, de certa forma, as necessidades 28 que eles adquiriram após o contato, como por exemplo, o uso de remédios e de determinados alimentos como café, açúcar, arroz etc. (ISIDORO, 2006, P.25). No ano de 1966, o SPI, Serviço de Proteção ao Índio, retirou os seringalistas das terras indígenas e promoveu o realdeamento. Reunidos novamente na aldeia, os indígenas passaram a conviver, a casar-se com mulheres Arara e a resgatar pouco a pouco a língua e a cultura Arara. Isidoro ilustra tal passagem com significativo depoimento de um Arara, adotado por um seringalista, e que hoje vive na aldeia I’Târap: (ISIDORO, 2006, P.27): Polícia chegou lá, tirou o pessoal da nossa área, na época do Apoena, tirou todo mundo, chamou todo mundo para fora, vocês têm que desocupar aqui, que aqui é área indígena, o branco saiu, todo mundo mesmo. Só tinha nós dois, eu mais o meu sogro ali, o Manuel. A Polícia perguntou: vocês quer ser índio ou quer ser branco? Genésio (chefe de Posto) disse: não, já conversei com eles, falaram que vão ficar aqui. Ficamos. Brancos saíram todos. Nós ficamos no depósito. Queimaram as outras casas, os Gavião queimaram, ficou só essa casa e os Gavião falaram “quando vocês saírem, queimem, não deixem essa casa aqui não”. Fizemos, queimamos a casa e fomos para o centro, onde nós trabalhávamos. Ficamos uns três dias e falei para o meu sogro “não fico aqui, não, se você quiser ficar você fica” Meu sogro falou “para onde você for, eu vou com você”. Meu parente foi lá, buscar minhas coisas, e vim para cá (na aldeia aberta pelo SPI) . Até a Polícia falou para mim, “se vocês não acostumarem junto com eles, podem ir embora...” “Está bom... se não acostumarmos, vamos procurar nosso destino”. 1.2.3 Organização e papéis A organização dos Arara ocorre pela união de grupos ligados por laços de parentescos. E, no tempo das malocas, todos os familiares moravam na maloca grande com toda a família. Quando o número de pessoas aumentava demais, construíam outra maloca próxima àquela. Esse espaço representava a essência da vida social e o local dos movimentos culturais, sociais e linguísticos. Ao dono da maloca cabia a liderança, podendo ser ou não o pajé: a ele caberia a roça maior, conforme depoimento dos Arara relatado pela autora: Não existia cacique, apenas JAT XU, isto é, a pessoa que construía a maloca, que tinha a roça maior. Este era considerado a liderança; cacique foi coisa que surgiu com o branco (ISIDORO, 2006, p.19). Essencialmente, os Arara eram agricultores, coletores, caçadores e pescadores e cada família tinha sua roça e trabalhavam juntos, mais ou menos no sistema de mutirão. Eles domesticavam animais como jacu, cateto, jacamim e possuíam uma economia baseada no sistema de troca (ISIDORO, 2006, p.19). 29 Na vida cotidiana, as mulheres se incumbiam do preparo dos alimentos, cuidados com os pequenos e a instrução das meninas em funções como, o preparo da macaloba, bebida fermentada bebida fermentada feita de macaxeira, batata-doce, cará ou milho; a recolha de lenha e a produção de artefatos (colares de semente, brincos, tipóias, canecas de cabaça, anéis, redes, esteiras, panelas de barros, cestos, redes de algodão e de fibra de tucum, peneiras e outros) (ISIDORO, 2006, p.20). Aos homens cabiam as derrubadas, o plantio do roçado, a caça, a pesca, a organização das festas, a confecção de instrumentos musicais, estojos penianos, machado de pedra, bordunas e arco e flecha, a construção das malocas e a preparação do filho para as atividades guerreiras. Para os Arara, as características de um bom caçador e um bom guerreiro eram saber usar o arco e a flecha e ser corajoso (ISIDORO, 2006, p.20). Ao pajé cabia a função política, social, religiosa, psicológica, medicinal e o auxílio na educação dos pequenos. O Pajé era escolhido por atributos físicos, intelectuais e místicos: o indígena deveria ser fisicamente perfeito, ser justo, honesto, ter percepção e sensibilidade; ter capacidade de se relacionar com o mundo dos espíritos, capacidade esta percebida desde pequeno. Era ainda submetido a vários testes a fim de provar sua resistência, no relacionamento com o mundo dos espíritos, geralmente realizado em locais sagrados, em meio à mata densa e distante da aldeia (ISIDORO, 2006, p.21). Ainda hoje, para ser pajé, são necessários os testes e tais características. Os avós, os tios e tias, e o pajé tinham importante papel na formação da identidade cultural das crianças, o que ocorre ainda hoje, como destaca a autora (ISIDORO, 2006, p.21). Apesar de ficarem durante anos num mesmo local, esses indígenas se caracterizavam pela vida nômade e nova maloca era erguida quando encontravam espaços com mais caça ou frutos ou por motivo de morte de um membro da comunidade (ISIDORO, 2006, p.21): “Nesse caso, todos os objetos da pessoa eram destruídos – desfaziam-se, inclusive, dos animais de estimação – e só retornavam àquele local depois de muito tempo”. 