unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP ORESTES ZIVIERI NETO TTTEEEMMMPPPOOO EEE SSSAAABBBEEERRREEESSS::: AAA CCCOOONNNSSSTTTIIITTTUUUIIIÇÇÇÃÃÃOOO DDDOOO PPPRRROOOFFFEEESSSSSSOOORRR EEEXXXPPPEEERRRIIIEEENNNTTTEEE EEEMMM MMMAAATTTEEEMMMÁÁÁTTTIIICCCAAA... ARARAQUARA – S.P. 2009 1 ORESTES ZIVIERI NETO TTTEEEMMMPPPOOO EEE SSSAAABBBEEERRREEESSS::: A CONSTITUIÇÃO DO PROFESSOR EXPERIENTE EM MATEMÁTICA. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Doutorado Interinstitucional, em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP e Universidade Federal de Rondônia – UNIR, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Educação Escolar. Linha de pesquisa: Trabalho docente Orientador: Prof. Dr. Edson do Carmo Inforsato Bolsa: UNIR/CAPES ARARAQUARA – SP. 2009 2 ZIVIERI NETO, Orestes Tempo e saberes: a constituição do professor experiente em matemática./ Orestes Zivieri Neto – Araraquara/SP 232 f : il. ; 210x297 mm Tese de Doutorado – Faculdade de Filosofia e Ciências – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2009. 1 Descritor. 2. Descritor. 3 . Descritor. I. Autor II. Título. 3 ORESTES ZIVIERI NETO TTTEEEMMMPPPOOO EEE SSSAAABBBEEERRREEESSS::: A CONSTITUIÇÃO DO PROFESSOR EXPERIENTE EM MATEMÁTICA Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação Doutorado Interinstitucional, em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP e Universidade Federal de Rondônia – UNIR, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Educação escolar. Linha de pesquisa: Trabalho Docente Orientador: Prof. Dr. Edson do Carmo Inforsato Bolsa: UNIR/CAPES Data da defesa: 27/11/09 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: __________________________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. Edson do Carmo Inforsato Universidade Estadual Paulista – Campus de Araraquara – SP. __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Mauro Carlos Romanatto Universidade Estadual Paulista – Campus de Araraquara - SP. __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Maria Helena S. Sahão Bizelli Universidade Estadual Paulista – Campus de Araraquara – SP. __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Marli Lúcia Tonatto Zibetti Universidade Federal de Rondônia – UNIR - Campus de Rolim de Moura – RO. __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Regina Maria Simões Puccinelli Tancredi Universidade Federal de São Carlos – UFSCar – São Carlos – SP. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 4 A Persistência da Memória (ou: Os relógios moles; ou: As horas derretidas), 1931. Salvador Dalí Ao meu querido amigo-irmão Roberto Carlos Farias (in memorian), que esteve sempre me auxiliando, outras vezes me dando forças e colocando à sua casa a minha disposição. Obrigado pela suas lições de vida, amigo. À minha mãe, Zulmira que, em seus 82 anos, me ensinou a valorizar os estudos. Aos meus irmãos, irmãs e meus sobrinho(a)s pelo carinho e amor que sempre estão prontos a me oferecer. 5 ______________AGRADECIMENTOS___________ __ ___________________ A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são 6 horas: há tempo... Quando se vê, já é 6ª feira... Quando se vê, passaram 60 anos... Agora, é tarde demais para ser reprovado... E se me dessem –um dia- uma outra oportunidade, eu nem olhava o relógio seguia sempre, sempre em frente... E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas (QUINTANA, 2005, p.477) Não seria possível cumprir este percurso sem a ajuda preciosa de muitas pessoas. Aproveito então para agradecer a estas pessoas que me ajudaram a elaborar este trabalho e que, em um certo sentido, ajudaram a tornar-me o que sou hoje. . Ao meu orientador professor Edson do Carmo Inforsato, por ter aceitado orientar este trabalho, por sua paciência e sapiência, e pelo apoio em todos os momentos. . Aos professores, alunos e funcionários das escolas em que foram coletados os dados da presente pesquisa. Um agradecimento especial aos professores, aqui com seus nomes codificados: Adriano, Marco, Mariana e Solange. Muito obrigado, por permitirem e darem condições para que a investigação fosse realizada. . Aos professores da Banca do exame de qualificação: Prof. Dr. Edson do Carmo Inforsato (orientador), Profa. Dra. Marli Lúcia Tonatto Zibetti e Prof. Dr. Mauro Carlos Romanato. . Um agradecimento especial a Profa. Dra. Marli Lúcia Tonatto Zibetti que me auxiliou desde a construção do projeto de seleção para esse doutorado. . Um outro agradecimento especial a Profa. Dra. Maria Cristina Ramos Borges que zelosamente realizava revisões de meus textos, mesmo longe e com muitas ocupações. 6 .Aos professores da Faculdade de Educação da Universidade Estadual Paulista – Campus de Araraquara e de Rio Claro, particularmente aqueles que ministraram disciplinas enriquecedoras para minha formação como pesquisador e docente, durante o curso de doutorado, especialmente: Prof. José Vaidergorn, Profª. Rosa Maria Feiteiro Cavalari, Profª. Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo, - Profª. Maria Beatriz Loureiro de Oliveira, Profª. Marilda da Silva, Profª. Maria Cecília de Oliveira Micotti, Prof. Edson do Carmo Inforsato. . � A todos os acadêmicos e professores que integram suas áreas de conhecimento do Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicologia e Educação na Amazônia.– GEPPEA, especialmente a acadêmica Sidnéia Ribeiro da Silva por sua inestimável ajuda nas transcrições de minha investigação. . A todos os professores da Universidade Federal de Rondônia – Campus de Rolim de Moura, em especial do Departamento de Educação, pelas suas contribuições e compreensões durante minhas ausências, no período de redução de carga horária. . Aos funcionários da Universidade Federal de Rondônia – Campus de Rolim de Moura, em especial da biblioteca, que sempre me auxiliaram e facilitaram as retiradas de materiais para a minha fundamentação teórica e, pela tolerância com os meus esquecimentos. . A todos os mestres que tive, por tudo que me ensinaram. . A Universidade Federal de Rondônia pela realização do Doutorado Interinstitucional Universidade Estadual Paulista – UNESP/ Universidade Federal de Rondônia - UNIR . À CAPES, pelo apoio financeiro durante a realização de nossos estágios junto a Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Araraquara. . �E finalmente agradeço a Deus, por ter colocado pessoas tão especiais em minha vida. 7 ___________________RESUMO_________________ _________ O presente estudo teve como objetivo principal levantar os conhecimentos de base e ação dos professores (Ponte, 1997), ou de gestão da matéria ou de classe (Gauthier et al., 1998) em Matemática, para verificarmos, em sua trajetória, se o tempo determina mutações em seus fazeres diários e no nível de consciência que esses profissionais têm de sua articulação teórico-prática. O estudo objetiva, ainda, caracterizar o professor experiente que emerge da prática dos saberes amalgamados na experiência diária, a partir de suas fases da carreira docente. Esta investigação traz a perspectiva fenomenológica levada a efeito em três escolas públicas de um município do interior do estado de Rondônia e teve como participantes 04 professores de matemática de sexto ao nono ano do Ensino Fundamental, dois desses professores com mais tempo de serviço, e dois com menos tempo. Os dados foram coletados através dos seguintes instrumentos: biografia profissional construída a partir de depoimentos orais; observação participante de 71 aulas; e entrevista semi-estruturada decorrente da análise de suas biografias profissionais. As análises dos dados obtidos apontaram a influência do tempo, tanto no reservatório de saberes resultantes da experiência como na constituição do professor experiente em matemática. Foi verificado, ainda, que as fases da carreira docente - entre as fases de consolidação da carreira, quando se tem a formação de uma identidade profissional, e as fases subseqüentes até o desinvestimento - seriam caracterizadas como a zona de constituição dos professores experientes em matemática. Entre a diversificação vs. questionamento, serenidade/distanciamento afetivo vs conservadorismo, as crises e as “re- posições” identitárias caracterizariam as habilidades de gestão de conteúdo e de gestão de sala de aula do professor experiente em matemática. Por fim, notamos que o professor experiente não combina com a fase de desinvestimento, mas com a reinvenção do tempo que possibilita uma nova perspectiva de formação e de aprofundamento de seus estudos, conduzindo-o a uma melhor recolocação em sua prática profissional. Palavras-chave: Tempo. Saberes da experiência. Professor Experiente. 8 _________________ABSTRACT_________________ ___________ This study aimed to raise the basic knowledge and action of teachers (Ponte, 1997), or management of the matter or class Gauthier et al. (1998) in mathematics, to verify in their trajectory, if the time determines changes in their daily doings and in the level of awareness that these professionals have in their theoretical-practical articulation. This study aimed also to characterize the experienced teacher that emerges from the practice of knowledge amalgamated in everyday experience, from their early career teachers. This research, based on a phenomenological approach, was carried out in three public schools in a municipality in the state of Rondônia. The participants were 04 mathematics teachers from sixth to the ninth grade of elementary school, two of those teachers with more seniority, and two with less time. Data were collected through the following instruments: professional biography built from verbal deposition, participant observation of 71 lessons, and semi-structured interview derived from the analysis of their professional biographies. The analysis of data showed the influence of time, both the reservoir of knowledge from experience in setting up the experienced teacher in mathematics. It was found also that the phases of the teaching profession - between stages of consolidation of his career, when you have the formation of a professional identity, and subsequent phases until the divestment - would be characterized as the zone of formation of the experienced teachers in mathematics. Among the diversification vs. questioning, serenity and emotional distance vs conservatism, crises and identity “re-positions" would characterize the abilities of management of content and management of classroom of the experienced professor in mathematics. Finally, we have noted that the experienced teacher does not match the phase of disinvestment, but the reinvention of time that allows a new approach to formation and to go deeper in his studies, leading him to a better replacement in his professional practice. Keywords: Time. Knowledge of experience. Experienced teacher. 