Marco Aurelio Barsanelli de Almeida A representação em questão: colonizador e colonizado em The Other Hand, de Chris Cleave São José do Rio Preto 2023 Marco Aurelio Barsanelli de Almeida A representação em questão: colonizador e colonizado em The Other Hand, de Chris Cleave Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Orientadora: Profª. Drª Cláudia Maria Ceneviva Nigro São José do Rio Preto 2023 A447r Almeida, Marco Aurelio Barsanelli de A representação em questão : colonizador e colonizado em The Other Hand, de Chris Cleave / Marco Aurelio Barsanelli de Almeida. -- São José do Rio Preto, 2023 181 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto Orientadora: Cláudia Maria Ceneviva Nigro 1. Literatura inglesa. 2. Representação (filosofia). 3. Pós-colonialismo na literatura. 4. Feminismo e literatura. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Marco Aurelio Barsanelli de Almeida A representação em questão: colonizador e colonizado em The Other Hand, de Chris Cleave Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Comissão Examinadora Profª. Drª. Cláudia Maria Ceneviva Nigro UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Orientadora Profª. Drª. Regiane Corrêa de Oliveira Ramos UEMS – Câmpus de Dourados Profª. Drª. Cleide Antonia Rapucci UNESP – Câmpus de Assis Profª. Drª. Giséle Manganelli Fernandes UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Profª. Drª. Maria Cláudia Rodrigues Alves UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto São José do Rio Preto 13 de fevereiro de 2023 Dedico este trabalho a todos aqueles cujos sorrisos e palavras de incentivo me encorajaram a continuar caminhando, mesmo nos momentos mais turbulentos. AGRADECIMENTOS A Deus, pelos momentos de reflexão e pelas oportunidades que sempre apareceram no momento certo; Aos meus pais, José Aparecido e Maria José, por todo o carinho e dedicação, sem os quais eu certamente não teria chegado onde estou; À minha irmã, Maria Júlia, cujo riso e empatia me ajudaram a superar muitos obstáculos; Ao meu companheiro de jornada, Leandro, pelo suporte e por todas as conversas que me motivaram a continuar caminhando; À minha orientadora, Cláudia Maria Ceneviva Nigro, pelo acolhimento, pelo apoio e por todo trabalho e paciência que me permitiram chegar até este momento; A todos os professores cujo trabalho pavimentou meus caminhos e me permitiu ter certeza que apenas a educação é capaz de transformar uma comunidade; Aos amigos e amigas pelos abraços e sorrisos, e pelas palavras de incentivo; À Unesp de São José do Rio Preto, onde completei minha formação, e onde encontrei amigos de uma vida toda; O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. RESUMO Lançada em 2008, a obra The Other Hand, de autoria do britânico Chris Cleave, tem como protagonista Pequena Abelha, uma garota negra nigeriana que, fugindo de uma realidade de medo e violência em sua terra natal, busca refúgio na Inglaterra após a destruição de seu vilarejo e o assassinato de sua irmã. Cleave, assim, deseja representar o olhar de uma garota africana em sua luta por sobrevivência e adaptação à nova realidade. O trabalho aqui apresentado tem como objetivo investigar a maneira como Cleave, um homem branco e europeu, representa uma garota negra africana, a visão sobre a sociedade inglesa, a relação com outros refugiados e o convívio com a família de Sarah, uma mulher branca britânica. Para nossas análises, utilizamos os escritos de autoras/es como Gambarato (2005), Foucault (1998), Compagnon (2012) e Olney (1980), entre outros, para estabelecermos uma visão acerca da representação, enquanto processo e produto, que abarque nossas análises do romance de Cleave. Atentamos também para as ideias de Hall (2002, 2003, 2003, 2016), Spivak (2010), Nigro (2017) e Butler (1993, 2016), para citar alguns, acerca dos liames entre representação, poder e gênero. Apresentamos, ainda, uma breve explanação acerca da exploração colonial no continente africano, a partir das considerações de Chagastelles (2008), Matera, Bastian e Kent (2012), Mbembe (2018), Lynch (2012) e Nwosu (1992), e outros. As ideias pós-coloniais e o pensamento decolonial são discutidos por meio das concepções de Said (2001), Spivak (2010), Quijano (1992, 2008), Castro-Gómez (2008), Walter Mignolo (2008) e Catherine Walsh (2008, 2009), de modo a compreendermos como as percepções dos povos anteriormente colonizados moldam a apreensão desses indivíduos sobre a sociedade contemporânea e os permite agir contra os meios de exploração e dominação. Por fim, os escritos de Muraro (1989), Garcia (2015) e Priore (2013) nos proporcionam um panorama histório-social sobre a situação da mulher e o movimento feminista, enquanto hooks (1990, 2019), Crenshaw (1991), Davis (2016) e Collins (2019) voltam seus olhares para os problemas e lutas do feminismo negro. Os autores e autoras elencados fornecem uma sólida base crítica e teórica a partir da qual compreendemos como as relações coloniais continuam inseridas no romance de Cleave. Apesar de oferecer um bom trabalho ao criticar a sociedade britânica e retratar os refugiados, notamos a presença de variados elementos que reforçam papeis de gênero tradicionalmente atribuídos pelo pensamento patriarcal, além da perpetuação de mitos raciais que desabonam o indivíduo negro, principalmente o feminino. Nosso estudo reforça a presença autoral no texto literário ao entrever, na representação criada por Cleave de uma refugiada negra africana, elementos que conservam a mentalidade hegemônica e patriarcal, na qual o pensamento colonizador permanece como artifício de dominação do sujeito colonizado. Palavras–chave: Representação. Chris Cleave. The Other Hand. Pós-colonialismo. Feminismo. ABSTRACT Released in 2008, “The Other Hand”, by British author Chris Cleave, has as its protagonist Little Bee, a black Nigerian girl who, fleeing from a reality of fear and violence in her homeland, seeks refuge in England after the destruction of her village and the murder of her sister. Cleave, thus, wishes to represent the perceptions of an African girl in her struggle for survival and adaptation to her new reality. The work presented here aims to investigate the way Cleave, a white European man, represents a black African girl, her view of English society, her relationship with other refugees, and her relations with Sarah's family, a white British woman. For our analyses, we used the writings of authors such as Gambarato (2005), Foucault (1998), Compagnon (2012), and Olney (1980), among others, to establish a vision about representation, as process and product, that encompasses our analyses of Cleave's novel. We are also based on the ideas of Hall (2002, 2003, 2003, 2016), Spivak (2010), Nigro (2017), and Butler (1993, 2016), to name a few, about the links between representation, power, and gender. We present a brief explanation, as well, of colonial exploitation on the African continent, from the considerations of Chagastelles (2008), Matera, Bastian and Kent (2012), Mbembe (2018), Lynch (2012) and Nwosu (1992), and others. Postcolonial ideas and decolonial thinking are discussed through the conceptions of Said (2001), Spivak (2010), Quijano (1992, 2008), Castro- Gómez (2008), Walter Mignolo (2008), and Catherine Walsh (2008, 2009) in order to understand how the perceptions of formerly colonized peoples shape these individuals' apprehension of contemporary society and enable them to act against the means of exploitation and domination. Finally, the writings of Muraro (1989), Garcia (2015), and Priore (2013) provide us with a historical-social overview of the situation of women and the feminist movement, while hooks (1990, 2019), Crenshaw (1991), Davis (2016), and Collins (2019) turn their gaze to the problems and struggles of black feminism. The authors above provide a solid critical and theoretical foundation from which we understand how colonial relations remain embedded in Cleave's novel. Although Cleave does a good job of critiquing British society and portraying refugees, we note the presence of various elements that reinforce gender roles traditionally assigned by patriarchal thought, as well as the perpetuation of racial myths that discredit the black individual, especially the female one. Our study reinforces the authorial presence in the literary text by glimpsing, in the representation created by Cleave of a black African refugee, elements that preserve the hegemonic and patriarchal mentality, in which colonizing thought remains as an artifice of domination of the colonized subject. Keywords: Representation. Chris Cleave. The Other Hand. Postcolonialism. Feminism. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................ 11 1 REPRESENTAÇÃO: APROXIMAÇÕES ENTRE AUTOR, NARRADOR E PERSONAGEM................................................................ 19 1.1 Uma breve introdução sobre o conceito de representação........................ 19 1.2 Marcas da presença autoral......................................................................... 24 1.3 Hall e a representação enquanto elemento de apreensão/construção cultural.......................................................................................................... 32 1.4 Spivak e Butler: representação e poder...................................................... 47 1.4.1 A representação em meio à questão pós-colonial........................................... 47 1.4.2 Judith Butler: gênero, poder e representação.................................................. 59 1.5 Outros olhares para a representação........................................................... 69 2 O PÓS-COLONIAL EM THE OTHER HAND.......................................... 74 2.1 Expansões coloniais: um breve olhar sobre a dominação do continente africano.......................................................................................................... 75 2.2 Entre metrópole e colônia: um breve olhar sobre a colonização nigeriana........................................................................................................ 80 2.3 O pós-colonial................................................................................................ 104 2.4 A violência (pós-)colonial............................................................................. 114 2.5 Descolonização e decolonização................................................................... 118 3 FEMINISMOS PÓS/DECOLONIAIS: ALGUMAS CONSIDE- RAÇÕES SOBRE FEMINISMO E O FEMININO EM THE OTHER HAND............................................................................................................ 141 CONSIDERAÇÕES..................................................................................... 171 REFERÊNCIAS........................................................................................... 176 11 INTRODUÇÃO Ao falarmos de literatura não raro vislumbramos em nosso horizonte de análise a forma como o ser humano, em sua complexidade existencial, é inserido na obra. Assim percebemos um dos conceitos fundamentais para o estudo da literatura: a representação. Como elemento primordial de qualquer investigação literária, o conceito de representação é constantemente revisitado e reexplorado, seja em uma busca por descobrir seus mecanismos de funcionamento, ou em uma análise, a fim de encontrar os componentes textuais englobados em suas tramas. Como elemento que remonta às formas de arte rupestres, a representação ainda se faz presente nas sociedades humanas, sendo continuamente reexaminada em suas mais diversas acepções, em campos sociais heterogêneos como o político, judiciário, ou artístico. No campo literário, apercebemos muitas vezes a ideia de representação amplamente relacionada com questões coloniais, como em The Other Hand (2008), obra de autoria do escritor britânico Chris Cleave, que nos propomos a analisar neste estudo. Assim sendo, os Estudos Pós-Coloniais apresentam-se como constituinte essencial em nossas análises. Os Estudos Pós-Coloniais surgem entre as décadas de 1970 e 1980 como uma corrente de pensamento em busca de compreender as repercussões do período Imperialista, ocorrido nos séculos XIX e em parte do século XX, principalmente a partir da visão dos povos colonizados. Segundo algumas de suas vertentes a descolonização, ou seja, o fim do período de dominação das nações europeias e dos Estados Unidos sobre outros povos, principalmente africanos e asiáticos, não coincide com o término da influência política, econômica e cultural das nações colonizadoras sobre esses povos anteriormente colonizados. Ao examinarmos a influência exercida pelos colonizadores sobre os povos colonizados, traçamos um paralelo dessa relação com as relações estabelecidas entre o masculino e o feminino. Desse modo, trazemos algumas vertentes das teorias feministas para nosso horizonte de análises de maneira a nos auxiliar na investigação acerca das relações de gênero presentes na obra, não apenas entre seus personagens, mas também acerca do papel desempenhado por Cleave enquanto autor. The Other Hand, objeto de análise de nossa pesquisa, é o segundo romance do autor britânico Chris Cleave, publicado no Reino Unido pela editora Sceptre em agosto de 2008. O romance já figurou no primeiro lugar do New York Times bestseller list e foi indicado para os prêmios Costa Book Awards, em 2008, e Commonwealth Writers' Prize, em 2009. Seu primeiro romance Incendiary, publicado em 2005, foi adaptado para um filme de mesmo nome, além de ganhar o prêmio Somerset Maugham Award de 2006 e ser indicado, no mesmo ano, para o 12 prêmio Commonwealth Writers' Prize. Seus outros romances publicados são Gold, em 2012 e Everyone Brave is Forgiven, em 2016. Assim como outras obras literárias, o livro de Cleave teve seu título modificado ao ser levado para os Estados Unidos e Canadá, sendo lançado com o nome de Little Bee e, posteriormente, trazido para o Brasil com o nome de Pequena Abelha, uma tradução do título estadunidense, em 2010. Uma primeira questão importante a ser levantada acerca da publicação tratada em nosso trabalho é a mudança