1.2.4 Costumes e Celebrações As celebrações ocorriam no período de derrubadas e colheitas, quando convidavam as malocas vizinhas e havia muita festa e comida. As festas Arara duravam vários dias e 30 nelas, com exceção das crianças pequenas, mulheres grávidas e lactantes, se consumia a bebida fermentada chamada na’mek kap ou macaloba (ISIDORO, 2006, p. 20). Os casamentos eram acertados entre as famílias. O futuro genro cuidava da menina até que esta atingisse a idade para o casamento, e trabalhava para o sogro a fim de mostrar sua capacidade de prover e sustentar a mulher e os filhos. Os noivos não podiam namorar outra pessoa. O pai da noiva escolhia o dia do casamento e, nesta ocasião, o noivo dançava até de madrugada e depois atava sua rede acima da rede da noiva, o que significava a união do casal (ISIDORO, 2006, p.20). Quanto à questão dos conflitos, o início das guerras intertribais por território pelo povo Arara iniciou-se com o processo de colonização. Com a frente de expansão se ampliando, os indígenas eram empurrados para mais perto de seus vizinhos e seus territórios iam-se estreitando, mesmo antes do contato direto com o não-indígena, o que provocou até o extermínio de algumas populações (MARTINS, 1997). O povo Arara é conhecido como povo guerreiro e muitos dos conflitos dos Arara com outros povos indígenas, entre eles, os Urubu, os Gavião e os Zoró, ocorreram por questões geográficas. Leonel (1983, p.3) relata um desses enfrentamentos: Os Gavião, apesar de nos anos 40 serem inferiores em número aos Arara, atacaram- nos várias vezes. A última grande investida deu-se em 1959, quando os Gavião cercaram as quatro aldeias dos Arara e Urubu, matando sete pessoas e levando algumas mulheres. 1.2.5 Vida atual Hoje, segundo Isidoro, encontraremos os Arara em número aproximado de 200 indígenas, vivendo em duas aldeias, Pajgap e I’Târap, falantes da língua arara e a repassam às novas gerações. Eles ainda preservam seus costumes, entretanto, novos eventos e alimentos da vida não-indígena foram incorporados, como a festa junina e alimentação industrializada (ISIDORO, 2006. p. 35): Outros elementos da cultura nacional já fazem parte da vida dos Arara, como alimentação industrializada, móveis, vasilhas e eletrodoméstico, novos cargos que vão surgindo, entre eles, agente de saúde, agente saneamento e professor. As suas terras têm uma grande importância em suas vidas. Por este motivo, a perda das terras onde enterraram seus mortos é uma marca dolorosa entre os Arara. Eles dizem que não gostam de passar perto do local onde, segundo contam, seus pais e avós foram enterrados, e que hoje pertencem a fazendeiros. 31 Sobre o desenvolvimento econômico atual, Isidoro (2006) relata uma economia de subsistência: Os Arara continuam desenvolvendo uma economia de auto-sustentação. A agricultura de subsistência é uma importante atividade econômica dessas comunidades. São ainda coletores, ou seja, adentram a mata à procura de frutas no período correspondente à safra de cada uma delas, caso da colheita de castanha. Plantam outras frutas ao redor de casa, entre elas laranja, limão, coco, pupunha etc. A pesca e a caça tornaram-se escassas devido ao desmatamento na terra indígena. A autora faz importante alusão à necessidade de os Arara trabalhar, ou nas terras de proprietários vizinhos, em busca de salários para adquirir bens de consumo, ou nas atividades remuneradas que ocorrem na aldeias, como a função de professor, agente de saúde, agente de saneamento, e os casos de aposentados e de pagamento de salários-maternidade, o que beneficia de forma direta ou indireta todas as famílias da aldeia (ISIDORO, 2006, p. 40). 1.2.6 Situação atual da língua: fala bilíngue De um modo geral, os Arara são bilíngues. Nas comunidades estudadas pela autora, Isidoro (2006) descreve que encontrou pessoas monolíngues, falantes apenas da língua materna Arara, pessoas bilíngues com vários graus de domínio da língua portuguesa, que falam e escrevem nesse idioma, e pessoas que falam o português e apenas entendem a língua indígena. A língua materna é usada no espaço familiar, em reuniões, em festas, na roça e na cidade, quando conversam entre si. Ainda é empregada para as instruções e, na escola, como língua de alfabetização. A autora relata os empréstimos linguísticos e alternância de língua, dependendo do assunto em questão daqueles a quem se dirigem. E nota a crescente valorização cultural e linguística entre os Arara devido ao trabalho e iniciativa dos professores indígenas nas escolas e junto à aldeia. Inserido nesse contexto está o Projeto Açaí, desenvolvido de 1998 a 2004, que despertou a consciência da importância de cada povo através da valorização da identidade étnica junto aos professores indígenas e que, após, através de suas atitudes, aos poucos, vai sendo incorporada às comunidades. Falaremos a seguir, dos indígenas cavaleiros, os Kadiwéu. 32 1.3 Kadiwéu Quanto à língua, o assunto era outro: a fonética Guayacuro traz uma sensação agradável ao ouvido: uma fala precipitada e palavras compridas, todas em vogais claras, alternando as dentais com as guturais e uma abundância de fonemas molhados ou líquidos dão a impressão de um riacho, saltando sobre os seixos, o termo atual Caduveo é uma corruptela do nome com que os índios se designam a si próprios: Cadiguegodi (LÉVY-STRAUSS, 1955, p.219). 