1 DELVANIR LOPES “DIZER COM CLARIDADE O QUE EXISTE EM SEGREDO”: uma leitura poético-filosófica de Solombra ASSIS 2012 2 DELVANIR LOPES “DIZER COM CLARIDADE O QUE EXISTE EM SEGREDO”: uma leitura poético-filosófica de Solombra Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientadora: Profª. Drª. Ana Maria Domingues de Oliveira ASSIS 2012 1 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Lopes, Delvanir L864d “Dizer com claridade o que existe em segredo”: uma leitura poético-filosófica de Solombra / Delvanir Lopes. Assis, 2012 210 f. Tese de Doutorado - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientadora: Drª Ana Maria Domingues de Oliveira 1. Poesia brasileira. 2. Meireles, Cecília, 1901-1964. 3. E- xistencialismo na literatura. 4. Morte. 5. Transcendência (Fi- losofia). I. Título. CDD 869.91 2 DEDICATÓRIA Aos que consideraram o projeto inexequível e aos empecilhos apresentados, por tornarem o sol em meio às sombras mais evidente. 3 AGRADECIMENTO Para Ana Maria Domingues de Oliveira, por acreditar na possibilidade da realização deste projeto e ser clareira em meio à densa floresta. Para Leila Gouvêa, pela sugestão do trabalho com Solombra e pelo incentivo sempre presente. Para FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) que, pela bolsa concedida e com apoio imprescindível, permitiu a realização desta pesquisa. 4 Falar contigo. Andar lentamente falando com as palavras do sono (as da infância, as da morte). DDizer com claridade o que existe em segredo. Ir falando contigo, e não ver mundo ou gente. E nem sequer te ver – mas ver eterno o instante. No mar da vida ser coral de pensamento. Felicidade? Não, Voz solene. Entre nuvens seta sempre constante à direção remota: Nascimento? Vontade? Intenção? Cativeiro? Humildade1 de amar só por amar. Sem prêmio que não seja o de dar cada dia o seu dia breve, talvez; límpido, às vezes; sempre isento. Ir dando a vida até morrer.2 1 Seguimos as edições de 1963 e 2001, pois na Obra Poética, edição de 1987 (Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1987, p. 711), lê-se “humilde”. 2 MEIRELES, Cecília. Falar contigo, andar lentamente falando. In: ______. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.1265-1266. (v. 2). 5 LOPES, Delvanir. “DIZER COM CLARIDADE O QUE EXISTE EM SEGREDO”: uma leitura poético-filosófica de Solombra. 2012. 210 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012. RESUMO Cecília Meireles é escritora da vida, procurando descrever, de modo poético, a existência humana. No jogo de palavras-cifras, a autora busca encontrar respostas ou apontar caminhos às suas próprias indagações, que no fundo, são universais. Solombra é um dos veículos eleitos pela poetisa para esse desvelamento do ser. Desvelamento que é a “síntese final e plena de toda a trajetória filosófica e mística idealizada muito antes de Viagem” pela autora, segundo Boberg (1989). Última obra ceciliana (1963) publicada em vida torna-se peculiar mesmo ao tratar de temas já caros à autora: estar-no-mundo, efemeridade, ser-para-a- morte e angústia diante da vida. Solombra mostra o ser em conflito que, em oposição às situações concretas e angustiantes em que vive, vê a possibilidade de transcendência. Estes traços “existenciais” são o que permeiam os objetivos desse estudo, uma vez que a poesia ceciliana possui a capacidade de colocar o ser em relação direta com o Ser, posição que outrora já fora privilegiada pelo Simbolismo, e que também está no filósofo Heidegger, que nos dá uma nova chave de leitura para os poemas. Preocupação é tirar da sombra à claridade os segredos. Isso se dá implicitamente, nos símbolos e enigmas que a escritora nos lança a todo o momento. Filosofia é apenas suporte teórico. A intenção primeira é fazer um estudo literário, ou seja, o suporte reflexivo do existencialismo é útil na medida em que amplia o horizonte do leitor e as possibilidades de leitura, além de mostrar um traço da modernidade de Cecília. Heidegger admite que a completa alétheia do ser se dá na linguagem poética, única autêntica para ele, por ser a “casa do ser”, ponto de partida para iluminação de toda existência e verdade. E a poesia ceciliana colabora nesse desvelamento. Palavras-chaves: Poesia. Existência. Morte. Transcendência. 6 LOPES, Delvanir. “SAYING CLEARLY WHAT EXISTS IN SECRET”: a poetic- philosophical reading of Solombra. 2012. 210 p. Thesis (PhD in Literature). – Faculdade de Ciências e Letras (College of Sciences and Letters), Universidade Estadual Paulista (State University of São Paulo), Assis, 2012. ABSTRACT Cecília Meireles is a writer of life, who wants to describe, in a poetic way, the human existence. In her code words play, she search find answers or show ways to her own indagations, which are, actually, universal questions. Solombra is one of the vehicles elect by the poetess to that alétheia of being. That is “the final and complete synthesis of the entire mystic and philosophical trajectory which was idealized by her still before Viagem”, according Boberg (1989). Last cecilian work (1963) published in life, it becomes peculiar even when it treats beloved themes to her: being-in-the-world, ephemerality, being-to-the- death and aguish in front of life. Solombra shows the being in conflict that, in opposition to the concrete and anguish situations in what it lives, sees the transcendence possibility. Those “existential” treats are what permeate the objectives of this work, since poetry has the capacity of put the being in direct relation to the Being, position that in former times was privileged by Symbolism and that are also into Heidegger´s thoughts, who give us a new reading key to her poems. A preoccupation is bring out by shadows to the clarity the secrets. This is given implicitly, in symbols and enigmas that the writer cast to us all moments. The philosophy is just a theorical instrument. The first intention is realize a literary study, or better, the existentialism reflexive support is useful when amplify the reader horizon and the possibilities of reading, besides to show a Cecilia Meireles modern treat. Heidegger admits that the complete being alétheia happens in the poetry language, unique and authentic to him, because it the “being house”, start point to the illumination of all existence and truth. And the cecilian poetry collaborates in that clarification. Keywords: Poetry. Existence. Death. Transcendence. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................... 08 CAPÍTULO 1: POESIA E PENSAMENTO EM CECÍLIA E HEIDEGGER .................. 19 CAPÍTULO 2: SOLOMBRA – DA SOMBRA À CLARIDADE ....................................... 31 2.1. O Dasein ............................................................................................. 38 2.2. A temporalidade ................................................................................. 71 2.3. A morte ............................................................................................... 90 CAPÍTULO 3: SOLOMBRA – A CLARIDADE ................................................................ 115 3.1. A possibilidade da transcendência ...................................................... 122 3.2. Poiesis – o desvelamento do Ser ......................................................... 154 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 185 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 195 8 INTRODUÇÃO [...] Tenho pena de ver uma palavra que morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo. Solombra, meu novo livro, é uma palavra que encontrei por acaso e que é o nome antigo de sombra. Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo.3 Sol-ombra define a missão enigmática ceciliana, misteriosa e clara, ambivalente ao mesmo tempo. Enquanto é ela própria instrumento de revelação, é a que esconde. Às vezes nos dá uma clareira, nos permite um foco de luz em meio à escuridão. E quando pensamos que estamos diante do conhecido, se mostra novamente enigmática e nos obscurece o pensamento. A escritora adverte que encontrou o termo solombra ao acaso e que se tratava de um antigo nome de sombra. Trouxe-o de novo à vida, livrou-o da masmorra, desencobriu-o. O termo escolhido “ao acaso” é perfeito: expressa o binômio da ausência/ presença, carrega em si a ambiguidade e por si só já lança uma série de conjecturas, além do que se alia ao jogo paradoxal de Solombra: sombra e claridade. Ao aceno de Cecília Meireles a palavra se move e posta-se no frontispício do seu mais recente livro (último) de poesias, a ele se incorporando de tal modo que se torna ela própria um antecipador e definitivo poema de estranha beleza: SOLOMBRA – Sombra. Sombra só? Sol e Sombra? Sol em sombra? Em torno dela multiplicam-se as conotações que se gravam em nós, em som, forma, côr e sugestão e também em signos que temos de decifrar continuamente pois são símbolos de interrogações, especulações transcendentes. 4 Mas a aventura de estar em contato com o jogo luz/ sombra é o que intriga e o que alimenta o leitor. A sombra e a luminosidade que o jogo de palavras cecilianas propõe levam à análise do interior humano que também é ambíguo e desconhecido. E entrar em si é arriscar- se no ignorado, em que lampejos de luz surgem repentinamente e logo em seguida desaparecem, engolidos pelas sombras. Assim trabalha nosso pensamento. Vai-se da sombra à 3 BLOCH, Pedro. Pedro Bloch entrevista Cecília Meireles. In:______. Vida, pensamento e obra de grandes vultos da cultura brasileira: entrevistas. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1989, p. 33. 4 ANDRADE, Carlos. D. de. apud MENDES, Chrisani. A Metáfora e Cecília Meireles (Estudo Crítico de Solombra). Jornal de Letras, RJ, Faculdade de Direito de Petrópolis, Ago 1968. Não paginado. 9 luz (ou vice-versa) e novamente à sombra, e novamente à luz, incessantemente. Estar num momento específico não implica, necessariamente, em não estar em outro, porque eles se completam e não se excluem. Isso remete aos limites que cercam o ser humano o tempo todo: “Em face da sua imagem ou da sua sombra, o homem realiza um dia o encontro decisivo com os seus limites.”5 O limite da sombra é a luz e o contrário também é verdadeiro, o que pode ser ampliado na afirmação de que esses dois momentos estão intimamente unidos, coexistindo latentes, um mesclado ao outro. A respeito da sombra na obra de Cecília, existe a associação com o duplo, como se o eu fosse dividido em sol (parte positiva) e sombra (parte negativa) e necessitasse sempre de completar-se, tornar-se total existencialmente. A sombra leva o eu-lírico “a representar a sua fragmentação e a buscar, consequentemente, uma completude e uma totalidade, a partir do diálogo lírico com ‘um outro’, um alter ego dissonante.”6 Desse modo, o eu e seu duplo, embora duas facetas distintas, são complementares e representam o mesmo ser. Ser/ não-ser são duas faces da mesma moeda, que não pode ser completa se lhe faltar um dos lados. O mesmo com a luz, que deixa de ter a qualidade de luz se não houver a sua negação: a não-luz. São questões sobre os limites que também permearão este trabalho com o último livro de poesia “adulta” publicado em vida por Cecília Meireles: Solombra. A obra permite essa compreensão paradoxal, embora Cecília tenha alertado que o termo que escolheu para titulá-la se refere somente à sombra. Por esse motivo, principalmente, críticos se dividem em algumas proposições a respeito do nome do livro. Uns acreditam que o termo solombra seja um arcaísmo barroco, versando sobre os planos real e ideal (dualismo) distinguidos, sobretudo, pelo desdobramento semântico da palavra solombra em sol (para o céu) e sombra (para a terra). Mas a origem do termo é controversa mesmo quando se pesquisa a sua etimologia. Provavelmente está ligado ao latim úmbra,ae, que é a sombra que se produz quando um corpo se interpõe entre a luz e a terra; ou ainda refere-se a sombreado, lugar à sombra, ou ao objeto que dá sombra. A origem do termo mais aceita pelos críticos diz que este é um arcaísmo soombra que parece ter origem no latim vulgar sulumbra (sub illa umbra “sob esta sombra”). Todavia, segundo o Dicionário Houaiss, “o -s-, agregado somente em português e espanhol, 5 LOURENÇO, Eduardo. Esfinge ou a poesia. In:______. Tempo e Poesia, Porto (Portugal): Editorial Inova, n. 20, Dez. 1974, p. 31. (Colecção Civilização Portuguesa). 