UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FABÍOLA CRISTINA ALVES INDIVISIBILIDADES ENTRE NATUREZA, HOMEM E EXPRESSÃO ARTÍSTICA: A REFLEXÃO ESTÉTICA DE MERLEAU-PONTY SÃO PAULO/SP 2013 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES MESTRADO EM ARTES INDIVISIBILIDADES ENTRE NATUREZA, HOMEM E EXPRESSÃO ARTÍSTICA: A REFLEXÃO ESTÉTICA DE MERLEAU-PONTY Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Artes, na área de Artes Visuais. Orientador: Doutor José Leonardo do Nascimento. SÃO PAULO/SP 2013 ALVES, Fabíola Cristina. Indivisibilidades entre natureza, homem e expressão artística: a reflexão estética em Merleau-Ponty. Dissertação de Mestrado (Artes Visuais). Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. São Paulo, 2013. Dissertação defendida em: 26/ 09/ 2013 Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento (Instituto de Artes/ UNESP/ Orientador) Prof. Dr. Cauê Alves (Departamento de Artes/ PUC SP/ Titular) Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo (Instituto de Artes/ UNESP/ Titular) Prof. Dr. Omar Khouri (Instituto de Artes/ UNESP/ 1º Suplente) Prof. Dr. Francisco Cabral Alambert (Departamento de História/ USP/ 2º Suplente) Para meus filhos Agradecimentos Agradeço a minha família e aos amigos que apoiaram meu esforço ao longo do mestrado. Agradeço aos familiares pelo carinho e auxilio financeiro que possibilitou a conclusão deste estudo. Agradeço ao meu orientador professor Doutor José Leonardo do Nascimento pela confiança e pela oportunidade concedida de poder aprender com ele. Ao professor Doutor Luiz Damon Santos Moutinho pelo incentivo e pelos ensinamentos na área da filosofia. Aos professores: Doutor Omar Khouri e Doutor Sérgio Mauro Romagnolo pela participação na minha banca de qualificação. Agradeço aos professores que aceitaram participar da banca de exame de defesa desta dissertação, em especial, o diálogo proposto pelo professor Doutor Cauê Alves. Aos professores, amigos e colegas do Instituto de Artes da Unesp pelas boas conversas que ampliaram meus conhecimentos sobre arte e cultura. Aos amigos do Johrei Center Liberdade pela acolhida na cidade de São Paulo. Ao meu marido Guilherme por me ensinar a acreditar em mim. Agradeço a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo por financiar esta pesquisa de mestrado. E agradeço a montanha de Sainte-Victoire por ainda esperar o meu olhar. Agradeço ao invisível. Resumo Esta dissertação investiga a noção de arte moderna presente na reflexão estética do filósofo Maurice Merleau-Ponty, partindo da hipótese de que tal noção está inclusa na meditação sobre as indivisibilidades entre a relação homem, natureza e expressão artística. Apresenta a concepção de arte e arte moderna concomitantemente à trajetória e ao discurso filosófico de Merleau-Ponty. Discorre sobre a tese do filósofo acerca do retorno ao mundo percebido, as indivisibilidades, o corpo vidente e visível, o sensível, a carne do mundo, a pintura, o Ser bruto, a Natureza, logos e a expressão. A partir desses temas, foram desenvolvidas leituras sobre os seguintes textos para dimensionar essa noção de arte moderna: “A dúvida de Cézanne”, “A expressão e o desenho infantil”, “A linguagem indireta”, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” e “O olho e o espírito”. Para compreender o pensamento de Merleau- Ponty aproximamos suas ideias a várias teorias da história e da filosofia da arte, a partir dos temas: o espírito moderno, as correspondências, a representação e a expressão. Por fim, destaca os principais valores e ideias que compõem a noção de arte moderna em Merleau- Ponty. Palavras-chave: Merleau-Ponty; arte moderna; pintura; homem e mundo; expressão. Abstract This work investigates the notion of modern art in this aesthetic reflection of philosopher Maurice Merleau-Ponty, on the hypothesis that such a notion is included in the meditation about the indivisibilities on the relationship between man, nature and artistic expression. It presents the concept of art and modern art concomitantly to the trajectory and the philosophical discourse of Merleau-Ponty. This work also discuss the thesis of the philosopher about returning to the perceived world, the indivisibilities, the visible and invisible body, the sensitive, flesh of world, the painting, the Being, the Nature, the logos and the expression. On the themes, the following texts were studied to investigate the author’s notion of modern art: “Cézanne’s Doubt”, “Expression and the child’s drawing”, “The indirect language”, “The indirect language and the voices of silence” “Eye and mind”. To comprehend Merleu-Ponty’s ideas, his thought was related with various History and Art Philosophy theories, under the following themes: the modern mind, correspondence, representation and expression. At last, this work emphasizes the core values and ideas that make up the notion of modern art of Merleau-Ponty. Keywords: Merleau-Ponty, modern art, paint, man and the world; expression. Lista de Figuras FIGURA 1. Pablo Picasso. Les demoiselles d’Avignon, 1907, p.7. FIGURA 2. Nicolau Poussin, Et in Arcadia ego, Circa, 1655, p 8. FIGURA 3. Paul Cézanne. A montanha Sainte-Victoire, vista dos Lauves, 1902-1906, p.13. FIGURA 4. Paul Cézanne, Montanha Sainte-Victoire, 1902-1904, p.37. FIGURA 5. Montanha Sainte-Victoire, p. 38. FIGURA 6. Auguste Renoir, Lavandeira, óleo sobre tela, 1889, p. 39. FIGURA 7. Paul Cézanne. Natureza-morta com maças e pêssegos, c. 1905, p. 48. FIGURA 8. Paul Cézanne. Retrato do artista, 1875-1877, p.48. FIGURA 9. Paul Cézanne, Banhistas, 1900-1906, p. 51. FIGURA 10. Paul Cézanne, O almoço na relva, 1869-1870, p. 53. FIGURA 11. Edouard Manet. O almoço na relva, 1863, p. 53. FIGURA 12. Desenho infantil, p. 58. FIGURA 13. Registro fotográfico de Henri Matisse em seu ateliê do Hotel Regina, Nice, 1950, p. 59. FIGURA 14. Paul Klee, Equilibrista, 1923, litografia, p. 59. FIGURA 15. Edouart Manet, Mulher com gato, c. 1880, p. 63. Lista de Figuras FIGURA 16. Paul Klee. Vegetal analítico (detalhe), 1932, p. 64. FIGURA 17. Leonardo da Vinci, A última ceia, p. 68. FIGURA 18. Paul Klee, Portão de jardim M, 1932, p. 69. FIGURA 19. Rembrandt van Rijn. Autoretrato, Circa, 1658, p. 75. FIGURA 20. Vincent van Gogh, Autoretrato, 1889, p. 76. FIGURA 21. Joan Miró, Interior holandês I, 1928, p. 77. FIGURA 22. Hendrick Sorgh. The Lute Player, 1661, p.78. FIGURA 23. Paul Cézanne. Os jogadores de cartas, 1890-1892, p. 80. FIGURA 24. Henri Matisse, A leitora desatenta, 1919, p.81. FIGURA 25. Henry Moore, Figura reclinada, 1938, p. 81. FIGURA 26. Marcel Duchamp, Noiva, 1912, p. 82. FIGURA 27. Paul Cézanne, No parque do Château Noir, c. 1900, p. 90. FIGURA 28. Stéphane Mallarmé, Le Maìtre (detalhe), p. 91. Sumário Abreviaturas, p. 1. Introdução, p. 2. Capítulo1. Merleau-Ponty e arte: uma leitura possível, p. 6. 1.1. Merleau-Ponty: filósofo, fenomenólogo e apreciador da arte, p. 6. 1.2. O retorno ao mundo percebido como caminho às indivisibilidades, p. 22. 1.3. A pintura, a natureza e o homem segundo o ponto de vista de Merleau-Ponty, p. 34. Capítulo 2. A expressão artística: leituras sobre o pensamento estético de Merleau-Ponty, p.46. 2.1. Merleau-Ponty leitor de Cézanne: a primeira obra estética, “A dúvida de Cézanne”, p. 46. 2.2. A relação entre a arte moderna e a expressão da criança: “Expressão no desenho infantil”, p. 58. 2.3. A pintura e a linguagem: comparações de modelos expressivos nos ensaios “A linguagem indireta” e “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, p.66. 2.4. A última obra estética finalizada: O olho e o espírito, p. 74. Capítulo 3. A reflexão estética de Merleau-Ponty em debate, p. 85. 3.1. O espírito moderno na arte, p. 85. 3.2. Representação e arte moderna, p. 93. 3.3. Expressão e arte moderna, p.100. Considerações Finais, p.107. Obras consultadas de Merleau-Ponty, p. 111. Referências bibliográficas, p. 112. 1 Abreviaturas As obras de Maurice Merleau-Ponty citadas ao longo desta dissertação serão abreviadas conforme a convenção dos estudos merleau-pontyanos. No corpo do texto transcrevemos a versão traduzida pela edição brasileira, com exceção das obras consultadas apenas na edição francesa. Os textos considerados essenciais para o estudo da reflexão estética de Merleau-Ponty foram consultados tanto na edição brasileira quanto na francesa e estão identificados, na lista a seguir, por um asterisco. A paginação indicada no corpo do texto e nas notas de rodapé apresenta primeiramente a edição brasileira, seguida da edição francesa. A referência completa das obras consultadas é indicada na bibliografia desta dissertação. As abreviaturas usadas seguem a forma apresentada a seguir. N – La nature (A natureza) OE – L’oeil et l’esprit (O olho e o espírito)* PhP – Phénoménologie de la perception (Fenomenologia da percepção)* PM – La prose du monde (A prosa do mundo)* PrP – Le primat de la perception (O primado da percepção)* S – Signes (Signos) SC – La structure du comportement (A estrutura do comportamento)* VI – Le visible et l’invisible (O visível e o invisível) DC – Le doute de Cézanne (A dúvida de Cézanne)* C – Causeries: 1948 (Conversas: 1948) LIVS – Le langage indirect et Le voix du silence (A linguagem indireta e as vozes do silencio) Sor – Merleau-Ponty à la Sorbonne (Merleau-Ponty na Sorbonne) NMS – La Nature ou le monde du silence ( A Natureza ou o mundo do silencio) 2 Introdução Esta dissertação investiga como Merleau-Ponty constrói uma noção de arte moderna, partindo da hipótese que a resposta está internalizada nos problemas da expressão artística. O tema da expressão é recorrente no pensamento desse filósofo, ligando-se ao campo da estética quando propõe a expressão como meio, processo e resultado das experiências proporcionadas no fazer e no apreciar da arte. A nosso ver, os problemas da expressão artística levam esse filósofo ao campo teórico da discussão artística, buscando compreendê-la como advento da arte moderna. Partimos da suposição que a expressão artística é para Merleau-Ponty resplandecida nas indivisibilidades que incorporam o homem (o pintor) e a natureza (o mundo percebido e vivido). As obras de arte modernas são, em sua concepção, necessariamente fruto da aproximação entre homem e natureza, ou melhor, o retorno ao mundo vivido pela reconsideração da percepção como forma de conhecimento. Nossa pesquisa focaliza o estudo da estética e da pintura; entretanto, nossa intenção tem como apoio o contexto filosófico da produção de Merleau-Ponty, considerando sua obra e vida, e incluindo temas que circundam o seu discurso sobre a pintura e a pintura moderna – a saber: percepção, experiência sensível, o corpo, o Ser, o visível, o invisível, a linguagem, a história da pintura, a representação, o estilo, o museu, a liberdade, a intersubjetividade e as artes. Meditar sobre tais temas ao longo desta dissertação tornou-se inevitável, pois a reflexão estética de Merleau-Ponty é construída concomitantemente à sua filosofia. Além disso, é essencial conhecer os conceitos filosóficos de Merleau-Ponty, pois esses nos encaminham para a compreensão de sua noção de arte moderna. Compreendemos como reflexão estética o interesse e as interrogações que envolvem o tema da arte presente no pensamento de Merleau-Ponty. A nosso ver, sua reflexão não se direciona a meditação sobre o tema do belo, como prevê o campo da Estética em sua origem no século XVIII, mas é uma meditação significativa sobre o mundo sensível que abrange a arte, trazendo, formulações e noções sobre o campo artístico conforme a herança da filosofia grega, pois temas como mundo primordial, percepção, imitação, ilusão, representação estão interiorizadas na compreensão dos fenômenos manifestos na experiência artística e na visão. É ainda uma reflexão que investe nas premissas das correntes teóricas do inicio do