1.3.1 A língua A língua Kadiwéu, classificada linguisticamente como língua da família Guaikuru, é uma língua aglutinante, o que quer dizer que existem muitos afixos que podem juntar-se à raiz (que tem o significado central) de uma palavra, formando palavras compridas. O resultado é que o significado de uma palavra pode incluir muita informação (GRIFFITHS, 2002, p.3). O Kadiwéu possui diferenças entre as falas do homem e da mulher. Para Griffiths (2002, p.3), essa língua encontra proximidade, em termos das características mais comuns, à língua Toda, que ocorre no norte da Argentina. Na opinião de Griffiths e Griffiths (1976, p.4), é relevante o trabalho de Voegelin (1965), em que o autor compara as línguas "Opaié" e "Guaycuru" como ramos de uma só família e considera a língua "Cadiveu" como um subgrupo da língua "Guaycuru", dentro do Filo "Macro Panoan", do Macro-Filo "Ge-Pano-Carib". E o posterior trabalho de Gudschinsky (1971, 1974) confirma a relação genética entre a língua Ofaié (Xavante) e as línguas Jê. Em consequência do último trabalho, Aryon D. Rodrigues (1970) inclui "Ofayé" no Tronco Macro-Jê e o Kadiwéu como língua da família Guaikuru, membro de um tronco não- classificado. 1.3.2 A História: Os índios cavaleiros Conhecidos como índios cavaleiros, grande parte dessa população encontra-se ao norte do município de Porto Murtinho-MS, na Reserva Indígena Kadiwéu, com 538.535,7804 hectares, em número aproximado de 1348 indígenas e vive tradicionalmente de caça, coleta e da criação de gado (SOUZA, 2008, p. 3): A área, denominada juridicamente Reserva Indígena Kadiwéu, foi homologada por intermédio do decreto Presidencial n° 89.578, de 24 de abril de 1984. Nela vive, segundo o censo Kadiwéu 1998 (Porto Murtinho, 1998), uma população de 1.348 33 indivíduos distribuídos, desigualmente, por cinco aldeias: Bodoquena, Campina, São João, Tomázia e Barro Preto. Encontramos os primeiros relatos sobre os Guaikuru em Grubits e Darrault-Harris, que retomam Boggiani (1899), no qual os “Guaicurú”, juntamente com os Mbayá, são descritos como caçadores, coletores, pescadores pedestres e nômades, em constante deslocamento no Chaco, planície que cobre o Sul da Bolívia ao norte da Argentina e a leste pelas bordas do Planalto Brasileiro e a oeste nas ramificações laterais das precordilheiras (GRUBITS; DARRAULT-HARRIS, 2003, p. 192): Os Guaicurú atacavam e assaltavam os espanhóis, a cidade de Assunção e as primeiras estâncias crioullas em busca de alguns elementos culturais novos assimilados, como o metal para as pontas de flechas, as facas, os cavalos e cativos. Nessa pesquisa, os autores localizaram os Kadiwéu vivendo na região sul do Pantanal Mato-grossense, com as principais aldeias a oeste de Miranda, em uma reserva sob a jurisdição da FUNAI, nos postos: Presidente Alves de Barros, Nalique, e São João, estando o principal agrupamento distribuído entre três aldeias próximas ao posto Presidente Alves de Barros (GRIFFITHS; GRIFFITHS, 1976, p. 4). Os autores supunham uma população aproximada de quinhentos falantes Kadiwéu e relataram dificuldade para precisar este número devido às distâncias entre as casas e a quantidade expressiva de indígenas que trabalhavam em terras vizinhas, longe das aldeias, além da situação de miscigenação com não Kadiwéu (GRIFFITHS; GRIFFITHS, 1976, p. 4). Pela habilidade com os equinos, esses indígenas tiveram papel bastante representativo na guerra do Paraguai, de onde receberam, segundo eles, a estima e consideração do Imperador D. Pedro II, responsável pela demarcação das aldeias. Os Kadiwéu elaboram um discurso perante outras sociedades, inclusive indígena, identitariamente como guerreiros, cavaleiros, ativos participantes da Guerra do Paraguai (1864-1870) e, por essa razão, únicos beneficiários de uma suposta doação de terras por parte do Imperador D. Pedro II (suposta porque as provas documentais que comprovem tal doação jamais foram encontradas). (SILVA, 2007, p.2). Do mesmo modo que os Kadiwéu, outros grupos indígenas do nordeste brasileiro, como os Kariri-Xocó, de Alagoas, afirmam que a posse das terras que habitam foi confirmada pelo Imperador (SILVA, 2007, p.5). E, apesar do sabido reconhecimento do Imperador D. Pedro II pela participação na Guerra do Paraguai, não há tal comprovação documental. Siqueira (1993) levanta que 34 “Alguns Kadiwéu especulam a existência de um documento assinado pelo Imperador, que estaria muito bem guardado (embora ninguém saiba onde), confirmando a posse do território aos Kadiwéu (SIQUEIRA JR., 1993, p. 214-215)”. Todavia, a única referência encontrada sobre tal ligação dos antigos Mbayá- Guaikuru com o Imperador é citada abaixo, em texto de Davis Ribeiro de Sena, publicado na Revista do Exército Brasileiro, descrita no trabalho de Silva (2007, p.4): O Imperador D. Pedro II estava tão certo da influência decisiva dos intrépidos índios cavaleiros nessa incorporação, que recomendava, com particular carinho e elevada gratidão, aqueles silvícolas amigos, como o fez ao General Mello Rego, quando este regressava de Cuiabá, depois de cumprido seu período de governo: – “Como vão os meus amigos Guaicurus? Que notícias