6 ALÓS, A. P. et al. Quando Cecília se completa: a sombra, o reflexo e a busca transcendental da unidade subjetiva. In: MELLO, Ana Maria L. de. (org.) Cecília Meireles & Murilo Mendes – 1901/2001. Porto Alegre: Uniprom, 2002, p.144. 10 seria resultado do influxo de sol e seus derivados, por sol e sombra, solano ‘ensolarado’ e sombrio ‘sombroso’ serem conceitos relativos, opostos e constantemente acoplados.”7 Optamos pela explicação dada por Houaiss – uma vez que confirma o que sugerimos como linha de raciocínio para Solombra – quando diz que os termos luz e sombra estão atrelados e que a sombra é resultado da luz que se apaga sobre algum objeto. Assim, para haver a sombra, a luz não pode não existir, pois caso isso aconteça, é como se a sombra desaparecesse, concomitantemente. O livro ceciliano, como já salientado, comporta a ambiguidade. “O mistério todo está nisto. Este momento da emoção em que há claridade, mas tudo envolto na penugem da noite – a vida se recolhendo, se revisando.” 8 Nesta busca pela claridade em Solombra, percebe-se que a leitura de Cecília Meireles, apesar de parecer extremamente clara e auto-explicativa, não traz um único viés hermenêutico, mas tem a riqueza de várias possibilidades de leitura. Concordamos, assim, com Ana Maria Domingues de Oliveira em sua afirmação de que “passados já mais de quarenta anos da morte da poetisa, é já mais que urgente que sua obra seja lida de modo mais completo, atentando para a multiplicidade de sentidos possíveis de seus versos.” 9 Deste modo, a partir do título da obra, uma das conjecturas que se pode fazer é da possibilidade de lermos Solombra sobre dois ângulos que se complementam: escuridão e luminosidade. Cada um deles significa o limite do outro e são recursos líricos utilizados para demonstrar a possibilidade do devir, da transformação. Ainda que Cecília não seja explicitamente “luminosa” nas poesias de Solombra, essa claridade existe e transparece de forma contundente na obra. Nesse sentido, o caminho traçado é o mesmo encontrado na dissertação de Mestrado ao discorrer sobre a obra Metal Rosicler: O metal rosicler tem cor de crepúsculo. A cor negra da noite que começa sucede o crepúsculo, a madrugada que finda antecede o nascer do sol. Ambiguidade do lusco-fusco que é sempre prenúncio de algo, passagem que inicia alguma coisa, ciclos de luz e treva que se repetem. O momento do crepúsculo é o da luz manifestando-se em matizes diferentes, tornando tudo como que “ensanguentado”, mudando a paisagem, como que se preparando ou despedindo-se de algo. Crepúsculo da vida que se vai, prenúncio da vida 7 HOUAISS. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. Versão Reduzida. Editora Europa, março de 2002, parte da Revista do Cd-Rom n. 82, 1 CD-ROM. Neste caso demos preferência à versão reduzida pelo fato de que a edição de 2009 não traz estes importantes dados. 8 AYALA, Walmir. Solombra: um livro de Magia. Leitura. Rio de Janeiro, Jan. 1964, p. 20. (Resenha de Livros). 9 OLIVEIRA, Ana Maria D. Figuras femininas na poesia de Cecília Meireles. Disponível em: http://www.uesc.br/seminariomulher/anais/PDF/ANA%20MARIA%20DOMINGUES%20DE%20OLIVEIRA.p df. Acesso em 20Jun2010. 11 que se anuncia, o crepúsculo é sempre transição, como a existência que sempre está contrapondo tempo e eternidade, morte e vida, angústia e transcendência, ser e não-ser, mudar ou permanecer. 10 Demonstrar de que forma se dá o movimento das sombras para a luz é um dos intuitos desta tese. E, para isso, não trabalharemos diretamente com os semantemas cecilianos encontrados em Solombra, embora concordemos com Baudelaire quando diz que “para se penetrar a alma de um poeta, tem-se de procurar aquelas palavras que aparecem mais amiúde em sua obra. A palavra delata qual é a sua obsessão.”11 Cecília mostra certa predileção por algumas palavras, mas achamos melhor, contudo, partindo desses termos, definirmos alguns filosofemas para serem analisados na obra, a fim de alcançar o escopo a que nos propomos, que é o de percorrer os poemas de Solombra tendo como instrumento de leitura aspectos da filosofia de Heidegger. São unidades filosóficas que podem ser facilmente percebidas: o Dasein (que abordaremos no segundo capítulo), a antítese entre vida e morte, o eterno e transcendental em oposição ao material e fugaz (a temporalidade), a angústia como elemento que movimenta o ser12 rumo ao absoluto, a morte como possibilidade sempre presente ao existir, a poiesis e a possibilidade de transcendência. O trabalho da poetisa é com a palavra. A atenção da escritora está voltada em Solombra, sobretudo, na forma como apreende as ideias cifradas e simbólicas e as incorpora em sua poesia. Desse modo são as palavras e frases resgatadas da obscuridade aqui e acolá e devolvidas à natureza de outra forma, renascidas. 10 LOPES, Delvanir. A poética de Cecília Meireles e a relação com a Filosofia da Existência – ou da angústia e transcendência em Metal Rosicler. 2004. 224 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários). UNESP, Araraquara, 2004, p. 211. 11 apud FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. Tradução de Marise M. Curioni e Dora Ferreira da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 45. 12 Aqui se faz necessário um esclarecimento. Não há em Heidegger uma “definição” do que seja o Ser. No primeiro capítulo de Ser e Tempo o pensador faz, contudo, três considerações importantes: 1. “’Ser’ é o conceito ‘mais universal’. [...] Quando se diz, portanto: ‘ser’ é o conceito mais universal, isso não pode significar que o conceito de ser seja o mais claro e que não necessite de qualquer discussão ulterior. Ao contrário, o conceito de ‘ser’ é o mais obscuro.” (p. 29); 2. “O conceito de ‘ser’ é indefinível. (p. 29); 3. “O ‘ser’ é o conceito mais evidente por si mesmo.” (p. 29). E completa: “Por mais que a compreensão do ser oscile, flutue e se mova rigorosamente no limiar de um mero conhecimento verbal – esse estado indeterminado de uma compreensão do ser já sempre disponível é, em si mesmo, um fenômeno positivo que necessita de esclarecimento. No entanto, uma investigação sobre o sentido do ser não pode pretender dar este esclarecimento em seu início. A interpretação dessa compreensão mediana do ser só pode conquistar um fio condutor com a elaboração do conceito de ser. É a partir da claridade do conceito e dos modos de compreensão explícita nele inerentes que se deverá decidir o que significa essa compreensão do ser obscura e ainda não esclarecida e quais espécies de obscurecimento ou impedimento são possíveis e necessários para um esclarecimento explícito do sentido do ser.” (p. 31). Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia de S. Cavalcante, Petrópolis (RJ): Ed. Vozes, 2001. (v. 1). Diferenciaremos, nessa tese, entre ser e Ser. O primeiro se refere ao eu-lírico, ao Dasein, ao ente que existe realmente; o Ser, com letra maiúscula, é aquilo que é, o que se manifesta e se oculta o tempo todo, com quem o eu-lírico busca relacionar-se e que se manifesta, sobretudo, na linguagem poética. 12 É a própria Cecília quem, em entrevista a Walmir Ayala, afirma: “Parece que os poemas são apenas o resultado de um diálogo do espírito com o mundo. Do meu espírito ou do Espírito. [...] De permeio está, naturalmente a palavra, por ser a forma de expressão literária.”13 A autora percebe a palavra como o elemento que permite a comunicação entre os mundos e o poeta como aquele que trava uma relação diferenciada com ela. No entanto, esse diálogo não é claro, mas sempre insinuado verbalmente. Daí o uso extremado de metáforas, que levam à apreensão da essência por meio da associação de ideias e de imagens e que não pretendem ser evidentes, mas lançar o leitor a realizar uma série de associações livres. A perspectiva simbolista, tão evidente em Cecília Meireles, faculta ao poeta a capacidade de entender o enigma das “correspondências”, de mostrar o mistério e o poder de sugestão das palavras. Para Baudelaire: “o que é um poeta, senão um decifrador?” 14 A linguagem cifrada não é direta, mas não está separada da realidade empírica, por isso num poema tudo pode ser visto como linguagem cifrada, tudo é linguagem da transcendência, mas para que se torne cifra depende de uma existência que a interprete, atualizando-a em sua liberdade, que é o caso do poeta.15 A relação com a palavra dá vazão à manifestação do Ser, que “aparece” por meio do poeta: Através da poesia e da palavra, o ser profundo dos entes nomeados se exprime, dando espaço a que a poién da Natureza se revele. Na medida em que a “vocação do ser é aparecer”, a Natureza, na sua potência de desvelamento, tem no homem - o poeta – o vínculo para se manifestar.16 Portanto, o trabalho com Solombra visa clarear um pouco o que a poetisa Cecília, como vate, escreveu na relação com o Ser. Se o poeta, enquanto existente, é o que decifra a linguagem transcendente e a torna cifra, nós podemos participar dessa relação travada com o Ser, buscando o desvelamento dessas cifras. Heidegger afirma que o poeta está entre os deuses e a humanidade. Nós somos os entes que buscam entender as cifras transmitidas pelos 13 AYALA, Walmir. A véspera do livro: Obra Poética de Cecília Meireles. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 30/11/1958. Não paginado. 14 GOMES, Álvaro. C. O simbolismo. São Paulo: Ática, 1994, p. 23 (Série Princípios). 15 LOPES, Delvanir. A poética de Cecília Meireles e a relação com a Filosofia da Existência – ou da angústia e transcendência em Metal Rosicler. 2004. 224 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) - UNESP, Araraquara, 2004, p. 129. 16 MELLO, Ana Maria. L. de. Viagem aos confins da noite: Solombra. In: ______. Poesia e Imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 239. 13 poetas e visualizar os raios do Ser. A poesia de Cecília é enigmática para clarificar o Ser: Na verdade, poucas obras, como a de Cecília, podem ser consideradas como um claro enigma. A autora dá impressão de explicar tudo, desfazendo os emaranhados, mas a música de seus versos tende para o translúcido que dissolve a nitidez dos contornos sugeridos pelas palavras dispostas em metros diversos e também em versos livres, com o uso de rimas toantes, consoantes, sem amarras, “libérrima” e exata, como disse Manuel Bandeira.17 Na leitura a clarificação se dá aos poucos, digerindo as imagens que a poesia forma, não numa interpretação imediata de suas palavras. O eu-lírico, mesmo na finitude, sempre busca o infinito e assim, o universo ceciliano de Solombra vai se abrindo, sugerindo pistas, apontando, indicando a chave de leitura a que nos propusemos, que é trazer à claridade o que é mistério, segredo. Conforme afirmado, o estudo analítico de Solombra será amparado pela filosofia da existência e pelos conceitos de Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão contemporâneo da escritora. Aproveitamos para esclarecer alguns pontos acerca do movimento e do pensador, de forma sucinta, a fim de situar melhor os leitores nesta chave de estudo dos poemas, que possibilitará acesso à compreensão de muitas das ideias cecilianas presentes em Solombra. O movimento denominado Existencialista, por motivos cronológicos e de didatismo, é aquele encontrado em escritores dos séculos XIX e XX, como Jean-Paul Sartre, Martin Heidegger, Karl Jaspers, Gabriel Marcel entre outros. Contudo, o pensamento sobre a existência não é privilégio desses filósofos, remontando a fontes como Sócrates, Kierkegaard, Edmund Husserl e Hegel. Na realidade, a maior parte dos filósofos concentra seus esforços, num ou noutro momento, para decifrar o enigma que é a existência, justamente porque isto faz parte das perguntas fundamentais às quais o ser humano sempre está apto a fazer e a não encontrar respostas definitivas: de onde viemos, por que estamos aqui e para onde vamos. Somam-se a eles uma vasta gama de escritores de obras literárias e mesmo de pensadores que, em outras áreas, refletem profundamente sobre a problematicidade humana. O processo evolutivo do movimento existencialista ainda provoca desacordo entre os estudiosos, justamente pelo fato de que quase todos os filósofos tenham analisado a realidade 17 AMÂNCIO, Moacir. Cecília Meireles: um claro enigma. O Estado de São Paulo. São Paulo, Caderno 2, Cultura, 24 Jun 2001, p. D1. 