século XX, como é o caso da Fenomenologia e dos estudos da Linguagem. Para elucidar a noção de arte moderna presente na reflexão estética de Merleau- Ponty, buscamos mapear o significado ou os significados que a compõem. No decorrer desse processo, foi necessário objetivar o valor da aproximação entre homem e natureza na 3 formulação da noção de arte moderna de Merleau-Ponty; compreender os enigmas do corpo como mediador perceptível da experiência sensível; examinar a noção de expressão utilizada por Merleau-Ponty nos estudos sobre pintura e linguagem; e examinar as relações estabelecidas por Merleau-Ponty entre seus conceitos filosóficos e a arte moderna a partir da área da arte. Submetemos nossos objetivos à análise, partindo da importância dos seguintes pontos presentes no discurso estético produzido por Merleau-Ponty: a) Cézanne como artista moderno por excelência; b) a expressão artística como advento da pintura moderna versus a tradição representativa da arte; c) a ascendência da experiência sensível no fazer artístico, originária da relação homem (o pintor e seu corpo perceptível) e natureza (mundo percebido); e d) a concepção do logos estético como sistema que possibilita a correspondência do Ser-pintura (e seus espíritos) em toda pintura criada no presente, pintada no passado e que será pintada no futuro. Nossa estratégia de pesquisa apresenta três momentos diferentes. Primeiramente, reconhecemos o campo filosófico de discussão de Merleau-Ponty, buscando ampliar o lugar da arte nas indivisibilidades pelo estudo do corpo, da experiência sensível, da percepção e da relação homem e natureza. Seguimos então pela análise de nossa seleção de obras estéticas do filosofo – “A dúvida de Cézanne”, “A expressão e o desenho infantil”, “A linguagem indireta”, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” e “O olho e o espírito” – que acreditamos evidenciar seu pensamento em correspondência com a arte moderna a partir do tema da expressão artística. Finalizamos nosso estudo colocando o discurso merleau-pontyano sobre arte em confronto com teorias que nos valem como critério para melhor avaliar a noção de arte moderna elaborada por ele, retomando assim o tema da modernidade, da representação e da expressão artística. Nesse percurso, cremos levantar subsídios suficientes para desenvolver nossa consideração final respondendo nossa pergunta central: Qual é a noção de arte moderna na reflexão estética de Merleau-Ponty? O primeiro capítulo “Merleau-Ponty e a arte: uma leitura possível” é composto por três seções. Iniciamos com a seção “Merleau-Ponty: filósofo, fenomenólogo e apreciador da arte”, na qual descrevemos a produção filosófica do autor mapeando suas influências filosóficas e seu interesse sobre a arte e a arte moderna, dando destaque a seus estudos sobre o fenômeno da percepção, sua critica ao idealismo cartesiano, seu interesse pela gestalt e sua divisão sobre as artes, apresentando os conceitos do autor que serão relevantes para nosso estudo. Na seção seguinte, “O retorno ao mundo percebido como caminho às indivisibilidades”, elucidamos os estudos de Merleau-Ponty sobre a percepção (o corpo como mediador da experiência sensível), reconhecendo no discurso do filósofo o pintor como Ser encarnado no mundo em uma relação indivisa compreendida por uma meditação 4 ontológica. Na última seção do primeiro capítulo “A pintura, a natureza e o homem segundo o ponto de vista de Merleau-Ponty”, partimos da analise desenvolvida pelo filósofo sobre o processo artístico de Cézanne para compreender, através dos caminhos da percepção, a relação homem e natureza – e, para tanto, desdobramos a discussão ao estudo das noções de Ser bruto, essencial para a compreensão do ato pictórico na trama das indivisibilidades, e de Natureza, que nos trará subsídios para abranger os temas: da expressão e do logos estético. O segundo capítulo, “A expressão artística: leituras sobre o pensamento estético de Merleau-Ponty”, possui quatro seções. Iniciamos a análise sobre os textos estéticos selecionados. Na seção “Merleau-Ponty leitor de Cézanne: a primeira obra estética, A dúvida de Cézanne”, discorremos sobre a interpretação que o autor elaborou a respeito do pintor francês, sua expressão, sua individualidade, seu apreço pela natureza e humanidade, no de intuito é demonstrar o sentido que a obra de Cézanne adquiriu no pensamento merleau-pontyano. Em seguida, apresentamos a seção “A relação entre a arte moderna e a expressão da criança: A expressão no desenho infantil”, na qual evidenciamos os argumentos de Merleau-Ponty que adjetivam a arte moderna como uma arte que considera os modos expressivos da percepção primordial muito mais próximos da natureza, como é o caso do desenho infantil. Em contraponto, observamos que para o autor a arte não moderna ou anterior estaria mais próxima ao desenho do adulto, e aqui nos aproximamos à discussão sobre os limites entre natureza e cultura, que envolvem a noção de expressão artística. Na terceira seção do segundo capítulo, “A pintura e a linguagem: comparações de modelos expressivos nos ensaios A Linguagem indireta e A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, consideramos a discussão sobre natureza e cultura ao percorrer o estudo sobre a expressão artística, tendo em vista o tema do estilo como resultado de um sistema e a comparação entre pintura e linguagem. E na seção “A última obra estética finalizada: O olho e o espírito”, retomamos as questões anteriores, pois é neste último texto de Merleau-Ponty que ele consegue condensar sua reflexão sobre arte e a arte moderna. Em O olho e o espírito, o filósofo parte de sua crítica ao cartesianismo e dos enigmas do ser vidente e visível, tendo em vista estas questões, procuramos compreender como o espírito encarna- se, ou melhor, como a arte é um fenômeno que está sempre no mundo carnal. O terceiro capítulo, “A reflexão estética de Merleau-Ponty em debate”, apresenta na seção “O espírito moderno na arte” um dialogo entre o pensamento de Merleau-Ponty e Baudelaire, a fim de ampliar nosso entendimento sobre o tema do espírito moderno que se manifesta na arte, buscamos considerar como propriedades deste espírito a indivisibilidade entre sujeito e objeto, a retomada da percepção e a teoria das correspondências. Na segunda seção “Representação e arte moderna”, colocamos em confronto o tema da 5 representação trazido por Merleau-Ponty com as teorias da representação na arte e pensamos este tema pelas influencias que o campo da história da arte estabeleceu com a reflexão do filósofo, assim averiguamos como a noção de arte moderna do filósofo se destoa das teorias da representação. Na última seção “Expressão e arte moderna”, pensamos as formulações que envolvem o tema da expressão artística na reflexão de Merleau-Ponty relacionando-as com as teorias expressionistas da arte, verificando as distancias e proximidades para melhor compreender a noção de arte moderna neste contexto. Nas considerações finais retomamos aos indícios que este estudo nos propiciou para encontrar a noção de arte moderna presente na reflexão estética de Merleau-Ponty. Procuramos pensar os valores, os conceitos, a temporalidade e os adjetivos que compõem a compreensão do filósofo sobre arte moderna em concordância com sua filosofia e seu espaço de contribuição para o entendimento da arte moderna no campo de pesquisa na área da arte, assim elencamos os pontos principais da noção de arte moderna de Merleau- Ponty, destacando as ideias gerais para a produção artística e realização da arte. 6 Capítulo 1 Merleau-Ponty e a arte: uma leitura possível 1.1. Merleau-Ponty: filósofo, fenomenólogo e apreciador da arte O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty1 desenvolveu ao longo de seus estudos certo interesse pela arte que o acompanhou durante toda sua trajetória teórica. Foi um grande apreciador das obras do pintor francês Paul Cézanne, além de admirador do cinema. Seu interesse e apreciação pela arte ganharam grandes dimensões, chegando a ser alvo de suas especulações filosóficas nas obras que são consideradas reflexões estéticas acerca da pintura: A dúvida de Cézanne e O olho e o espírito. Outros textos do filósofo francês também tratam das artes plásticas, da linguagem e do cinema, tais como “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, disponível em Signos; a coletânea de textos inacabados que compõem A prosa do mundo; Conversas: 1948, que foi transmitido em cadeia nacional no programa de rádio “Hora da Cultura Francesa”, da Rádio Nacional Francesa; e o texto “O cinema e a nova psicologia”. Sua aproximação e cumplicidade com as artes renderam muitas produções e, evidentemente, devem ser compreendidas como parte integradora de seu pensamento. Mas tal interesse, principalmente no começo de sua carreira, também lhe causou certo preconceito dentro da comunidade acadêmica francesa, como no caso da fala do filósofo e professor Émile Bréhier em ocasião da discussão que ocorreu após a exposição de Merleau-Ponty sobre o Primado da percepção e suas consequências filosóficas na Sociedade Francesa de Filosofia, em 1946. Na ocasião, Bréhier acusou Merleau-Ponty de escrever com propósito semelhante ao de um romancista e não de um filósofo. Bréhier disse: “vejo suas ideias se expressando pelo romance, pela pintura, mais que pela filosofia. Sua filosofia acaba no romance” (PrP, p. 72; p. 78). Logo após essa colocação, o professor 1 O francês Maurice Merleau-Ponty nasceu em 14 de março de 1908 em Rochefort e faleceu em 3 de maio de 1961, vítima de um ataque cardíaco. Formou-se em 1931 no curso de filosofia pela École Normale Supérieure em Paris. Entre os anos 1940 e 1950, lecionou primeiramente na Universidade de Lyon e em seguida na Sorbonne, onde assumiu a cadeira que posteriormente pertencera a Piaget. A cadeira efetiva no Collège de France foi conquistada em 1952, onde permaneceu até sua morte prematura. É mais conhecido como um dos grandes nomes do pensamento fenomenológico na França, mas também se firmou como estruturalista e existencialista. Conviveu no circulo intelectual francês da época, sendo próximo de pensadores como Jean-Paul Sartre, Claude Lévi-Strauss, Simone de Beauvoir e Gilles Deleuze. 7 Parodi, também presente, faz uma pequena intervenção e Merleau-Ponty não chega a argumentar a fala de Brèhier, retomando sua exposição. Embora Merleau-Ponty vivenciara outras situações como a desta descrição, é observável que ele nunca tenha demonstrado insatisfação com seus exemplos baseados nas manifestações artísticas, tampouco renunciado a seu interesse pela arte, estimando certa proximidade com as obras e percursos dos artistas visuais em geral. Foi permanente sua insistência pela vida e obra de Paul Cézanne, pontuando também as produções de outros pintores modernos, como Henri Matisse, Pablo Picasso, Georges Braque, Vincent Van Gogh, Paul Klee, Marcel Duchamp e Auguste Renoir, dentre outros – algo que nunca acreditou ser tarefa simples, pois, para Merleau-Ponty, “a arte e o pensamento modernos são difíceis: é mais difícil compreender e apreciar Picasso do que Poussin” (C, p. 9). FIGURA 1. Pablo Picasso. Les demoiselles d’Avignon, 1907, óleo sobre tela, 243,9 x 233,7 cm. The Museum of Modern Art, Nova York2. 