9 __________________RÉSUMÉ__________________ ________ Cette étude vise à élever les connaissances de base et de l'action des enseignants (Ponte, 1997), ou la gestion de l'affaire ou la classe (Gauthier et al.,1998) en mathématiques, afin de vérifier sur leur chemin, détermine si les modifications du temps dans leurs actions quotidiennes et le niveau de conscience que ces professionnels ont leur articulation théorique- pratique. Cette étude vise aussi à caractériser l'enseignant expérimenté qui se dégage de la pratique de la connaissance issue de la fusion dans l'expérience quotidienne, de leurs enseignants en début de carrière. Cette recherche apporte la perspective phénoménologique, menée dans trois écoles publiques d'une municipalité dans l'État de Rondônia et les participants étaient 04 professeurs de mathématiques de la sixième à la neuvième année d'école primaire, deux de ces enseignants ayant plus d'ancienneté, et deux avec moins de temps. Les données ont été collectées à travers les instruments suivants: biographie professionnelle compilés à partir de témoignages oraux, observation participante de 71 leçons, et des entretiens semi-structurés qui ont évalué leurs biographies professionnelles. L'analyse des données a montré l'influence du temps, tant le réservoir de connaissances à partir de l'expérience dans la création de l'enseignant expérimenté en mathématiques. Il a été constaté également que les phases de la profession d'enseignant - entre les étapes de la consolidation de sa carrière, lorsque vous avez la formation d'une identité professionnelle, et les phases ultérieures, jusqu'à la cession - serait qualifié de la zone de formation des enseignants expérimentés en mathématiques . Parmi la diversification vs questionnement, de sérénité et de distance émotionnelle vs conservatisme, les crises et re-positions "l'identité de caractériser les capacités de gestion de contenu et de la gestion de l'enseignant expérimenté en mathématiques. Enfin, nous notons que les enseignants expérimentés ne correspond pas à la phase de désinvestissement, mais la réinvention du temps qui permet une approche nouvelle à la formation et la poursuite de poursuivre ses études en l'amenant à un meilleur rendu à leur pratique professionnelle. Mots-clés: Le temps. La connaissance de l'expérience. Le professeur expérimenté. 10 ____________LISTA DE QUADROS_____________ ____________________ � � Quadro 1 - Professor pelo estado civil, idade, número de filhos, carga horária e tipo de contrato de trabalho ............................................................................................................ 113 Quadro 2 - Professor por sua formação, graduação, pós-graduação e tempo de serviço ................................................................................................................................................ 114 Quadro 3 - Escolas de anos finais do E.F. - Rede municipal - 2007 - Rolim de Moura – RO ......................................................................................................................................... 119 Quadro 4 - Escolas de anos finais do E.F. - Rede estadual – 2007 - Rolim de Moura – RO ................................................................................................................................................ 119 Quadro 5 – Número de aulas assistidas em cada série por mês ...................................... 127 Quadro 6 – Quadro demonstrativo de procedimentos relativos à gestão do conteúdo ................................................................................................................................................ 204 Quadro 7 – Quadro demonstrativo de procedimentos relativos à gestão da sala de aula ................................................................................................................................................ 208 11 _____________LISTA DE GRÁFICOS____________ ____________________ Gráfico 1 – Médias obtidas pelos professores entre os nove procedimentos relativos à gestão do conteúdo .......................................................................................... 208 Gráfico 2 – Média obtidas pelos professores entre os oito procedimentos relativos à gestão de sala de aula ...................................................................................... 212 12 _____________LISTA DE FIGURAS_____________ ____________________ FIGURA 1 - Fundamentos, Conhecimento de Base e Conhecimento na ação do professor de matemática ........................................................................................................................ 33 FIGURA 2 - Ciclo de Vida Profissional dos Professores – Huberman ............................ 73 FIGURA 3 - Ciclo de Vida Profissional dos Professores – Gonçalves ............................. 79 FIGURA 4 - Vetor de configuração da zona de constituição do professor experiente.. 201 13 _______________LISTA DE SIGLAS_____________ __________________ APP - Associação de Pais e Professores CNTE - Conselho Nacional de Trabalhadores da Educação E.F - Ensino Fundamental E.E.E.F.M. - Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio FNDE - Fundação para Desenvolvimento da Educação IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação PCN’s - Parâmetros Curriculares Nacionais PDE - Programa Dinheiro na Escola PROHACAP - Programa de Habilitação e Capacitação de Professores PA - Progressão Aritmética PG - Progressão Geométrica. SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNIR - Universidade Federal de Rondônia 14 __________________SUMÁRIO_________________ _________ INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 16 1 - OS SABERES/CONHECIMENTOS DA EXPERIÊNCIA DOCENTE, SUA INVISIBILIDADE E A SUA LEGITIMAÇÃO 1.1 Saberes/conhecimentos e experiência: buscando as origens, principiando a discussão .................................................................................................................................................. 23 1.2 Os saberes/conhecimentos docentes da experiência e na experiência ........................ 30 1.3 O paradigma da modernidade e a invisibilidade dos saberes da experiência ........... 38 1.4 Ter, fazer e pensar a experiência tentando dar visibilidade e legitimidade aos saberes da experiência .................................................................................................................. 49 2 - OS SABERES DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA: DO TEMPO DE CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE AO TEMPO DE SE ASSUMIR COMO EXPERIENTE 2.1 Professor de matemática – entre os seus saberes e as suas concepções ...................... 60 2.2 O tempo físico e o tempo de trabalho na constituição dos ciclos da carreira docente .......................................................................................................................................... 68 2.3 Constituindo a rede de saberes: da identidade e crises no emergir do professor experiente ....................................................................................................................... 81 3 - FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS 3.1 A problematização, os objetivos e o método ................................................................. 99 3.2 Cenário e contexto, a constituição do campo de investigação ................................... 106 3.3 Os sujeitos da investigação ........................................................................................... 112 3.4 Instrumentos e procedimentos de coleta de dados ..................................................... 114 3.4.1 Biografia profissional ................................................................................................. 120 3.4.2 Observação participante ............................................................................................ 125 15 3.4.3 Entrevista .................................................................................................................... 127 4 - OS PROFESSORES DE MATEMÁTICA: SUAS HISTÓRIAS, IDENTIDADES, TEMPO DE CARREIRA E EXPERIÊNCIAS 4.1 Professores Adriano e Solange: professores experientes? ......................................... 132 4.1.1 Buscando em suas biografias profissionais a revelação de suas experiências ...... 132 4.1.2 Identidade e as possibilidades de se firmarem como professores experientes ...... 142 4.2. Professores Marco e Mariana: principiantes ou em fase de consolidação? ............ 166 4.2.1 O tempo e as experiências de carreira via biografia profissional .......................... 166 4.2.2 Da identidade no processo de consolidação da carreira e a trilha rumo à constituição enquanto professor experiente ........................................................... 175 5 – PROFESSOR EXPERIENTE: ENTRE OS SABERES DA EXPERIÊNCIA E O ACÚMULO PELO TEMPO 5.1 Professores de Matemática: entre as ações do fazer e a ações do tempo ................. 191 5.2 Gestão do conteúdo e gestão da sala de aula: elementos qualitativos da formação do professor experiente ...................................................................................................... 203 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 217 REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 228 16 INTRODUÇÃO Nunca se pode saber de antemão de que são capazes as pessoas, é preciso esperar, dar tempo ao tempo, o tempo é que manda, o tempo é o parceiro que está a jogar do outro lado da mesa, e tem na mão todas as cartas do baralho, a nós compete-nos inventar os encartes com a vida. (SARAMAGO, 1995, p.303) A expressiva produção nos últimos 20 anos de concepções e orientações variadas sobre o ensino,8 os docentes e seus saberes gera, evidentemente, a possibilidade de estabelecer agrupamentos, aproximações, tipologias, levantar lacunas e novos questionamentos. De forma semelhante podemos, também, tratar sobre a vasta produção, principalmente em Educação Matemática, sobre questões pertinentes a formação, trabalho e saberes docentes do professor de Matemática9. Nosso estudo tenta levantar os saberes/conhecimentos10 referentes ao processo de gestão do conteúdo e de gestão de sala de aula no processo de ensino-aprendizagem de professores de Matemática, conduzindo-nos para algumas situações a serem pensadas, como por exemplo: o papel do tempo na determinação das mutações dos saberes da experiência dos professores e, o consequente nível de consciência que se obtém dessa articulação teórico- prática; as compreensões inerentes a fases da carreira, o processo de estabilização com a identidade profissional e o processo de acumulação e maturidade adquirida pelo professor, tornando-o um bom profissional em sua prática; e, enfim, a possibilidade de caracterizar o professor experiente a partir de suas fases de carreira. Com isso, buscamos em Tardif (2002) uma tipologia de saberes docentes que retratasse, em suas características, a real representação que os professores pudessem alcançar em seus contextos reais, ainda que tivessem de fazer oralmente um esforço para tratá-los em separado, uma vez que os consideram, como Tardif (2002), integrados, ou de acordo com suas palavras, “amalgamados”. Em razão de nossa investigação pautar-se nos saberes da 8 Vide: Cunha, 2000; Garrido, 2002; Tardif, 2002; Tardif, Lessard e Lahaye, 1991; Gauthier et al., 1998; Borges, 2002; Mizukami, 2002 e 2005, entre outros. 