14 concreta e não só a realidade teórica. Contudo, a maior parte deles estabelece Kierkegaard (1813-1855) como o grande precursor, seguido pelos pensadores alemães Nietzsche (1844- 1900), Husserl (1859-1938) e depois Karl Jaspers (1883-1969) e Heidegger (1889-1976). São muitos os nomes ligados ao existencialismo, pois as ideias do movimento se espalharam por vários países. Assim, outros pensadores importantes a serem citados são: os franceses Gabriel Marcel (1889-1973), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Albert Camus (1913-1960) e Simone de Beauvoir (1908-1986), o italiano Niccola Abbagnano (1901-1990) e os russos Leon Chestov (1866-1938) e Nikolai Alexandrovitch Berdiaev (1874-1948). De um modo geral, os escritores considerados existencialistas rejeitaram esse rótulo. Preferiam ser conhecidos como filósofos da existência. Mas o que é interessante saber é que esse modo de pensar procurou enfatizar, sobretudo, a problemática do existir, ressaltando os sentimentos de angústia, de “naufrágio”, do nada, da náusea em oposição às especulações de cunho meramente metafísico sobre as essências de Deus, do homem e da natureza. A existência parte dos questionamentos do sujeito que filosofa – o homem – e é sempre possibilidade, diferentemente da essência, que é predeterminada e não se modifica. Existir é estar diante do poder-ser, da incerteza, da problematicidade e do risco. Muitos estudiosos atribuem a Kierkegaard Renaissance 18e, consequentemente, as ideias existencialistas, às obras de Heidegger e Gabriel Marcel, respectivamente Sein und Zeit e Journal Méthaphisique lançadas no mesmo ano, em 1927. Outros consideram como marco inicial do movimento o ano de 1945 com a célebre conferência L´Existencialisme est un Humanisme, de Jean-Paul Sartre, realizada em Paris e publicada um ano depois. O movimento existencialista propagou-se na Europa logo após a primeira Grande Guerra e perdurou até as duas décadas seguintes à segunda Guerra Mundial. Portanto, é um movimento gerado entre guerras, quando findou o otimismo romântico e teve início uma época de profundas crises. A guerra mostrou o vazio dos sistemas filosóficos que acreditavam ter captado a essência da realidade e compreendido o caráter progressivo da história e dos 18 Na Alemanha, após a derrota da Primeira Guerra, houve a Kierkegaard-Renaissance, filósofo cujo pensamento atendia aos anseios espirituais da época, pois mostrava o sentido trágico da existência, bem como a radicalidade do mal e do nada. Além disso, foi Kierkegaard quem introduziu o termo existência no sentido compreendido na filosofia contemporânea, indo contra o idealismo, o materialismo marxista e o “essencialismo”. As filosofias da existência, tendo Kierkeggard como precursor, salientam o poder-se (devir), o ato, a experiência, a individualidade, a angústia, a liberdade de escolher. Os indivíduos existem, diferentemente das coisas que apenas são. Para aprofundamento: KIERKEGAARD, Soren A. O conceito de angústia. Trad. Álvaro L. M. Valls. Petrópolis (RJ): Vozes, 2011; KIERKEGAARD, Soren A. Temor e Tremor. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 2008, 124 p.; WYSCHOGROD, Michael. Kierkegaard and Heidegger – the ontology of existence. New York: The Humanities Press, 1954, 158 p. 15 princípios que a engendravam – como o positivismo, o marxismo, o idealismo. Nesse período o homem passou a ser considerado em sua finitude e singularidade, como sujeito “jogado” no mundo e cercado por situações problemáticas e absurdas nas quais não sabia como conviver. A experiência humana tornou-se o foco de atenção dos pensadores desse período; o “concreto” tomou o lugar do nocional. O existencialismo mostrou a liberdade ao alcance de todos, presente no cotidiano. E a liberdade permitiria ao homem construir o seu caminho, fazer suas escolhas e ser o único responsável por elas. O movimento, contudo, não é considerado doutrinário, mas sim apresenta uma espécie de atitude filosófica possível de ser tomada diante da realidade concreta. Segundo Huisman, “os anos 45, ditos ‘os anos negros’, são os do apogeu do existencialismo, em que, tendo deixado seu ‘pedestal filosófico’, este parte à conquista do grande público.”19 E Sartre foi o grande responsável por este momento, razão por que passou a ser o “papa” da nova “moda”. Foi o filósofo engajado, participando ativamente da vida política da França e do mundo, o que lhe rendeu desafetos constantes (com Alberto Camus e Merleau-Ponty); foi o escritor que tomou parte e acabou influenciando a vida literária, o teatro, o cinema e, claro, a filosofia. Como substrato ideológico, o existencialismo ajudou a construir o pensamento do século XX, penetrando em muitos campos da cultura. Poderíamos entender, assim, porque Heidegger, além de Ser e Tempo, escreveu obras como: A origem da obra de arte (1935), Hölderlin e a essência da poesia (1937) e A caminho da linguagem (1969) e se filiou ao partido nazista; ou Sartre, que escreveu os romances A náusea (1938) e A idade da razão (1945); peças de teatro como As moscas (1943) e Mãos sujas (1948), além de fazer panfletagem política. Além destes dois filósofos, destaque para Albert Camus com obras como Le Mythe de Sisyphe (1942), L´Étranger (1972) e La peste (1942), Nobel de Literatura em 1957. Lembramos ainda que Sartre chegou a vencer o mesmo prêmio em 1964, mas recusou-se a recebê-lo. A filosofia da existência teve seu declínio a partir dos anos 60 com a chegada do estruturalismo de Althusser, Lacan, Lévi-Strauss e Michel Foucault20. Os filósofos da 19 HUISMAN, Denis. Grandeza e declínio do existencialismo. In: ______. História do Existencialismo. Trad. Maria Leonor Loureiro. Bauru (SP): EDUSC, 2001, p. 147 et seq. 20 PINGAUD, Bernard. Jean-Paul Sartre. L’Arc. Paris: Librairie Duponchelle, n. 30, p. 1 apud HUISMAN, Denis. op. cit.: “1945, 1960: [...] Não só não se citam mais os mesmos nomes, não se invocam mais as mesmas referências, mas não se pronunciam mais as mesmas palavras. A linguagem da reflexão mudou. A filosofia, que triunfava há quinze anos, apaga-se hoje frente às ciências sociais, e este apagamento é acompanhado pelo surgimento de um novo vocabulário. Não se fala mais de consciência ou de sujeito, mas de regras, de códigos, 16 existência continuaram suas atividades, mas sem o mesmo vigor de antes, exceção feita a Sartre que, ora criticava a intervenção americana no Vietnã, ora defendia os movimentos esquerdistas, ficando ao lado dos estudantes durante a rebelião estudantil francesa em maio de 68. O engajamento político de Sartre mostrou que ele deu à liberdade uma significação não só teórica, mas, especialmente, social. Compreende-se a estreita ligação, não nova, entre a filosofia e a literatura, de modo particular a poesia. A afinidade entre os dois campos é objeto de estudo mais aprofundado no capítulo um dessa tese, razão por que não nos estendemos nesse assunto por ora. Cecília, de certa maneira, autoriza a aproximação entre a filosofia existencial e o fazer poético por apresentar em grande parte de suas obras uma temática voltada à existência humana, ao homem preso à evanescência do tempo, ao ser angustiado diante da morte e às interrogações sobre os porquês do existir. Em Solombra, obra escolhida para análise, também se encontram tais temas, porém com um sentido dilatado, justamente pelo caráter mais abstracionista da obra, no dizer de Leila Gouvêa, onde a busca do absoluto e a trajetória poética alcançam seu apogeu. Em O mundo contemplado, obra de 1967, Darcy Damasceno já constatava, de certo modo, a tendência mais reflexiva de Solombra: Em mais de um momento apontei a evolução do pensamento de Cecília Meireles para o campo crítico em virtude de certas constatações na consideração do mundo: a fluência e a ação deletéria do tempo, a insegurança do ser humano, a ineficácia da palavra como instrumento de comunicação. Via-se, em tal evolução, que as vivências tendiam, ao se concretizarem no poema, à desvinculação do sensível e à fixação no terreno intelectual. A abstração da linguagem, a expressão dubitativa, a insistência da indagação marcavam, por outro lado, o profundo cepticismo da poesia ceciliana. 21 Solombra é um livro formado por 28 poemas sem título que, embora possam ser lidos de modo autônomo, dialogam entre si. Todos são dispostos, sem restrição, em quatro tercetos em sua maioria alexandrinos e decassílabos, musicais, que sempre se concluem com um verso isolado, geralmente eneassílabo, densamente construído, encerrando um raciocínio lúcido e rigoroso. Alguns versos encerram uma ideia completa, em outros o pensamento é distribuído na estrofe toda, com os versos se diluindo na forma de enjambements que permitem que a incompletude quanto ao sentido de um verso se conclua no verso seguinte, provocando um de sistemas; não se diz mais que o homem faz o sentido, e sim que o sentido advém ao homem; não se é mais existencialista, mas estruturalista.” (grifos do autor). 21 DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o mundo contemplado. Rio de Janeiro: Orfeu, 1967, p. 137. 