2 Pablo Picasso, Les demoiselles d’Avignon, reprodução fotográfica em Charles Harrison, Modernismo. (São Paulo: Cosac Naify, 2001, p. 47). Pi L d i ll d’A i 1907 ól b t l 24 8 FIGURA 2. Nicolau Poussin, Et in Arcadia ego, Circa 1655, Museu do Louvre, Paris3. Em outros momentos o filósofo francês também discorreu sobre obras de artistas de outros períodos, como Leonardo da Vinci e Brunelleschi. É notável ainda que Merleau- Ponty, a partir de seu interesse pela arte em geral, também desenvolve exemplos e afirmações baseadas nos escritos de Stéphane Mallarmé e Marcel Proust, fazendo relevantes considerações sobre a linguagem e o tempo respectivamente, conforme noções explicitadas por esses escritores. Cremos que as artes e seus produtores (os artistas) são verdadeiramente parceiros de Merleau-Ponty e constituintes de seu discurso. Arte e filosofia são consideradas parceiras, recebendo seu merecido reconhecimento durante toda sua vida. Conforme as palavras de Merleau-Ponty: “A filosofia não se sublima na arte. Existe simplesmente uma relação possível entre a experiência do artista e a experiência do filósofo, a saber, que a experiência do artista é aberta, é uma ek-stase” (N, p. 75). Sobre a aproximação entre arte e filosofia defendida pelo filósofo francês, diz Chauí: “Merleau-Ponty insiste em que o artista ensina ao filósofo o que é existir como humano” (CHAUÍ, 2002, p. 165). Para ele, a arte tem muito a contribuir para a filosofia, pois o artista, por vezes, vive os enigmas que a filosofia tenta compreender. Além disso, enquanto a filosofia se interroga sobre o mundo e a existência humana, o artista, como homem, produz a partir da experiência de estar no mundo. Ressaltamos que, embora por vias diferentes, arte e filosofia entrecruzam-se ao caminharem para o mesmo propósito: a investigação da experiência humana no mundo. Tamanha proximidade entre arte e filosofia é denominada por Chauí como parentesco. Sobre tal argumento, a autora afirma que “as artes indicam 3 Nicolau Poussin. Et in Arcadia ego, repodução fotográfica em Ernest Gombrich, A história da Arte. (Rio de Janeio: Guanabara Koogan, 1993, p. 308). 9 como e por quê, sendo parentes e mestras da filosofia, são também diferentes dela, e é essa diferença que permite à filosofia falar e pensar sobre as artes” (ibidem, p. 168). Exatamente como pensara Merleau-Ponty, que há uma relação possível entre as experiências do filosofo e do artista, mas sendo a experiência do artista aberta e com possíveis ensinamentos ao filósofo, a arte essencialmente motiva o pensar, instigando assim o ato de filosofar. Partimos da evidência que a arte foi uma constante motivação da filosofia de Merleau-Ponty e que para compreender seu pensamento sobre o tema é necessário somar ao nosso estudo alguns pressupostos do discurso do filósofo: sua classificação das artes em geral; saber, acerca da crítica que ele faz às dicotomias presentes no pensamento científico e cartesiano; e ter uma visão panorâmica da trajetória e das principais influências teóricas deste filósofo francês. Inicialmente, nos limitamos a apresentar esses principais pressupostos. Sobre as artes em geral, o filósofo as distingue entre as artes mudas e as artes da linguagem. Para ele, as artes da linguagem se constituem pela relação que ocasiona a expressão imbricada no signo e no significado, dados pela palavra e pela fala, por exemplo. Nesse sentido, classificam-se como artes da linguagem a prosa e a poesia. Nas artes da linguagem, embora o prosador ou o poeta trabalhe com a língua como matéria-prima, eles o fazem rompendo as barreiras da comunicação corriqueira ou da fala comum usada nas relações práticas do convívio em sociedade. Desse modo, as artes literárias dão vida nova à língua, recuperando-a e transformando-a, fazendo o leitor vivificar significados que transcendem do mundo criado pelo escritor. Para complementar a classificação merleau-pontyana sobre as artes da linguagem, Matthews nos sugere que “a literatura não é, porém, uma descrição do ‘mundo real’, como fica óbvio sobretudo em poesia, mas igualmente verdadeiro no caso da prosa de ficção” (MATTHEWS, 2010, p. 181). O autor continua afirmando que “no poema e no romance, as palavras usadas adquirem significados e certamente seu referencial dentro do mundo criado pelos artistas” (ibidem, p. 182). Essa possibilidade de mergulhar nos significados do mundo criado pelo escritor é, em certo sentido, a dádiva da contemplação da arte. E, conforme Merleau-Ponty, nós “encontramos os meios de contemplar as obras de arte da palavra e da cultura em sua autonomia e em sua riqueza originais” (C, p. 66). A originalidade das artes da linguagem está na capacidade de criar um novo mundo de significados por meios das palavras. Embora o poeta ou o prosador trabalhe com as palavras que também servem para designar as coisas do mundo, as palavras na lógica das artes da linguagem designam mais que simples objetos, ações e coisas, pois falam do sensível. Nesse sentido, a literatura em geral para Merleau-Ponty nos faz “perceber em seu desenvolvimento temporal” (C, p. 65, grifos nossos). 10 Já as artes mudas4 são para Merleau-Ponty os meios artísticos que privilegiam as sensações e os sentidos, e não se referem necessariamente ao signo. São consideradas artes mudas a pintura, a fotografia, o desenho, a escultura e a música. Para o filósofo, as artes mudas não foram consagradas como linguagens pelos estudos específicos da época em que viveu, pois não são dadas pela estrutura de signo e significado a partir de regras culturais, como é o caso da língua – a palavra. Ele aponta, porém, que existem elementos estruturais no ver e no fazer da pintura que se assemelham à estrutura da linguagem. Assim, até certo ponto, a pintura pode ser compreendida, para o autor, como linguagem também. Sobre essa concepção merleau-pontyana diz Matthews: As artes visuais, pelo menos em sua moderna evolução, não são uma “linguagem” no sentido convencional: não expressam significados por meio de regras aceitas em geral. Mas podem expressar significado, no entanto, de uma maneira mais básica: será um novo significado, um novo modo de olhar o mundo e os objetos no mundo, originalmente peculiar ao artista, mas que ele consegue com seu talento “despertar” em pelo menos alguns dos que veem seu trabalho. (MATTHEWS, 2010, p. 179.) O novo significado é possível nas artes de modo geral, mas evidenciamos as artes visuais, no caso das análises de Merleau-Ponty sobre a pintura, porque ativam nossa percepção pelas sensações das cores, pois podemos ver pela pintura um novo significado dado para o mundo. O pintor para pintar também é estimulado pelas cores da natureza e tenta traduzir sua percepção para a tela. O resultado apresentado no quadro finalizado é um novo significado da própria percepção das cores que o pintor teve quando olhou para as cores da natureza, pois as artes mudas, em destaque a pintura, nos coloca frente ao exercício do perceber. Isso é igualmente válido na concepção merleau-pontyana para as demais linguagens mudas, pois, se também é verdadeira a ideia de que a música nos faz ouvir sons, certamente há numa peça musical a nós apresentada um significado perceptível oriundo da composição, repleto de novos horizontes sensíveis a serem explorados. O que há de comum entre as artes da linguagem e as artes mudas é que ambas fazem o homem (seja leitor ou observador, pintor ou escritor) de alguma forma ser motivado pelo ato de perceber, dentro desse exercício, ele habita a experiência da expressão pelo sensível. Isso porque vivificar o mundo criado pelo escritor ou perceber as cores de uma pintura são modos ativos da operação expressiva, sempre guiados pela percepção. Sobre a noção de expressão de Merleau-Ponty, explica Dupond: “A expressão designa uma estrutura ontológica encontrada na fala, mas também no corpo vivo, na obra de arte, na coisa percebida, e que consiste na passagem mútua de um interior para o exterior e de um 4 Ou do silêncio. 11 exterior para o interior ou no movimento mútuo de sair de si e de entrar em si” (DUPOND, 2010, p. 29). A expressão encontrada na obra de arte oriunda dos diversos meios artísticos mudos e de linguagens também se faz presente em outros canais, como é o caso da fala de nossa comunicação convencional e corriqueira. A expressão se dá na relação mútua do exterior e do interior – ou, ainda, de um locutor para um interlocutor. Assim, as operações expressivas, principalmente aquela por meio da fala, é para Merleau-Ponty “capaz de sedimentar-se e de constituir um saber intersubjetivo” (PhP, p. 257-8; p. 231), envolvendo indivíduos e processos de significação mediante trocas possíveis e dadas pelas experiências. A expressão artística, por sua vez, também se constitui pela operação expressiva, do produtor-artista e do receptor-apreciador de arte. Conseguintemente, a expressão artística torna-se objeto de estudo na reflexão estética de Merleau-Ponty. Nesse sentido, nosso estudo se apoia na relevância das análises construídas pelo autor sobre expressão e arte, que agregam novas discussões para o campo da estética. Entre as considerações sobre o tema já expostas, também compreendemos que há uma noção de arte moderna inclusa no pensamento de Merleau-Ponty. Para o campo da estética, o filósofo trata da arte moderna elucidando temas como a expressão artística como um dos possíveis paradigmas daquele momento na Europa, destacando o contexto francês. O tema da expressão artística é reconhecido pelos estetas posteriores interessados nessa reflexão, como é o caso de Jean Lacoste5, que considera Merleau-Ponty um dos mentores desse estudo. Observamos então que são fundamentos do interesse de Merleau-Ponty pelas artes as condições perceptíveis que inserem o homem naquilo que o filósofo denominou de mundo da percepção, que são possíveis mediante a reciprocidade entre exterior e interior através das experiências da ordem da expressão que as artes nos propiciam. O autor acreditava nessa correspondência entre interior e exterior; já as dicotomias e os distanciamentos deveriam ser repensados pelo homem moderno. E nesse encaminhamento Merleau-Ponty constrói sua critica à separação entre sujeito e objeto, exemplificando ainda com suas análises sobre a arte argumentos em defesa da indivisibilidade entre sujeito e objeto, exterior e interior, corpo e espírito, homem e natureza. Para situar a crítica de Merleau-Ponty, passemos aos comentários sobre a separação entre sujeito e objeto recorrente em seu discurso. Para ele, tal dualismo atrai as ciências, e dentre suas bases epistemológicas está o idealismo cartesiano. Compreendendo que para Descartes o conhecimento se estabelece pelas ideias, o sujeito se direciona sempre a partir das faculdades do pensamento – ou, em outros termos, a mente ou o 5 Ver Jean Lacoste, A filosofia da arte (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986). 12 espírito, conforme a concepção francesa. O corpo é uma realidade exterior que não contribuiu satisfatoriamente para o conhecimento, sendo a percepção parte dessa outra realidade. Segundo Silva, “Descartes é dualista, ou seja, admite a existência de duas realidades completamente separadas: a alma e o corpo ou, na sua terminologia, a substância pensante e a substância extensa” (SILVA, 1993, p. 6). Merleau-Ponty, criticando o cartesianismo, procura demonstrar que a percepção não é principio do saber, mas parte constituinte do conhecimento6, pois defende que o conhecimento não é apenas um conjunto de conteúdos de nossa consciência, mas também fruto da vivência humana, e essa se dá corporalmente. O corpo e suas experiências no mundo são exteriores, mas também partes integrantes do interior, o que, para Merleau-Ponty, significa que são correspondentes, não sendo possível separar corpo e espírito ou sujeito e objeto, como sustenta a tese de Descartes. Nosso corpo, nossos sentidos, nossa percepção e sua relação com o mundo/com a natureza, embora isso seja renegado pelas ciências e pela doutrina cartesiana, para Merleau-Ponty, ao contrário, é o início do conhecimento. Desse modo cria-se o confronto merleau-pontyano, pois do ponto de vista de um cartesiano, a percepção pode enganar a consciência, prejudicando os resultados de seus métodos puramente abstratos. Segundo Merleau-Ponty, contudo, a sociedade prefere acreditar na ciência do que na percepção. Para exemplificar essa posição social, observamos o que ele diz sobre o conhecimento considerado cientifico (física) versus a experiência vivida: “O mundo verdadeiro não são essas luzes, essas cores, esse espetáculo sensorial que meus olhos me fornecem; o mundo são as ondas e os corpúsculos dos quais a ciência me fala e que ela encontra por trás dessas fantasias sensíveis” (C, 2004, p. 3). Para o cartesianismo, o sujeito pensante parece não habitar o mesmo mundo pensado, ou melhor, parece não viver na mesma natureza que tenta explicar pelas suas abstrações e cálculos matemáticos. Merleau-Ponty contesta essa hipótese, como já observado, e afirma ser impossível abstrairmos totalmente a presença ou as lembranças de nossas sensações, pois a percepção é um fantasma que nos acompanha, impossibilitando a obscuridade do mundo percebido, da nossa experiência visual, sonora, tátil, da presença de nosso corpo. Para ele não é possível se ausentar do próprio corpo para avaliar um fenômeno da natureza apenas no campo das ideias. De acordo com o pensamento de Merleau-Ponty, portanto, é indispensável considerar o mundo percebido e crer na indivisibilidade entre corpo e espírito. Para ele, enquanto a ciência permanece excluindo a percepção e evita considerar a presença do homem na natureza quando a estuda, a arte, em contraponto, nos coloca dentro do mundo percebido. Nos termos de Merleau-Ponty, é 6 Cf. C, p. 5. 