9 Vide: Ponte, 1994, 1995, 1997; Machado, 1997; David e Hersh, 1997; Fiorentini, 1999; Romanato, 2006; Miguel e Vilela, 2008). 10 Neste estudo utilizaremos os termos conhecimentos e saberes como sinônimos, da mesma forma que o fazem Vila; Callejo (2006), cuja distinção é feita apenas entre conhecimentos/saberes de crenças. 17 experiência cotidiana, nosso interesse voltou-se para verificar a força que o tempo físico impõe ao trabalho docente, e que na escola se configuraria como reprodução da lógica da autodisciplina estabelecida pelo calendário de aulas, carga horária, bimestre, semestre, recreio, etc. Nessa perspectiva, o tempo também favorece, naturalmente, a acumulação de conhecimentos, intitulado por Gauthier et al. (1998) como reservatório de saberes/conhecimento, permitindo aos professores com seus repertórios de saberes/conhecimentos se (re)construírem em suas trajetórias profissionais. Com esse cenário, adicionado pelas características dos saberes da experiência (prático, interativo, sincrético e plural, heterogêneo, complexo, aberto, poroso, permeável, cumulativo, personalizado, existencial, temporal e social), destacados por Tardif (2002) e Borges (2002), juntamente com a perspectiva dos estudos de Dewey sobre a experiência existencial e a pensada, agrega-se as propostas do professor prático reflexivo de Perez Gómez (1992) e Schön (1998) para integrar o universo no qual o tempo de carreira faz emergir um profissional experiente em suas habilidades de lidar melhor com o domínio de seus conteúdos e com as artimanhas da sala de aula em contextos heterogêneos e plurais. O conhecimento matemático ingressa em nosso estudo, primeiramente, em razão de nossa formação e, em segundo lugar, por conta de ser uma disciplina que, apesar de ter certo status no currículo, possui ao mesmo tempo o estigma de reprovar muito. Quase sempre a culpa recai sobre os professores, que, mal formados, não possuem nenhuma didática, ou se associa ao fato de ser uma disciplina que exige muito raciocínio, logo, de difícil assimilação. Falar sobre os professores de matemática é, para mim, portanto, inserir-me nesse contexto de temporalidade e formação que me proponho discutir. Ao longo dos meus 20 anos de trabalho na Universidade Federal de Rondônia, principalmente na formação de professores nos cursos de Licenciatura em Matemática e em Pedagogia - há mais tempo - carrego algumas inquietações que emergem de nossa prática. Inquietações que se constituem ora em plena atividade em sala de aula, juntamente com meus alunos em tentativas de reflexões coletivas e mesmo individuais, por vezes externadas em produções bibliográficas ao longo da carreira; ora também na prática da extensão universitária, em visita as escolas, dividindo com outros colegas de Matemática conhecimentos que vamos construindo e/ou estudos que vamos realizando, na busca de compreender melhor e responder algumas indagações, dilemas e conflitos que passam a integrar nossos reservatórios de saberes que se traduzem na melhoria de nossas práticas diárias. 18 Dessa forma, com cenário completo, e com o risco de apologizar os saberes/conhecimentos da experiência, a preocupação com os sujeitos de nossa investigação, os professores de Matemática, passaria a ser a de compreender se suas práticas diárias possuem ou não uma dose de improvisação, numa tentativa de que os estudos no/com o cotidiano não sejam apenas tratados como resultado de uma rotina mecânica e repetitiva. O próprio Tardif (2002), ao propor a epistemologia da prática, nos coloca a tarefa de superar o paradigma moderno, que torna invisível um panorama de formação natural destinado a garantir que se (re)conheçam os processos de validações e legitimação dos saberes erigidos na prática, mostrando-nos a forma como cada professor, em suas especificidades, encontra a fórmula exata para o seu desenvolvimento profissional. Não é porque se originam na prática cotidiana que as experiências resultantes carregam a repetição do dia-a-dia, isso seria reduzir os atores à mera reprodução de procedimentos, além de negar o processo de junção de outros saberes, que na prática teriam a capacidade de promover ou não as reflexões na/da e sobre a ação. Reconhecemos que o tempo permite ver apenas a ordenação ordinária, escondendo a riqueza que a ação docente ganha ao aliar os saberes/conhecimentos do cotidiano com todos os demais saberes/conhecimentos em seu campo de atuação na experiência, o que caracteriza exatamente o repertório da prática docente. O tempo novamente assume um peso nos saberes da experiência. Temos de um lado a formação inicial: normalmente os professores assumem serem ausentes em relação à oferta de prática para o enfrentamento da fase inicial da carreira docente. Por outro lado, temos os cursos de formação oferecidos e mesmo os investimentos que os professores assumem por conta própria, funcionando como um campo de formação de habilidades e competências que poderia acelerar ou retardar o processo de constituição do professor experiente e bom gestor de sua prática. Até que ponto se pode associar a formação inicial ideal a uma formação contínua para que pudessem se tornar bons professores de Matemática em suas práticas? Como o tempo poderia deixar de ser um inimigo? Não existe, ainda, uma fórmula. E sua existência, certamente, incorreria na possibilidade de sua padronização, ou reprodução como modelo, impedindo-nos de contemplar as singularidades de cada sujeito. A formação inicial não dá conta de preparar o indivíduo para a prática, pois seria impossível retratar, nas práticas educacionais, um pouco de cada realidade que iria enfrentar, em cada lugar e contexto. Por isso a formação inicial faz o que pode ser feito ao apresentar a realidade escolar a ser enfrentada. Porém, cada indivíduo terá pela frente uma formação que 19 deve ser testada, experimentada e colocada em prática. E, dados os saberes/conhecimentos que se tem, se passa a construir o fazer partindo da realidade circundante. Aprende-se, ainda, que o cotidiano tende, em sua rotina, a mecanizar, sendo necessário refletir sobre a unidade entre teoria e prática, conferindo sentido e significado aos saberes da experiência que vai se formando, reformando e transformando. O nosso estudo tem a intenção, como já foi destacado, de buscar na formação das características do professor experiente a forma como a maturidade profissional se dá entre as fases de sua carreira. Isso permite a compreensão de seu desenvolvimento profissional e revelando o momento em que passa a figurar como bom professor e profissional em Matemática. A pesquisadora Cunha (1988, p. 136) assume a necessidade de compreender o próprio conceito de bom professor implícito no papel social que ele traz subjacente, em razão das mudanças que historicamente se solicita de cada função. A primeira idéia que gostaria de explorar é que o conceito de BOM PROFESSOR é valorativo, com referência a um tempo e a um lugar. Como tal é também ideológico, isto é, representa a idéia que socialmente é construída sobre o professor. O definir e o satisfazer expectativas dá corpo ao comportamento de tipo papel e modificam a função do dever-ser na vida cotidiana. De acordo com Heller (1985, p. 94), no ‘dever-ser’ revela a relação do homem por inteiro com os seus deveres, com suas vinculações, sejam essas econômicas, políticas, morais ou de outro tipo”. É comum entre os professores, a existência de valores como “preciso ser responsável e honrado”, “os alunos devem ser tratados todos iguais” e outras manifestações que se tornam usuais e aceitáveis ao seu papel. Cria-se historicamente um rol de atributos que fazem parte do papel do professor, que são assimilados socialmente, sem muita consciência ou atitude reflexiva sobre os mesmos. [...] É necessário refletir sobre a possibilidade de desnudar um contexto que insiste em colocar os professores de Matemática e de Língua Portuguesa como vilões, em razão de exames de proficiência de estudantes por série, que revelam as deficiências de conhecimentos adquiridos e resultam em preocupações de toda ordem na escola. Os professores de Matemática já enfrentavam dificuldades em relação a uma grande massa de pessoas que passaram pela escola e dela saíram com parcos conhecimentos e dão voz ao coro de queixas e reclamações sobre o ensino de Matemática. Com isso, nosso estudo pretende alargar os horizontes na tentativa de enxergamos com maior nitidez os fatores intervenientes nessa crise no ensino de uma forma geral e, em particular, no ensino de Matemática. Nosso estudo apresenta os seguintes questionamentos, para efeito de desenvolvimento de nossa investigação: Qual a relação entre o tempo e os saberes da experiência (práticos) na carreira docente que indiquem seu desenvolvimento profissional? Há ao longo da carreira 20 docente consciência das mutações que vão ocorrendo em seu saber ser e saber fazer? Caso haja, há diferença em relação ao tipo de saberes/conhecimentos que ao longo do tempo se potencializam mais? Quais as características, os tipos de saberes e a possível estimativa do tempo para se constituir como "professor experiente"? Como instrumentos de coleta de dados utilizamos a biografia profissional, a observação participante e entrevistas semi-estruturadas, partindo, em seguida, para o processo de análise de conteúdo descritivo, filiado teoricamente ao estudo fenomenológico de investigação qualitativa, que descreveremos com maior clareza em capítulo de fundamentação teórico metodológica. O trabalho encontra-se dividido em cinco seções. Na primeira seção discutiremos o entendimento de experiência e a provável origem do preconceito com os saberes/conhecimentos oriundos da prática cotidiana. Para isso, fomos buscar na Antiguidade, com Platão e Aristóteles, as suas discussões acerca da verdade. De um lado Platão, com a abstração do pensamento e, de outro, Aristóteles, em sua perspectiva logicista de buscar a forma reconhecendo a verdade a partir dos objetos do mundo físico. Saltamos para o pragmatismo, com John Dewey, e fomos verificar a diferença entre experiência existencial e experiência pensada e refletida. Passamos pela vasta discussão de saberes docentes, apoiados em autores como Tardif, Lessard e Lahaye (1991), Perez-Gomez (1992), Ponte (1994, 1995 e 1997), Gauthier et al. (1998), Cunha (2000), Tardif (2002), Borges (2002), Larrosa (2002), Zibetti (2005) e Mizukami (2002, 2005). Desembocamos na discussão do paradigma moderno e a invisibilidade dos saberes da experiência, finalizando com a proposta de Josso (2004) acerca do ter, fazer e pensar a experiência, numa tentativa de dar visibilidade aos saberes da experiência, juntando aos fundamentos teóricos os trabalhos de Dewey (1985) e Schön (1998). Na segunda seção principiamos a inserção dos professores de Matemática na proposta de apresentarmos seus saberes e suas concepções