17 choque entre o som, a organização sintática e o sentido, caracterizando a tensão que existe nos poemas de Solombra. A estrutura poética mostra alguma semelhança com a terza-rima. Este tipo de construção poética apresenta um engenhoso sistema matemático na elaboração das rimas nos versos decassílabos de cada terceto. As rimas se fazem de modo que o verso central de cada terceto controle os dois versos marginais do terceto seguinte (ABA BCB CDC etc.). O poema termina, geralmente, com um verso isolado, chamado de “fecho de ouro”. O movimento proporcionado pelo encadeamento das rimas confere dinamismo ao poema como se, ao iniciar um caminho, não houvesse mais como voltar atrás, um caminho dinamicamente traçado em que sempre um elemento acabaria influenciado o outro. É com esse tipo de construção poemática que Dante Alighieri escreveu a Divina Comédia. Havia uma preocupação com a simbologia do número 3, por ser indicativo da perfeição, da Santíssima Trindade, bem como do equilíbrio e da estabilidade. Assim, a obra descreve 3 lugares (Inferno, Purgatório, Paraíso), que são divididos em 9 círculos cada, formando 27 níveis no total. Purgatório e Paraíso são compostos por 33 cantos; Inferno possui um canto a mais, sendo que cada canto traz entre 40 a 50 tercetos e termina sempre com o verso isolado – “fecho de ouro”. Cecília, contudo, utiliza o recurso poético da terza-rima de forma particularizada, já que seus poemas não trazem a preocupação com a rima e são versos irregulares, modernos. Do mesmo modo é que, apesar de os poemas serem finalizados com um verso isolado, em estrofe separada, nem sempre os podemos considerar um “fecho de ouro” como acontece na Divina Comédia. No caso de poemas como os de número 1, 3, 11 a 15, 25 e 28, acreditamos que se trata, na verdade, de enjambements da estrofe anterior ou de arremates. Por não serem nomeados, os poemas de Solombra, nesse estudo, foram por nós numerados até 28 e é dessa maneira que aparecem referenciados no corpo do trabalho. Assim, para indicar onde se encontra o verso citado, utilizamos apenas a estrofe do mesmo, numeradas de 1 a 5 – já que todos os poemas têm estrutura igual. Acreditamos que essa forma tornará mais fácil a localização das citações dos poemas, embora exija do leitor a pré- numeração dos mesmos. Nesse estudo dois momentos são bem definidos, ainda que se mesclem o tempo todo, reportando à possibilidade ambivalente que o título da obra permite: no primeiro, a leitura de Solombra será voltada à sombra, em que salientaremos os temas mais relacionados ao existir, validados pela conceituação heideggeriana do Dasein, da temporalidade e da morte. Na 18 segunda etapa a proposta é encontrar na obra ceciliana a claridade e o desvelamento, desenvolvendo o estudo sobre a possibilidade de transcendência do ser e a poiesis. Não é oposição ao primeiro capítulo, mas um acréscimo, o que deixaremos claro nas incursões feitas pelos versos dos poemas cecilianos de Solombra. O direcionamento do eu-lírico ao futuro, amparado pelo sentimento de ainda-não, a aceitação da morte, a busca pela solução aos questionamentos diante do estar-no-mundo e a poesia como possibilidade de diálogo com o transcendente passam a ser considerados aspectos que também nutrem Solombra. Uma última consideração a ser feita refere-se ao fato de os poemas não serem analisados integralmente quando referenciados para discussão de um tema, o que pode causar estranhamento durante a leitura deste trabalho, bem como aparente contradição com o que a tradição acadêmica costuma realizar. Conforme salientado, trabalharemos neste ensaio com filosofemas: o Dasein, a temporalidade, a morte, a transcendência e a poiesis. Em muitos casos o mesmo poema traz contribuições que julgamos importantes para vários destes filosofemas, o que se tornou um empecilho para que fossem tomados na íntegra, razão por que acreditamos ser viável buscar em toda a obra Solombra versos que mantivessem relação com nossos propósitos de discussão nos diferentes momentos deste trabalho. Contudo, salientamos que, embora fossem tomados aqui e acolá, a escolha não foi a esmo e os versos ou estrofes mantêm relação de sentido quando lidos de modo fragmentado dentro do tema proposto e também quando inseridos no contexto do poema completo. 19 Capítulo 1 Poesia e Pensamento em Cecília e Heidegger 20 Poesia e Pensamento em Cecília e Heidegger Todo poeta é muito mais capaz do que se pensa geralmente de raciocínio exato e de pensamento abstrato.22 A filosofia e a poesia andaram compassadas por muito tempo, se tomamos por base para esta argumentação a Grécia, considerada como berço da cultura ocidental.23 Não era fácil determinar os limites que separavam os filósofos e os poetas, já que estes últimos também gozavam de imenso prestígio na formação espiritual do homem e na sua educação, de um modo muito mais relevante do que se encontra em outros povos. Podemos perceber tal influência na importância que têm os poemas de Homero, Ilíada e Odisséia (aproximadamente VIII aC), considerados basilares para a história do pensamento ocidental. A filosofia (Φιλοσοφία) ou “amor da (pela) sabedoria”, termo atribuído a Pitágoras, “significava, no período pré-socrático, o estudo teórico da realidade, o saber do sábio, amor e conhecimento do lógos ‘verbo, palavra’, que tudo rege e unifica, em contraposição à polymathía, polymátheia ‘saber de coisas desconexas, saber que não ensina a ter compreensão’.” 24 A filosofia, segundo Aristóteles (384/383 aC-322 aC), nasceu nos homens pelo espanto diante da existência: Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias, e progredindo em seguida pouco a pouco até resolverem problemas maiores: por exemplo, as mudanças da Lua, as do Sol e dos astros e a gênese do Universo. Ora, quem duvida e se admira julga ignorar: por isso, também quem ama os mitos é, de certa maneira, filósofo, porque o mito resulta do maravilhoso.25 22 VÁLERY. Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: ______. Variedades. Trad. Maiza Marins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 216. 23 Orientalistas querem fixar o “nascimento” da filosofia no Oriente pela relação entre as primeiras especulações dos gregos e a sabedoria oriental, defendendo que a filosofia grega derivou das ideias orientais. Ocidentalistas acreditam que a sabedoria oriental é baseada em convicções religiosas, mitológicas e não racionais. Contudo, as primeiras produções filosóficas que se têm notícia na Grécia datam dos séculos VII e VI aC, ainda impregnadas de elementos míticos. 24 HOUAISS, Antônio; VILLA, Mauro de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 2002. 25 Aristóteles. Metafísica (Livro I e Livro II). Trad. Vincenzo Cocco. São Paulo: Abril SA Cultural, 1984, p. 14. 21 O pensador grego diferenciava a poesia (ποίησις – o fazer, fabricação, produção, criação) da historiografia, afirmando que aquela se dedicaria a representar o que poderia acontecer e não o que realmente acontecia, que era o que fazia esta última. Assim, Homero, ao escrever suas obras em verso, continuaria sendo historiador e não poeta, por narrar coisas que aconteceram na verdade. A poesia era imitativa também para Aristóteles – mas não com sentido pejorativo – e devia ser entendida como uma tentativa de igualar-se à natureza, de ser verossímil. Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, ele é o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.26 Na Grécia antiga, de fato, não se podia distinguir o que fosse campo da filosofia e da poesia, tanto que filósofos eram considerados poetas ou vice-versa. Isso porque a existência era descrita na forma de versos, dando relevância à “arte com a palavra”, aparecessem elas em poesia ou em “prosa” (embora, pelo que sabemos, os gregos não trabalhassem com a noção de prosa). Antes de Aristóteles, Platão (428/427 aC – 347 aC), em A República, ao expor a pedagogia para a criação da cidade perfeita, excluiu poetas, escultores e pintores, porque estes imitariam as coisas sensíveis e ofereceriam uma imagem desrespeitosa dos deuses. Rogaremos a Homero e a outros poetas que não se indignem se eliminarmos esses e todos os demais versos similares, não porque lhes falte arte poética ou sejam desagradáveis ao ouvido, mas exatamente porque quanto mais poéticos, menos devem ouvi-los jovens e adultos, se quiserem ser livres e temer mais a escravidão que a morte. 27 Platão considerava a arte como mímesis (imitação), o que faria com que não fosse estudada em si mesma, mas nas suas relações com a moral. Nesse sentido é que a poesia, assim como a tragédia e a comédia deveriam ser excluídas, já que favoreciam a corrupção e não a educação. “Es en Platón donde encontramos entablada la lucha con todo su vigor, entre las dos formas de la palabra, resuelta triunfalmente para el logos del pensamiento filosófico, 26 ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 203. (Os Pensadores, 2). 27 PLATÃO. A república. Trad. Ciro Mioranza, São Paulo: Editora Escala, 2007, p. 88. 22 decidiéndose lo que pudiéramos llamar “la condenación de la poesía” […].28 Os medievais escolásticos atribuíram à poesia um caráter filosófico, compreendida como um modo figurativo de abordagem dos assuntos divinos o que, para Heidegger, deu início à confusão entre ser e divindade. Na filosofia moderna, depois de Kant (1724-1804), o interesse da filosofia pela poesia e arte em geral alastrou-se e vice-versa, poetas também passaram a se interessar pela filosofia: “Há homens [...] que vão da poética à filosofia; outros que vão da filosofia à poética. O inevitável é ir de um ao outro, nisto como em tudo.”29 No primeiro movimento encontram-se escritores como Antonio Machado, Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, Paul Válery, Mallarmé; no segundo percurso aparecem Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Bachelard, Michel Foucalt e Paul Ricoeur, entre outros. A poesia, atualmente, é entendida como “composição em versos (livres e/ou providos de rima) cujo conteúdo apresenta uma visão emocional e/ou conceitual na abordagem de ideias, estados de alma, sentimentos, impressões subjetivas etc., quase sempre expressos por associações imagéticas.”30 Esta “definição” deixa claro que a ideia de poeta como quem somente devaneia ou sonha fica um tanto desfigurada; no entanto as noções de construção e de relação com o mundo das ideias pelas imagens se mantêm. Tanto quanto a filosofia, a poesia apresenta o amor pela palavra, concebida como instrumento para conduzir conceitos ou emoções.31 É bom salientar que poetas continuam sendo poetas, filósofos continuam sendo filósofos. O encontro que acontece é para confrontá- los na esfera do pensamento, uma vez que são vizinhos, de certo modo. Para que isso aconteça, propomos a busca de possíveis relações entre a obra poética Solombra, de Cecília Meireles (1901-1964), e o pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976). Frisamos, porém, que a ênfase dada está na literatura brasileira, que é o que motiva o estudo. Heidegger e suas reflexões entram como ideário, suporte para ajudar-nos no “clareamento” da obra ceciliana em questão. O pensador alemão permite essa aproximação por ter obras voltadas à linguagem e particularmente ao discurso poético. Ele apresenta um dado importante em relação aos demais 28 ZAMBRANO, María. Filosofía y Poesía. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 13-14. “É em Platão que encontramos iniciada a luta, com toda a sua força, entre as duas formas da palavra, que termina por dar a vitória para o logos do pensamento filosófico, declarando o que poderíamos chamar “a condenação da poesia […]”. (tradução nossa). 29 MAIRENA, J. de. Sentencias, donaires, apuntes y recuerdos de un profesor apócrifo. [s.n.t.]. p. 160 apud NUNES, Benedito. Hermenêutica e Poesia – O pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p. 14. 30 HOUAISS, Antônio; VILLA, Mauro de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 2002. 31 Mallarmé respondendo a Degas, que encontrava dificuldades em compor versos: “Absolutamente não é com ideias, meu caro Degas, que se fazem os versos. É com palavras.” apud VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento Abstrato. In: ______. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991, p 207-208. (grifo do autor). 