me dás deles?” E ao saber que viviam dispersos e caminhavam fatalmente para a extinção: – “Eles muito me merecem e, ao menos por gratidão, não deveríamos deixá-los chegar a esse estado”. Em Souza (2008, p.59), encontramos o relato de que os Mbayá-Guaikuru eram conhecidos pela alcunha de “índios cavaleiros” por todos aqueles que cruzaram seu território, em plena expansão geográfica para o oeste do Brasil, através do rio Paraguai e seus afluentes. Souza retoma a fala do historiador Sérgio Buarque de Holanda, referindo-se aos Guaikuru: Outro embaraço nada desprezível era a presença, nas campanhas, do terrível gentio Cavaleiro ou Guaicuru, que se opunha a qualquer intrusão nos seus domínios (HOLANDA, 1990, p. 86). Em 1898, os Kadiwéu aliaram-se a uma das facções coronelistas (a de Antônio Pedro Alves de Barros) que disputavam o poder no Estado, com o intuito de se contraporem à aliança governista com o coronel Malheiros, que os reprimia violentamente. Mais uma vez, entre o fogo cruzado, os indígenas buscaram refúgio nas cercanias da Serra da Bodoquena, onde se concentram seus remanescentes até os dias atuais (SILVA, 2007, p. 7). Apesar de sofrerem significativas baixas no conflito, com a vitória de seus aliados passaram a gozar de relativa proteção governamental e foram contemplados, como forma de pagamento pelos serviços prestados, com a criação da reserva indígena. Em 1899, o governo de Mato Grosso ordenou a delimitação de terras, ratificada posteriormente em 1931. E iniciava-se o regime de aldeamento e o processo de sedentarização dos Kadiwéu. Ainda após a homologação, em 1984, a área delimitada foi alvo de várias investidas de ocupação (SILVA, 2007, p. 24). 35 Na opinião de Silva, o processo de sedentarização, a interferência do SPI e a invasão de fazendeiros são as influências mais significativas na forma com que os indígenas passaram a se relacionar com o espaço. Segundo o autor, a Reserva Indígena Kadiwéu representa pequena porção da imensidão territorial ocupada pelos ancestrais Mbayá-Guaikuru, sobre as quais, “ao longo do século XX, os Kadiwéu procuraram constituir social e culturalmente um território, quer no plano físico, quer no simbólico”. E, apesar disso, a sociedade não-indígena ainda conserva um discurso de que os Kadiwéu possuem mais terras do que necessitariam (SILVA, 2007, p. 24). O autor cita Darcy Ribeiro (1980, p.24), em sua passagem pelas aldeias Kadiwéu no final da década de 1940, e apresenta o discurso do indígena Ediu-adig, de um passado guerreiro, de grandes conquistas territoriais e da aquisição de cativos (SILVA, 2007, p.3): “este mundo todo foi nosso: tereno, xamacoco, brasileiro, paraguaio, todos foram nossos cativeiros, hoje estamos assim”. De acordo com o discurso indígena retomado por Silva (2007, p.6), Siqueira Júnior (1993, p. 198), dividiu em cinco fases o controle do espaço territorial Kadiwéu: a primeira trata do período anterior a sedentarização, o período das caçadas, hábitos alimentares e viagens. O segundo começa com a participação dos Kadiwéu na Guerra contra o Paraguai e com o fato de terem ganhado o território do imperador D. Pedro II. O terceiro trata da ocupação e defesa desse território. O quarto período representa a presença do SPI, e posteriormente FUNAI, e a interferência que isto representou na relação dos Kadiwéu com o espaço e o ambiente. O último período constitui-se da fase atual, embasado na necessidade de reorganização da relação territorial e com as perspectivas atuais e futuras. 1.3.3 Organização e economia As aldeias eram semi-sedentárias e as mudanças de localidade ocorriam em busca de maior abundância, de caça e frutos, e de acordo com as cheias dos rios. O espaço limpo em frente às casas era marcado pelas atividades sociais, como festas, jogos, cerimônias e lutas. O terreno dos fundos era utilizado para tarefas domésticas, onde também ficava a fogueira para cozinhar (GRUBITS, DARRAULT-HARRIS, 2003, p. 193). 36 O papel da mulher é destacado como ceramista, cabendo a elas a atividade artística. Ao homem coube a atividade de caça, pesca e cuidados com o gado (GRUBITS, DARRAULT-HARRIS, 2003, p. 196). Os mortos eram sepultados em napiog, que eram construções divididas por postes pequenos ou estacas, em que os espaços eram demarcados para cada família (GRUBITS, DARRAULT-HARRIS, 2003, p. 193). As armas, adornos e mesmo cavalos eram sepultados com os guerreiros. Como acreditavam na vida após a morte, sobre a sepultura depositavam esteiras, cântaros, utensílios, cuias e alimentos, que eram renovados (GRUBITS, DARRAULT-HARRIS, 2003, p. 194). Quanto ao desenvolvimento econômico, os Kadiwéu caracterizam-se pelo desenvolvimento da cultura de subsistência, do mesmo modo que os Arara O registro do cultivo agrícola ocorre a partir do século XIX e o que a tribo não produzia se obtinha junto a outros grupos indígenas; no entanto, tais produtos não detinham o mesmo destaque na alimentação dos Kadiwéu (GRUBITS, DARRAULT-HARRIS, 2003, p. 194). No trabalho de Grubits e Darrault-Harris encontraremos a reserva de Bodoquena em 2003, com cerca de 538.000 hectares, dos quais 158.000 ainda em litígio com fazendeiros da região. Em número de 2008 habitantes, os Kadiwéu são apresentados vivendo em área preservada de exuberante flora e fauna e de difícil acesso, distante 48 km do município mais próximo, Bodoquena (GRUBITS, DARRAULT-HARRIS, 2003, p. 192). A caça, pesca e pecuária ainda são as atividades predominantes, e os autores destacam o difícil acesso aos meios de comunicação e às cidades mais próximas e a beleza e conservação das riquezas naturais (GRUBITS, DARRAULT-HARRIS, 2003, p. 194). 