do título do romance nos volumes publicados em língua inglesa em ambos os lados do Atlântico. A primeira edição, lançada no Reino Unido em 2008, foi intitulada The Other Hand, mas, uma vez levada para fora das ilhas britânicas rumo aos Estados Unidos e Canadá, seu título foi redefinido como Little Bee. Em uma entrevista publicada em sua página oficial, o autor comenta essa duplicidade de nomenclatura: É bastante comum que romances mudem de título quando atravessam o Atlântico. Eu gosto de ambos os títulos sob os quais o romance foi publicado. “The Other Hand” é um bom título, pois fala sobre a dupla natureza desse romance, seus dois narradores e dois mundos, ao mesmo tempo que faz referência à ferida de Sarah. “Little Bee” também é um bom título, pois o romance é na verdade a história de Pequena Abelha, é um título direto e honesto. Também gosto dele, pois parece radiante e acessível – e meu objetivo com esse romance era escrever uma história acessível sobre um assunto sério. Gosto do fato do romance ter dois títulos. Gosto quando escolhas divergentes estão simultaneamente corretas [...]1 (tradução nossa) Apesar de não esclarecer o motivo para a mudança no nome da obra, Cleave revela que em ambos os casos os títulos conseguem, de alguma maneira, captar a essência da narrativa. Quando traduzido para a língua portuguesa, o romance recebeu em terras brasileiras o nome de Pequena Abelha, baseado diretamente no título popularizado nos Estados Unidos – apesar de constar no índice catalográfico da obra em português The Other Hand como título original. 1 It’s quite common for novels to change titles when they cross the Atlantic. I like both the titles the novel is published under. “The Other Hand” is a good title because it speaks to the dichotomous nature of the novel, with its two narrators and two worlds, while it also references Sarah’s injury. “Little Bee” is a good title too, because the novel is really Little Bee’s story, so it’s a straightforward and an honest title. Also I like it because it sounds bright and approachable – and my aim with this novel was to write an accessible story about a serious subject. I like the fact that the novel has two titles. I like it when divergent choices are simultaneously right […] Disponível em: < https://chriscleave.com/little-bee/the-true-story-behind-my-new-novel/ >. Acesso em: 06 de agosto de 2019. 13 Gostaríamos de esclarecer que em nossa pesquisa a versão utilizada será a de origem britânica, uma vez que existem diferenças, a exemplo das primeiras páginas dos capítulos sete e nove, feitas por Cleave para uma melhor adequação da narrativa ao público norte-americano: Sou americana, casada com um francês há 35 anos, e vivo na França [...] Um amigo nos EUA me enviou um exemplar de Little Bee, e me disse que seria uma grande erro se não o lesse [...] recomendei o livro ao grupo de leitura. Os membros do grupo encomendaram cópias da livraria local em inglês, mas como estamos na Europa, recebemos a versão inglesa, The Other Hand. [...] gostaríamos de saber porque existem algumas diferenças consideráveis entre Little Bee e The Other Hand. Duas que notei de imediato são a primeira página do capítulo 7 [...] e a primeira página do capítulo 9 [...] Os membros que discutiram hoje o livro eram americanos, ingleses, canadenses e franceses, mas todos nós concordamos que preferíamos a versão Little Bee destes dois exemplos. Desejo ler The Other Hand para ver se existem outras diferenças, mas gostaríamos de saber se VOCÊ fez as alterações antes da publicação nos EUA, ou se elas foram feitas pelo editor americano. (CLEAVE, 2015, n.p., tradução nossa) Olá Maggie, [...] É verdade que Little Bee e The Other Hand divergem no último terço antes de convergirem novamente no final. Fiz as alterações na versão americana depois de o texto do Reino Unido estar pronto. Minha intenção era americanizar algumas ortografias e expressões idiomáticas, e fornecer alguma explicação adicional aos leitores norte-americanos que teriam menos familiaridade com a história, a sociedade e a economia de Londres. Eu o fiz, e provavelmente também escrevi além do necessário porque sou um trabalhador compulsivo e sempre me preocupo com um texto até que alguém o afaste fisicamente de mim e o envie para ser impresso. Olhando para as duas versões lado a lado depois de todo este tempo, penso que uma não é melhor que a outra. (Quem me dera poder ter a oportunidade de reformular todo o romance agora - eu faria muitas mudanças). [...]2 (CLEAVE, 2015, n.p., tradução nossa) 2 I am an American, married to a Frenchman for 35 years, and living in France [...] A friend in the US gave me a copy of Little Bee, and told me I’d be making a big mistake if I didn’t read it [...] I recommended it to the book group. Members of the group ordered copies from the local English-language bookshop, but since we are in Europe, we received the UK version, The Other Hand. [... ] we would like to know why there are some major differences between Little Bee and The Other Hand. Two that I noticed right away are the first page of chapter 7 [...] and the first page of chapter 9 [...] Members discussing the book today were American, English, Canadian and French, but we ALL agreed that we preferred the Little Bee version of these two examples. I plan to read The Other Hand to see if there are other differences, but we would like to know if YOU made the changes before publication in the US, or if they were made by the US editor. Hi Maggie, [...] It’s true that Little Bee and The Other Hand do diverge in the last third before reconverging at the end. I made the changes to the US version after the UK text was locked. My brief was to Americanise some spellings and idioms, and to provide some additional exposition for North American readers who would have less familiarity with London history and socioeconomics. This I did, and I probably went beyond the brief too because I’m a compulsive worker & will always worry away at a text until someone physically wrenches it away from me and sends it to the printers. Looking at the two versions side-by-side after all this time I don’t think one or the other is better. (I wish I could have the chance to redraft the whole novel now – I would make a lot of changes.) [...] 