23 filósofos ao estudar a poesia como possibilidade de manifestação máxima do Ser e de sua verdade. Aproximar o pensamento filosófico do poético é “revolucionário” para Heidegger, já que conclui ser o fazer poético a única possibilidade da completa alétheia, desvelamento do Ser. Mesmo em Ser e Tempo32, cujo escopo não é a análise da poesia ou da linguagem, o filósofo traz possibilidades de paralelos com a poética ceciliana quando, embora tratando da existência, já aponta para a abertura poética: “A comunicação das possibilidades existenciais da disposição, ou seja, da abertura da existência, pode-se tornar a meta explícita do discurso ‘poético.’”33 Ainda em Ser e Tempo, e nas suas considerações acerca da temporalidade, do sentimento de angústia, do ser-aí, da morte, da possibilidade de transcendência, dá-se vazão ao diálogo produtivo com Solombra, que passa a ser instrumento para a epifania do Ser, presente na poesia. Heidegger tem, segundo a crítica mais especializada, duas fases: a primeira centrada em Ser e Tempo (1927) e a segunda, contada a partir do lançamento de Carta sobre o Humanismo (1946). Sucintamente: a primeira fase é a busca da ontologia fundamental baseada no método fenomenológico, estudando o homem como ser-aí que busca acesso ao Ser; já a seguinte preocupa-se com a análise do Ser e o modo como se dá sua auto-revelação. Contudo, seja na primeira, seja na segunda fase, o pensador alemão sugere caminhos que podem ser proveitosos para o clareamento do nosso propósito principal: penetrar o mundo de Solombra. Clareamento sugere a presença do não-claro, luz sugere a presença da não-luz, verdade sugere a presença da não-verdade, o velado sugere o des-velamento. Ou seja, a oposição torna-se aparente, já que apenas uma linha tênue separa essas concepções. Vejamos o que diz Eco a esse respeito: O conhecimento secreto é o conhecimento profundo (porque só o que se encontra sob a superfície pode se manter desconhecido por muito tempo). Assim, a verdade passa a identificar-se com o que não é dito ou com o que é dito sob a superfície de um texto. Os deuses falam (hoje diríamos: o Ser fala) através de mensagens hieroglíficas e enigmáticas.34 32 Nesta tese são utilizadas duas traduções de Ser e Tempo, uma portuguesa e outra espanhola, que se alternarão nas citações quando uma ou outra se mostrar mais clara e eficiente. 33 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia de S. Cavalcante. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 2001, p. 221. (v. 1). 34 ECO, Umberto. Interpretação e História. In: ______. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 35. 24 Cecília Meireles não alimenta a preocupação filosófica como um pensador existencialista, mas podemos perceber sua inquietação sempre evidente, apesar disso, sobre o estar-no-mundo, sobre a angústia, sobre a efemeridade dos instantes, sobre a morte e transcendência do Ser. Confirma este pensamento Dilip Loundo que considera que “a poesia de Cecília Meireles constitui, de forma legítima e precisa, uma investigação das raízes da existência humana e um percurso filosófico-espiritual de auto-realização envolto em serenidade e sabedoria.”35 Esta seria uma das chaves que tornariam a sua obra poética tão original e de qualidade. Assim, ao sugerirmos a leitura de Solombra amparada, principalmente, pelo ideário heideggeriano, não forçamos uma aproximação entre dois escritores contemporâneos, uma vez que mantêm inquietações semelhantes e podem dialogar, um permitindo a melhor compreensão e ilustração do pensamento do outro. Não se excluem, mas se complementam. Ao afirmarmos que o pensamento de Heidegger nos auxiliará no clareamento dos versos de Solombra, não queremos indicar que em todas as situações isto será possível. Caso assim fizéssemos correríamos o risco de querer transpor para a obra poética de Cecília os dados encontrados na filosofia, o que não é, definitivamente, o intuito. Desse modo, ainda que nos reportemos com maior ênfase a Heidegger, incluiremos em nosso estudo inúmeros outros autores que, de um modo ou de outro, serão auxílio para esclarecer as questões levantadas. Como dissemos, a sugestão de que há certa relação entre filosofia da existência e Cecília Meireles não é difícil de ser percebida pelo leitor atento, uma vez que a escritora trabalha com temas como a temporalidade, a precariedade dos seres no mundo ou o ceticismo diante da existência. Do mesmo modo, parte da crítica afirma que Cecília apresenta preocupações com a metafísica, como uma das vertentes de sua lírica. Contudo, dizer que há em seus escritos a busca do transcendente, do absoluto, do misterioso, não é o mesmo que dizer que essa relação se dá com determinado pensador e nem com determinado momento da história da filosofia.36 Grande parte da crítica relaciona o metafisicismo da escritora ao pensamento do filósofo Platão e aquele encontrado, sobretudo, nas regiões orientais. Entretanto, com relação ao pensador, não encontramos nenhuma referência em que Cecília confirmasse ser influenciada diretamente pelo pensamento de Platão, apenas a constatação de que, talvez, haja um “projeto platônico” em sua obra poética, feita pelos críticos. Neste 35 LOUNDO, D. Cecília Meireles e a Índia: viagem e meditação poética. In: GOUVÊA, L. V. B. (org). Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas/ Fapesp, 2007, p. 130. 36 Sobre poesia metafísica ver MELLO, Ana Maria L. de (org.). A poesia metafísica no Brasil – percursos e modulações. Porto Alegre: Libretos; FAPA – Faculdade Porto-Alegrense, 2009. Cf. também p. 116. 25 estudo, porém, ao utilizarmos uma chave de análise em que a existência que, poderíamos considerar, recebe um tratamento prioritário em relação ao mundo das essências – e, portanto, platônico – sabemos que estamos indo na contramão ao tratarmos do metafisicismo ceciliano. Entendemos também o risco que corremos com tal escolha ao nos referimos diretamente à filosofia de Martin Heidegger e ao momento histórico em que se insere a filosofia da existência, uma vez que até bem pouco tempo esta não era uma ilação admitida. Salientamos que nossa escolha por trabalhar com Heidegger não foi aleatória, ou seja, não é uma simples constatação da possibilidade que o pensador alemão oferece de auxiliar na compreensão dos versos de Solombra. Trata-se de uma linha de pensamento embasada, compreendendo, nesse sentido, que a metafísica ceciliana volta-se ao entendimento ontológico e suprassensível da realidade e não apenas na busca do absoluto e do enigmático. Mas, deixando por ora essa discussão, em alguns estudos encontramos a sinalização sobre a possível aproximação entre Heidegger e Cecília Meireles. Por exemplo em Hansen, em artigo sobre Solombra, contudo, ao mesmo tempo em que afirma, descarta imediatamente tal possibilidade: Em Solombra, contudo, o apagamento dos dados da experiência da vida presente pela repetição obsessiva das imagens de perda é uma experiência da temporalidade que poderia encontrar um análogo, se acaso a poesia não tivesse plena autonomia em relação a qualquer esquema sociológico ou filosófico redutor [...] na analítica existencial de Heidegger sobre o Dasein e a irrisão humana do ser-para-a-morte. 37 De modo geral, os analistas de Cecília a consideram “metafísica”, mas um metafisicismo de raiz mística e não filosófica: Distancia-se, infinitamente, do metafisicismo filosófico de Rilke, de base existencial, e onde, por tal motivo predomina a inteligência, o pensamento e a eterna busca da verdade. O êxtase de Cecília relaciona-se com o êxtase dos místicos: não lhes interessa a verdade definida, mas a verdade pressentida; instruem, não pensam; adoram, não explicam – mas sempre neles, o êxtase constitui o destino irrecusável que nada contraria.38 O que verificamos é que, nos dois exemplos citados, não há possibilidade de uma leitura existencial ou heideggeirana da poesia de Cecília Meireles para esses críticos, em que discordamos. No nosso entender, as experiências de vida com as quais Cecília trabalha, 37 HANSEN, João. A. Solombra ou a sombra que cai sobre o eu. São Paulo: Hedra, 2005, p. 42. 38 SAMPAIO, Nuno de. O misticismo lírico. In: MEIRELES, Cecília. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987, p. 47. 26 sobretudo, em Solombra, não são apenas referências de perda e o fazer poético; ainda que não se reduza a qualquer esquema filosófico ou sociológico, permite a abertura a outras chaves de leitura que auxiliem em sua compreensão, já que faz parte de uma cultura, de uma época histórica, da ideologia que participa de sua produção. O metafisicismo de Cecília Meireles, a nosso ver, é sim extremamente intelectual e filosófico: não lhe basta intuir, mas é preciso experimentar a verdade, não basta contemplar, é preciso ser ativa na vida cotidiana, não basta pressentir, é preciso buscar explicações. Não quer a “verdade definida” porque sabe que esta somente se insinua, mas não se desvela por completo. Cecília, diante da vida, não é passiva, mas constantemente ativa e, inclusive, militante de causas como a educação, o pacifismo, o folclore, além da literatura e das artes. Assim, ainda que transpareça de modo mais evidente sua relação com a morte, ela se dirige à vida. Como a preocupação desse estudo está no âmbito do pensamento, das ideias, não é uma das intenções precípuas saber se Cecília (1901-1964) foi leitora de Heidegger (1889- 1976), embora essa informação pudesse facilitar o trabalho de análise. Os dados que coletamos a esse respeito são muito vagos, uma vez que Mesmo a biblioteca de quase doze mil volumes em mais de dez idiomas que a autora de Mar absoluto reuniu em sua casa do bairro do Cosme Velho, que poderia trazer algumas iluminações relevantes, jamais foi catalogada – e permanece fechada ao público, mesmo o acadêmico.39 Todavia, em uma das cartas de A lição do Poema, Cecília chega a transcrever, em carta ao amigo Armando Cortês-Rodrigues, trechos do jornal de Zürich chamado Die Tat, em que ela e o amigo aparecem citados, inclusive com transcrição de poemas40. Em outras dessas cartas, ao discorrer sobre a tradução que estava fazendo de Rilke, a escritora deixa claro o fato de que tinha fluência na língua alemã e, assim, poderia ter manifestado interesse pelo ideário da filosofia existencialista, “moda” na época em que vários livros da autora foram concebidos. Contudo são especulações. A poetisa escreve: “Embora eu tenha estudado muito alemão, passei tantos anos sem o praticar que hoje me é quase preciso reaprendê-lo. E quando conheci 39 GOUVÊA, Leila V. B. A capitania poética de Cecília Meireles. Cult – Revista Brasileira de Literatura. São Paulo: Lemos Editorial e Gráficos Ltda, ano 5, Out 2001, p. 45. Até a presente data, a situação da biblioteca de Cecília permanece inalterada. 40 Cf. SACHET, Celestino. A lição do poema – Cartas de Cecília Meireles a Armando Côrtes-Rodrigues. Ponta Delgada: Instituto Cultural Ponta Delgada, 1998, p. 182. 27 Rilke, foi também em francês, embora naquele tempo o pudesse ler corretamente no original. Traduzia diariamente um ‘lied’ de Goethe.”41 Na entrevista que Cecília concedeu a Haroldo Maranhão, quando questionada sobre as raízes espirituais de sua poesia, ela diz que “o poeta dificilmente pode ‘raciocinar’ sobre a sua própria poesia [porque] essa é a função do crítico, intermediário na mensagem artística.”42 E completa: Em todo caso, se for possível considerar “raízes espirituais” aquilo de que mais gosto, ou que mais repercute em mim, lembrarei o oriente clássico e os gregos; toda a Idade Média; os clássicos de todas as línguas; os românticos ingleses; os simbolistas franceses e alemães. E principalmente a literatura popular do mundo inteiro, e os livros sagrados.43 Portanto, ainda que ora a escritora nos indique pistas para a leitura de sua obra, ela deixa claro que a poesia é muito mais do que isso, uma vez que não é tarefa do poeta “raciocinar” sobre o que produz. Embora haja um “facilitador” no indicativo das “influências” de Cecília, nos arriscamos a percorrer um caminho que, aparentemente, a autora não confirma ter seguido nessa sua afirmação, ainda que afiance predileção pelos gregos e simbolistas alemães. Afinal [...] não há sentido verdadeiro de um texto. Não há autoridade do autor. Seja o que for que tenha pretendido dizer, escreveu o que escreveu. Uma vez publicado, um texto é como uma máquina que qualquer um pode usar à sua vontade e de acordo com os seus meios: não é evidente que o construtor a use melhor que os outros. Além disso, se ele conhece bem o que quis fazer, esse conhecimento sempre perturba, nele, a perfeição daquilo que fez.44 Temas que reportam à existencialidade humana, situações-limite, angústia e, sobretudo, morte, também aparecem nos livros anteriores a Solombra. Na verdade, a constatação de que a obra ceciliana evidencia a preocupação existencial, e por esse motivo, acaba tratando de outros pontos subordinados a ela, não chega a ser novidade. Frequentemente encontramos nos autores críticos referências a tais inferências. Cecília Meireles é uma poetisa que se interessa pela existência e indaga sobre ela, buscando soluções aos mais variados anseios e tudo isto transparece em suas obras: “Inquietação metafísica, 41 Id. Ibid., p. 8. 