1.3.4 Vida atual: atitudes preservacionistas Na abordagem de Grubits e Darrault-Harris, encontramos interessante narrativa sobre a atitude preservacionista das crianças Kadiwéu, que os levaram a concluir que, para o povo Kadiwéu, os costumes e a identidade são fortemente preservados, posto que, em grupo ou individualmente os Kadiwéu são a identidade de sua própria etnia (GRUBITS, DARRAULT- HARRIS, 2003, p. 197): 37 Quanto aos Kadiwéu, toda produção infantil, desenhos, pinturas, modelagens, até agora analisadas, representam o ambiente natural, flora e fauna, principalmente, a fauna, com intensidade de cores diversificadas e a cerâmica, conhecida e divulgada nos meios acadêmicos e mesmo na mídia nacional e internacional. Ressaltamos aqui a hipótese de que a cor, desenhos e objetos da cerâmica, trabalhos em couro e desenhos corporais, constituírem uma verdadeira marca, ou signo Kadiwéu, acompanhando a construção da identidade deste povo, presente em diferentes formas, não só nos trabalhos infantis, como na decoração da fachada da escola, camisetas dos alunos e mesmo já difundidos por todo Estado de Mato Grosso do Sul, não só os desenhos e pinturas, como também os nomes Kadiwéu e Guaicuru (GRUBITS, DARRAULT-HARRIS, 2003, p. 196). Um novo aspecto da relação dos Kadiwéu com a terra e o poder é levantado por Silva (2007, p. 7), citando o trabalho de Siqueira Jr (1993) que relata a ocorrência de divisão de terras no interior da Reserva em fazendas, pelos membros do grupo: A forma de apropriação das fazendas arrendadas pelos Kadiwéu, espelha aspectos da antiga divisão territorial entre os “cacicatos”, tendo em vista que o controle que predomina atualmente sobre estas terras arrendadas pertence justamente às famílias de líderes e chefias da área, e que também descendem do antigo estrato dos Otagodepodi2 (SIQUEIRA JR., 1993, p. 195). Notamos aqui, a questão de preservação ética e a luta pela terra como princípios centrais dos Kadiwéu; mesmo que não de forma armada, a luta interna e jurídica continua. 1.3.5 Situação atual da língua De acordo com Glyn e Cynthia Griffiths (1976), o número de falantes da língua Kadiwéu em 1973, no sul da serra da Bodoquena, era de 500 pessoas, das quais 70 % eram bilíngues. Mais recentemente, Souza (2009) aponta um número de cerca de 1000 falantes da língua kadiwéu. E chama a atenção para a crescente influência do português na língua, principalmente entre as crianças, que tomam o português como única língua, sobretudo entre aquelas crianças oriundas de casamentos interculturais, o que coloca a língua kadiwéu em grande risco de desaparecimento. 2 Otagodepodi: “senhores”. Palavra que designa senhor ou patrão (SOCIEDADE INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA, 2002) em nota de Silva (2007, p. 8). 38 1.4 Karitiana Da sua efêmera experiência de civilização, os indígenas apenas conservaram o vestiário brasileiro, o machado, a faca e a agulha de costura. Quanto ao resto, foi um fracasso total. Tinham-lhes construído casas, viviam fora delas. Tinham-nos obrigado a fixarem-se em aldeias, continuavam, no entanto a serem nômades. Tinham partido as camas para acender fogueira e deitavam-se à mesma no chão. Os rebanhos de vacas, enviados pelo governo, vagueavam a sorte, pois os indígenas repeliam enojados a sua carne e o seu leite ( LÉVY-STRAUSS, 1955, p.195). 1.4.1 A Língua Pertencendo ao Tronco linguístico Tupi, a língua Karitiana é a única sobrevivente da família Arikém, composta por duas outras línguas, Arikém e Kabishiana, que desapareceram como grupo na primeira metade do século XX (Rodrigues, 1986). Os Karitiana atuais reconhecem-se como a fusão de dois grupos minimamente distintos, os Karitiana e os Juari, falantes de um dialeto muito próximo ao Karitiana e que, por estarem em um grupo menor, uniram-se a eles (VELDEN, 2010, p.56). Presentemente, encontramos os indígenas Karitiana vivendo em três aldeias, Kyõwã, Myniwin e Byyjyty ot’soop’waky, e nos municípios de Porto Velho e Cacoal, no estado de Rondônia. A maior concentração de pessoas está na aldeia central Kyõwã, localizada nas coordenadas: S 09° 17' 44,5" e W 064° 00' 11,7", nas Terras Indígenas Karitiana (VELDEN, 2010, p.56)(CAO;INF;MPE-RO, 2005, p.3 )3. Em relatório do Ministério Público do Estado de Rondônia, MPE-RO, do Centro de apoio operacional da infância e juventude, CAO e da Defesa dos usuários dos serviços de educação, INF (2005, p.3), os Karitiana são descritos como um grupo do estado de Rondônia ainda pouco estudado. E que, nos últimos anos, reivindicam a ampliação de sua Terra Indígena e o investimento na educação escolar, dando ênfase ao ensino da língua Karitiana e à valorização dos costumes e histórias que os particularizam como povo (CAO; INF; MPE-RO, 2005, p.3): A intenção do grupo Karitiana é sem dúvida recuperar ao menos parte de seu território tradicional, com a ampliação da Terra Indígena pois existe no seio do grupo o senso comum da importância histórica e simbólica dessa necessidade. Os membros do grupo são unânimes em destacar o esgotamento das reservas de caça e pesca no interior da área. A ampliação do território garantirá aos Karitiana uma reserva inestimável de recursos, necessária ao bem-estar do grupo (CAO;INF;MPE- RO, 2005, p.8). 