14 Em nosso texto a versão original em língua inglesa é introduzida nas notas de rodapé, enquanto a tradução em língua portuguesa é utilizada no corpo textual de modo a tornar a leitura mais acessível e fluida. Acrescentamos que eventuais diferenças quanto à edição britânica, presentes nas versões norte-americanas, não são abordadas, porquanto as mesmas merecem um empenho analítico próprio. O foco das considerações apresentadas em nossas análises é mantido nos elementos presentes na primeira versão, por ser a mais próxima da realidade inglesa e, consequentemente, daquela vivida pela protagonista. Em sua narrativa, o autor propõe-se a representar a vida de uma garota africana vivendo na Inglaterra, seus pensamentos, suas relações com outras pessoas de mesma origem e a forma como busca apreender os costumes do novo país. Os capítulos, narrados a partir dos olhos de Pequena Abelha e de Sarah O’Rourke, buscam retratar, com um olhar por vezes crítico, a sociedade inglesa do início do século XXI ao conceder a duas mulheres, uma estrangeira e uma nativa, voz acerca de suas percepções, sentimentos, e desejos. Nesse ínterim, Pequena Abelha representa uma grande fonte de críticas, uma vez que, através dos olhos da protagonista africana, da estrangeira, daquela para o qual o ambiente é totalmente estranho, injustiças e preconceitos são percebidos. Entretanto, faz-se notar a onipresente mão do autor na construção de sua compreensão social. Formado em psicologia pelo Balliol College, Oxford, passou a infância no oeste africano, o que, segundo sua página pessoal na internet, o inspirou a escrever o romance The Other Hand, no qual narra a história de duas mulheres vivenciando os problemas femininos contemporâneos: Pequena Abelha, ou Abelhinha, a protagonista, cujo nome verdadeiro, Udo, nos é apresentado apenas nas últimas duas páginas do romance, é uma refugiada nigeriana, que chega a Londres a bordo de um navio transportando chá; e Sarah, editora de uma revista de moda, tenta lidar ao mesmo tempo com o marido Andrew (que sofre de depressão), o filho Charlie (que vive em um mundo de fantasia) e Lawrence (o amante). Aos poucos, conhecemos melhor a história de Pequena Abelha: a fuga da Nigéria, a passagem pelo Centro de Imigrantes, o modo como tenta absorver aspectos da nova cultura, até o encontro com Sarah e família. O romance é dividido em 11 capítulos, sendo os ímpares narrados a partir da perspectiva da protagonista, e os pares, por meio da visão de Sarah. Dessa forma, Pequena Abelha inicia e termina o livro, além de ter sobre sua tutela um capítulo a mais que Sarah. Os capítulos não possuem títulos específicos, sendo indicados apenas por meio de numeração, o que parece corroborar o estilo direto de escrita de Cleave, sem grandes descrições e com diálogos rápidos. Ao mencionar sua infância na África como inspiração para escrever The Other Hand, Cleave parece colocar muito de si mesmo na narrativa. Como declara em uma de suas 15 entrevistas, disponíveis em seu site oficial, ele de alguma maneira se reconhece em Pequena Abelha, uma vez que nenhum dos dois parece se sentir totalmente confortável em território britânico. Ademais, a exploração de Cleave quanto ao universo feminino, representado não só por Pequena Abelha, mas também por Sarah, mostra muito das ideias socialmente perpetradas acerca dos papéis femininos na sociedade apesar de muitas vezes deixar clara a tentativa do autor de quebrar tais parâmetros. Essa ideia é melhor explicada ao observarmos as personagens que orbitam ao redor de Sarah, como seu marido Andrew, um jornalista, vítima de depressão causada não apenas pela descoberta do caso extraconjugal da esposa, mas, principalmente, devido ao episódio vivido em uma praia nigeriana. Durante uma viagem com Sarah, com o propósito de salvar seu casamento, o casal se depara com Pequena Abelha e sua irmã, que lhes pedem ajuda. Em seguida, um grupo de mercenários encontra as irmãs e o casal, lhes explicando que devem assassinar as garotas, pois ambas seriam testemunhas da destruição causada pelo grupo armado. Enquanto conversam, o líder do grupo manda que o casal inglês corte, cada um, o dedo médio de uma das mãos, caso queiram salvar as jovens, estipulando uma vida por cada dedo. Andrew tenta negociar, pois não tem coragem de cortar o próprio dedo, enquanto Sarah, em um impulso, amputa o membro, salvando, assim, Pequena Abelha. Andrew assume a culpa por não ter sido capaz de salvar Nkiruka, irmã da protagonista, o que, aliado aos problemas conjugais, o conduz ao suicídio. Enquanto jornalista, Andrew se posiciona como superior à esposa, considerando-a uma profissional menos qualificada, pois publica matérias em uma revista feminina. Mostra-se incapaz de cuidar do filho Charlie, e de manter uma vida sexual satisfatória com a esposa. Ainda no círculo familiar, Charlie, o filho pequeno, parece ser uma representação da responsabilidade socialmente conectada à figura materna. Quando Andrew não cuida mais de seu filho, Sarah tem problemas com seu papel de mãe, pois não consegue lidar com as fantasias infantis da criança. O menino incorpora a figura do super-herói Batman, recusando-se a atender por outro nome ou mesmo a tirar a fantasia. A relação dos dois muda apenas a partir da entrada de Pequena Abelha no seio familiar. Pequena Abelha, protagonista do romance, é uma jovem nigeriana, refugiada na Inglaterra após sua aldeia ser destruída e sua família e amigos serem mortos durante uma guerra civil em prol do domínio dos campos de petróleo do delta no Níger. Depois de testemunhar a violência sexual e o consequente assassinato de sua irmã Nkiruka por soldados mercenários, a jovem consegue entrar escondida em um navio inglês rumo às ilhas britânicas. Sua história 16 pode ser dividida em dois momentos: a fuga da Nigéria até o encontro com Sarah, o que inclui sua prisão em um centro de detenção para refugiados; e sua inclusão no círculo familiar dos O’Rourke, culminando na deportação da personagem para a Nigéria. O primeiro e o 11º capítulos são narrados por Pequena Abelha, tornando-a a personagem responsável por iniciar e encerrar o ciclo da narrativa. O principal embate da protagonista acontece com Lawrence, amante de Sarah: um funcionário do departamento de imigração inglês, autodeclarado como de pouca importância para o funcionamento da repartição. Representa principalmente a vida sexual satisfatória, a masculinidade protetora e o apoio emocional masculino considerado por Sarah como necessário para atravessar o período de luto pelo marido Andrew. No entanto, transparece em Lawrence, diversas vezes, uma preocupação controladora para com Sarah e uma violência reprimida no tratamento direcionado a Pequena Abelha. Ao considerarmos os Estudos Pós-Coloniais e a representação à luz de teorias feministas conseguimos nos aproximar de Pequena Abelha, de Sarah, e da masculinidade autoral de modo a respondermos o questionamento norteador de nosso estudo: de que maneira um homem branco europeu consegue representar uma garota negra africana? Com o objetivo de observar as nuances autorais tecidas ao longo da narrativa, sob os olhos de duas personagens femininas, encontramos elementos que desvelam valores sexistas, patriarcais e xenofóbicos imbricados na trama literária. Dessa forma, compreendemos a maneira como o pensamento colonizador mantém-se como elemento quase onipresente na narrativa. Nossas observações acerca do conceito de representação, enquanto processo e enquanto produto, tem embasamento nos escritos de Aristóteles (1991, 2001), Renira Rampazzo Gambarato (2005), e Lígia Militz da Costa (1992), sobre a concepção clássica de representação. Em sequência, exploramos ideias de Michel Foucault (1998) sobre o processo e o produto da representação, e nos detemos no representar de si mesmo com as ideias de Antoine Compagnon (2012) e