13 “preciso despertar a experiência do mundo tal como ele nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto percebemos no mundo com nosso corpo” (PhP, p. 278; p. 249). Durante sua vida Merleau-Ponty encontrou na arte e em especial na pintura moderna o maior esforço da humanidade em nos colocar novamente despertados para ver o mundo percebido. Uma pintura de Cézanne, na concepção do filósofo, nos propicia ver cores e formas em um grande jogo sensorial, lembrando-nos de que as cores não são conceitos abstratos nem apenas partes da representação de um objeto, mas também uma experiência visual e sensível. Cézanne, por exemplo, segundo Merleau-Ponty, “quer pintar a matéria em via de se formar, a ordem nascendo por uma organização espontânea” (DC, p. 128; p. 24). FIGURA 3. Paul Cézanne. A montanha Sainte-Victoire, vista dos Lauves, 1902-1906, aquarela, 48 x 31 cm, Philadelphia Museum of Art, Filadélfia7. Ver o mundo e ver uma pintura é um ver conduzido pelo tempo e pelo movimento; nossos olhos caminham pelas cores e formas à medida que apreciamos e que vivemos. A pintura, assim, nos faz redescobrir nossa percepção visual, seus efeitos corporais e o mundo, pois, para Merleau-Ponty: “O mundo da percepção, isto é, o mundo que nos é revelado por nossos sentidos e pela experiência de vida, parece-nos à primeira vista o que melhor conhecemos, já que não são necessários instrumentos nem cálculos para ter acesso 7 Paul Cézanne. A montanha de Sainte-Victoire, vista dos Lauves, reprodução fotográfica em Ulrike Becks-Malorny, Cézanne. (Köln: Taschen, 2011, p. 66). 14 a ele e, aparentemente, basta-nos abrir os olhos e nos deixarmos viver para nele penetrar” (C, p. 1). A pintura explora a primeira visão, provoca nossos sentidos incapazes de resistir à experiência de apreciar seu espetáculo cromático, nos faz adentrar plenamente no mundo da percepção. Esse é um dos motivos que fazem a pintura sempre permanecer no interesse de Merleau-Ponty. Enquanto o cientista nos afasta do mundo percebido, o artista o revela para nós – e, para Merleau-Ponty, o pintor nos revela com primazia. Conseguintemente, este autor desejoso pela investigação da percepção faz da pintura e das artes em geral aliada de sua teoria. Para se tornar um pesquisador da percepção por excelência, portanto, ele tornou-se um apreciador da arte. Buscando dissolver a separação entre sujeito e objeto ao investigar a percepção e entender como o mundo percebido nos é revelado, Merleau-Ponty orientou-se pelos estudos da fenomenologia. Ele ainda casa seu interesse pela arte com o estudo dos fenômenos que esta nos causa, ou seja, o que um quadro pode provocar ao nosso olhar. Sobre o assunto diz Escoubas: Ex-ercício do olhar – ex-stase do olhar: o espaço do quadro põe em obra um sentido do ser como aparecer. No espaço do quadro o fenômeno do mundo (no sentido grego de phaínesthai = parecer-aparecer) se expõe mais visivelmente que as coisas localizáveis ou enunciáveis da representação. Isso quer dizer que uma análise do espaço pictural depende, por essência, de uma elaboração fenomenológica, enquanto revelação [...]. (ESCOUBAS, 2005, p. 164-5.) A revelação das aparências, dos sentidos, motiva o interesse de Merleau-Ponty pela fenomenologia. Nessa perspectiva, ele constituiu passagens significativas sobre a arte em geral e a pintura em grande parte das suas obras, incluindo sua tese de doutorado a Fenomenologia da percepção que foi finalizada em 1945. E, no mesmo período do início de sua produção acadêmica, o autor publica originalmente na revista Fontaine o ensaio “A dúvida de Cézanne”, texto conduzido pelo mesmo pensamento norteador de sua tese. Em 1942, o filósofo ainda apresentou ao público sua obra A estrutura do comportamento8. Certamente, sua tese de doutorado é sua obra mais conhecida, e muitos elementos do pensamento fenomenológico foram conservados durante toda sua produção filosófica, sobretudo os fundamentos das doutrinas de Edmundo Husserl e de Martin Heidegger, que foram os grandes influenciadores de seu pensamento. A importância da fenomenologia para a primeira fase da trajetória de Merleau-Ponty é justificável porque foi a experiência humana 8 Dados disponíveis em Luiz Damon Santos Moutinho, Razão e experiência: ensaios sobre Merleau- Ponty (São Paulo: Editora Unesp, 2006), p. 269 e 342. 15 um dos objetos de pesquisa que o acompanhou durante todo o desenvolvimento de seus estudos. Para definir o movimento fenomenológico que surgiu no início dos anos de 1900, observamos as palavras de Sokolowski. A fenomenologia é o estudo da experiência humana e dos modos como as coisas se apresentam elas mesmas para nós em e por meio dessa experiência. Tenta restabelecer o sentido da filosofia encontrado em Platão. É, além disso, não só uma revivificação de antiquário, mas algo que confronta as questões levantadas pelo pensamento moderno. Vai além dos antigos e modernos, e se esforça por reativar a vida filosófica em nossas circunstâncias presentes. (SOKOLOWSKI, 2004, p. 10.) A fenomenologia permitiu que Merleau-Ponty explorasse a investigação da experiência humana, tratando de temas como a percepção, a expressão e a linguagem. Além disso, suportava sua proposta que pretendia revisar os problemas perceptíveis sobre as pesquisas cientifica que imperavam no contexto europeu da época, exatamente como ele destacou em suas críticas à doutrina de Descartes e em seu ponto de vista sobre o projeto empirista e positivista de estudo. Para definir a fenomenologia, Merleau-Ponty abre sua tese com a seguinte argumentação: O que é a fenomenologia? Pode parecer estranho que ainda se precise colocar essa questão meio século depois dos primeiros trabalhos de Husserl. Todavia, ela está longe de estar resolvida. A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. A fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira [...]. (PhP, p. 1; p. 7.) É buscando entender as essências imanentes na experiência humana de estar no mundo que Merleau-Ponty conduz seu caminho pelo método fenomenológico. É relevante ainda observar que a arte é analisada pelo filósofo a partir desse principio. Sobre Husserl, Merleau-Ponty o compreende como base epistemológica justamente por ser o pai desse campo de estudo e porque buscava investigar e considerar o estágio anterior do conhecimento próprio das ciências rigorosas, como por exemplo a física. O autor descreve nos seus estudos preliminares um duplo interesse à fenomenologia de Husserl: por ser uma nova filosofia, distinta do criticismo, e pela insistência no método da redução em 16 busca de uma proposta transcendental9. É fundamental no pensamento Husserl sua perspectiva do mundo como um conjunto de significados da ordem da razão, possível em uma consciência transcendental. Aparentemente, Merleau-Ponty possuía certo conflito em relação à ênfase dada à consciência nas bases da teoria de Husserl, uma vez que para o francês a separação entre sujeito e objeto ainda era presente na primeira fenomenologia. Em sua origem, o alicerce da pesquisa fenomenológica está na intencionalidade, pois o núcleo da investigação se concentra em discutir a consciência e a experiência sempre a partir da referencia de um objeto, pois a consciência é sempre “consciência de” e a experiência é sempre “experiência de”. A intencionalidade, nesse sentindo, não é uma ação prática, mas determinada pelo cognitivo10. O estudo fenomenológico se detém em observar como as coisas11 aparecem diante da nossa consciência. A fenomenologia pretendia esclarecer de que maneira as coisas se relacionam à nossa consciência. A partir desse propósito, Husserl, conforme a explicação de Matthews, já considerava as “várias formas de consciência que temos do mundo ao nosso redor, incluindo as ciências naturais” (MATTHEWS, 2010, p. 14). Entre as formas de consciência que a fenomenologia conseguiu descrever, Merleau-Ponty observava com maior interesse o fator subjetivo da consciência quando comparado aos resultados das ciências naturais. Para o filósofo francês, dentre os modos da consciência lhe interessava a consciência encarnada, ou seja, de um corpo imbricado no espírito, indivisos, atuante de forma mútua com o mundo através das experiências. Merleau-Ponty argumentava que o conhecimento científico, as doutrinas empiristas12, o intelectualismo (o pensamento cartesiano)13, partindo do pressuposto da separação entre 9 Ver PrP, p. 21; p. 21-2. 10 Conforme a explicação de Sokolowski. Ver Robert Sokolowski, Introdução à fenomenologia (São Paulo: Loyola, 2004), p. 17-8. 11 Para compreender o conceito de coisa que será tratado ao longo de nosso estudo, é necessário definir e sempre considerar esse conceito a partir da fala de Merleau-Ponty, nas suas palavras: “As coisas não são, portanto, simples objetos neutros que contemplaríamos diante de nós; cada uma delas simboliza e evoca para nós certa conduta, provoca de nossa parte reações favoráveis ou desfavoráveis, e é por isso que os gostos de um homem, seu caráter, a atitude que assumiu em relação ao mundo e ao ser exterior são lidos nos objetos que ele escolheu para ter à sua volta, nas cores que prefere, nos lugares onde aprecia passear” (C, p. 23). Além disso, a coisa não é apenas suas qualidades, mas sua existência a partir da relação do homem para com cada uma de suas qualidades, e nesse sentido Merleau-Ponty afirma que “nossa relação com as coisas não é uma relação distante, cada uma fala ao nosso corpo e à nossa vida, elas estão revestidas de características humanas” (ibidem, p. 24). Entretanto, a relação homem e coisa é um pouco ambígua, pois, como explica Merleau-Ponty, “meu acesso a coisa não é o mesmo acesso que o outro possui, mas é pela coisa que terei acesso ao ‘mundo privado’ do outro” (VI, p. 22-3). 12 Segundo Müller, são empiristas para Merleau-Ponty as correntes do pensamento de Hobbes, assim como Locke, Berkeley e Hume. Ver José Marcos Müller, Merleau-Ponty acerca da expressão (Porto Alegre: ediPUCRS, 2001), p. 19. 