fundamentados na filosofia da Matemática. Em seguida, passamos a discutir o tempo espacializado e o tempo de trabalho para a compreensão da carreira docente. Para isso nos valemos de estudos de Elias (1998), Zarifian (2002), Coelho (2004), Huberman (2000), Gonçalves (2000) e Loureiro (1997). Finalizamos com a proposta de compreender nos ciclos da carreira o momento da estabilização com a identidade profissional, até o momento em que o professor adquirisse saberes/conhecimentos capazes de lhe dar um domínio na gestão da classe e do conteúdo. Fundamentamos nossa discussão nos trabalhos de Erikson (1987), Gatti (1996), Carrolo (1997), Gauthier et al. 21 (1998), Martin Lawn (2001), Meksenas (2003), Ciampa (2005), Freitas (2006) e Ferraço (2007). A terceira seção traz a nossa fundamentação teórico-metodológica, embasada em autores como Husserl (1973, 1996), Giles (1979), Queiroz et al. (1988), Bogdan e Biklen (1994), Meihy (1996), Demo (1998), André (2000), Vianna (2003), Szymanski (Org. 2003) Lankshear e Knobel (2008). Como primeiro passo, registramos o método circunscrito na fenomenologia, seguido da apresentação dos objetivos e problemas que guiaram nossa pesquisa. Logo após, trazemos em tópicos independentes, a constituição do campo de investigação e a caracterização mínima dos sujeitos. Por fim apresentamos os procedimentos acompanhados de cada um dos instrumentos de coleta de dados utilizados, a biografia profissional, a observação participante e a entrevista semi-estruturada. Na quarta seção apresentamos a descrição e a análise de conteúdo dos dados. Para isso, concentramos os dados de biografia profissional que foram obtidos oralmente com os desdobramentos efetivados nas entrevistas semi-estruturadas, na intenção de concentrar o pensamento dos professores-colaboradores a respeito de sua história de vida profissional e, consequentemente, seu aprendizado na docência ao longo do tempo de carreira. Fizemos, também, uma análise agrupando os professores-colaboradores em dois grupos: de um lado, os professores Adriano e Solange, com mais tempo de serviço e de outro, os professores Marco e Mariana, com menos tempo de carreira. Passamos, em seguida, a analisar seus posicionamentos a respeito de suas identidades profissionais e suas crises, o papel que o tempo exerce na carreira docente, suas concepções a respeito do ensino de Matemática, as características que julgam que um bom e experiente profissional em Matemática deve ter e outras discussões que interferem e influenciam nas fases de desenvolvimento da carreira, desde o processo de formação inicial até a permanente, na perspectiva de contemplarmos a constituição dos professores experientes em Matemática. Trilhamos esse caminho com a intenção de, no decorrer do tempo, vislumbrarmos algumas possibilidades que, pela configuração dos procedimentos dos professores em sua gestão do conteúdo e de sala de aula, pudessem evidenciar os saberes ser e fazer dos professores experientes. Na quinta e última seção voltamos a agrupar nossos quatro professores-colaboradores a partir da perspectiva de nossas observações realizadas em sala de aula, para revelar em suas ações as práticas cotidianas, dilemas e tomadas de decisões, permitindo-nos o enquadramento em nossa análise de duas grandes categorias: gestão de conteúdos e gestão de sala de aula. Em 22 um segundo tópico, detivemos nossa observação na incidência de ações voltadas à gestão de conteúdos e gestão de sala de aula de nossos professores, apresentadas por meio de dois quadros de procedimentos relativos às duas categorias que aferem a incidência de ações dos professores durante o desenvolvimento de suas atividades em sala. Nós o fizemos com a intenção, também, de firmar suas características mínimas de experiência docente e seus repertórios de ensino, ressaltando-as como características fundamentais na constituição do professor experiente em Matemática. Nossas considerações finais retornam ao desenvolvimento de nossas ideias para destacar, enfatizar e pontuar aquilo que consideramos respostas para nossas indagações. Inicialmente, porém, fazemos uma incursão em cada seção de nosso trabalho para justificar os caminhos teóricos escolhidos e, ou desembocar em pontos que consideramos primordiais para compreendermos os desdobramentos pelos quais a temática e o próprio problema proposto nos conduzem. Destacamos as características dos professores experientes indicados por nossos professores e apresentamos a nossa teorização sobre aquilo que denominamos como zona de incubação do professor experiente. Esta zona de incubação compreende, em suas fases da carreira, o momento a partir do qual se consolida um repertório pedagógico do professor e ocorre a constituição de sua identidade profissonal. Quanto ao tempo sabemos que ele transversaliza todo o processo de desenvolvimento e aprendizado da docência. E como ocorre a temporalidade na constituição do professor experiente? Essas e outras indagações constituem o cerne da nossa discussão. Apontamos, ainda, desafios e dilemas que o estudo apresenta - por sua natureza e interesse em levantar a relação entre o tempo e a formação dos saberes da experiência profissional - e tangencia, em alguns momentos, com a formação inicial e permanente dos professores de Matemática. Esperamos com esse estudo contribuir para uma melhor compreensão da relação entre o tempo e formação dos saberes da experiência dos professores de matemática, redimensionando o nosso olhar sobre as fases da carreira e sobre o processo de constituição do professor experiente. E quiçá possa favorecer os seus aprendizados da/na docência com mais qualidade. 23 1 – Os saberes/conhecimentos da experiência docente, sua invisibilidade e a sua tentativa de legitimação Numa tentativa de buscar explicações para a origem da experiência humana, a primeira seção vai até a Antiguidade, com Platão e Aristóteles, e depois até o pragmatismo, com John Dewey, para entender a experiência existencial e a experiência pensada e refletida. O segundo tópico já inscreve a experiência no contexto profissional do magistério como um tipo de saber originário e construído na prática da docência, com a finalidade de vislumbrarmos o seu processo de legitimação e validação por meio do desenvolvimento da prática reflexiva. Com a perspectiva da epistemologia da prática proposta por Perez Gómez (1997), Schön (1998) e Tardif (2002), buscamos compreender a razão da invisibilidade pelo paradigma da modernidade dos saberes erigidos na prática cotidiana, utilizando-nos das pesquisas no/do cotidiano de Alves e Teixeira (2008). Adicionamos como uma segunda dificuldade de visibilização a perspectiva de Gauthier et al. (1998), que trazem a discussão da importância da constituição de um repertório de conhecimentos do ensino, o que poderia permitir o reconhecimento dos saberes da experiência cotidiana como legítimos saberes representativos da profissão. Finalizamos com a discussão proposta por Josso (2004) de ter, fazer e pensar a experiência. Para isso, principiamos com o retorno da discussão da experiência pensada e refletida com Dewey, chegando até a proposta da reflexão da/na e sobre a ação de Schön (1998). Mesmo reconhecendo todas as críticas e dificuldades direcionadas à perspectiva reflexiva de Schön (1998), apontadas pela literatura científica (PIMENTA; GHEDIN, 2002; MIZUKAMI, 2002), a colocamos ao lado da biografia de experiência formadora de Josso (2004), dando-lhe mais um caráter coletivo e de desenvolvimento. 1.1 Saberes/conhecimentos e experiência: buscando as origens, principiando a discussão Desde o momento em que a humanidade buscou, na sua forma de interagir com o mundo, explicações possíveis dos seus fenômenos e, ao mesmo tempo, uma melhor apreensão dele, dos sujeitos e dos objetos que nele habitam, a sua trajetória histórica passou a vivenciar 24 e a ter a experiência de contextos filosóficos com tendências elucidativas sobre a singularidade do ser humano e sua imanente possibilidade de desenvolvimento intelectual. Podemos dizer que o tempo, hoje caracterizado pela velocidade da informação, facilitada pela ajuda da microeletrônica, não é o mesmo tempo que os fundamentos da metafísica, epistemologia, lógica e axiologia tiveram para se consolidar como ramos da filosofia e para promulgar as suas descobertas. Nosso interesse em buscar na história a compreensão do tempo gasto para que algumas verdades fossem descobertas é diretamente proporcional aos conhecimentos que a humanidade foi acumulando, aos fatos antes impensados ou, então, considerados naturais, dando a todos os sujeitos algumas certezas na construção de seus saberes/conhecimentos. Na Antiguidade, Sócrates, com seu enfoque dialético, conduzia todos os cidadãos a pensar, pois se acreditava que as ideias resultantes do pensamento fossem a única realidade verdadeira. Platão, como se sabe, foi o organizador e ilustrador do método e do pensamento socrático, a ponto de se tornar indistinguível de Sócrates e cunhar o idealismo platônico. Dos ideais platônicos, levanta-se a preocupação reinante em buscar a verdade, pois somente ela seria perfeita e eterna. Sua existência não poderia ser encontrada no mundo físico, no mundo da matéria, porque ela está constantemente em mudança. As abstrações para o idealismo, orientadas via dialética, seriam, então, a forma de auxiliar as pessoas para se livrarem das preocupações do mundo material e passarem a dedicar-se ao mundo das ideias, livrando-se, assim, do mundo das trevas e da caverna. Aristóteles, por sua vez, irá postular, por meio do chamado princípio ou tese da independência, que a realidade, o conhecimento e o valor existem independentes da mente humana. Ou seja, os realistas irão rejeitar a noção de que apenas as ideias são reais. A existência física do mundo e suas formas dão à realidade uma independência de haver ou não uma mente humana que seja capaz de percebê-la. Para Aristóteles, desse modo, as ideias podem existir sem a matéria, como a ideia de Deus, por exemplo, mas a matéria em geral não pode existir sem uma forma. Afirmava que cada pedaço de matéria teria suas propriedades universais e particulares. Para elucidar melhor a informação, tomemos o exemplo das nozes e das pessoas oferecidos por Ozmon e Craver (2004, p. 60): (...) Duas nozes nunca são exatamente iguais; portanto, podemos falar de propriedades particulares de uma noz qualquer como sendo diferentes das de todas as outras nozes. Cada noz, entretanto, compartilha com as outras de uma propriedade universal que pode ser chamada de “o caráter noz”. 