James Olney (1980) sobre o lugar do autor no texto literário. As contribuições de Olney são basilares para a compreensão das aproximações entre autor, narrador e personagens que revelam a presença autoral na trama literária. Posteriormente, dedicamos subcapítulos à discussão da sociedade e da cultura enquanto elementos constituintes do desenvolvimento do processo representacional. Iniciamos nossas considerações com algumas ideias de Stuart Hall (2002, 2003, 2003, 2016), e de Gayatri Chakravorty Spivak (2010), de forma a embasar nossas discussões acerca do lugar do pós- colonial no processo representacional. Apresentamos também acepções de Sandra Regina 17 Goulart Almeida (2010), Cláudia Maria Ceneviva Nigro (2017), Sara Salih (2012), Joana Plaza Pinto (2013), e Judith Butler (1993, 2016) sobre questões de representação de gênero, principalmente no que concerne aos papéis social e culturalmente designados para o feminino. Nossas reflexões sobre o pós-colonial são iniciadas a partir dos escritos de Tânia Maria Chagastelles (2008), que nos proporciona um apanhado rápido dos fatores históricos instigadores da corrida imperialista. Suas declarações são complementadas com as ideias de Marc Matera, Misty L. Bastian e Susan Kingsley Kent (2012), Achille Mbembe (2018), Hollis R. Lynch (2012), e Nereus I. Nwosu (1992), que nos proporcionam um amplo panorama acerca da situação dos países africanos, em especial a Nigéria, durante o domínio imperialista, seus conflitos, as formas de controle político, social e cultural, até os movimentos de independência dos colonizados. Por fim, as observações de Edward Wadie Said (2001), Chimamanda Ngozi Adichie (2014), Gayatri Chakravorty Spivak (2010), Aníbal Quijano (1992, 2008), Santiago Castro-Gómez (2008), Walter Mignolo (2008) e Catherine Walsh (2008, 2009) contribuem para a compreensão do pensamento pós-colonial e decolonial a partir das percepções dos povos anteriormente colonizados, explorando o fato de as influências colonizadoras ainda serem largamente identificáveis nas sociedades contemporâneas. O feminismo, muito abordado em várias teses na atualidade, é aqui debatido inicialmente por meio das considerações de Rose Marie Muraro (1989), Carla Cristina Garcia (2015), e Mary del Priore (2013), que estabelecem uma linha histórica do movimento feminista, comentado acerca da luta de mulheres por melhores condições e por algum grau de igualdade social desde antes do termo feminista ser cunhado. Apesar de não ser essa discussão o objetivo deste trabalho, ela se configura como elemento importante na compreensão das personagens femininas, principalmente de Pequena Abelha, uma personagem aparentemente ainda pertencente a uma primeira onda de reivindicações feministas. Em seguida, exploramos as ideias acerca do feminismo de bell hooks (1990, 2019) e Kimberlé Crenshaw (1991), Angela Davis (2016) e Patrícia Hill Collins (2016), principalmente sobre questões relativas a classe social e raça, sobre a interseccionalidade de fatores atuantes na construção de preconceitos e estereótipos relativos a mulheres negras, além de explorar o papel do homem no reconhecimento da opressão exercida pelo sistema patriarcal hegemônico também sobre o masculino e, consequentemente, a tomada de consciência do masculino sobre sua própria vitimização social. Nosso trabalho está dividido em três capítulos, sendo o primeiro dedicado a discussões sobre representação. Primeiramente, traçamos um breve panorama acerca da concepção clássica do termo, para, posteriormente, explorar ideias de alguns autores dedicados ao conceito e, por 18 fim, incluir em nossa compreensão o papel da sociedade, da cultura e da mulher na construção representacional. No segundo capítulo discorremos acerca de acontecimentos históricos que despertam o interesse das grandes potências econômicas do século XIX pelo continente africano ao traçar um rápido panorama da revolução industrial e das maneiras como ela auxiliou a entrada dos povos colonizadores na África. Nesse capítulo também discorremos acerca da condição da Nigéria durante a ocupação colonial britânica e, por fim, discutimos as consequências contemporâneas do período colonial para os povos colonizados. O terceiro capítulo apresenta o movimento feminista ocidental, suas características e suas demandas. Comentamos acerca dos precursores do movimento, mantendo foco principalmente no surgimento do feminismo negro e de como suas pautas diferem de outras vertentes ao explorar problemas enfrentados especificamente por mulheres negras em meio a uma realidade machista, racista e, por diversas vezes, cultural e economicamente desfavorável. Diante do horizonte crítico e teórico recolhido, podemos olhar detidamente para The Other Hand e compreender como os laços coloniais e patriarcais costuram-se na trama narrativa, revelando a presença de Cleave nos discursos de Pequena Abelha e de Sarah, como uma voz que, embora diversas vezes demonstrando interesse na representação feminina longe de amarras patriarcais e coloniais, ainda se impõe como uma voz colonizadora e masculina. Devemos pontuar ainda que, embora representante da voz masculina colonial, a experiência jornalística de Cleave desempenha papel basilar na construção da crítica acerca da situação de refugiados e imigrantes sem documentos em solo britânico. O empenho do autor em denunciar o descaso governamental direcionado à situação de indivíduos que buscam no Reino Unido uma maneira de fugir de suas realidades de opressão e violência, muitas vezes causadas pelas próprias ações do chamado Império Britânico, reforça o pensamento profundamente colonizador europeu. Por fim, gostaríamos de ressaltar que os trechos português são retirados da versão brasileira do livro e, por esse motivo, em nosso trabalho a personagem principal será denominada como “Pequena Abelha”, em conformidade com a escolha editorial nacional e com o modo como a protagonista é identificada por quase toda a narrativa. 19 1 REPRESENTAÇÃO: APROXIMAÇÕES ENTRE AUTOR, NARRADOR E PERSONAGEM 1.1 Uma breve introdução sobre o conceito de representação Antes de discutirmos de forma mais aprofundada o conceito de representação, gostaríamos de lançar foco sobre como esse conceito foi repensado através dos séculos. Perguntar “o que é representar algo ou alguém?” parece ser um questionamento bastante audacioso para qualquer estudioso do campo das artes e das humanidades de modo geral e, ainda que não tenhamos como objetivo nos determos demoradamente nessa introdução, visto não ser este nosso objetivo, parece imprescindível atentarmos para alguns diferentes modos de pensar a representação de maneira a compreender essa concepção na contemporaneidade. A percepção acerca da ideia de representação foi, ao longo da história, constantemente revisitada, reanalisada e reinterpretada, o que nos proporcionou uma variada miríade de entendimentos e, consequentemente, de questionamentos subsequentes. Talvez uma das discussões mais antigas a ser estabelecida no horizonte dos estudos literários, filosóficos e sociais, o debate