17 sujeito e objeto, manipulavam os resultados de suas pesquisas, pois o homem da ciência se enganava ao acreditar que poderia ausentar-se de seu corpo – suas experiências de vida, sua percepção, sua memória e seu contexto – para examinar friamente o objeto pelas faculdades da consciência. De acordo com Merleau-Ponty: “Afinal, desde o fim do século XIX, os cientistas habituaram-se a considerar suas leis e suas teorias não mais como a imagem exata do que acontece na natureza, mas como esquemas sempre mais simples do que o evento natural, destinados a ser corrigidos por uma pesquisa mais precisa, em suma, com conhecimentos aproximados” (C, p. 6). Para o filósofo, o homem regido por essas doutrinas assumia uma posição de sobrevoo, a partir de um olhar quase divino, tentando simular uma análise do objeto baseada na pura racionalidade. Porém, Merleau-Ponty recusava essa ideia, pois considerava impossível separar a consciência no plano puramente abstrato, desconsiderando sua correspondência com o corpo, justamente porque o Ser é integrado. Para solucionar os problemas dessa dicotomia, Merleau-Ponty se esforçou na construção de sua própria fenomenologia baseando-se na crença de que “a aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção de mundo” (PhP, p.18; p. 20), sendo o mundo fenomenológico “o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na interseção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras” (idem). Isso porque, para Merleau-Ponty, o corpo conduzido pela experiência humana no mundo se corresponde com os outros. É ainda transparente em seus estudos a maneira como ele propõe sua tese a cerca da indivisibilidade, baseando-se nos seus estudos sobre o corpo14, que desdobram-se sobre a investigação acerca da natureza do Ser. Para formular seu pensamento sobre tais temas, ele se aproximou da fenomenologia de Heidegger. Sobre o Ser e a aproximação de Merleau-Ponty à fenomenologia de Heidegger, explica Matthews: “Tratar o significado do Ser fenomenologicamente é partir de nossa própria experiência de Ser: mas isso não significa examinar em nossas mentes as nossas experiências interiores nem separar (como foi a tendência do primeiro Husserl) a nossa consciência de seus objetos. Nosso próprio Ser, dizia Heidegger (e nisso foi seguido por Merleau-Ponty), é Ser-no-mundo” (MATTHEWS, 2010, p. 22). Merleau-Ponty defendia no seu projeto de fenomenologia pensar corpo e espírito juntos. A consciência, que a princípio é da ordem do espírito, foi examinada pelo filósofo francês com relação aos seus estudos sobre o corpo. Para o autor, a filosofia e o homem 13 Ainda de acordo com Müller, Merleau-Ponty refere-se aos cartesianos também pela denominação: os intelectualistas. Cf. idem. 14 Discorreremos mais sobre o tema no desenvolvimento deste estudo. 18 moderno deveriam reconsiderar o mundo percebido, a fim de voltar a conceber como forma de conhecimento o homem habitando o mundo em uma relação perceptiva. E a percepção se dá no e pelo corpo humano através de suas experiências, espacialidades e temporalidades. O corpo é um todo que inclui o espírito, presente como todo no mundo. Nas palavras de Merleau-Ponty, “o corpo próprio está no mundo como o coração está no organismo” (PhP, p. 273; p. 245). É nesse sentindo que o autor se apropria de um discurso heideggeriano baseado na concepção de Ser (Dasein) que existe no mundo15. Assim, se o Ser existe integrado no mundo (ser e estar), não haverá uma consciência puramente separada do mundo, tampouco de nossas experiências de estar no mundo. Nessa perspectiva, Merleau-Ponty inclinará seu discurso em busca da compreensão do Ser-no- mundo. A noção de Ser-no-mundo é entendida pela investigação merleau-pontyana acerca da indivisibilidade entre interior e exterior. Dessa forma, o filósofo francês adentra nos estudos das correspondências desses extremos. O Ser (Dasein), no sentido heideggeriano, sendo parte integrada do mundo, terá então na sua espacialidade a impossibilidade dicotômica de exterior e interior. Sobre o assunto explica Escoubas: A espacialidade do Dasein só se explicita por oposição à noção cartesiana de espaço: a extensio, enquanto omnimodo divisibile, figurabile et mobile – a extensão homogênea, divisível (parte extra partes) e descritível em termos de “figura e movimento”. A espacialidade do Dasein, ao contrário, só pode ser compreendida a partir do seu modo de ser: o modo de ser do Dasein é o ser-no-mundo (In-der-Welt-Sein) [...] o Dasein não sobrevoa as distancias e as direções, ele as traz consigo; eis por que o espaço não é isso dentro do qual ele se encontra, mas isso que ele abre: ele é região (contrée Gegend). (ESCOUBAS, 2005, p. 165.) Observamos que a noção de Ser (Dasein) absorvida de Heidegger16 por Merleau- Ponty é extremamente pertinente para ele, pois reforça seus argumentos contra o pensamento de sobrevoo naturalmente cartesiano. Além disso, a noção de Dasein como região e abertura dá o fundamento do discurso sobre as indivisibilidades defendidas por Merleau-Ponty, estabelecendo condições e pressupostos necessários para o fenomenólogo francês desenvolver seu pensamento sobre o corpo indiviso e o mundo sensível – pontos 15 Conforme a explicação de Matthews. Ver Eric Matthews, Compreender Merleau-Ponty (Rio de Janeiro: Vozes, 2010), p. 22-3. 16 É necessário sempre considerar os problemas de tradução que a noção Dasein já sofreu e que é fundamental para a compreensão do pensamento de Heidegger. Para nosso estudo, não nos aprofundaremos neste problema, mas sugerimos a leitura do texto de Marcia Sá Cavalcante Schuback que compõe a edição de 2012 da Editora Vozes da obra Ser e Tempo de Heidegger, pois a comentarista é esclarecedora sobre o assunto. 19 importantes dos últimos estudos do autor, sobretudo em O visível e o invisível, obra inacabada, devido sua morte prematura em 1961. É importante ainda demarcar certo descontentamento que a pesquisa fenomenológica provocou em Merleau-Ponty na fase mais tardia de seu pensamento. Para ele, seus estudos sobre a fenomenologia não foram além dos limites, e ele deveria repensá- los, avaliando a fenomenologia como projeto ontológico. Nesse sentido, Merleau-Ponty apresenta uma série de problemas presentes em suas primeiras pesquisas que devem ser reconsiderados. É possível mapear alguns dos principais apontamentos posteriores do filósofo sobre a fenomenologia em suas notas de trabalho de O visível e o invisível, como por exemplo em uma nota de fevereiro de 1959, na qual Merleau-Ponty afirma: “devo mostrar que o que se poderia considerar como ‘psicologia’ [fenomenologia da percepção] é na realidade ontologia” (VI, p. 171). Em junho do mesmo ano, Merleau-Ponty escreve: “problemas colocados na Ph.P são insolúveis porque eu parto aí da distinção ‘consciência’ – ‘objeto’ – Não se compreenderá nunca dessa distinção” (ibidem, p. 189). O filósofo ainda complementa suas anotações com a intenção de investigar a imbricação Ser-coisa-mundo. Seguindo as influências sofridas pelo autor, outro ponto importante presente no pensamento merleau-pontyano que merece reconhecimento é seu interesse pela teoria da Gestalt. No início de sua carreira, o filósofo francês demonstrava certo descontentamento com os atributos dados à percepção pelas pesquisas empiristas e intelectualistas, justamente pela perspectiva separatista entre homem e mundo. Para os empiristas, as sensações e a percepção dependem necessariamente do estímulo dos objetos externos, ou seja, das coisas que estão no mundo. Já para os intelectualistas, a consciência do sujeito se faz no conhecimento, sendo a percepção e as sensações ações sobre os objetos17. Insatisfeito com a parcialidade desses pontos de vistas, Merleau-Ponty se dedicou aos estudos da percepção se amparado na teoria da Gestalt. Em suas palavras: “Ora, as pesquisas experimentais feitas na Alemanha pela escola da Gestalttheorie parecem mostrar, ao contrário, que a percepção não é uma operação intelectual – que é impossível distinguir aí uma matéria incoerente e uma forma intelectual; a “forma” estaria presente no próprio conhecimento sensível [...]” (PrP, p. 11-2; p. 11-2). Interessado na investigação da experiência sensível, portanto, pode-se dizer que Merleau-Ponty se apropriou dos estudos da Gestalt. Na segunda parte da Fenomenologia da percepção, que trata do mundo percebido, notamos a utilização de exemplos oriundos dessa teoria da forma. Dedicado aos estudos da percepção, do sentir e do espaço, o filósofo discorrerá ainda sobre os domínios sensoriais. Também tratará da relação inter-sensorial, 17 Síntese elaborada a partir da explicação de Chauí sobre os estudos empiristas e intelectualistas acerca da percepção. Ver Marilena Chauí, Convite à filosofia (São Paulo: Ática, 2010). 20 pensando o particular e o todo como sendo inseparáveis. A Gestalt é ainda fundamental para ele investigar o fenômeno da percepção sensorial no corpo e da consciência humana de modo entrelaçados. Sobre a leitura de Merleau-Ponty acerca da Gestalt, Müller nos sugere: Pelo menos no que diz respeito à experiência perceptiva, as pesquisas experimentais na Alemanha, pela escola da Gestataltheorie, parecem mostrar o contrário do que supõem cartesianos e antagonistas. Segundo a leitura que Merleau-Ponty faz dessas pesquisas, para que possam ser compreendidos os fenômenos perceptivos não dependem de uma representação “anímica” exterior aos elementos sensíveis de nossas experiências. A descoberta da vinculação entre “figura” percebida e o “contexto” em que nosso corpo se situa ao percebê-la demonstra que os fenômenos estão indissociavelmente ligados às nossas experiências (ou, mais precisamente, à organização espontânea desencadeada por nosso corpo junto aos dados sensíveis). (MÜLLER, 2001, p. 14-5.) Nesse sentido, fica claro que Merleau-Ponty, interessado na relação perceptiva que o corpo possui e em defesa das experiências como ponto de partida para investigar a percepção, irá inevitavelmente se aproximar das contribuições que a Gestalt propõe para o estudo do fenômeno da percepção. Além disso, esse campo de pesquisa também contribui para a oposição ao cartesianismo, e o estudo da relação do corpo com os dados sensíveis permanecem incluso nos textos de O visível e o invisível. Devemos demarcar ainda que no mesmo período em que escrevia O visível e o invisível, o filósofo concluiu sua última obra, em 1960, a propósito da primeira publicação da revista Art de France18, na qual escreveu o ensaio “O olho e o espírito”. Esse texto é considerado uma produção pertencente à fase mais madura do autor e que também apresenta inclinações à investigação ontológica pela pintura. Devemos destacar ainda que no período intermediário da produção teórica de Merleau-Ponty foram publicadas obras de cunho político, como Humanismo e terror, além da obra Aventuras da dialética, de 1955, nos quais ele aventura-se por temas como a dialética e os estudos marxistas. Em 1952, apresentou novos estudos sobre a fenomenologia em Signos, porém, propondo argumentos direcionados a fenomenologia da linguagem, estabelecendo diálogo com Jean-Paul Sartre, André Malraux e Ferdinand de Saussure. O embrião de seus estudos sobre a linguagem, contudo, já aparecem como intenção no capítulo “O corpo como expressão e a fala”, da primeira parte da Fenomenologia da percepção, embora naquele 18 Informações disponíveis no prefácio da edição brasileira de O olho e o espírito. Ver Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito (São Paulo: Cosac Naify, 2004). 