25 (...) As pessoas também diferem em suas propriedades particulares, pois elas têm diferentes formas e tamanhos, e duas nunca são exatamente iguais. Ainda assim, todas as pessoas compartilham de algo universal, e isso pode ser chamado de seu “caráter humano”. Tanto o caráter humano quanto o caráter noz são realidades. E elas existem independentemente de qualquer humano ou noz particular. Dessa forma, podemos dizer que formas (universais, ideais ou essenciais) são os aspectos não materiais de cada objeto material particular que se relacionam com todos os outros objetos particulares daquela classe. Aristóteles e Platão concordavam, por um lado, que deveriam incessantemente estudar e entender a realidade de todas as coisas. Por outro lado, Platão não concordava que Aristóteles pudesse chegar à forma por intermédio do estudo de coisas materiais particulares. Aristóteles não concordava com Platão, que pensava que a forma somente poderia ser atingida por meio de algum tipo de raciocínio, como a dialética. No entanto, Aristóteles, para descobrir a estrutura da realidade, trabalhou com processos lógicos. Já Platão se utilizou da dialética para desenvolver noções opostas a respeito da verdade. Com a preocupação em buscar a verdade, Aristóteles refinou a dialética, desenvolvendo o silogismo, onde tencionava testar as verdades de suas afirmações, a partir de generalizações ou verdades tidas como universais. Seu método lógico era, portanto, dedutivo. Por sua insistência em estudar e entender melhor a forma (o princípio geral) até os seus objetos materiais específicos, acaba, pelo silogismo, por chegar ao processo que vai do especifico ao geral (indutivo). E, assim, por séculos os pensadores enfrentaram problemas com o método lógico, de enfoque silogístico, com posições falsas e insustentáveis. Somente no século XVI, Francis Bacon propõe um enfoque indutivo que fosse mais apropriado. Entender o saber/conhecimento era, então, com o idealismo, por um lado afirmar a existência da razão subjetiva, pois a realidade só podia ser conhecida por meio das ideias de nossa própria razão. O realismo, por outro lado, seria a afirmação da existência da razão objetiva, pois a realidade é racional em si mesma, e por essa razão só podemos conhecê-la por sermos racionais. Dessa forma, ao colocarmos o problema do saber/conhecimento neste estudo desde a Idade Antiga, o fazemos pela razão do entendimento de que saber/conhecimento não é um estado, mas sim um processo, e, como tal, impossível de ser desvinculado de sua atividade prática, pois não seria mais possível contemplar o ato de conhecer apenas por sua representação mental do mundo, mas também pelo resultado de nossa atuação a partir das representações que dele tínhamos. Pensando nisso, principiamos o discurso pelas duas doutrinas do idealismo e realismo, colocando-as lado a lado, e podemos dizer que a busca pela verdade traz implícito o princípio 26 valorativo e dicotômico entre a natureza dos conhecimentos tidos como científicos e empíricos porque, respectivamente, o primeiro vincula-se à racionalidade do pensamento, de maior valor e, o segundo ao mundo físico e cotidiano e, portanto, mecânico e empírico. Partimos agora para a Idade Moderna - no século XX, mais particularmente - com o pragmatismo, para trazer um balanço da discussão sobre a experiência da natureza humana, especialmente por meio de um de seus pensadores - John Dewey, a exemplo do que nos dizem Ozmon e Craver (2004, p. 131). [...] O pragmatismo não só examina modos tradicionais de pensar e fazer e, quando possível, busca incorporá-los à vida cotidiana, mas também endossa a criação de ideias novas para lidar com o mundo no qual vivemos, sempre em processo de mudança. [...] A base do pragmatismo pode ser encontrada nas obras de figuras como Francis Bacon, John Locke, Jean Jacques Rousseau e Charles Darwin. Porém os elementos filosóficos que conferem ao pragmatismo uma consistência e um sistema de verdadeira filosofia são as contribuições de Charles Sanders Peirce, William James e John Dewey. Valendo-se do enfoque indutivo, tão característico do pragmatismo, os trabalhos de John Dewey (1985, p. 90) sobre a experiência nos alertam para: A experiência ocorre continuamente, porque a interação da criatura viva com as condições que a rodeiam está implicada no próprio processo da vida. Sob condições de resistência e conflito, aspectos e elementos do eu e do mundo implicados nessa interação qualificam a experiência com emoções e ideias, de maneira tal que emerge a intenção consciente. Célia Maria Fernandes Nunes (2004, p. 47), em seus estudos sobre Dewey, também apresenta uma caracterização do entendimento da experiência sob a perspectiva do agir e sofrer nessa interação com sujeitos e objetos, para enfim extrair desse processo saberes/experiências. A experiência para Dewey (1930) vai ocorrer a partir da análise das diversas maneiras que os elementos se relacionam no universo. Essas relações mútuas modificam os corpos na ação de uns sobre os outros. A experiência consiste então nesse “agir sobre o outro corpo e sofrer de outro corpo uma reação” (p. 9). Para o homem, esse agir e reagir vai além, envolvendo não só a escolha, a preferência, a seleção como também a reflexão, o conhecimento e a reconstrução da experiência. Esta forma de interação, pela qual os dois elementos que nela se encontram (situação e agente) são modificados, constitui-se, então, na experiência. Qualquer experiência vivenciada possibilitará esse resultado, inclusive as de reflexão e conhecimento, pois “o fato de conhecer uma coisa, importa em uma alteração simultânea no agente do conhecimento e na coisa conhecida. Essas duas existências se modificam, porque modificaram as relações que existiam entre elas” (p. 10). Com este ponto de vista, Dewey (1985, p. 95-96) chama a atenção para o papel da interação como um padrão comum a toda experiência e que pressupõe um vetor epistêmico de 27 agir e sofrer a/na experiência, que na ordenação da situação é também passível de verificação, da incerteza e da indecisão. Há, portanto, padrões comuns a várias experiências, não importa quão diversas sejam uma da outra nos pormenores de seu tema. Há condições a serem preenchidas sem as quais uma experiência não pode vir a ser. O esquema do padrão comum é dado pelo fato de que toda experiência é resultado de interações entre uma criatura viva e algum aspecto do mundo no qual ela vive. Um homem faz algo; levanta uma pedra, por exemplo. Em conseqüência padece, sofre alguma coisa: o peso, a resistência, a textura da superfície da coisa levantada. As propriedades assim sofridas determinam o agir subseqüente. A pedra é excessivamente pesada ou muito angulosa, ou não é suficientemente sólida; ou ainda as propriedades sofridas mostram que ela é adequada para o uso para o qual foi pretendida. O processo continua até que emerja uma adaptação mútua do eu e do objeto, e então tal experiência específica alcança um término. O que é verdade a este simples exemplo é verdade, quanto à forma, relativamente a toda a experiência. A criatura operante poderá ser um pensador em seus estudos e as condições ambientais com as quais ele interage poderão consistir de ideias, em vez de uma pedra. Mas a interação de ambos constitui a experiência total que é tida, e o término que a completa é a instituição de um sentimento de harmonia. As ideias de Dewey podem associar-se às de Larrosa (2002, p. 21), em seu texto “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, inicialmente para apresentar e demarcar a nossa compreensão de experiência e, em seguida, situá-la no campo dos saberes docentes, desmitificando a velha crença de que as experiências se dão na forma de repetições das práticas no cotidiano. [...] Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas experiência é para cada qual sua, singular e, de alguma maneira, impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. � Novamente Larrosa (2002, p. 19) coloca suas exposições sobre o sujeito da experiência como um sujeito “ex-posto” e aberto, fundamentalmente, para o aprendizado decorrente das experiências da vida, fornecendo também uma ligação com as ideias anteriores de Dewey sobre o padecimento da experiência. [...] o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata- se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial. É necessário garantir, ainda, que os saberes originários da experiência são preliminarmente fontes de um processo de aquisição “(...) no modo como alguém vai 28 respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece” (LARROSA, 2002, p. 27). Outro pensamento de Dewey (1985) é o de além de colocar a experiência de uma forma geral, buscar na experiência especial em artes plásticas a explicação da qualidade estética, colocando-a como uma característica imprescindível para qualquer experiência, podendo ser chamada de “experiência de pensamento”, que aqui defenderemos como a experiência consciente, pensada, refletida, presente nestes três pequenos excertos que se seguem. Uma experiência possui uma unidade que lhe confere seu nome, aquela comida, aquela tempestade, aquela ruptura de amizade. A existência dessa unidade está constituída por uma qualidade única que penetra toda a experiência, apesar da diferença de suas partes constitutivas. Unidade que não é nem emocional, nem prática, nem intelectual, porque esses termos denominam distinções que a reflexão pode estabelecer no interior dela. No discurso acerca de uma experiência, somos forçados a usar tais adjetivos de interpretação. (....) (DEWEY, 1985, p.90, grifos do autor) [...] Portanto, uma experiência de pensamento tem sua qualidade estética própria. Difere daquelas experiências que são reconhecidas como estéticas, mas somente com respeito a seus materiais. O material das belas artes consiste em qualidades; o da experiência, que conduz a uma conclusão intelectual, consiste em signos ou símbolos que não possuem uma qualidade própria intrínseca, mas que substituem coisas que podem, em outra experiência, ser experimentadas qualitativamente. (DEWEY, 1985, p. 91) [...] Não é possível separar, numa experiência vital, o prático, o emocional e o intelectual uns dos outros, e pôr as propriedades de um em oposição às dos outros. O aspecto emocional liga as partes num único todo; “intelectual” simplesmente nomeia o fato de que a experiência tem significado: “prático” indica que o organismo está em interação com eventos e objetos que o rodeiam. A mais elaborada investigação filosófica ou científica e a mais ambiciosa empresa industrial ou política, quando seus diferentes constituintes formam uma experiência integral, tem qualidade estética, de vez que então suas várias partes estão ligadas umas às outras, e não apenas sucedem uma a outra. (...) (DEWEY, 1985, p. 104) A nossa função, ao pontuar a experiência na abordagem pragmática, foi a de encontrar o ponto de convergência entre a discussão dos saberes docentes feita hoje, em especial os saberes da experiência, podendo colocar em diálogo as discussões relativas aos saberes/conhecimentos que, nos últimos 20 anos, se traduzem na busca incessante de trabalhos que tentam levantar os repertórios de conhecimentos dos fazeres diários dos professores em sala de aula. Essa preocupação com a profissionalização do ofício docente e também com a forma de melhorar a qualidade dos saberes amalgamados pela prática docente, e também legitimados pelos cursos de formação de docentes, tem sua validade como demarcação e status profissional. Entretanto, parece camuflar a falta de reconhecimento a que esses 29 saberes/conhecimentos estiveram sujeitos e que, inegavelmente, como afirma Larrosa (2002, p. 28), são existenciais, ou seja, integram a própria vida de cada sujeito. [...] o saber da experiência sublinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência, com a vida singular e concreta de um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar- nos de nossa própria vida. Ter uma vida própria, pessoal, como dizia Rainer Maria Rilke, em Los Cuadernos de Malthe, é algo cada vez mais raro, quase tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência. É também necessário vislumbrar a convivência pacífica entre experiência e experimento, sem confusão, num diálogo pautado pela heterologia, conforme Larrosa (2002, p. 28), para poder respeitar e reconhecer as suas diferenças. [...] o saber da experiência pretende evitar a confusão de experiência com experimento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência de suas contaminações empíricas e experimentais, de suas conotações metodológicas e metodologizantes. Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Por isso, no compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que de uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funciona heterologicamente do que uma dialogia que funciona homologicamente. Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-dizer”. Ao encerrar nossas discussões sobre a experiência e saberes da experiência, por meio da abordagem de seu princípio pelo pragmatismo - que nos fornece a instrumentalização para a compreensão da experiência existencial, que logra obter saberes/conhecimentos a partir da situação e interação vivenciadas -, sublinhamos o valor que a experiência tem hoje para a discussão dos saberes e da profissionalização docente. Desse modo, todo esse destaque em torno da articulação da experiência pragmática com os saberes da experiência na prática docente tem suas raízes nas preocupações da sociologia das profissões (GAUTHIER ET AL., 1998) em atentar para o desafio da profissionalização, evitando os erros comuns de um “ofício sem saberes” e dos “saberes sem ofício”. Com essa perspectiva, juntamos a discussão dos saberes docentes à preocupação de desnudar os saberes da experiência, não com o fim de validá-los como únicos e exclusivos, 30 mas muito mais como possibilidade de que seu desvelamento venha a contribuir para o entendimento da mobilização de vários saberes. São esses saberes que ajudam todos os professores a construir um tipo de reservatório de conhecimentos, que contribuem para as respostas que eles terão de dar às situações concretas de ensino. É o que passaremos a discutir mais largamente no próximo tópico. 1.2. Os saberes/conhecimentos docentes da experiência e na experiência O ser humano, ao constituir-se como profissional, terá a seu dispor todo o conhecimento, concepção e/ou crença formadora que estarão predispostos ao enfrentamento de situações concretas, que comumente não são aventadas, concebidas e definidas e exigirão uma parcela de improvisação e de habilidades pessoais para resolver situações variáveis e transitórias, a exemplo do que nos dizem Tardif, Lessard e Lahaye (1991, p. 220): [...], o(a)s próprio(a)s professore(a)s, no exercício de sua função e na prática de sua profissão, desenvolvem saberes específicos, fundados em seu trabalho cotidiano e no conhecimento de seu meio. Esses saberes brotam da experiência e são por ela validados. Eles incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber fazer e de saber ser. Podemos chamá-los de saberes da experiência ou da prática. Ao realçar o saber da experiência ou da prática profissional necessitamos destacar que os autores supracitados apresentam uma tipologia de saberes, tais como: “saberes das disciplinas, saberes curriculares e saberes da experiência”. Compreendemos que na prática os professores integram os diferentes tipos de saberes e, também, por serem sujeitos cognoscitivos, genuinamente diferentes, estabelecem diversas relações com esses saberes. Conferem ao saber docente um saber plural que se caracteriza quase sempre pela sua indissociabilidade, seu caráter mais ou menos coerente, que originalmente constitui os saberes oriundos de sua formação profissional. Borges (2002, p.56), ao também analisar os trabalhos de Tardif (2002) e Tardif e Lessard (1991), comenta a junção de um conjunto de saberes integrados que estarão presentes na ação prática dos professores no seu trabalho diário. Nesse sentido, um [...] aspecto a reter das contribuições de Tardif (2002, Tardif e Lessard (1999) é que ensinar é mobilizar uma grande variedade de conhecimentos compostos, reinvestindo-os no trabalho, para adaptá-los e transformá-los para e pelo trabalho. Assim, a experiência do trabalho não é apenas o lugar onde os conhecimentos são aplicados, ela é, em si mesma, um conhecimento do trabalho sobre os conhecimentos, o que quer dizer reflexão, tomada de consciência, 31 reiteração, apropriação de tudo o que o docente sabe dentro do que sabe fazer, com a finalidade de produzir a própria prática profissional. E os saberes da experiência não só fazem parte do conjunto de saberes, como constituem o lugar onde esses saberes são amalgamados. O "saber da experiência", então, "baseia-se na 'experiência vivida' enquanto fonte viva de sentido a partir da qual o passado lhe permite esclarecer o presente e antecipar o futuro" (TARDIF, 2004, p. 179), permitindo dessa forma a compreensão do saber docente como um saber "polimórfico de raciocínio", pois sugestiona o uso variado de raciocínio, conhecimentos e procedimentos decorrentes da própria ação interativa da educação. Destaca-se também que, em razão dos saberes docentes envolverem diversos tipos de ações que demandam competências do professor, e por não serem essencialmente idênticos - e tampouco mensuráveis -, passa-se, assim, a solicitar das circunstâncias diárias certas sabedorias para argumentar e para agir conforme os fatos, os afetos, as normas e os papéis. Desse modo, torna-se impossível o estabelecimento de unidade racional de ações. Diante dessa perspectiva de agir com certa dose de improvisação e habilidades pessoais não garantidas pela formação inicial, utilizando-se de uma lógica muita mais teórica do que prática dos professores em sala de aula, esse conjunto de condições acaba ocasionando, no início da carreira docente, um "choque com a realidade", impondo, a partir daí, a construção e a constituição dos saberes docentes e da experiência. Como afirmam Tardif, Lessard e Lahaye (1991, p. 229): [...] Ao tornarem-se professore(a)s, descobrem os limites de seus saberes pedagógicos. (...) é no início de carreira (de 1 a 5 anos) que o (a)s professore (a)s acumulam, ao que parece, sua experiência fundamental. Essa aprendizagem rápida tem valor de confirmação: mergulhado(a)s na prática, tendo que aprender fazendo, o (a)s professore (a)s devem provar a si próprio(a)s e aos outros que são capazes de ensinar. Essa experiência fundamental tende a se fixar, em seguida, num estilo pessoal de ensinar, em macetes da profissão, em habitus, em traços da personalidade profissional. Os saberes da experiência, por estarem em ação direta com a prática, colocam-se em uma posição formadora pelo fato de se revelarem como um processo de aprendizagem inicialmente decidido por nós, em nossa formação anterior. Dentre os conhecimentos que podem ser retraduzidos ou adaptados, a fim de resolver os problemas da prática educativa, eliminamos o que nos parece inútil. A partir daí escrevemos nossa história, por meio do estilo que desenvolvemos ao ensinar, dentro das técnicas e procedimentos que passaremos a utilizar, ou mesmo nas marcas pessoais que estabeleceremos como profissionais e que "[...] se expressam, então, através de um saber ser e de um saber-fazer pessoais e profissionais validados pelo trabalho cotidiano." (TARDIF, 2004, p.181). 32 Trata-se, na discussão da construção do estilo pessoal e profissional, da formação do habitus discutido por Bourdieu e do habitus professoral proposto por Silva (2005, p. 12), que nos diz: (...) podemos dizer que o habitus professoral faz parte do conjunto de elementos que estruturam a epistemologia da prática. Trata-se, sobretudo, da estética desse ato, isto é, dos modos de ser e agir de professores e professoras. E essa estética é produzida por meio das influências inexoráveis dos condicionantes advindos da cultura estruturada e estruturante da escola, que subsiste na instituição na qual o sujeito desenvolve sua carreira docente. Outrossim, a produção desse habitus depende da qualidade teórica e cultural da formação dos professores, mas não é desenvolvido durante a formação, e sim durante o exercício profissional. (...) O habitus professoral, então, materializa-se no pleno exercício profissional, e acaba por exigir dos professores não um saber sobre uma prática pronta para ser objetivada, nem tampouco sobre um objeto de conhecimento, mas muito mais no modo de se constituir sujeito, ator e acima de tudo de ser uma pessoa que interage constantemente com outras pessoas. E será por intermédio dessa capacidade que o docente, em seu estilo particular, gestará algumas certezas que permitirão a avaliação de sua própria potencialidade de ensinar e de seu desempenho no ofício da profissão. Ou, então, como Tardif, Lessard e Lahaye (1991, p. 230) discutem, ao tratar sobre a objetivação dos saberes da experiência. Os saberes da experiência têm origem, portanto, na prática cotidiana do(a)s professor(a)s em confronto com as condições da profissão. Quereria isto dizer que eles residem nas certezas subjetivas acumuladas individualmente ao longo da carreira de cada docente? Não, na medida em que essas certezas são ao mesmo tempo partilhadas e partilháveis nas relações entre os pares. É através das relações com os pares e, portanto por meio do confronto entre saberes produzidos pela experiência coletiva do(a)s professore(a)s, que os saberes da experiência adquirem uma certa objetividade: as certezas subjetivas devem, então, se sistematizar a fim de serem traduzidas em um discurso da experiência capaz de informar ou de formar outros docentes e de responder a seus problemas. (...) Podemos entender dessa forma, a exemplo de Tardif (2004), Oliveira e Ponte (1997), que os fundamentos de origem cognitiva e afetiva (concepções, crenças, atitudes, identidade profissional) interferem na constituição dos conhecimentos de base (conhecimento da área científica, conhecimento curricular, aprendizagem, aluno, entre outros), desembocando, finalmente, em seus conhecimentos na ação, resultantes dos dilemas e tomadas de decisões, que se materializam no saber-fazer de cada docente. No quadro abaixo, proposto por Oliveira e Ponte (1997, p. 3), quando de seu levantamento de tipos de trabalhos que apresentam a discussão sobre saberes docentes nos processos de sistematização de suas fundamentações, conhecimentos de base e de ação, os professores são colocados, no aprendizado docente, diante de dois tipos de conhecimento que, 33 segundo Ponte (1994), contribuem para a apropriação de saberes e fazeres profissionais. Seriam eles o conhecimento didático e o conhecimento sobre a gestão da aula. Figura 1 - Fundamentos, conhecimento de base e conhecimento na ação do professor de Matemática Fonte: OLIVEIRA, H., PONTE, J. P. Domínios de investigação sobre o conhecimento profissional do professor de Matemática, 1997, p. 3. A efetivação desses dois tipos de conhecimentos, de acordo com Ponte (1994, p. 10), caracteriza a essência do processo de ensino, pois o conhecimento sobre a gestão da aula se assemelha ao que Gauthier et al. (1998) denominam como “gestão de classe” porque “[...] compreende tudo o que permite ao professor criar um ambiente propício à aprendizagem, estabelecendo as suas regras de trabalho, pondo em funcionamento formas de organização dos alunos, lidando com situações ou comportamentos dissonantes em relação às suas regras, etc. [...]”