acerca do conceito de representação remonta, no ocidente, aos escritos filosóficos de Platão e de Aristóteles, destacando, deste último, as ideias expressas em Poética (1991) e Arte poética (2001). Ao lançar foco, inicialmente, sobre o pensamento platônico, a escritora Renira Rampazzo Gambarato (2005) esclarece que, para Platão, o conhecimento verdadeiro provém puramente daquilo que há para ser apreendido, sem a necessidade de agentes intermediadores como imagens e palavras. A apreensão de algo, portanto, provém da experiência direta do indivíduo com um objeto ou ideia, uma vez que qualquer conhecimento adquirido através de intermediários estaria aquém da compreensão obtida por intermédio da experiência direta. Por meio desse pensamento o filósofo tenta definir a ideia de mimese. Para Platão, a mimese seria uma cópia da realidade, de modo que a criação se afasta do processo mimético. O filósofo acredita que a mimese é apenas verossímil, devido à comum incapacidade de imitar a essência das coisas e a verdadeira natureza dos seres. Lígia Militz da Costa esclarece em seu texto A poética de Aristóteles: mimese e verossimilhança (1992) que o filósofo considera as imagens miméticas como “[...] uma imitação da imitação, já que elas imitavam a própria pessoa e o mundo do artista, os quais, por sua vez, já eram imitação (sombra e miragem) da ‘verdadeira realidade’ original.” (COSTA, 1992, p. 6). 20 Platão apoia-se na ideia de mimese enquanto uma concepção perigosa devido à sua suposta falha em imitar a essência e natureza das coisas, já Aristóteles enaltece a autonomia do processo mimético na arte. O pensamento aristotélico compreende a imitação a partir de uma concepção estética, ou seja, a mimese não seria mais uma simples imitação do mundo exterior, mas mostraria possíveis formas de compreender esse mundo. No livro Poética (1991), Aristóteles objetiva discutir as formas da poesia clássica, em especial a tragédia, a comédia e a epopeia, suas características e elementos distintivos. Ao iniciar suas considerações, o autor declara prontamente a base de sua argumentação futura: toda poesia é imitação: A epopeia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações. Diferem, porém, umas das outras, por três aspectos: ou porque imitam por meios diversos, ou porque imitam objetos diversos, ou porque imitam por modos diversos e não da mesma maneira. (ARISTÓTELES, 1991, v. II, p. 201) as formas poéticas seriam, dessa maneira, imitações, distintas entre si pelo modo, objeto ou meio pelo qual constroem sua carga significativa. A partir do entendimento aristotélico acerca da mimese, o filósofo desenvolve a ideia de verossimilhança, ou seja, a poética e a arte, de modo geral, são entendidos como reflexos da realidade, assemelhando-se à coerência e possibilidade da vida real. A verossimilhança é, para Aristóteles, a barreira que manteria a mimese dentro dos limites do “possível”, ainda que não limite essa imitação às possibilidades pertencentes à realidade sensível. Segundo Costa, o verossímil é “[...] o possível lógico, causal e necessário, como modo de arranjo interno [...]” (COSTA, 1992, p. 54). A verossimilhança seria, então, a ideia norteadora na construção da mimese, responsável por manter uma lógica interna, mesmo irracional, cuja função essencial é convencer seus interlocutores de sua possibilidade. A autora explica essa afirmação ao citar que: Tudo é verossímil ou possível na mimese, até o inverossímil, desde que motivado, isto é, simulado como admissível; o paralogismo3, como armação persuasiva falsa, exemplifica a afirmação. (COSTA, 1992, p. 54). 3 Costa explica que “o paralogismo é um recurso da mímese trágica que foi ensinado pelo supremo poeta épico: Homero; coube a ele ensinar como convencer, dizendo o que é falso através de uma estratégia verossímil; enquanto o silogismo é um recurso que leva à aceitação de uma conclusão verdadeira, o paralogismo leva à admissão de um raciocínio falso [...]” (COSTA, 1992, p. 52) 21 Podemos exemplificar essas ponderações ao considerarmos os elementos sobrenaturais presentes em narrativas fantásticas. Ainda que muitos reconheçam a impossibilidade de elementos narrativos, como elfos e dragões, existirem na realidade sensível, esses elementos não parecem estranhos quando inseridos em narrativas como The Lord of the Rings (1937- 1949), uma vez que são verossímeis dentro do universo literário da obra e dentro da cultura inglesa. A compreensão clássica da representação, portanto, perpassa principalmente a ideia de similitudes, reflexos do real presentes na arte, ainda que as relações de semelhança estejam compreendidas em um universo ficcional. O escopo da representação, portanto, ao considerarmos o campo literário, seria cativar o indivíduo ao aproximá-lo do universo ficcional apresentado. Para Aristóteles, a partir da imitação, o ser humano compreende a realidade e simpatiza com o imitado. Segundo o filósofo, isso seria o fundamento para a imitação fazer parte de algo inerente ao ser humano. A ideia aristotélica de imitação, ainda que abra caminhos para concepções mais contemporâneas sobre representação, mantém a ligação estreita entre o real e o inventado e, mesmo tendo em seu horizonte a possibilidade da impossibilidade, preserva uma visão bastante dualista acerca da construção representacional. Enquanto basilar para o entendimento da arte literária, suas ideias foram e são ainda fundamentais na análise e compreensão da literatura contemporânea. Em verdade, Aristóteles menciona o termo “representação” somente quando, ao discorrer sobre encenações teatrais, cita a representação enquanto a leitura dramática de uma obra literária: “Na verdade, mesmo sem representação e sem atores, pode a tragédia manifestar seus efeitos; além disso, a realização de um bom espetáculo mais depende de um bom cenógrafo que de um bom poeta.” (ARISTÓTELES, 1991, v. II, p. 207). Assim, a representação, na visão aristotélica, compreende a encenação teatral, o que não deixa de se apresentar também como uma forma de imitação. Ao tomar o lugar de uma personagem nos palcos, o/a artista interpreta o texto escrito segundo suas experiências, ou seja, ele/a imita traços de entidades, enquanto reflexos de seres presentes ou ausentes da realidade sensível, de modo a dar vida àquilo que primariamente tem existência apenas nas palavras. Dessa maneira, da mesma forma que vemos no palco a imitação de indivíduos humanos, existe também a chance de observarmos personagens que fogem das possibilidades do mundo sensível, como árvores falantes ou encarnações de seres mitológicos. Um outro período sobre o qual gostaríamos de comentar é a época medieval. Segundo o que nos traz Gambarato, em Signo, significação, representação (2005), na era medieval o 22 conceito de representação encontra-se ainda atrelado ao campo das similitudes, principalmente àquele ligado à área teatral. De acordo com a autora, o representar medieval é compreendido não apenas como um “assemelhar-se a” mas como “estar em lugar de”, ou seja, a representação ocuparia o espaço daquilo que