3 O Documento, apesar de completo, não traz o ano determinado de sua criação. Inferimos que, de acordo com a página 7 do presente relatório, o ano de sua execução deva ser 2005 e adotaremos a data. O documento poderá ser acessado através das referências finais. 39 1.4.2 A História Os dados históricos apontam os rios Jamari, Candeias e Jaci-Paraná e seus afluentes, na região do alto do rio Madeira, como o território de ocupação tradicional dos Karitiana. Os primeiros relatos foram feitos por Rondon, em 1907 e, segundo o autor, os indígenas já estavam trabalhando para caucheiros bolivianos, que ocupavam a região desde meados de 1860 (RONDON, 1907, p. 329). Em 1909 é atribuído aos Karitiana um ataque à expedição exploratória da Comissão Rondon no rio Jaci-Paraná, que pretendia mapear a região (PINHEIRO, 1910, p. 9). De acordo com Velden, que nos descreve um cenário de limitação territorial imposta aos Karitiana, desde os caucheiros bolivianos até a construção da rodovia BR-364: Os Karitiana foram confinados entre os vales dos rios Jaci-Paraná (a oeste) e Candeias (a leste) por força de duas frentes de penetração. Primeiro a dos caucheiros bolivianos, que penetram na região a partir da segunda metade do século XIX (MEIRELES, 1984; MOSER, 1993). Depois, aquela aberta com a construção da linha telegráfica do Mato Grosso ao Amazonas pela Comissão Rondon, que segue, grosso modo, o traçado do rio Jamari até Santo Antônio do Rio Madeira e Porto Velho (às margens do rio Madeira) e que abrirá caminho para a futura rodovia BR-364 (VELDEN, 2010, p.57). Em 1957, através de três missionários salesianos que visitaram a Maloca de Limoeiro, às margens do rio Candeias, foram divulgados os primeiros dados etnográficos do grupo (HUGO, 1959, p. 259-261). O contato com o SPI, Serviço de Proteção ao Índio, ocorreu por volta de 1965 e 1967 na região do alto rio das Garças (MONTEIRO, 1984, p. 42- 50) e registrou uma população de 45 pessoas. A homologação das Terras Indígenas Karitiana ocorreu em 1986, com 89.682,1380 hectares e foi realizada pelos técnicos do órgão indigenista SPI. Entretanto os Karitiana criticam a demarcação, alegando que o território tradicional Karitiana seriam as terras do vale do rio Candeias, que estão externas ao perímetro demarcado. 1.4.3 População Em agosto de 2003, a população Karitiana na aldeia central era estimada em cerca de 320 falantes. O relatório faz menção ao trabalho de Velden (2003) que, no mesmo ano, registra a presença de 270 indígenas, dos quais cerca de 230 residiam na aldeia Karitiana e 40 outros 40 indígenas estavam distribuídas nas cidades de Porto Velho e Cacoal (CAO; INF; MPE-RO, 2005, p.7). Em 2009, Velden relata que o número de Karitiana corresponde a aproximadamente 350 indígenas, distribuídos nas três aldeias já citadas e nos municípios de Porto Velho e Cacoal, RO (VELDEN, 2010, p.56). Para o CAO, as estatísticas dos anos de 1994 a 2005 apontam um crescimento populacional de sessenta pontos percentuais (60%), o que elimina o fantasma da extinção (CAO; INF; MPE-RO, 2005, p.8). 1.4.4 Crença e mito Karitiana Os Karitiana acreditam que o universo é dividido em várias camadas: duas delas são subterrâneas e formadas de água; na superfície do mundo, habitado pelos humanos e demais viventes, está a camada ejepi; e ainda há as camadas celestes, em número de três. Para eles, a pessoa possui quatro espíritos (ou almas), que se espalham em direções diferentes no momento da morte, seguindo destinos distintos (VELDEN, 2010, p.59). Há uma crença segundo a qual diversas enfermidades procedem de eventos etéreos: espíritos malignos, que habitam redemoinhos de ventos ou que “estão no ar” (no primeiro céu de sua cosmografia - myhint pampi) provocam doenças ao se “encostarem” nas pessoas. Os odores nauseabundos, cheiro de sangue (ge opira) e podridão também são associados ao espírito dos mortos (VELDEN, 2010, p. 58). A fumaça também é sinal de agouro, principalmente aquela produzida por artefatos introduzidos pós-contato, vindas de fósforos, cigarros, motores de veículos, motosserras, geradores, como também as provocadas por atividades urbanas, em indústrias e na mineração (garimpo). Muitas doenças ocasionadas pelo contato são atribuídas à fumaça em grande quantidade provocada pelos “brancos”, inclusive de caráter epidêmico. Para eles a “doença tem veneno e está no ar” (VELDEN, 2010, p.58). O autor evoca o relato Karitiana sobre a abertura da estrada ligando a cidade de Porto Velho à aldeia Karitiana Kyõwã, como facilitadora para que a fumaça produzida