42 MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987, p. 68. 43 Id. Ibid., p. 68. 44 VÁLERY, Paul. Acerca do Cemitério Marinho. In:______. Variedades. Trad. Maiza Marins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991, p.176. (grifos do autor). 28 beleza formal, anseio de ‘perfeição’, reflexão incessante sobre a condição humana e o destino do homem [...] insurgência contra o desencantamento do mundo e a miséria simbólica da sociedade da mercadoria”45 são algumas faces da poesia, considerada “intemporal”, de Cecília Meireles, que contribuíram para a permanência de sua lírica. A poetisa captou as “carências” espirituais e culturais de seu tempo, segundo Leila Gouvêa. Do mesmo modo que dissemos acerca do metafisicismo, nossa intenção vai além da simples constatação. Buscamos a alétheia ceciliana, a descoberta e o clareamento da verdade. E esta provém do relacionamento com a realidade, afinal a humanidade se compreende no mundo e não fora dele, como afirma Heidegger. Sabemos, contudo, que a verdade pressupõe o velamento (isso ocorre quando dizemos uma “meia verdade”, ou uma “quase mentira”, suponhamos) e, nesse caso, o binômio verdade/ não-verdade pode ser relacionado com outro binômio: luz/ não-luz. Não queremos “a” verdade ceciliana, mas sim clarear o ideário da autora e dar um pouco mais de nitidez aos enigmas de sua poética. O tratamento dado aos temas cecilianos, neste trabalho, será o de perceber, o mais claramente possível, o modo como a autora trata a existência humana. Obviamente que esses “conceitos” são encontrados diluídos nos poemas, nas linhas e entrelinhas, e por isso, dependerão de um trabalho atento para “dizer com claridade o que existe em segredo”. Trata- se de perceber o que está subentendido, de ver além do que salta à vista nas palavras. Como disse Merquior a respeito da poesia de Cecília: “Era – e é – uma poesia filosófica, mas nunca uma filosofia expressa em versos didáticos. Simplesmente uma poesia impregnada do sentido da vida. A vida invisível de tão leve.”46 A temática explorada por Cecília traz as indagações acerca do existir. Filosofia trava um diálogo com a forma poética. Ambas trafegam em patamares semelhantes: a poesia, abstrata e condensada, exige do leitor a análise, a reflexão constante e ilações. A filosofia trabalha com a linguagem poética, permite a criação de imagens mentais, tenta explicar os porquês das situações mais cotidianas, tem sua musicalidade e sensibilidade próprias. Não são a mesma coisa, dão tratamentos diferentes a temas semelhantes, mas mantêm a relação que tinham quando do começo da filosofia ocidental conhecida: o pensamento. Paradoxalmente estão próximas, mas entre elas há um abismo. Os simbolistas (e os neossimbolistas, que é como parte da crítica considera Cecília 45 GOUVÊA, Leila V. B. Pensamento e “lirismo puro” na poesia de Cecília Meireles. São Paulo: EdUSP, 2008, p. 218. (Ensaios de Cultura, 34). 46 MERQUIOR, José. G. Poesia para amanhã: Metal Rosicler. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10 de Setembro de 1960, Suplemento Dominical, p. 7. 29 Meireles) tinham uma dupla ambição: metafísica e formal. O símbolo é o recurso eleito para a comunicação poética, pois nele o significado tem a propriedade de manifestar-se e de se realizar. O símbolo expressa ideias, insinua sentimentos e promove inquietações metafísicas. Por eles o artista comunica ideias e reflete sobre o estar-no-mundo: Estética marcada pela teorização e, por isso mesmo sistematizada numa doutrina, longe de transpor conceitos existenciais para o plano da poética, o simbolismo, interessado em indagações mais intensas sobre a existência humana e o mundo moderno, desencadeará sua revolução em termos de teoria da linguagem. Em decorrência da forma de denúncia contra os valores vigentes a cosmovisão simbolista transfere suas inquietações para o plano metafísico, deixando de preconizar a emoção direta em favor da reflexão, marcando a poesia pelo esforço cognitivo e auto-consciente.47 O esforço cognitivo está em Solombra, obra na qual lemos em um dos seus versos: “No meu dia seguinte encontrarei aquela/ consequência de ser clarividente e pronta.” (poema 19, estrofe 3) Uma das ambições do sujeito lírico é encontrar respostas ao questionar-se sobre o estar-no-mundo: “Que lírico arquiteto arma longos compassos/ para a curva celeste a que os homens se negam?” [...] “Quem fostes vós? Quem sois? Quem vimos, nos lugares/ da vossa antiga sombra? E por quem procuramos?/ Que pretendem concluir impossíveis diálogos?” (poema 26, estrofes 2, 4) Muitas das constatações e dos questionamentos colocados pelo eu-lírico são mais bem iluminados pelo pensamento heideggeriano. Como afirmou Carollo no fragmento acima, não se trata de transpor conceitos existenciais para a poesia, basta clareá-los. Poesia é um misto de emoção e razão: “A poesia é um centauro. A faculdade intelectiva e aclareadora que articula palavras devem movimentar-se e saltar juntamente com as faculdades energéticas, sensitivas, musicais.” 48 Na busca pelo desvelamento do Ser, a intenção dos poemas é revelar o universal e não o individual da existência. Os “conceitos” colocados pelo poema não são resolvidos pela mera intuição, exigindo mais do leitor. “Para poderem ser esteticamente intuídos, os conceitos sempre querem ser também pensados, e o pensamento, uma vez posto em jogo pelo poema, não pode mais, a seu comando, ser sustado.”49 Assim sendo, consideramos que os poemas 47 CAROLLO, C. L. Decadismo e Simbolismo no Brasil - crítica e poética. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; Brasília: INL, 1980, p. 7. 48 POUND, Ezra. Emoção e Poesia. In: ______. A arte da poesia – ensaios escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1988, p. 70. 49 ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. In:______ Notas de literatura. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2003, p. 67. 30 ultrapassam seus próprios limites para não serem condenados à estagnação, seja na carga de emotividade, seja no pensamento. Paul Válery nos esclarece que o imperativo do poeta e da poesia é serem além de si mesmos: Minha intenção aqui não é ensinar-lhes o que quer que seja. [...] Acrescentarei mesmo, sobre esse ponto, esta opinião paradoxal: que se o lógico nunca pudesse ser algo além de lógico, ele não poderia ser um lógico; e que o outro nunca fosse algo além de poeta, sem a menor esperança de abstrair e de raciocinar, ele não deixaria atrás de si qualquer traço poético. Penso sinceramente que se todos os homens não pudessem viver uma quantidade de outras vidas além da sua, eles não poderiam viver a sua. 50 O misto de emotividade e de pensamento é objeto de análise em Solombra, encontrado em versos que levantam questionamentos a respeito do ser e estar-no-mundo. É poesia hermética, mas nem por isso só reservada a iniciados. É poesia abstrata, mas nem por isso sinônima de incompreensível. É poesia de sombra, mas nem por isso impede que a luminosidade chegue até ela e a transforme. 50 VALÉRY, Paul. Poesia e Pensamento abstrato. In:_____. Variedades. Trad. Maiza Marins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 204-205. 31 Capítulo 2 Solombra – da sombra à claridade 32 Solombra – da sombra à claridade [...] a poesia (subjetiva) apresenta-se como a nossa “segunda realidade”, como o nosso “segundo corpo”, escrito com palavras escolhidas, dentro de artifícios de cadências de rimas, como um revestimento hierático de alguma coisa que se deseja exprimir sem que no entanto fique inteiramente manifestada.51 Solombra deixa transparecer que se volta para as duas faces de uma mesma moeda: ora reveste-se de uma aura de negrume, de escuridão, de ausência; em outros momentos, ainda que mais timidamente, revela um lado mais claro, luminoso e desvelador. Não é tarefa das mais fáceis desvencilhar estes dois momentos de Solombra, uma vez que uma instância acaba levando à outra e vice-versa. Assim, as etapas escolhidas para representar a sombra nesse capítulo são também partícipes ativos do próximo capítulo. Portanto, muitas e muitas vezes os dois momentos parecerão e serão, pretensamente, um a extensão do outro, pelo caráter de indissociabilidade que comportam. Refletindo sobre o termo “sombra” nos reportamos às considerações platônicas colocadas no célebre “mito da caverna”, do Livro VII de A República, importantes no tipo de discussão a que nos propomos. Neste mito estão simbolizadas a metafísica, a teoria do conhecimento, a dialética, a ética e mesmo o misticismo que podemos encontrar em Platão. As sombras da caverna indicariam as aparências sensíveis das coisas. Ao que habita a caverna e, portanto, limita-se à dimensão dos sentidos e do sensível, o mundo é de sombras e desprovido da luz. Atingir o grau do conhecimento direto e intuitivo da Ideia pura, o que se dá pelo processo dialético, indica a possibilidade de sair das sombras e olhar diretamente para o sol, conhecendo a verdadeira realidade. Como a sombra é a projeção do verdadeiro, torna-se caminho necessário para se passar dos graus inferiores aos superiores do conhecimento e exige uma adaptação dos olhos dos indivíduos, que não podem se voltar diretamente à luz. Heidegger, na conferência A doutrina de Platão sobre a verdade (1942), afirma, a respeito do mito platônico, que nele está uma espécie de “transformação” da essência da verdade, seja na saída do indivíduo da caverna, 51 MEIRELES, Cecília apud ZAGURY, Eliana. Cecília Meireles: Notícia Bibliográfica, Estudo Crítico, Antologia, Discografia, Partituras. Rio de Janeiro: Vozes, 1973, p. 142. 33 seja no retorno a ela depois de presenciar a verdade das coisas. O que se supõe real e imediatamente visível e palpável, no fundo são sombras, o obscurecimento da Ideia Pura que está fora da caverna, na luminosidade do dia. Segundo Heidegger, o processo de mudança de sombras à luminosidade envolve o conceito de paideia já que reorienta o homem, deslocando- o para fora do que é imediato e transformando a sua concepção de verdade. É o processo de des-velamento (alétheia) que evidencia a diferença entre ser e ter a aparência de ser. O vocábulo “solombra”, por significar sombra poderia, neste sentido, referir-se ao lugar onde não entra a luz, ao ambiente de trevas, angústia e conhecimento aparente das coisas reais. É deste modo que parte da crítica de Cecília Meireles avalia a visão de mundo da poetisa e as suas considerações sobre a existência. Tais traços também poderiam estar evidenciados em Solombra que comportaria uma relevância ainda maior por ser a última obra de “poesia adulta” da escritora publicada em vida. Assim, nos versos de Solombra, estariam as indicações dadas pela autora quando da escolha do título para sua obra: [...] Tenho pena de ver uma palavra que morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo. Solombra, meu novo livro, é uma palavra que encontrei por acaso e que é o nome antigo de sombra. Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo.52 A partir desta colocação da autora parece ficar claro que se trataria de uma obra voltada à sombra. Como a aura de sombra prevalece em Solombra e em raros momentos a luminosidade dá algum lampejo, é natural que se busque na obra os traços que traduzam a obscuridade, a negatividade, afinal é o que a palavra-título indica. Confirma Hansen: “Sabemos que os títulos cumprem várias funções. Além de classificar a mercadoria-livro, incluindo o texto em um regime discursivo e autoral, títulos são protocolos de leitura que indicam um sentido ou sentidos para o leitor.” 53 Ademais, há a recorrência de motivos relacionados à noite, à sombra, à dor na poética ceciliana: a brevidade da existência, o sofrimento das condições de vida do plano terrestre, a impossibilidade de comunicação com as pessoas, o sentimento de incapacidade de mudar as circunstâncias existenciais, a necessidade de aceitação dessas condições, por serem etapas a percorrer no processo evolutivo espiritual. 54 52 BLOCH, Pedro. Pedro Bloch entrevista Cecília Meireles. In: ______. Vida, pensamento e obra de grandes vultos da cultura brasileira: entrevistas. Rio de Janeiro: Bloch Ed., 1989, p. 33. 53 HANSEN, João A. Solombra ou a sombra que cai sobre o eu. São Paulo: Hedra, 2005, p. 6. 54 MELLO, Ana Maria. L. de. Poesia e Imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p 191. 34 Além disso, Solombra está impregnada de lexemas que giram em torno do tema da sombra e que parecem definir ainda mais de que se tratará a obra. As palavras repetidas com frequência permitem perceber com mais clareza quais os principais temas de trabalho da poetisa. Trata-se de palavras-chave, das quais Boberg fez um inventário: A ausência é expressa pelo desenvolvimento da temática da morte, da solidão, da memória, do silêncio e da saudade, em que se destacam sintagmas como: “cinza”, “nuvens”, “névoa”, “sombra”, “sono”, “insônia”, “espumas”, “ilusão”, “vulto”, “fantasma”, “noite”, “alucinação”, “assombro”, cegueira”, “escuridão”, “obscuro”, “umbral”, “sonho”, “crepúsculo”, “túmulos”, “deserto”. Observamos que estas palavras, além de estarem intimamente ligadas ao campo semântico de sombra, ainda corroboram na criação de uma atmosfera vaga e nebulosa, própria do mundo corpóreo.”55 A partir dessas palavras-chave, sobre as quais os estudiosos se debruçam, multiplicam- se interpretações sobre a obra, como, por exemplo, as que consideram nela a transcendência sem fundamento: “A poesia de Solombra [...] apresenta uma visão do ser irremediavelmente comprometido com as vicissitudes do mundo, a existencialidade sendo pura contingência. A transcendência é vazia.”56 Há outras considerações que analisam a obra ligando-a ao sentimento do que se perdeu e ao sofrimento que isso gera: O núcleo da poesia de Solombra é o tempo e as formas precárias da temporalidade dissolvidas pelo mesmo tempo. Um poeta português disse que escrevia à beira mágoa; a poesia de Solombra vem de dentro dela como enunciação feita do ponto de vista da distância e da ausência do que se perdeu. É a experiência da ruína e do sofrimento da perda que a caracteriza.57 E, por fim, afirmações que entendem Solombra atrelada à melancolia e silêncio: Em Solombra (1963), publicado um ano antes de sua morte, a temática de sua poesia se condensa numa atmosfera outonal e melancólica de sombra e silêncio. Mais do que nos livros anteriores, com efeito, a estilística do silêncio se desenvolve num mundo de sombra e pura espiritualidade.58 55 BOBERG, Hiudéa T. R. O canto e a lida – percurso esotérico e místico da poesia de Fernando Pessoa e Cecília Meireles, 1990. 292 f. Dissertação (Mestrado em Letras), UNESP/ Assis, 1990, p. 212. (grifo do autor). 56 BELON, Antonio R. A poesia de Cecília Meireles em Solombra. 2001. 202 f. Tese (Doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa)- UNESP, Assis, 2001, p. 22. 57 HANSEN, João A. Solombra ou a sombra que cai sobre o eu. São Paulo: Hedra, 2005, p. 7. 58 AZEVEDO FILHO, Leodegário de. Poesia e Estilo de Cecília Meireles. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1970, p 185. (Coleção Documentos Brasileiros, 49). 35 Mas o que Cecília esclarece ao leitor é que o vocábulo solombra foi retirado da sua escuridão e iluminou-se mais uma vez. A “morte” da palavra não significou o seu fim, uma vez que a escritora demonstrou a possibilidade de ela “viver de novo”. A palavra não consegue renascer sozinha. É necessário que um ser, no caso o poeta, se preocupe em tirá-la do limbo, em dar-lhe nova energia e vida. Solombra passa a ser um símbolo que o poeta vate usa para indicar o caminho à ideia. E sabemos que o símbolo sugere, mas não descreve. Assim, ainda que solombra faça referência direta à sombra, ela quer dizer muito mais. Solombra é a obra ceciliana que fecha o ciclo literário e de uma vida inteira e condensaria o direcionamento de sua poesia. Segundo Hiudéa Boberg “Solombra constitui-se na síntese final e plena de toda a direção filosófica e mística idealizada muito antes de Viagem.”59 Damasceno frisa o processo de amadurecimento lírico visível na obra: Partindo da feição inicial de sua poesia, profundamente marcada pela convivência neo-simbolista e pela influência do pensamento oriental, vemo- la, já amadurecida, evoluir para uma visão mais ampla do mundo e das coisas, numa ansiosa busca de solidariedade humana e de explicação do sentido da vida. Culminância de tal evolução é o arroubo transcendental de Solombra, que punge e cega em sua desesperada beleza.60 Mais recentemente, Ana Maria L. de Mello reitera: Solombra é, no universo ceciliano, a obra em que o eu-lírico parece atingir o ápice de uma caminhada mística, que se revela em atitude acentuadamente ascética, e assinala, do primeiro ao último poema, o desprendimento progressivo do plano material.61 A sombra e todas as conotações que ela sugere fazem, realmente, parte do universo da poética de Cecília Meireles que, para Damasceno, aparecem nesta última obra como “uma dolorosa reflexão que se eleva em cântico de aspiração à eternidade.”62 Deste modo e como lemos nos excertos anteriores, a obra revela a sombra e também, a partir dela, o desejo de alcançar o transcendente, de ascese. Portanto, a “pista” ceciliana sobre o significado do termo solombra dá indicações, mas não revela o enigma. Se a impressão que podemos ter é a de que Solombra será uma obra voltada aos temas como melancolia, morte, silêncio, efemeridade e impossibilidades com um tratamento 59 BOBERG, Hiudéa T. R. O canto e a lida – percurso esotérico e místico da poesia de Fernando Pessoa e Cecília Meireles, 1990. 292 f. Dissertação (Mestrado em Letras), UNESP/ Assis, 1990, p. 209. (grifo do autor). 60 DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o mundo contemplado. Rio de Janeiro: Orfeu, 1967. (Prefácio) 61 MELLO, Ana Maria L. de. Poesia e Imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 193. 62 DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o mundo contemplado. Rio de Janeiro: Orfeu, 1967, p. 137. 36 finalista, nos deparamos com percepções dissonantes, como a dúvida de Drummond63 ou a afirmação de Boberg, que capta a luz na obra ceciliana e que encontra nos versos associações que exploram a luminosidade e todas as suas relações, o que cria, segundo ela, “contrastes líricos”. E acrescenta que: Embora o vocábulo “solombra” seja um arcaísmo resgatado no tempo e colabore para caracterizar a atmosfera obscura em que o ser humano se debate – o mundo sensível e suas limitações – percebe-se que também a luminosidade, ou a busca do mundo ideal, acentua-se através da vasta gama de símbolos que percorre o livro.”64 Neste sentido podemos considerar como provável a hipótese de que a obra ceciliana não é só penumbra, mas carrega um outro viés, da luz. Isso posto, só reforça nossa proposição sobre o caráter polissêmico do símbolo proposto por Cecília Meireles: Solombra. Heidegger, em A caminho da linguagem, também reforça o traço da poesia ter múltiplos sentidos: “Não conseguiremos escutar nada sobre a saga do dizer poético enquanto formos ao seu encontro guiados pela busca de um sentido unívoco.”65 Esta consideração do pensador alemão reflete, por sua vez, a proposta dos simbolistas. Stephane Mallarmé (1842-1898), mesmo que não seja historicamente um simbolista, é precursor do movimento, esvaziando a palavra de seu conteúdo e atribuindo-lhe o poder de evocar inúmeras associações: “Onde há símbolo, há criação”, disse Mallarmé a Jules Huret66 parecendo antecipar as técnicas tanto simbolistas quanto as surrealistas. Sua afirmação, altamente significativa sobre o símbolo, se encaixa perfeitamente em Solombra: O perfeito uso desse mistério constitui o símbolo: evocar um objeto pouco a pouco. Para manifestar um estado de espírito ou, inversamente, selecionar um objeto e libertar um estado de espírito a partir dele, por meio de uma série de decodificações. 67 Cecília Meireles alimentou a ambivalência, legou enigmas ao seu leitor, o que torna a sua obra sempre por descobrir, sempre pronta para novas abordagens, sem se esgotar, abandonando a obviedade. É a tal “poesia filosófica” amparada na vida que faz nascer em 63 Sobre a declaração de Drummond cf. nota 4, p. 8. 64 BOBERG, Hiudéa T. R. O canto e a lida – percurso esotérico e místico da poesia de Fernando Pessoa e Cecília Meireles, 1990. 292 f. Dissertação (Mestrado em Letras), UNESP/ Assis, 1990, p. 213. 65 HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis (RJ)/ Bragança Paulista (SP): Editora Vozes/ Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 63. 66 apud BALAKIAN, Anna. O simbolismo. Trad. J.B. Caldas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985, p. 68. 67 Id. Ib., p. 69. 37 Cecília esse simbolismo tão sui generis.68 São manifestações que não podem ficar encerradas em palavras, porque elas sempre dizem algo mais. Atentemos, ainda uma vez, ao modo como as ideias de luz e sombra estão unidas em Solombra – como já vimos na epígrafe –, assinalando para uma leitura que não se prenda somente à escuridão. Vejamos alguns versos do livro: Ah, meus caminhos, ah, meu rosto, audaz e grave! O claro sol, as altas sombras, a onda inquieta e o vasto olhar das grandes noites acordadas! (poema 11, estrofe 3) Ó luz da noite, descobrindo a cor submersa pelos caminhos onde o espaço é humano e obscuro, e a vida um sonho de futuros nascimentos. (poema 16, estrofe 1) Sobre um passo de luz outro passo de sombra. (poema 22, estrofe 1) As instâncias sol e sombra estão sempre no limiar, no umbral. São inseparáveis, já que uma só tem significação a partir da existência da outra. O limite indica a “transição, transcendência [...], união e separação de dois mundos: sagrado e profano.”69 No decorrer deste capítulo perceberemos que a fronteira tão tênue de luz e escuridão é um dado positivo e serve aos nossos propósitos. No caminho que leva da sombra à claridade foram eleitos três momentos: o Dasein, a temporalidade e a morte, que fazem parte do embate que Cecília propõe na caminhada rumo ao Outro. O primeiro deles é o Dasein, e os demais dependem dele. 68 MERQUIOR, José G. Poesia para amanhã. Metal Rosicler. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10 de Setembro de 1960, Suplemento Dominical, p. 7. 69 ROSA, Maria Cecília A. de. Dicionário de símbolos: o alfabeto da linguagem interior. São Paulo: Escala Editora, 2009, p. 118. 