. No tocante ao conhecimento didático, há uma aproximação no que Gauthier et al. (1998) discutem na “gestão do conteúdo”, devido ao fato de estar intimamente ligado ao conteúdo, necessitando, conforme Ponte (1994), a compreensão e distinção de quatro aspectos que são: o guia curricular, a agenda, a monitorização e a avaliação. Em cada um dos quatro aspectos os docentes teriam uma infindável possibilidade de colocar em ação a construção de saberes práticos que inicialmente deveriam se adaptar às 34 interações que serão tecidas com suas histórias e biografias em cada sala, por sua natural heterogeneidade. Desse modo, como nos orienta Ponte (1994), o uso e manuseio do guia curricular transformam em uma área de domínio do conhecimento, ou de todo tipo de informação, experiências e representações emocionais que constituem a vivência do trabalho com determinado ponto ou “matéria” do currículo. Esse tipo de domínio, com mais ou menos intensidade, permite ao professor ativá-lo quando desejar, seja para a construção de uma aula ou de uma unidade didática. E anexos a esse domínio, ainda, estão os objetivos de aprendizagem que o professor julga pertinentes aos seus alunos, as tarefas que planeja para sua aula, as situações de aprendizagem que contribuem para o desenvolvimento das tarefas planejadas, as representações utilizadas pelo professor em suas conceituações e crenças e, por fim, os critérios utilizados na feitura das avaliações de seus alunos. Na agenda, ter-se-ia a compreensão das idealizações do professor na definição de seu plano de aula; trata-se, desse modo, do momento que vai desde a preparação da aula, seu desdobramento até o seu término, incluindo aí os objetivos definidos e as ações executadas, desvelando, ao final, as combinações das estratégias utilizadas para a efetivação da aula. Quanto ao monitoramento, Ponte (1994) indica ser tudo o que diz respeito à ação e ideias imediatas do professor para que a agenda se cumpra, refletindo-se diretamente em seu discurso (linguagem utilizada) até as ações observadoras de seu próprio trabalho e da condução do trabalho dos alunos. Já a avaliação vai criando forma desde o início da aula e para sua concretude se vale de dois aspectos imprescindíveis na ação reflexiva: de um lado, as reações dos alunos frente à agenda proposta, de outro, a avaliação da adequação dos objetivos e ações do professor ao que se propunha fazer. Paralelamente a essa eventual riqueza de formações práticas os saberes da experiência vão conferindo ao professor, na gestão de suas aulas, a necessidade de antecipar-se sobre algumas questões que, no jogo didático, tornar-se-iam mais significativas e efetivamente mais funcionais ou, então, de improvisar situações de aprendizagem que no dia-a-dia se revelariam mais apropriadas. Tudo isso contrastado com o tempo didático da aula, em que está em jogo o processo de conhecimentos, concepções, saberes e crenças em plena interação com professores e alunos e também a temporalidade que marca o processo de profissionalização do docente. Essa inserção da temporalidade ajuda-nos a compreender o modus operandi da "genealogia dos saberes docentes e da experiência”, pois, simultaneamente, as experiências 35 formadoras vividas na família e na escola promovem a construção de referenciais que irão demarcar e fixar todas essas experiências na memória, sejam elas positivas ou negativas. E, por se constituir como uma estrutura que é intrínseca à consciência, contribui na formação do "eu profissional". Não é à toa que, normalmente, durante o início da carreira, muitos docentes, diante do "choque com a realidade", optam por escolher, como modelo prévio, um professor que tenha marcado sua experiência enquanto estudantes, mas ao longo da trajetória dá lugar a um estilo particular que o tempo mobilizará em sua construção diária. Outra questão fundamental a ser discutida, apesar das pistas já indicadas, é evidentemente a autonomia que os professores terão na longa caminhada profissional, uma vez ser impossível estabelecer um engessamento, via legislações e normas, que padronize estilos ou saberes a serem adquiridos ao longo do processo de formação e os saberes das experiências que irão se impondo cotidianamente. Evidentemente, a natureza dos conhecimentos, concepções, crenças e saberes oriunda da prática cotidiana podem, então, ser questionados quanto à associação entre a natureza dos saberes e a exigência de uma racionalidade. E acompanhando a lógica de Tardif (2004, p. 193), "a idéia da 'exigência de uma racionalidade' atende muito mais aos interesses da pesquisa e, na cultura da modernidade, figurará de três maneiras e em função de três lugares, que seriam: a subjetividade, o julgamento e a argumentação". Na primeira teríamos o foco no pensamento do sujeito racional; na segunda, no ato de julgar e, na terceira, nos fundamentos em que se baseiam a argumentação, que na verdade são traduzidos como racionalizações. Na prática, os questionamentos da validade racional dos saberes docentes resultantes da prática cotidiana repousam na perspectiva primeira de uma lógica de comunicação em que estão em jogo vários tipos de juízos partilhados pela comunidade de docentes, num determinado contexto. Por essa razão, nem sempre servem como um quadro de referência para resolver as discussões indexadas como "normais" para as comunidades científicas comungarem como saberes comuns. Isso se deve ao que nos argumenta Tardif (2004, p. 202): Na vida diária, nossos discursos e nossos atos se apóiam, por conseguinte, em saberes que proporcionam um quadro de inteligibilidade e de sentido às coisas que empreendemos. Se questionarmos o outro a respeito de suas próprias ações, pedindo-lhe que as explique, que nos diga o porquê de seu agir, ele será levado a explicitar, por intermédio das suas razões de agir, os saberes nos quais se baseia para agir assim. Nessa perspectiva, a idéia de exigências de racionalidades, tal como propomos aqui, não se relaciona com um ator hiper-racional cuja ação e cujo discurso resultariam de um conhecimento completo da situação; ao contrário, essas exigências parecem ser tributárias de uma racionalidade fortemente marcada pelo saber social, saber (colocado em) comum e partilhado por uma comunidade de atores, saber prático que obedece a várias "lógicas da comunicação" e está enraizado 36 em razões, em motivos, em interpretações onde estão presentes vários tipos de juízos. Dessa maneira, advoga-se que os saberes da experiência geram um processo contínuo de formação em que permanentemente os professores se reconstroem e refazem sua prática educativa, o que de certa forma se aproxima da visão do "prático reflexivo" proposta por Schön. Zibetti (2005, p. 59), ao afirmar a posição defendida por Tardif (2004), coloca a autoria do professor por meio do movimento de atribuição de sentido conferido à própria prática e nas possíveis estruturações e orientações decorrentes de sua própria atividade docente: A posição defendida por Tardif e colaboradores é a de que um professor não é alguém que aplica conhecimentos produzidos por outros e também não é apenas um agente determinado por mecanismos sociais. O professor é definido como um ator, ou seja, um sujeito que assume sua prática de acordo com o sentido que ele mesmo lhe atribui, possuindo conhecimentos e um saber-fazer que são oriundos de sua própria atividade docente a partir da qual ele a estrutura e a orienta. E exatamente por ser um ator é que se deve considerar sua capacidade de estar racionalizando sua prática, de forma simultânea e por meio da ação de refletir, criticar, refazer, objetivar, etc., com a finalidade de buscar mecanismos que fundamentem suas ações. E Tardif (2004, p. 223), a exemplo do que previamente anuncia Zibetti (2005), faz a seguinte afirmação: O saber é um constructo social produzido pela racionalidade concreta dos atores, por suas deliberações, racionalizações e motivações que constituem a fonte de seus julgamentos, escolhas e decisões. Nessa perspectiva, acreditamos que as "competências" do professor, na medida em que se trata mesmo de "competências profissionais", estão diretamente ligadas às suas capacidades de racionalizar sua própria prática, de criticá-la, de revisá-la, de objetivá-la, buscando fundamentá-la em razões de agir. Com isso, o que se busca compreender nesse processo de saberes docentes e da experiência são as possibilidades de se estabelecer critérios que sejam capazes de demarcar o campo entre "a ciência e a não ciência". E a proposta é a de que, a partir da epistemologia da prática profissional, possamos, enfim, modificar ou não nossas arraigadas concepções acadêmicas a respeito do processo de ensino, às vezes de visões bastante unilaterais. Comecemos, por isso, definindo como epistemologia da prática profissional toda a possibilidade de estudo que arregimente os conjuntos de saberes realmente utilizados dentro do espaço de trabalho cotidiano e que ocorre como consequência do modus operandi de todas as tarefas inerentes à prática profissional. 