na cidade, que viaja ao sabor das correntes de ar, desembocasse na aldeia trazendo consigo o não-indígena e também os seus vapores e odores venenosos, causando a degeneração dos corpos indígenas que se sentem “mais baixos, fracos, alquebrados e completamente à mercê das ameaças representadas pelos espíritos das doenças” e, no passado (no tempo antigamente), seus corpos eram altos, fortes, duros e incansáveis (pois estavam protegidos 41 pelo isolamento criado pela floresta); destruída a barreira formada pela mata, os efeitos da fumaça e dos instrumentos dos brancos (o mesmo ocorre para os novos alimentos introduzidos, como o sal, o açúcar, as bebidas alcoólicas e a carne de animais domesticados) trouxeram odores e enfermidade, a kida oti sara, chamada por eles de doença brava ou doença de branco (VELDEN, 2010, p. 58). A seguir, discorreremos sobre a influencia evangelizadora e a luta pela reestruturação social do tempo antigo na comunidade Karitiana. 1.4.5 A Evangelização O início da influência evangelizadora sofrida pelos Karitiana coincide com a chegada do casal de missionários linguístas David e Rachel Landin, ligados ao Summer Institute of Linguistics (SIL) e à Igreja Batista da Filadélfia, na aldeia Central Karitiana, que ocorreu no limiar da década de 70. O casal partiu em 1978 e, na década seguinte, foram fundadas as primeiras igrejas conduzidas por indígenas e seguidoras dos textos do Novo Testamento traduzidos por Landin (VELDEN, 2010, p. 60). O autor registra que na presente década há três igrejas em Kyõwã, sendo uma Assembléia de Deus e duas batistas, todas supervisionadas por pastores indígenas, com cultos celebrados na língua indígena. A nova religião congrega mais da metade da população local e muda o foco da liderança tribal. Com ela, os pastores passam a assumir papel de destaque na comunidade. Isso foi então repelido pelo antigo líder espiritual, o Pajé Cizino e um grupo ligado a ele, formado por seus irmãos e genros. Eles colocaram-se em oposição a tal movimento religioso e continuaram com as práticas culturais tradicionais, cujo ponto sensível é a prática xamânica (VELDEN, 2010, p. 60). Tal grupo é chamado entre os Karitiana de “povo do pajé”, em oposição ao “povo do pastor” ou “crentes” e, apesar de manifestarem divergências mínimas na questão mítica, as diferenças são gritantes na conduta pessoal, sobretudo naquelas relativas às festas e à música, ao consumo de álcool e tabaco, ao modo de trajar e ao comportamento quando na cidade ou na presença dos brancos (VELDEN, 2010, p. 60). Por sua vez, os pastores passaram a manifestar forte oposição às práticas xamânicas, causando confronto direto com o Pajé Cizino e seus seguidores. 42 Esta situação e o desejo de reaver as terras às margens do médio rio Candeias, onde nascera boa parte do grupo indígena e onde estão enterrados os seus antepassados, levou o Pajé Cizino a empreender a retomada do leste no ano de 2004: Cizino e um grupo de seguidores rumaram para o nascente pelo meio da mata – segundo os Karitiana, sempre houve uma trilha ligando a aldeia de Kyõwã às margens do Candeias –, atravessaram a Serra Moraes – saindo, portanto, dos limites da terra indígena – e estabeleceram-se próximo à cachoeira de São Sebastião ( já em terras do município de Candeias do Jamari-RO). Ali, cruzando para a margem direita do rio, o grupo desmatou uma área e levantou uma imponente maloca – ambi atana (“casa redonda”) –, no estilo das casas tradicionais que há muito tinham deixado de serem construídas (VELDEN, 2010, p. 60). Com a retomada do território fora da demarcação oficial, a FUNAI viu-se obrigada a atender à reivindicação e, através da Portaria 361, de sete de maio de 20034, um grupo de trabalho foi encarregado de realizar os estudos para a revisão da área. A inclusão definitiva da área ocorreu com a ampliação de 30 mil hectares às terras Karitiana. Os fazendeiros locais queimaram a maloca, espalhando medo entre os Karitiana. Mas Cizino comandou a reconstrução da maloca que, sob a proteção da FUNAI regional, permanece lá até os dias de hoje e vem conquistando paulatinamente uma melhor estrutura. Infelizmente, até o final de 2009, os limites da terra indígena ainda não haviam sido oficialmente revistos e o grupo de trabalho da FUNAI estava desfeito sem concretizar seus objetivos. Ilustraremos com a descrição de Velden para o acontecido e o entusiasmo através do rádio: Entretanto, melhor seria falar em entusiasmo: durante os contatos via rádio entre as duas aldeias, sempre na língua nativa e correndo por fora dos horários de transmissão que conectavam as estações nas aldeias com a central em Porto Velho, os moradores da aldeia nova contavam com evidente contentamento – e os residentes em Kyõwã estavam ansiosos por saber sobre a abundância na qual viviam ali: as terras eram férteis e estavam respondendo muito bem às primeiras atividades 4 O autor data a invasão de Cizino de 2004 e a Portaria da FUNAI em 2003, o que nos pareceu incoerência. Todavia a mesma data foi encontrada no sítio da FUNAI. Descreveremos a seguir o trecho relativo ao episódio: Em 2003, a Funai – por meio da Portaria 361, de 7 de maio – criou um grupo de trabalho encarregado de realizar os estudos para a revisão dos limites da terra e sua ampliação em 30 mil hectares (85% no limite leste e 15% no nordeste), o que levaria à inclusão definitiva da zona do rio Candeias recém-ocupada pelo grupo de Cizino (FUNAI, 2003). 