21 momento a linguagem ocupasse um papel secundário, pois o filósofo se concentrava nos temas relacionados à percepção e ao corpo. Outras obras do filósofo francês foram produzidas a partir de e destinadas ao exercício da docência. Para o nosso estudo, é relevante destacar o livro A natureza, que tem como referencial o curso lecionado no Collège de France durante o final dos anos de 1950, e seus estudos sobre psicologia da criança e pedagogia disponíveis na obra Merleau- Ponty na Sorbonne, decorrente do período em que lecionou na referida universidade, logo após seu doutoramento. Compreendemos então que durante toda a produção intelectual de Merleau-Ponty seu grande esforço no campo da filosofia e das ciências foi destinado a convencer a sociedade acadêmica da necessidade do retorno ao mundo percebido, partindo de sua crítica às dicotomias. Assim, a percepção, ponto de apoio do início de sua argumentação, deveria ser reconsiderada como parte integradora do conhecimento, do saber filosófico e cientifico. Essa posição do filósofo perante os intelectuais da época torna-se ainda mais evidente na introdução da Fenomenologia da percepção; em todo o corpo da obra A estrutura do comportamento; assim como na obra O visível e o invisível. A respeito das obras estéticas ou que se dedicam a arte, esse posicionamento merleau-pontyano transparece em Conversas: 1948, sobretudo no primeiro e sexto capítulo de sua exposição; e norteia o desenvolvimento das obras O olho e o espírito e A prosa do mundo. Considerando uma visão panorâmica da trajetória profissional e teórica de Merleau- Ponty, notamos e deveremos esmiuçar ainda mais ao longo deste estudo a veracidade de como ele constrói seu discurso filosófico amparando-se nas artes para exemplificar suas afirmações, principalmente quando trata do tema da percepção, da expressão, da criação ou mesmo da pintura e da linguagem. Entretanto, há momentos que suas palavras sobre a arte são mais que apenas exemplificações para sua fenomenologia ou filosofia: são momentos em que seu pensamento investiga processos artísticos e muito agrega ao campo da pesquisa estética. Merleau-Ponty defende o retorno ao mundo percebido e à arte para ele nos fazendo perceber pela operação expressiva, lembrando-nos de que somos homens que habitam esse mundo. Pois, como pensador que aprecia a arte, Merleau-Ponty confia na ideia de “uma filosofia da percepção que queira reaprender a ver o mundo restituirá à pintura e às artes em geral seu lugar verdadeiro” (C, p. 56). 22 1.2. O retorno ao mundo percebido como caminho às indivisibilidades Devemos retornar ao mundo percebido reconsiderando nossas experiências e nossa presença no mundo, é o que adverte Merleau-Ponty no escopo de seus estudos. O mundo percebido que nos é revelado pelo primeiro contato com o mundo, pelas sensações e sentidos, é o caminho (senão a resposta) que o pensamento moderno persegue. A arte, segundo Merleau-Ponty, nos propicia o contato com o mundo percebido, evoca em nós o despertar do sujeito da percepção, sendo esta uma aliada dos meios artísticos, além de uma constância dada à vida e à experiência humana. Nas palavras de Merleau-Ponty: “é verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos aprender a vê-lo” (VI, p. 16). Mas, como aprendemos a ver? Ora, sabemos que para o autor é um dos propósitos da arte nos ensinar a ver, pois ele crê que esta nos ensina a ver quando nos aproxima do mundo da percepção. Resta-nos esclarecer que visão aparentemente diferenciada sobre o mundo a arte pode nos propiciar. Conseguintemente, uma filosofia da percepção nos ajuda a compreender o retorno do mundo percebido, seja pela arte ou por outros meios. No entendimento de Merleau-Ponty a percepção é o encontro com as coisas naturais, mas é também um recorte do mundo vivido19. Conforme a explicação de Dupond20, a concepção merleau-pontyana de mundo está sempre relacionada às nossas vidas, a saber, às nossas experiências, sendo impossível a concepção de mundo como objeto do pensamento, pois o mundo para Merleau-Ponty se faz pela harmonia da vida, na sua coesão. Portanto, o mundo é palco de nossas experiências e integralmente constituído nelas. Todavia, os desdobramentos da noção de mundo podem ser ainda mais complexos, e acreditamos que efetivamente norteiam o discurso do filósofo francês acerca das indivisibilidades, dadas pela correspondência entre homem (seu corpo) e mundo. O mundo percebido, por sua vez, parece-nos a origem dessa relação para os estudos de Merleau- Ponty. Assim, nossa trajetória de estudo declina-se em traçar paralelos entre a percepção e a visão como experiência propiciada pelo mundo percebido e discorrer sobre a relação indivisa e sensível do corpo para elucidar o que compreende as indivisibilidades. Perpassar por esses estudos é estratégico, pois poderemos pontuar fundamentos importantes que 19 Cf. VI, p. 155. 20 A explicação completa de Dupond para a noção de mundo de Merleau-Ponty também estabelece paralelos com a noção de abertura discutida em uma obra inacabada de Malebranche e a filosofia de Kant. O comentarista observa ainda nos textos do filósofo duas grandes concepções para o sentido do mundo: a primeira, da ordem da facticidade e característica do começo da carreira de Merleau- Ponty e a segunda, da individualidade numa noção absoluta de ser. Ver Pascal Dupond, Vocabulário de Merleau-Ponty (São Paulo: Martins Fontes, 2010), p. 54-6. 23 compõem o discurso de Merleau-Ponty que serão extremamente relevantes para compreendermos posteriormente o tema da expressão artística como projeto da arte moderna e para analisar os textos estéticos do filósofo no próximo capítulo desta dissertação, sobretudo quando procuramos elucidar como a arte, em destaque a arte moderna, nos insere e nos prova pela experiência sensível o que é estar no mundo, conforme a advertência de Merleau-Ponty. Primeiramente, retornar ao mundo percebido significa reconsiderar a ação de perceber, aceitando que o “saber se instala nos horizontes abertos da percepção” (PhP, p. 280; p. 251). Para desvendar os horizontes é necessário adentrar no fenômeno da percepção e, para explicar esse fenômeno, Merleau-Ponty retoma o exemplo sobre a visão de um cubo. Diz o filósofo: Do ponto de vista de meu corpo, nunca vejo iguais as seis faces do cubo, mesmo se é de vidro, e todavia a palavra “cubo” tem um sentido; o cubo ele mesmo, o cubo na verdade, para além de suas aparências sensíveis, tem suas seis faces iguais. À medida que giro em torno dele, vejo a face frontal, que era um quadrado, deformar-se, depois desaparecer, enquanto os outros lados aparecem e tornam-se cada um, por sua vez, quadrados. (PhP, p. 273-4; p. 245.) Sabemos que um cubo pode ser explicado por conceitos e, nesse sentido, é geralmente apresentado como uma forma que, em termos geométricos, pode ser descrita como uma figura tridimensional construída por seis faces quadradas. Ora, o conceito de cubo não é segredo, tampouco sua representação gráfica ou o cubo enquanto objeto. Nossa inteligência, nossa consciência, consegue compreender o cubo em sua totalidade de definições, descritiva, representativa e sua aparência. O problema que esse exemplo nos evidencia, certamente, é o fato de o cubo ser cubo para nós porque podemos descrevê-lo ou representá-lo, considerando sua existência no mundo e a relação desse objeto com nosso corpo: nossa percepção. Pois, mesmo que sua definição seja considerada apenas racionalmente, ainda haverá a sombra de uma experiência corporal única e individual que explica a veracidade da definição de cubo. Quando pensamos em um cubo, o fazemos porque sua existência se dá no espaço, onde também habito com meu corpo, e pelo meu movimento posso perceber que suas faces laterais são apresentadas deformadas para nosso olhar. Conhecendo a definição de cubo, não duvido da natureza quadrada de suas faces; desse modo posso, caminhar entorno do cubo que verificarei que de fato as faces são quadradas. Ora, mesmo que eu não vivencie a experiência de caminhar entorno do cubo, consigo imaginar e é totalmente concebível a percepção que poderia ter do objeto cubo 24 caso eu viesse a experienciar tal situação. Para Merleau-Ponty, tal dádiva é possível porque a fé perceptiva oferece ao homem essa capacidade. Segundo Chauí, “a fé perceptiva é experiência espontaneamente realista” (CHAUÍ, 2002, p. 128). Nesse sentido, acreditamos na possibilidade da face quadrada do cubo mesmo que nossa visão a mostre deformada, pois sabemos que pode-se verificar a veracidade dessa informação a partir de uma experiência – basta mover meu corpo e mudar o ponto de vista. Não é uma hipótese puramente imaginativa, mas vivível. Complementando, diz Chauí: “a fé perceptiva, convicção bárbara, não é saber, mas crença” (ibidem, p. 129). O interesse de Merleau-Ponty não está apenas em compreender os “estados de consciência”, nem as definições e representações que o exemplo do cubo poderá ocasionar, assim como seu interesse não se concentra na representação das coisas que estão no mundo, ou no que a ciência ou a racionalidade pode simular para defini-las – isto é, como definir o cubo somente em termos geométricos, segundo o exemplo do filósofo. Desperta o interesse de Merleau-Ponty a nossa existência no mundo, de que maneira exploramos esse lugar21. Exploramos o mundo mediante um corpo perceptivo, que com os atributos do sentir, da sensação, da espacialidade, do movimento e da temporalidade, esse existe como Ser- no-mundo. De acordo com a explicação de Dupond, “a experiência é um dos nomes do ‘fenômeno originário’, a abertura do mundo, ‘o contato inocente com o mundo’ [PP I], que a fenomenologia procura ‘despertar’ [PP III]” (DUPOND, 2010, p. 27). Dessa forma, podemos analisar a experiência como uma relação vivida, embora todavia seria ainda a percepção como parte integradora da experiência22. Nos termos de Merleau-Ponty, “nossa percepção chega a objetos, e objeto, uma vez constituído, aparece como a razão de todas as experiências que dele tivemos ou que dele poderíamos ter” (PhP, p. 103; p. 95). A experiência é o meio pelo qual conhecemos os objetos. Além disso, vivemos e habitamos o mundo, pelo o qual propiciam-se as experiências visíveis, táteis, sonoras, enfim, as experiências sensíveis. Essa é a condição que determina nossa exploração do mundo: pela recepção fornecida aos nossos sentidos, descobrimos o que de fato o mundo é para nós. Segundo Merleau-Ponty: “a experiência – quer dizer, a abertura ao nosso mundo de fato – é reconhecida como o começo do conhecimento, não há mais nenhum meio de distinguir um plano das verdades a priori e um plano das verdades de fato, aquilo que o mundo dever ser e aquilo que efetivamente é” (PhP, p. 298; p 266). 21 Conforme explica do filósofo em O visível e o invisível. Ver VI, p. 18. 22 Segundo a explicação do termo “experiência” nos estudos de Merleau-Ponty, Dupond afirma que os conceitos de experiência e percepção são extremamente próximos e complementares na Fenomenologia da percepção, e suas definições inclusive se confundem. Entretanto, segundo o autor, em O visível e o invisível, a distinção é mais clara no termo “experiência”, que se refere ao sentido originário. Ver Pascal Dupond, Vocabulário de Merleau-Ponty, cit., p. 27-8. 25 Sendo a experiência o ponto de partida da percepção e esse ponto dado a partir da vivência do homem, entendemos que a percepção se liga a certa individualidade da pessoa que percebe, ou, nos termos de Merleau-Ponty, o sujeito da percepção, que está inserido em sua própria história e acoplado plenamente na relação estipulada com as sensações23. O filósofo francês muito refletiu sobre a relação das sensações com nosso corpo, os estímulos do sentir e sua espacialidade para melhor apreender a natureza do mundo percebido24. Conforme a explicação merleau-pontyana, ainda a partir do exemplo do cubo, o sujeito que percebe executa a ação de perceber sempre a partir de um ponto de vista que se altera no espaço. É verdade que a aparência do cubo se mostre deformada para o olhar dependendo da posição do observador, mas é verdade também que a configuração espacial mesmo deformada significará o cubo. Isto é possível para Merleau-Ponty porque “eu identifico o objeto em todas as suas posições, em todas as suas distâncias, sob todas as suas aparências, enquanto todas as perspectivas convergem para a percepção que obtenho em uma certa distância e uma certa orientação típica” (ibidem, p. 405; p. 355). Além disso, o filósofo concebe que cada sujeito detém na sua visão um ponto de vista ideal próprio, levando em consideração o distanciamento necessário entre si e o objeto. Essa conclusão também é valida para a apreciação de uma obra de arte, segundo Merleau-Ponty: “para cada quadro em uma galeria de pintura, existe uma distância ótima de onde ele pede para ser visto, uma orientação sob a qual ele dá mais de si mesmo” (ibidem, p. 405-6; p. 355). Na concepção do filósofo, há no objeto a convergência de todas as grandezas e qualidades aparentes de sua visualidade, bastando um observador privilegiado no espaço para animar sua melhor forma aparente. Uma pintura, segundo os estudos de Merleau-Ponty, nos ensina que detém formas diferentes de mostrar suas melhores aparências em distâncias igualmente diferentes. Nas palavras do autor: Um quadro em uma galeria de pintura, visto na distância conveniente, tem sua iluminação interior que dá a cada uma das manchas de cores não apenas o seu valor colorante, mais ainda um certo valor representativo. Visto de muito perto, ele cai sob a iluminação dominante da galeria, e as cores “agora não agem mais representativamente, elas não nos dão mais a imagem de certos objetos, elas agem como tinta cal em uma tela”. (PhP, p. 419, p. 367-8.) 