era representado. Ainda, em uma breve menção a Aurélio Agostinho de Hipona4, a autora explica que, para o filósofo, o processo de representação é constituído pelo algo a ser representado, pelo intérprete, que deve apreender a nuances da representação, e pelo significado, ou seja, os signos que norteariam e desencadeariam o liame entre a representação e o indivíduo que a apreende. Segundo a autora: “Para Agostinho, significar é associar um conteúdo de pensamento a uma forma sensível e interpretar é o trajeto inverso.” (GAMBARATO, 2005, p. 206). Apreendemos então que, ainda segundo o pensamento de Agostinho, a ideia de representação continua atrelada às formas do mundo sensível. O conceito de signo começa a sofrer transformação principalmente na concepção do filósofo escocês Duns Scotus. Segundo Gambarato, Scotus considera que “[...] o signo conduz imediatamente ao significado, sem a presença de intermediários.” (GAMBARATO, 2005, p. 207), ou seja, a relação entre a representação e a apreensão do indivíduo ocorre sem a necessidade de elementos interpostos. A autora pontua ainda que, para Scotus, a representação “[...] não se limita apenas a uma realidade material, física ou sensível, basta possuir uma realidade formal.” (GAMBARATO, 2005, p. 207). A compreensão de Scotus, portanto, nega a necessidade de ancoragem da representação em uma realidade material, apresentando novas possibilidades para a concepção de representação. Ao mencionar o período renascentista, Gambarato comenta que, assim como na Idade Média, o conceito de representação no Renascimento foi pautado nas ideias clássicas de similitude. É apenas a partir do século XVII que os ideais de semelhança cedem lugar à ideia de representação enquanto um conceito relacionado à arbitrariedade do signo: A linguagem passa a organizar as coisas para o pensamento. O mundo já não é mais o da semelhança, mas o da representação. Com a divisão entre o signo e seu objeto, as palavras não se ligam mais diretamente às coisas: a alternativa é a representação como elemento de ligação. (GAMBARATO, 2005, p. 210) Por fim, Gambarato aponta a passagem do século XIX para o século XX, na qual Charles Sanders Pierce expõe suas ideias acerca da concepção de representação. 4 Popularmente conhecido como Santo Agostinho. 23 Para Pierce, representar é construir na mente do indivíduo uma ideia equivalente àquilo que está sendo representado, ou seja, o filósofo resgata a ideia clássica de “estar no lugar de”, ainda que, de certa forma, como esclarece a autora, a representação é vista como o próprio algo a ser representado: Em síntese, Pierce considera que o signo é aquilo que, sob determinado aspecto, representa alguma coisa para alguém, criando em sua mente um signo equivalente. Nessa operação é gerado um interpretante. Aquilo que o signo representa é denominado seu objeto. Representação caracteriza-se pela relação entre o signo e o objeto. Representar é estar no lugar do outro, de tal forma que, para uma mente interpretante, o signo é tratado como sendo o próprio objeto, em determinados aspectos. (GAMBARATO, 2005, p. 211) Apesar de seu retorno à linha de pensamento clássica, Pierce concentra-se não no estudo do signo em si, mas do processo de semiose, ou seja, no processo de criação desses signos. As representações parecem tomar caráter mais cognitivo na compreensão de Pierce, mantendo-a desvinculada da realidade material, no que difere do entendimento clássico. O filósofo Michel Foucault, de certa maneira, acompanha o pensamento de Pierce, no sentido que desvincula a representação de qualquer ligação necessária com a realidade material. Em seu texto As palavras e as coisas (1998), Foucault rompe com a ideia de similitude ao analisar o discurso de Dom Quixote (1605), no qual a verossimilhança não se faz presente em relação ao mundo sensível, a verdade de Dom Quixote, para Foucault, está imbricada na própria linguagem. A representação não é mais vista como uma cópia do real, um reflexo do mundo sensível, ou um sistema sígnico que se desdobra a partir de similitudes com o mundo físico. O autor compreende a representação principalmente a partir do discurso, no qual as palavras criam a realidade a ser representada. Se por um lado o olhar clássico trata a representação enquanto reflexo da realidade material, por outro, a visão de Foucault parece encerrar a representação aos elementos textuais. Ainda que o conceito aristotélico de mimese considere a subjetividade do artista na criação da obra de arte, visto a compreensão do filósofo de que a apropriação da realidade pelo artista e sua reinterpretação sejam elementos essenciais na criação; e que o filósofo francês reconheça a liberdade artística na construção da obra, o conceito clássico de similitude e a ideia de distanciamento entre a arte e a sociedade impõem uma barreira à leitura de nosso objeto de estudo frente às teorias contemporâneas, uma vez que se apresentam enquanto concepções insuficientes para abarcar os pontos a serem trabalhados. 24 Buscamos, pois, por uma concepção de representação que não seja apenas baseada num espelhamento da vida sensível, e que ultrapasse os limites do texto literário, estabelecendo ligações com a sociedade não em termos de semelhança, mas compreendendo a sociedade enquanto elemento ativo na arte. Ainda, como peça integrante da arte literária, vislumbramos em nosso horizonte de análise a imagem indelével do autor. Como instância criativa na literatura, percebemos no autor (e, por extensão, também no leitor) a força motriz através da qual não apenas a narrativa toma forma, como também mediante a qual a sociedade é incluída no texto, condicionada à sua interpretação particular da vivência sociocultural em que está inserido/a. Entendemos que o ficcional não é algo separado do mundo factual, mas sim que a realidade sensível é percebida, lida, de maneiras tão diversas quanto um texto literário o pode ser, tornando a vida material uma combinação inesgotável de ficções. Dessa maneira, apresentaremos a seguir algumas concepções sobre o conceito de representação que, em maior ou menor grau, acolhe nossa acepção acerca da ação de representar. Iniciaremos nossas considerações explorando algumas ideias sobre a presença autoral na trama literária, de maneira a vislumbrar caminhos pelos quais o artista, ou autor/a, submerge em seu texto. 