43 agrícolas; havia muitas frutas recolhidas nas matas; a pesca era farta e os peixes do Candeias, enormes; a caça muito abundante, rápidas incursões pela mata produziam matanças fartas de pacas, porcos-do-mato e principalmente macacos, a carne mais apreciada pelos Karitiana. Tudo isso complementava a beleza do local, além da clara satisfação em voltar a habitar um território que haviam perdido há décadas e pelo qual ansiavam pelo mesmo tempo: o tempo todo, os indivíduos mais velhos em Kyõwã relembravam a vida por lá quando eram crianças, os locais em que viveram, nomes de velhas aldeias, locais de morte e enterro de parentes (VELDEN, 2010, p. 61). 1.4.5 O retorno a antigas práticas: o mito da origem Karitiana Cizino deu à nova aldeia o nome de Byyjyty ot’soop’waky, literalmente “os cabelos de Byyjyty”. Na língua Karitiana Byyjyty é uma divindade do tempo antigamente, que faz parte do mito de origem do povo Karitiana. No mito, Byyjyty, neto de Botyj, o grande criador do universo, corta seus cabelos e deposita tufos dele em pequenos cestinhos de palha, que são depois espalhados pelo território dos vales dos rios Candeias, Jamari e Branco; desses cabelos nasceram os Karitiana. Segundo Velden, na onomástica karitiana, os nomes são transmitidos entre gerações alternas, e um avô costuma dizer que seu neto é seu “eu novo” ou “eu renovado”. Os Karitiana associam explicitamente Botyj e Byyjyty (VELDEN, 2010, p. 61). Na nova aldeia, Cizino decidiu resgatar a forma de vida e as práticas sociais abandonadas, fazendo com que os Karitiana voltassem a viver “como no tempo antigamente”. Ele dizia que “coisa de branco não vai ter na aldeia nova”, referindo-se à utilização de armas de fogo, roupas, eletrodomésticos, veículos, e mesmo cachorros; voltariam a andar nus e a falar apenas a língua karitiana e a religião seria apenas a tradicional. Ao que Velden se contrapõe da seguinte forma: O desejo reformista – ou refundacionista – de Cizino e dos seus não durou muito. Rapidamente o grupo percebeu que o longo tempo de convívio com os brancos e suas coisas já tornara estas últimas indispensáveis: como voltar a caçar com arcos e flechas se poucos homens ainda sabiam manejá-los? Como andar nus se a aldeia era a todo o momento visitada por homens brancos? Como desprezar os cachorros, auxiliares valiosíssimos na perseguição das presas? Como viver sem dinheiro em um mundo em que tudo gira em torno dele? O caminho em direção ao tornar-se branco já fora longamente trilhado (VELDEN, 2010, p. 62). Outro acontecimento presentificado pelo autor é que parte da população Karitiana, que se identifica como descendente dos Juari, passou a manifestar descontentamento com as condições sociais e política em Kyõwã e, surge então a aldeia Juari, por iniciativa de Antenor, uma importante e conhecida liderança karitiana. Então, em julho de 2008, Antenor com cerca 44 de cem pessoas rumam para o Igarapé Preto, local onde se instalara uma fazenda de gado desde 1996, e reocupam o território tradicional de uma antiga aldeia, chamada Myniwin (VELDEN, 2010, p. 62). Subentendendo uma nova divisão entre os Karitiana. Entretanto, Velden (2010, p.62) afirma que apenas umas 20 pessoas, de quatro grupos domésticos trabalham efetivamente na consolidação da aldeia, embora ainda passem a maior parte do seu tempo em Porto Velho, uma vez que as estruturas em Myniwin ainda são precárias. E afirma que os Karitiana continuam atuando como um grupo coeso e, tanto no cotidiano dos indígenas, quanto no cenário local mais amplo, o nome Juari parece não surtir grande efeito. A seguir, apresentaremos trechos do Relatório de Vistoria realizado na aldeia Indígena Central dos Karitiana a fim de considerarmos alguns aspectos atuais culturais e sociais da comunidade indígena Karitiana. 1.4.6 Organização e economia As tarefas da aldeia central são divididas segundo orientação da liderança indígena. Enquanto alguns membros da tribo saem para caçar, armados de velhas espingardas de caça calibre 28, outros se deslocam da aldeia para os roçados montados em suas bicicletas (CAO; INF; MPE- RO, 2005, p. 15). Ao adentrar a aldeia, os relatores fazem a seguinte observação do lugar: A aldeia: Localizada em terreno plano e recortada por um igarapé denominado Sapoti, o núcleo da aldeia indígena Karitiana encontra-se espalhado por área de aproximados cinco hectares. A aldeia é circundada por espaços abertos com resquícios de capoeira e de pequenos nacos de terras recentemente tombadas para o plantio de culturas de subsistência. Na praça principal sob diversas árvores frutíferas tais como jaqueiras, ingás, goiabeiras, diversas habitações disputam com tais árvores esse espaço físico, sem, contudo obedecerem a critérios geométricos de divisão espacial tão comuns no planejamento de nossas cidades (CAO; INF; MPE- RO, 2005, p. 6). Na relação famili