23 Cf. PhP, p. 290-1; p. 260-1. 24 Na Fenomenologia da percepção, o filósofo dedicou a segunda parte de seu doutorado ao estudo que analisou o mundo percebido, dividindo-o em quatro capítulos, a saber: I O sentir; II O espaço; III A coisa e o mundo natural; IV Outrem e o mundo humano. Nos dois primeiros capítulos encontramos exemplos que discorrem sobre os estímulos que as sensações nos causam, considerando as análises do corpo desenvolvidas na primeira parte de sua tese. Já nos dois últimos capítulos ele inicia seu pensamento sobre o natural, o tempo e o cultural. Ver PhP, p. 279-490, p. 251-424. 26 A pintura possui na sua lógica certa ordenação das cores a serviço da representação dependendo da circunstância, mas não deixa de apresentar ao campo visual os dados sensoriais das cores. Toda pintura tem a capacidade de evidenciar que as cores são cores em um sistema perceptivo que constituem a imagem mostrada no todo da tela. Uma pintura pode se mostrar representativa ou as qualidades de suas cores a partir de certo distanciamento, pois a percepção permite ambas as variações de ponto vista, se fazendo aberta para ambas as experiências. Mas, o grande mistério da percepção se concentra em nos revelar as coisas mesmas, nos fazer sair das aparências naturais da representação. Assim, quando conseguimos ter uma percepção da própria coisa é porque de fato estamos explorando o mundo25. Sempre exploramos o mundo por meio de nosso corpo: as cores de uma pintura, por exemplo, se mostram aos nossos olhos a partir da relação de nosso corpo com sua forma coisal, pois, segundo Merleau-Ponty, “a cor, por seu lado, é como uma saída da coisa fora de si” (ibidem, p. 428; p 375). Quando o sentido da coisa (cor) é animado pelo nosso olhar, ela sai do seu interior para se comunicar com nosso corpo através da exterioridade que existe no mundo. Esse é o princípio da relação corpo e coisa. Portanto, o modo como as cores nos aparecem são da ordem do mundo percebido. Sendo o mundo percebido necessariamente explorado pelo corpo, faz-se inevitável reconsiderar os meios pelo qual acontece a percepção nele. Devemos, pois, descobrir como o corpo se comunica com as coisas, se abre ao mundo e interage com o outro mediante a percepção como desdobramento da experiência sensível. Além disso, Merleau-Ponty afirma que “não é inteiramente meu corpo quem percebe: só sei que pode impedir-me de perceber, que não posso perceber sem sua permissão; no momento em que a percepção surge, ele se apaga diante dela, e nunca ela o apanha no ato de perceber” (VI, p. 20). Ora, se o corpo não percebe inteiramente por si mesmo, qual seria a outra parte que nos faz perceber? O que faz a percepção tão envolvente, ao ponto do corpo não perceber que está percebendo? Para responder tais perguntas, acompanharemos a busca de Merleau-Ponty pelos caminhos do mistério do corpo enquanto Ser sensível e, para tanto, devemos meditar sempre considerando o desenvolvimento de seu pensamento, exatamente como nos fala Mercury: “podemos afirmar que a ‘mutação’ da filosofia de Merleau-Ponty vai da fenomenologia à ontologia” (MERCURY, 2001, p. 24, tradução nossa). Na compreensão do filósofo francês o corpo que percebe também é percebido. Na experiência tátil, o corpo que toca também é tocado, assim como o corpo que olha também é observado. Este é o mistério da reversibilidade próprio do corpo. É como se a experiência perceptiva estivesse contida numa lógica de correspondências. Merleau-Ponty, para explicar sua suposição sobre corpo, recorrentemente retoma o exemplo da mão que se toca e é 25 Segundo a explicação do autor. Ver VI, p. 18. 27 tocada. Ele exemplifica que enquanto a mão esquerda sente a superfície da mão direita através da experiência tátil, concomitantemente a mão direita também toca a esquerda. Assim, é impossível ser tocado sem tocar, pois há na experiência tátil um sistema de correspondência incluso na ação de tocar, o que em termos merleau-pontyanos é denominado de “intercorporeidade”. Para o filósofo, nessa correspondência encontramos a impossibilidade do corpo de ser apenas passivo, chegando a alcançar “o verdadeiro tocar o tocar, quando minha mão direita toca minha mão esquerda apalpando as coisas, pelo qual o ‘sujeito que toca’ passa ao nível do tocado, descendo às coisas, de sorte que o tocar se faz no meio do mundo e como nelas” (VI, p. 130). Nesse sentido, o corpo percebe as coisas que estão dadas à percepção, porém se torna coisa quando tocado, fazendo parte do percebível. Sobre o assunto, Moutinho conclui: “Na verdade, uma atividade efetiva de ligação só aparece quando eu cesso de mergulhar no objeto percebido e me volto para mim mesmo; na percepção natural, eu estou inteiramente mergulhado na coisa percebida, e não me percebo percebendo-a” (MOUTINHO, 2006, p. 176). Quando mergulhamos na coisa percebida, nos encontramos no estado natural do mundo, dispondo do originário que nos abre para a experiência sensível: os sentidos estão como que a espreita. Os sentidos nos envolvem de tal modo que somos ingenuamente inclusos no domínio da percepção, sem saber onde começa a ação de perceber e quando nos tornamos parte do percebível. Nessa perspectiva, a percepção nos é revelada e retomada pela experiência do sensível que constitui o mundo. De acordo com o pensamento merleau-pontyano, nossas relações com o mundo, nosso habitar neste lugar se faz por aberturas, como portas que nos colocam em comunicação com as coisas e também como os outros, pois o mundo que nos abre a comunicação também está aberto, e entrecruzam- se as relações corpo–coisa. Esse é o mundo sensível, lugar que privilegia a percepção, mas também as relações intersubjetivas. Semelhantemente ao exemplo da experiência tátil, o corpo também vive a dádiva de ser vidente e visível. O vidente, parte do mundo, também é constituído pela visibilidade, detentor de uma existência visível. Esse quando observa as coisas do mundo, entrecruza sua visão com a experiência de ser visto, se percebe também observado. Essa capacidade do corpo, o que o faz vidente e visível é denominado pelo filósofo de quiasma. O quiasma, a reversibilidade, é a ideia de que toda percepção é forrada por uma contrapercepção (oposição real de Kant), é ato de duas faces, não mais se sabe quem fala e quem escuta. Circularidade falar-escutar, ver-ser visto, perceber-ser percebido (é ela que faz com que nos pareça que a percepção se realiza nas proporias coisas) – Atividade = passividade. (VI, p. 238.) 28 Não sendo possível distinguir totalmente onde começa o ato de perceber ou nossa atividade sobre o percebido, tampouco o momento que começamos a ser percebidos e nos tornando passivos à percepção do outro, notamos que, neste argumento, Merleau-Ponty, continua insistindo na natureza indivisa do corpo, pois o estudo do corpo a partir do visível permite que ele prove que “a experiência do corpo burla a distinção do sujeito e do objeto” (BARBARAS, 1998, p. 95, tradução nossa). Isso porque não posso apenas ser o sujeito que observa se também sou objeto observado; torna-se confuso, portanto, o principio da dicotomia, da diferenciação entre atividade e passividade, uma vez que o que há é uma igualdade, uma equivalência entre ações e entre as coisas. Na concepção de Merleau-Ponty “nosso corpo, como uma folha de papel, é um ser de duas faces; de um lado, coisa entre as coisas e, de outro, aquilo que as vê e toca” (VI, p. 133). O olhar pode ser recíproco e não nos surpreendemos se lembramo-nos de uma situação de nossa experiência particular, no qual observamos alguém que num dado momento também nos olha e nos pegamos vistos enquanto vemos. Isso é possível porque “o mundo sensível é comum aos corpos sensíveis” (idem). Mas, para Merleau-Ponty, a dimensão do ver é ainda mais abrangente. Para ele há um intercâmbio entre o nosso olhar e as coisas, nós não somos apenas observados pelos demais sujeitos do mundo. Também somos observados por todas as coisas que constituem o mundo, desde que se estabeleça uma correspondência entre o meu olhar e as coisas existentes, entre eu e os objetos dispostos pelo espaço. Esse intercâmbio é exemplificado pelo autor na seguinte afirmação. Por isso tantos pintores disseram que as coisas os olham, e disse André Marchand na esteira de Klee: “Numa floresta várias vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram as árvores que me olhavam, que me falavam [...] Eu estava ali, escutando [...] Penso que o pintor deve ser traspassado pelo universo e não querer traspassá-lo [...]. Espero estar interiormente submerso, sepultado. Pinto talvez para surgir”. O que chamam inspiração deveria ser tomado ao pé da letra: há realmente inspiração e expiração do Ser, respiração no Ser, ação e paixão tão pouco discerníveis que não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado.26 (OE, p. 22, p. 31-2.) Os pintores, em certo sentido, parecem confirmar a hipótese de Merleau-Ponty, isto é, que realmente existe uma dada correspondência entre nós e as coisas do mundo, entre o homem e a natureza (a floresta). E seria, pois dada essa correspondência a partir do intercâmbio existente entre os seres, que faz o pintor ser traspassado pelo universo (o 26 A fala citada por Merleau-Ponty, segundo a nota apresentada pelo filósofo, foi retirada de Georges Charbonnier, Le monologue du peintre (Paris: Julliard, 1959). Os recortes inclusos na fala de Klee foram transcritos conforme apresentado no texto de Merleau-Ponty. 