37 E, mais uma vez, como nos salienta Tardif (2004, p. 256), a epistemologia da prática permitiria, assim, tanto a compreensão da natureza dessas redes de conexões (conhecimentos, concepções, crenças, saberes, atitudes) como também avaliar seu grau de importância no desempenho e na performance do processo de trabalho docente, garantindo o desvelamento da identidade profissional dos professores. A finalidade de uma epistemologia da prática profissional é revelar esses saberes, compreender como são integrados concretamente nas tarefas dos profissionais e como estes os incorporam, produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos inerentes às suas atividades de trabalho. Ela também visa compreender a natureza desses saberes, assim como o papel que desempenham tanto no processo de trabalho docente quanto em relação à identidade profissional dos professores. É necessário, com isso, em oposição a visões comprometidas com a racionalidade técnica, buscar alternativas científicas que deem conta, inicialmente, de que os docentes, bem como sua prática e seus saberes, não podem ser vistos nem tratados como entidades separadas, mas muito mais como co-pertencentes a situações de trabalho que os fazem co- evoluírem e se transformarem, já que seus saberes profissionais são saberes da ação, remetendo-os à condição de elaborar estudos capazes de levantar os saberes docentes em contextos reais de trabalho e/ou situações concretas de ação. Sendo assim, é possível afirmar que os saberes profissionais são os resultados dos saberes trabalhados e só fazem sentido quando extraídos das incorporações no processo do trabalho, em que as situações são diariamente modeladas, construídas e utilizadas de acordo com a necessidade real e significação atribuída pelos trabalhadores. Dessa forma, a epistemologia da prática profissional sustenta-se na necessidade de se estudar o repertório de conhecimentos do ensino, que poderiam ser resultantes dos “conhecimentos da matéria ensinada” e do “conhecimento pedagógico”, mas não só, como forma de garantir uma unidade na constituição dos saberes docentes erigidos na prática cotidiana, como aponta Tardif (2004, p. 259): [...] o conhecimento da matéria ensinada e o conhecimento pedagógico (que se refere a um só tempo ao conhecimento dos alunos, à organização das atividades de ensino e aprendizagem e à gestão da classe) são certamente conhecimentos importantes, mas estão longe de abranger todos os saberes dos professores no trabalho. [...] O estudo do ensino numa perspectiva ecológica deveria emergir as construções dos saberes docentes que refletem as categorias conceituais e práticas dos próprios professores, constituídas no e por meio do seu trabalho cotidiano. 38 É necessário despir-se de alguns estereótipos na pesquisa acadêmica, que muitas vezes idealizam práticas para os professores, normatizando formas de ser, agir e saber, deixando de estudar as perspectivas do que realmente são, fazem e sabem. Faz-se necessário, também, superar a visão dos professores como "idiotas cognitivos", uma vez que consideram a profissão como uma atividade condicionada pelas estruturas sociais, pela cultura dominante, pelo seu próprio inconsciente, etc. No entanto, ainda que condicionados por todas essas realidades, docentes são acima de tudo atores que possuem seus saberes e um saber-fazer. E esses conhecimentos, concepções, crenças e saberes da experiência indicam cotidianamente uma competência significativa dos professores em lidar com incertezas, indecisões, simulações, modelagens, improvisações, etc. para atingir seus objetivos. Desse modo, esses saberes resultantes da experiência cotidiana na constituição da epistemologia da prática profissional devem levar em conta a formação cotidiana a que todos os profissionais estão submetidos e, para isso, necessitam eventualmente submergir nesse mundo de forma a promover formações iniciais que os aproximem mais do contexto real da prática e os ajudem a construir habitus professorais mais consistentes e autônomos. Indicados os parâmetros de compreensão dos saberes docentes e, em particular neste estudo, dos saberes da experiência, discutiremos a seguir alguns aspectos aventados pelo paradigma da ciência moderna, que colocam obstáculos para a consolidação de uma epistemologia da prática e também para o levantamento de um repertório de conhecimentos qualitativos da/na prática docente. 1.3. O paradigma da modernidade e a invisibilidade dos saberes da experiência De antemão, o desafio que se impõe é o de se apropriar dos saberes da experiência como o conjunto de um repertório próprio do ofício docente, como nos dizem Gauthier et al. (1998) ou como nos diz Tardif (2004), um saber que se ‘epistemologiza’ na prática. Para Pérez Gómez (1992), por sua vez, é importante se compreender o pensamento prático do professor para promover uma mudança radical em sua formação, o que acaba por se transformar na busca pelas verdadeiras razões da subvalorização dos saberes da experiência e do possível preconceito contra eles, por se originarem no e do cotidiano. 39 Numa primeira tentativa de justificação nos referimos ao paradigma da modernidade, que considera conhecimento somente aquele validado pela ciência, colocando em xeque todos os demais conhecimentos que por ventura não se enquadrarem nos seus padrões epistemológicos. Alves (2008, p. 16) afirma que: � Aprendemos com todos os setores dominantes, durante os últimos quatro séculos, que os modos como se cria conhecimentos nos cotidianos não têm importância ou estão errados e, por isto mesmo, precisam ser superados. Isso se traduz em uma situação na qual não os notamos, achando que é ‘assim mesmo’. Resulta que não fixamos, não sabemos como são e, menos ainda, sabemos como analisar os processos de sua criação ou como analisá-los para melhor compreendê-los. Além disso, esses conhecimentos são criados por nós mesmos em nossas ações cotidianas o que dificulta uma compreensão de seus processos, pois aprendemos com a ciência moderna que é preciso separar, para estudo, o sujeito do objeto. Esses conhecimentos e as formas como são tecidos exigem que admitamos ser preciso mergulhar inteiramente em outras lógicas para apreendê-los e compreendê-los. � O desafio reside, portanto, em afirmar, e ao mesmo tempo insistir e não negar que os saberes da experiência, tanto quanto as pesquisas nos/dos/com o cotidiano escolar são espaçotempo11 de saber, criação, imaginação, memória, solidariedade e, acima de tudo, vivo e de grande diversidade. É dessa forma que o mundo da vida cotidiana se abre como uma perspectiva de conhecimento diário, pois se constitui no pensamento e na ação de pessoas comuns que, em suas "condutas subjetivas dotadas de sentido imprimem as suas vidas", desvelando uma realidade comungada como certa por todos aquele(a)s que integram a sociedade. A presença imperiosa da realidade da vida cotidiana coloca-nos em estado de total aprendizado, por essa razão considerado um ato natural, uma vez que se tem a consciência de que o mundo cotidiano é constituído de múltiplas realidades. Experimentamos, assim, as apreensões da realidade da vida diária e, exatamente por se apresentarem já objetivadas - o mundo constitui-se de certa forma classificado e ordenado muito antes de nossa existência -, será por intermédio da linguagem que também passaremos a objetivar nossas necessidades, ao mesmo tempo em que a conferência de sentidos vai se ordenando e ganhando significado para nós. Será desse modo que nossa inserção na vida cotidiana se inscreverá na sociedade, fazendo-nos experimentar as necessidades mais urgentes 11 Termo cunhado por Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira (2008, p. 11) para o qual mantenho a explicação. “A junção de termos e a sua inversão, em alguns casos, quanto ao modo como são ‘normalmente’ enunciados, nos pareceu, há algum tempo, a forma de mostrar os limites para as pesquisas nos/dos/com os cotidianos, do modo dicotomizado criado pela ciência moderna para analisar a sociedade.” 40 e também distantes, espacial e temporalmente, como afirmam Berger e Luckmann (2004, p. 38). [...] Isto quer dizer que experimento a vida cotidiana em diferentes graus de aproximação e distância, espacial e temporalmente. A mais próxima de mim é a zona da vida cotidiana diretamente acessível à minha manipulação corporal. Esta zona contém o mundo que se acha ao meu alcance, o mundo em que atuo a fim de modificar a realidade dele, ou o mundo em que trabalho. Neste mundo do trabalho minha consciência é dominada pelo motivo pragmático, isto é, minha atenção a esse mundo é principalmente determinada por aquilo que estou fazendo, fiz ou planejo fazer nele. Desse modo é meu mundo por excelência. Sei evidentemente, que a realidade da vida cotidiana contém zonas que não me são acessíveis desta maneira. Mas, ou não tenho interesse pragmático nessas zonas ou meu interesse nelas é indireto, na medida em que podem ser potencialmente zonas manipuláveis por mim. Tipicamente meu interesse nas zonas distantes é menos intenso e certamente menos urgente. Estou intensamente interessado no aglomerado de objetos implicados em minha ocupação diária, (...). Com essa discussão é possível notar que nossa inserção social é compartilhada com outros sujeitos que também organizam, ordenam e objetivam seu mundo cotidiano em torno do "aqui e agora", tornando possível a constatação de que minha existência na vida cotidiana é mediada constantemente pela interação e comunicação com outros sujeitos. Berger e Luckmann (2004, p. 40) ilustram bem a discussão, acrescentando que: [...] Sei também, evidentemente, que os outros têm uma perspectiva deste mundo comum que não é idêntica à minha. Meu "aqui" é o "lá" deles. Meu "agora" não se superpõe completamente ao deles. Meus projetos diferem dos deles e podem mesmo entrar em conflitos. De todo modo, sei que vivo com eles em um mundo comum. O que tem a maior importância é que eu sei que há uma contínua correspondência entre meus significados e seus significados neste mundo que partilhamos em comum, no que respeita à realidade dele. A atitude natural é a atitude da consciência do senso comum precisamente porque se refere a um mundo que é comum a muitos homens. [...] Na interação social diária construímos um mundo intersubjetivo em que, coletivamente, na situação face a face, a linguagem assume uma função primordial de aproximação entre os significados e sentidos comuns que partilhamos. Porém, como a vida cotidiana nos apresenta situações nas quais ou apreendemos de formas rotineiras ou problemáticas, as situações problemáticas serão todas aquelas que estarão fora do alcance de minha experiência cotidiana, mas não fora dos círculos de problemas com os quais minha consciência não está preparada para tratar. As situações que se nos apresentam inicialmente como problemas serão, então, reintegradas à categoria de saberes da experiência e, dadas as suas especificidades, demandam significações, sentidos, ações, concepções, conhecimentos e saberes particulares que vão conferir um caráter cíclico individual e ao mesmo tempo coletivo aos sujeitos. Individual, por 41 um lado, porque cada sujeito irá construir suas histórias e biografias a partir de seus interesses, necessidades, possibilidades e objetividades cotidianas. Por outro, intersubjetiva, porque na interação com os outros se abrirão novas perspectivas de apreensões subjetivas. Outra característica importante da vida cotidiana, além da dimensão social, é a estrutura temporal, tendo em vista tratar-se de uma propriedade que é intrínseca à consciência, que permite que se estabeleçam diferenças em vários momentos da temporalidade em que se acesse, intra e intersubjetivamente, significados e sentidos que vão se fundindo, se distanciando, se relacionando, ascendendo, caindo em desuso, formando-se. A exemplo do que nos dizem Berger e Luckmann (2004, p. 46): A estrutura temporal da vida cotidiana não somente impõe seqüências predeterminantes à minha "agenda" de um único dia, mas impõe-se também à minha biografia em totalidade. Dentro das coordenadas estabelecidas por esta estrut