38 2.1 O Dasein70 (Ah, mas se eu te esquecer ficará pelo mundo, morto e desenterrado, um vago prisioneiro, entregue à dúbia lei dos seus cinco sentidos!) (poema 19, estrofe 4) Solombra, na epígrafe do livro, é a palavra que nasce do combate de vozes: do Céu e da Terra, o que acena para o caráter ambíguo da obra de Cecília: Levantei os olhos para ver quem falara. Mas apenas ouvi as vozes combaterem. E vi que era no Céu e na Terra. E disseram-me: Solombra.71 São vozes que se conflitam, umas no céu e outras na terra. Vozes que lutam, já que, simbolicamente, Terra opõe-se ao Céu. Enquanto Terra é o princípio feminino, passivo, escuro, o yin, a tendência descendente, a fixação e a densidade; o Céu é o princípio 70 Faz-se necessário salientar que, nas duas traduções de Ser e Tempo que neste trabalho são utilizadas, em uma delas o Dasein é traduzido por “ser-aí” e em outra por “pre-sença”. A respeito do Dasein, Heidegger afirma (segundo Ser e Tempo. Trad. Márcia de S. Cavalcante, Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 2001. (v. 1): “Elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – o que questiona – em seu ser. Como modo de ser de um ente, o questionamento dessa questão se acha essencialmente determinado pelo que nela se questiona – pelo ser. Esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras coisas, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o chamamos com o termo pre-sença.” (p. 33) “A pre-sença não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, do ponto de vista ôntico, ela se distingue pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser.” (p. 38) “A pre-sença sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma. Essas possibilidades são escolhidas pela própria pre-sença ou um meio em que ela caiu e já sempre nasceu e cresceu.” (p. 39) Jonathan Rée, em Heidegger. História e Verdade em Ser e Tempo. Trad. José Oscar de A. Marques, Karen Volobuef. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 15-16 (Col. Grandes Filósofos), esclarece que “A entidade que somos quando confrontados com questões ontológicas coincide simplesmente conosco, tão comuns e familiares quanto possamos ser. Heidegger escolhe para designá-la, portanto, a mais comum das palavras alemãs: Dasein: Pode-se frequentemente traduzi-la por ‘existência’, mas em Ser e Tempo este último termo é necessário para expressar o conceito de Existenz, de modo que a única solução viável é criar uma nova palavra em nossa língua para servir como equivalente: ‘Dasein’ (escrita sem itálico; plural: ‘Daseins’). Na prática, podemos muitas vezes parafraseá-la usando ‘nós’ em seu lugar, mas nem sempre. Se nos sentirmos desconfortáveis diante desse estrangeirismo, devemos simplesmente nos lembrar de que a palavra alemã Dasein é absolutamente coloquial. Não é um termo técnico, e como Daseins somos simplesmente entidades com atitude ontológica.” OBS: Dasein, neste trabalho, pode ser entendido como eu-lírico e vice-versa. 71 Na edição de 1987, Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, p. 708 há o ponto de exclamação após a palavra “Solombra”. Na edição de 2001, Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 1262, só há ponto final, acompanhando a primeira edição, em 1963, na qual, inclusive, o termo Solombra está grifado. 39 masculino, ativo, luminoso, yang, a tendência ascendente, a sutileza e a dissolução.72 Em Solombra não há uma única voz que fala e todas dizem juntas solombra. Terra e Céu, apesar de todas estas diferenças, são princípios dependentes e que se complementam, afinal, segundo as tradições sobre a criação do mundo, foram nomeados concomitantemente. No primeiro livro da Bíblia lemos: No princípio, Deus criou o céu e a terra. [...] Deus disse: “Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas das águas”, e assim se fez. Deus fez o firmamento que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus chamou ao firmamento “céu”. [...] Deus disse: “Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e que apareça o continente” e assim se fez. Deus chamou ao continente “terra” e à massa das águas, “mares”, e Deus viu que isso era bom.73 Em outra narrativa da gênese do mundo, o Chândogya Upanixade, que faz parte das escrituras hindus, o nascimento de terra e céu é assim descrito: Na origem, todo o universo não era mais que não-ser. Tornou-se ser. Desenvolveu-se e formou um ovo, o qual permaneceu fechado durante um ano. Então se abriu. Das duas metades da casca, uma era de prata e a outra era de ouro. Esta constituindo o céu, enquanto que a primeira deu origem à terra.74 Além de toda hermenêutica dos textos acima descritos, o que levamos em consideração neste momento é o fato de que Céu e Terra são criados ou passam a ser simultaneamente, como se partindo de uma única fonte e que, portanto, necessitam-se mutuamente para voltarem a constituir-se como totalidade. A partir daí podemos melhor compreender o motivo de a Terra ser o lugar da existência do homem, onde vive em constante dualidade, e da sua busca por completar-se e encontrar respostas às suas questões, que podem estar no Céu. Como vimos, o mote criado por Cecília no início do livro, antes de se iniciarem os poemas, mostra que na existência do ser-aí não há predominância de uma única voz, mas sim são vozes que falam de direções opostas e que, aparentemente combativas, dirão a mesma palavra assertiva – Solombra: “ouvi 72 Cf. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Allan. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p. 878. 73 BÍBLIA. Gênesis. A Bíblia de Jerusalém. Tradução de Domingos Zamagna. São Paulo: Edições Paulinas, 1985, Gn 1, vers.1; Gn 1,vers. 6-10, p. 31. 74 CIRLOT, Juan E. Dicionário de Símbolos. Trad. Rubens E. F. Frias. São Paulo: Centauro, 2005, p. 154-155. 40 as vozes combaterem. E vi que [o combate] era no Céu e na Terra.”75 As vozes que combatem estão no Céu e na Terra. Em conformidade com o significado primeiro que cada um destes termos carrega, poderíamos intuir que as vozes vindas do céu disseram: Sol; as vozes da Terra disseram: Sombra. Depois, em uníssono, pronunciaram a mesma palavra: Solombra, o que salientaria a ambivalência e, portanto, não a exclusão destes dois aspectos da existência. Estar na Terra é o habitar na sombra. Assim, existir é estar no ambiente do mistério, do obscuro, onde pequenas flamas de luz às vezes caem. E é por esse motivo, entre outros, que a existência tem seu caráter de tristeza exacerbado. Lemos na estrofe 3 do poema número 24: Sinto perfume e orvalho – imagens tênues que inventa a solidão, para fazer-se de repente saudade. [...] (estrofe 3) Na estrofe acima, o eu lírico sente e vê, e a partir destes sentidos torna-se mais seguro para considerar o mundo em que vive e as coisas com as quais se relaciona como motivos para a melancolia e morte. Perfume e orvalho, que são percebidos como imagens tênues, indicam aqui duas direções para o Dasein: passado e futuro. Enquanto o perfume remete a reminiscências e lembranças, portanto, indicando a associação com o passado; o orvalho faz referência à aurora e ao novo dia que chega.76 São imagens tênues, pelo caráter de fugacidade que tanto o perfume quanto o orvalho carregam. Por sua vez, perfume e orvalho são elementos que chegam ao eu-lírico através do sentimento da solidão. Assim, tanto as imagens mentais que o perfume suscita quanto as referências existenciais que a visão do orvalho proporciona são invenções nascidas solitariamente. A faculdade criativa não cessa sua atividade e, tão logo se produz, torna-se passado e faz-se “de repente saudade.” A sugestão dos versos, portanto, é de que a existência é um misto de tempo fugidio permeado constantemente pela possibilidade de renascimento, que fica claro pela simbologia que porta o perfume e o orvalho. Outra consideração a ser feita é que sentimentos como solidão e saudade, que remetem primeiramente a outras condições emotivas negativas, como dor e tristeza, isolamento e melancolia, são próprios daquele que está no mundo, o ser-aí. O fato de que o sentimento de solidão e de saudade serem direcionados a um ser em particular transparecerá em outros tantos versos de Solombra, como veremos mais adiante. Por ora, importa-nos entender que a 75 MEIRELES, Cecília. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 1262. (v. 2). 76 CIRLOT, Juan E. Dicionário de Símbolos. Trad. Rubens E. F. Frias. São Paulo: Centauro, 2005, p. 433. 41 relação do Dasein com o mundo é feita de memória e de expectativa, afinal dirigir-se ao futuro faz parte de seu ser; por-vir que “se faz” de repente saudade. O eu-lírico deixa isso mais claro na estrofe seguinte do mesmo poema: [...] E vejo em tudo essas cansadas lágrimas antigas, essas longas histórias sucessivas com seus berços e guerras – glórias? – túmulos. O uso do pronome indefinido tudo pelo sujeito lírico não permite que nada escape do seu raciocínio. Em tudo ele percebe a fragilidade das coisas que, primeiramente, simboliza em lágrimas, gotas que rapidamente se evaporam. Para intensificar ainda mais este elemento que reporta instantaneamente à tristeza, a poetisa o acompanha dos adjetivos cansadas e antigas. Cansadas porque sempre repetidas, gastas e já infrutíferas; antigas porque conservadas há muito na existência, sem fim, perdurando desde que se nasce até quando se morre. A fugacidade também é simbolizada pelas histórias, que mais uma vez reiteram o que tem sido dito pelo Dasein. Para ele, todas as histórias, que entendemos como todas as existências, são compreendidas desde o nascimento – berços – até a morte – guerras. São longas – duram ou parecem durar no tempo – e sucessivas – multiplicam-se continuamente. Em tudo o que se percebe é a repetição da mesma história, nascer e morrer, fatos que dentro do tempo em nada parecem se modificar. Por fim, o eu-lírico conclui seu pensamento questionando aonde tenciona chegar a existência, o tudo. Haveria algum motivo para exaltação – Glórias? – em viver cercado por lágrimas e direcionado à morte? Conclui que não, já que o caminho a que tudo tem levado, e continuará levando, é ao túmulo. Morte seria o ponto de chegada da existência. O verso que fecha este poema é “Recolho a noite em minhas pálpebras” e torna-se bastante significativo para entendermos um aspecto da ambivalência em Solombra. Após o discurso do eu-lírico a respeito dos aspectos de sofrimento que a existência comporta, o verbo utilizado é recolho. Recolher é juntar novamente, retornar à posição de início. Então temos que, desde a primeira estrofe que analisamos deste mesmo poema, o sujeito lírico está contemplando o mundo e raciocinando sobre ele. As imagens que vê e os sentimentos que tem 42 diante do mundo ele os recolhe e os trata por noite77 que, metaforicamente, poderiam remeter remete à desesperança, à tristeza e melancolia. Se a noite é vista, por um lado, como fruto do Caos e que traz consigo silêncio, solidão, sono e sonhos, por outro é entendida como momento propício para realizar festividades, para meditar, estudar e para que o brilho da lua se manifeste. O eu-lírico recolhe a noite em suas pálpebras, que protegem, quando cerradas, as imagens tristes do mundo que o olho captou e sobre as quais pode reflexionar. Para o eu-lírico, recolher a noite sob a proteção das pálpebras não seria esconder-se do mundo, mas preparar-se para que quando novamente abertas, pudessem os olhos perceber novas imagens e ter renovada a visão acerca da realidade. Na estrofe 1 do poema 20 o eu-lírico reflete sobre a mesma ideia, salientando o desejo de que seus olhos possam tirar das situações de morte a possibilidade da aurora antes que chegue o fim de sua vida: Quero roubar à morte esses rostos de nácar, esses corais da aurora, esses véus de safira, e antes que em mim também se acabe o céu das pálpebras. (poema 20, estrofe 1) Fechando esse raciocínio, continuemos a análise dos versos do poema 24, quando discutíamos sobre o viver que não representa glória nenhuma, uma vez que o destino é a ida ao túmulo. Será que o eu-lírico poderia ter alguma visão diferente do mundo quando, depois da noite, abrisse as pálpebras? Na estrofe 1 do poema 20, que dialoga com aquele, notamos que isso é possível. Túmulos estão associados ao arquétipo feminino/ mãe que, como todo arquétipo apresenta tanto aspectos positivos quanto negativos. As imagen