29 mundo) e não o contrario, eis que assim encontramos um dos ensinamentos do ver. É nesta hipótese, que Merleau-Ponty traça sua investigação sobre a correspondência do Ser como principio da reciprocidade do ver, ou seja, do enigma de Ser vidente e visível admissível no ato de pintar. Além disso, observamos a inclinação ao discurso ontológico adotado pelo filósofo. De acordo com Merleau-Ponty há um estofo que constitui o mundo, um algo presente no corpo e nas coisas que os aproximam. Restamos esclarecer o que este algo ou do que é feito. Conseguintemente será o estofo do mundo que também possibilitará a correspondências de olhares entre o pintor e a natureza a ser pintada. Considerando a seguinte afirmação de Merleau-Ponty – “um ser em duas dimensões, que nos pode levar às próprias coisas, que não são seres planos mas seres em profundidade, inacessíveis a um sujeito que sobrevoe, só abertas, se possíveis, para aquele que com elas coexista no mesmo” (VI, p. 132) –, compreendemos que o corpo é capaz de nos levar ao recinto do Ser das coisas de modo a alcançar a profundidade delas, podendo nos levar às coisas somente se estivermos coexistindo com elas. Assim sendo, podemos conduzir nossa investigação considerando que ambos habitam pela natureza de seus Seres no mundo. E, para habitar juntos, ambos detêm de um mesmo elemento que os compõem: um comum para todos os Seres. Logo, se para Merleau-Ponty existe um elemento comum entre o corpo, as coisas e também o mundo, possivelmente esse elemento comum transparece porque não há limites bem estabelecidos entre eles. Segundo o filósofo, são obscuras as fronteiras que colocam o vidente no mundo, fazendo do corpo coisa visível e que colocam o vidente no corpo27. E o corpo nesta ilimitação se desvela massa sensível, local onde convergem as aberturas do Ser. Conforme a explicação de Chauí: Nosso corpo, coisa sensível entre as coisas, é sensível para si. É ele que nos faz ver as coisas no lugar em que estão e segundo o desejo delas, realizando o mistério do ver e do tocar, pois a visão e o tato têm o dom da ubiquidade: a visão se efetua simultaneamente a partir das coisas e dos olhos, o tato se realiza simultaneamente a partir das coisas e das mãos. Nossos sentidos operam por transitividade, enlaçando-se como as coisas: o olhar apalpa, as mãos veem, os olhos se movem com o tato, o tato sustenta pelos olhos nossa mobilidade e nossa imobilidade, compensando a imobilidade e a mobilidade das coisas. (CHAUÍ, 2002, p.178-9.) Ora, é evidente que nossos sentidos possuem certa correspondência também, pois não nos surpreendemos ao ver uma superfície volumétrica e termos a sensação que nossos olhos alcançam a natureza tátil da forma. Por isso, Merleau-Ponty considera o corpo um 27VI, p. 132-4. 30 turbilhão de sentidos: parece que quando um sentido é despertado, como por exemplo o olhar, este resgata da dormência em algum nível os demais sentidos, como é o caso do tato, estimulando certa troca ou memória. Seria, então, um jogo interno de nosso corpo que brinca com a reciprocidade dos sentidos, plausível para o corpo sensível em si mesmo. No entendimento de Merleau-Ponty, “todo visível é moldado no sensível, todo ser táctil está votado de alguma maneira à visibilidade, havendo, assim, imbricação e cruzamento [...] entre o tangível e o visível que está nele incrustado” (VI, p. 131). O homem é sensível em si, e nossos sentidos são sensíveis entre si mesmos. Os sentidos também se entrecruzam na nossa experiência, o táctil está aberto ao visível e o ver está aberto ao tangível, sendo o visível e o tangível a origem e o alimento do ver e o tocar na nossa experiência corporal – ou seja, aquilo que Merleau-Ponty chama de intercorporiedade, mediante uma reversibilidade nativa do visível e do tangível, que também é pertencente ao dizível, o audível etc. Além disso, o visível é parte do sensível, e o visível origina todas as visibilidades, isto é, todas as coisas que nos são visíveis. Para descrever a origem das visibilidades, devemos retomar o exemplo merleau-pontyano sobre o Ser das cores, pois já sabemos que o filósofo considera a cor como a fuga da coisa de si para se comunicar pela presença de um olhar. Passemos a analisar a seguinte explicação de Merleau-Ponty: Diz-se que as cores, os relevos táteis de outrem são para mim um mistério absoluto, sendo-me inacessíveis para sempre. Isso não é totalmente verdadeiro, pois para que eu deles tenha não uma ideia, uma imagem ou uma representação, mas como que a experiência iminente, basta que eu contemple uma paisagem, que fale dela com alguém: então, graças à operação concordante de seu corpo com o meu, o que vejo passa para ele, este verde individual da pradaria sob meus olhos invade-lhe a visão sem abandonar a minha; reconheço em meu verde o seu verde como, de repente, o guarda alfandegário reconhece no passageiro o homem cujos sinais lhe foram fornecidos. Não se coloca aqui o problema do alter ego porquanto não sou eu que vejo, nem é ele que vê, ambos somos habitados por uma visibilidade anônima, visão geral, em virtude dessa propriedade primordial que pertence à carne de, estando aqui e agora, irradiar por toda parte e para sempre de, sendo indivíduo, também ser dimensão e universal. (Ibidem, p. 138.) Verdadeiramente, existe certa correspondência entre a minha experiência de ver a cor verde com a experiência das demais pessoas de ver esta cor. Se nos colocamos no lugar da descrição feita por Merleau-Ponty, nós também somos invadidos por uma experiência anterior, uma vez que é muito provável que já tenhamos visto muitas paisagens detentoras de variações da cor verde. E é assim que conseguimos reconhecer o verde descrito pelo autor, mesmo sabendo, é evidente, se falamos do mesmo tom de verde. A cor 31 verde, na sua qualidade cromática, possui uma variação de tons, mas como palavra serve para denominar todas as experiências de ver suas variações. Isso é possível porque existe no verde um verde geral, a coisa que sai de si por uma visibilidade que permanece anônima ao habitar nossos olhos. Meu corpo anima o verde das folhas de uma paisagem que observo, pois está em comunicação com a coisa que o torna verde. Esta é a mesma coisa componente de todos os verdes e que também pode habitar o olhar dos demais homens, desde que estejam em comunicação. Por conseguinte, aprendemos com Merleau-Ponty que há um Ser geral presente em todas as coisas – logo, um verde geral (o Ser verde) que de forma universal transpassa experiências possíveis pelo visível. Esse que é o meio pelo qual convergem todas as experiências do ver, o que o autor denomina de visão geral. Segundo o filósofo francês, tal visão geral se enraíza no visível e é possível somente nele, sendo o visível sempre sustentado por um invisível que o torna possível. E o invisível se constitui e pertence à carne, porém não apenas a ela, mas também ao nosso corpo, às coisas e ao mundo. Para melhor compreender esse conceito merleau-pontyano, partimos das seguintes palavras de Mercury: “De fato, o Sensível, por diferenciação com o sensível que significa as coisas que são o objeto do sentir, não é o que se faz sentir, mas o tecido único do qual o sentir e o sensível são as duas diferenciações. O Sensível é de fato a textura mesma do ser, em uma palavra: “a carne” [...]” (MERCURY, 2001, p. 19, tradução nossa.). Dessa forma, devemos esclarecer o que é o Sensível e o sensível. Sabemos que o corpo é sensível e sensível em si mesmo. Ora, este ser sensível do corpo e do qual falamos é a capacidade de sentir. A capacidade de adentrar a abertura das coisas que saem de si mesmas, sendo ainda a porta de saída de seu recinto, o que as faz se comunicarem conosco, é a correspondência, o intercâmbio e a reversibilidade. Mas há também um Sensível que dá origem às aberturas necessárias às comunicações. Este Sensível faz sensível o corpo, faz o mundo lugar que habitamos por nossas experiências, torna as coisas animáveis aos nossos sentidos e também constituídas por um Ser geral das coisas que transitam em todas as relações anteriores. De acordo com a lógica do Sensível e do sensível, notamos que existe um algo ou um elemento comum que presumimos há pouco. Nosso elemento é o que Merleau-Ponty chama de carne, segundo sua própria explicação: “A carne não é matéria, não é espírito, não é substância. Seria preciso, para designá-la, o velho termo ‘elemento’, no sentido em que era empregado para falar-se da água, do ar, da terra e do fogo, isto é, no sentido de uma coisa geral [...] espécie de principio encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua. Neste sentido, a carne é um ‘elemento’ do Ser” (VI, p. 136). A carne como elemento do Ser é conseguintemente o elemento que nos liga ao mundo, nos coloca em comunicação com as coisas e que torna o corpo sensível em si. A 32 carne é o estofo que constitui o mundo e que também nos constitui. Segundo a concepção merleau-pontyana, a carne é a impossibilidade corporal de ser apenas sujeito ou de ser objeto, justamente porque o corpo não é sujeito nem objeto. Ele é os dois e também nenhum, conforme o mistério de ser vidente e visível nos faz entender. A carne em seu Ser é a indivisibilidade constituinte, segundo Carbone: “o ser carnal é o ‘elemento’ que envolve nosso corpo, as coisas, os animais, os outros” (CARBONE, 2001, p. 97, tradução nossa). Assim a carne é o que nos consagra indivisos e que é igualmente componente das demais indivisões. É por ela que provamos da natureza encarnada no mundo o meio pelo qual habitamos um lugar que nos recebe conectados pela mesma constituição, nossa mesma carne. Portanto, seria a carne outro ensinamento, senão o mais importante ensinamento que a visão igualmente nos apresenta, na explicação de Merleau-Ponty: “o mundo visto não está ‘em’ meu corpo e meu corpo não está ‘no’ mundo visível em última instância: carne aplicada à outra carne, o mundo não a envolve nem é por ela envolvido” (VI, p. 134). A carne é mais que união, é entrelaçamento, a coesão, a trama das indivisibilidades. Não sendo coisa nem mundo, tampouco nosso corpo, mas o estofo que os preenche, a carne é sempre uma possibilidade latente28, possibilidade inclusa no retorno ao mundo percebido, sobretudo quanto focalizamos o nosso corpo como protagonista desse regresso, exatamente como insiste a advertência de Merleau-Ponty. Nesse caminho investigativo, o filósofo desenvolverá seu pensamento e, é evidente, o reflexo de sua análise, juntamente com seu interesse sobre a pintura, pois dessa forma ele poderá apreciar as manifestações do ato de pintar, seus resultados e chegar à seguinte conclusão: Ora, uma vez dado esse estranho sistema de trocas, todos os problemas da pintura aí se encontram. Eles ilustram o enigma do corpo e ela os justifica. Já que as coisas e meu corpo são feitos do mesmo estofo, cumpre que sua visão se produza de alguma maneira nelas, ou ainda que a visibilidade manifesta delas se acompanhe nele de uma visibilidade secreta: “a natureza está no interior”, diz Cézanne. Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão a uma certa distância diante de nós, só estão aí porque despertam um eco em nosso corpo, porque este as acolhe. Esse equivalente interno, essa fórmula carnal de sua presença que as coisas suscitam em mim, por que não suscitariam por sua vez um traçado, visível ainda, onde qualquer outro reencontrará os motivos que sustentam sua inspeção do mundo? Então surge um visível em segunda potência, essência carnal ou ícone do primeiro. Não se trata de um duplo enfraquecido, de um trompe l’oeil, de uma outra coisa. Os animais pintados sobre a parede de Lascaux não estão ali como a fenda ou a dilatação do calcário. Tampouco estão alhures. Um pouco à frente, um pouco atrás, sustentados por uma massa da qual 28 Conforme explicação de Carbone. Ver Mauro Carbone. La visibilité de l’invisible (Hildesheim: Olms, 2001), p. 96. 33 habitualmente se servem, eles irradiam em torno dela sem jamais romperem sua imperceptível amarra. Eu teria muita dificuldade de dizer onde está o quadro que olho. Pois não olho como se olha uma coisa, não fixo em seu lugar, meu olhar vagueia nele como nos nimbos do Ser, vejo segundo ele ou com ele mais do que o vejo. (OE, p. 18; p. 21-3.) Eis que está na visão – assim como na pintura, por ser um meio de propiciar o ver – uma experiência que nos desvela os mistérios do corpo, sua comunicação com as coisas e o mundo. Que elucida nossa essência carnal e nos faz saborear o visível, fazendo Merleau- Ponty, como ele mesmo diz olhar as pinturas da caverna de Lascaux em correspondência com os nimbos do Ser, através de outra visão, assim por se dizer, uma visão carnal, o ver no Ser. Exatamente como nos diz Mercury: “a pintura nos faz ver o invisível e entreabre a cegueira quase ‘mágica’ que intriga e incomoda o filósofo” (MERCURY, 2005, p.15, tradução nossa), circunstância que leva um filósofo como Merleau-Ponty ir ao encontro com a pintura e em especial com a da arte moderna. 34 1.3. A pintura, a natureza e o homem segundo o ponto de vista de Merleau- Ponty Na França entre os anos de