1.2 Marcas da presença autoral Quais os limites entre o autor, o narrador e a personagem quando olhamos para obras literárias? Estaria o autor, enquanto entidade física, destacado de sua criação artística? Se não, quais ligações identitárias são estabelecidas entre o autor, o narrador e as personagens apresentadas em um texto literário? Uma tentativa, entre muitas, de compreender as relações entre o autor e a obra literária é apresentada por Antoine Compagnon em O demônio da teoria: literatura e senso comum (2012). Nele, o escritor belga tece uma análise acerca do papel exercido pelo autor na compreensão da obra literária ao abordar diferentes visões teóricas, contrapondo o que identifica como ideias mais antigas e mais novas acerca da intencionalidade autoral, ou seja, sobre as ideias presentes no horizonte íntimo do autor quando da escrita de sua obra. Compagnon contrapõe as ideias acerca da intencionalidade autoral, segundo as quais o sentido do texto literário estaria ancorado na intenção do autor, transformando os propósitos autorais em uma bússola para a compreensão literária, às que elegem o leitor como peça fundamental na compreensão textual, ao considerar o texto como uma expressão própria e autônoma de significados diversos: 25 A antiga ideia corrente identificava o sentido da obra à intenção do autor; circulava habitualmente no tempo da filologia, do positivismo, do historicismo. A ideia corrente moderna (e ademais muito nova) denuncia a pertinência da intenção do autor para determinar ou descrever a significação da obra; o formalismo russo, os New Critics americanos, o estruturalismo francês divulgaram-na. (COMPAGNON, 2012, p. 47) [...] O New Critic americano, William Empson (1930) descrevia o texto como uma entidade complexa de significações simultâneas (não sucessivas ou exclusivas). Poderia o autor ter tido a intenção de todas essas significações e impressões que vemos no texto, mesmo que não tivesse pensado nelas ao escrevê-lo? [...] (COMPAGNON, 2010, p. 88-89) Ainda que reconheça a fragilidade do pensamento de Empson, as ideias de Compagnon parecem residir em uma tentativa bastante dualista de alcançar um meio termo entre ideias que consideram a intenção autoral como primordial na interpretação literária, e aquelas que imprimem a chamada “morte do autor” e mantém apenas o texto em seus horizontes de análise. Nesse sentido, Compagnon mantém o leitor como elemento essencial na interpretação literária, além de assegurar a pluralidade de acepções provenientes de um texto ao citar Stanley Fish que, em 1980 afirma: “[...] no extremo oposto do objetivismo que prega um sentido inerente e permanente no texto, que um texto tem tantos sentidos quanto leitores, e que não há como estabelecer a validade (ou invalidade) de uma interpretação.” (COMPAGNON, 2012, p. 67). Entretanto, sua concepção acerca do autor ainda parece indicar este como um elemento, em certa medida, distante do texto. Assim, a presunção de intencionalidade permanece no princípio dos estudos literários, mesmo entre os anti-intencionalistas mais extremados, mas a tese anti-intencional, mesmo se ela é ilusória, previne legitimamente contra os excessos da contextualização histórica e biográfica. A responsabilidade crítica, frente ao sentido do autor, principalmente se esse sentido não é aquele diante do qual nos inclinamos, depende de um princípio ético de respeito ao outro. Nem as palavras sobre a página nem as intenções do autor possuem a chave da significação de uma obra e nenhuma interpretação satisfatória jamais se limitou à procura do sentido de umas ou de outras. Ainda uma vez, trata-se de sair dessa falsa alternativa: o texto ou o autor. Por conseguinte, nenhum método exclusivo é suficiente.” (COMPAGNON, 2012, p. 94) Apesar das considerações de Compagnon serem, ainda hoje, importantes para os estudos literários e bastante prolíficas na compreensão e análise da literatura, suas ideias acerca do papel autoral na construção do significado literário não são suficientes quando pensamos em muitas obras contemporâneas, como, por exemplo, o romance aqui analisado. A importância do autor parece bastante clara ao pensarmos, por exemplo, nas possíveis diferenças que a história de The 26 Other Hand apresentaria caso escrita por uma mulher negra nigeriana: como seria a visão de Pequena Abelha sobre a vida na Inglaterra e na Nigéria? Como seria seu relacionamento com Sarah? Como seriam suas interações com as figuras masculinas? Podemos apenas conjecturar. Percebemos a influência autoral na obra de Cleave quando, por exemplo, o autor declara suas experiências de infância em Camarões e seu trabalho jornalístico com refugiados como fontes de inspiração para a criação de The Other Hand, evidenciando o modo como essas experiências o instigaram na construção narrativa: Olá Ben, obrigado por ler Little Bee. Estou muito feliz por você ter gostado. Sim, tive minha primeira infância em Camarões - vivemos lá desde quando eu tinha 6 semanas até 7 anos de idade. O lugar e as pessoas são minhas primeiras lembranças. Vivíamos em Douala, no que era chamado de Camarões francês, e eu falava francês na escola e com amigos da escola. Falávamos inglês em casa. Havia muita vida nas ruas - muita comida e música. Era um lugar muito feliz na parte da cidade onde vivíamos. Eu não gostei de me mudar para a Inglaterra e me sentia como um estranho, um sentimento que nunca passou completamente. Essa sensação duradoura de deslocamento, de ser um observador e não um participante pleno, é provavelmente o que me afetou como pessoa. A verdade é que provavelmente eu também não pertenço - provavelmente nunca pertenci - à África Ocidental. [...] há um lado negativo, pois me parece que só entendo parcialmente a origem das pessoas. (CLEAVE, 2016, tradução nossa)5 Ao observarmos o relato de suas experiências em conjunto com a narrativa de The Other Hand, podemos perceber como a presença autoral encontra-se de alguma maneira diluída na narrativa. Assim como o autor acredita não fazer parte da sociedade onde vive (inglesa), também não se sente como pertencente à cultura africana. Essas questões são espelhadas, até certo ponto, por Pequena Abelha e Sarah. Quando Sarah vê pessoas com problemas, como a senhora caída em um trem, um homem cabisbaixo, ou quando seu filho joga-se na cova de Andrew, ela compreende o quanto elementos culturais ingleses são contrários àquilo que desejaria fazer: O próprio número de pessoas bem-intencionadas tornava a compaixão algo embaraçoso. Um de nós teria de empurrar os outros para abrir caminho até ele 5 Hi Ben, thank you for reading Little Bee. I’m really happy you liked it. Yes, I had my early childhood in Cameroon – we lived there from when I was 6 weeks to 7 years old. The place and the people are my first memories. We lived in Douala, in what was called French Cameroun, and I spoke French at school & with school friends. We spoke English at home. There was a lot of life in the streets – a lot of food and music. It was a very happy place in the part of the city where we lived. I didn’t enjoy moving to England & felt like an outsider, which is a feeling that has never completely passed. That enduring sense of dislocation, of being an observer rather than a full participant, is probably the way it affected me as a person. The truth is that I probably don’t belong – probably never belonged – in West Africa either. […] there’s a negative side, in that I feel I will only ever half-understand where people are coming from. 27 e dar o exemplo para todos, o que teria sido uma atitude nada britânica. Eu não tinha certeza se seria capaz de manifestar ternura assim, num trem lotado, sob o olhar silencioso dos outros. Foi horrível para mim não ajudar o homem, mas eu estava dividida, oscilando entre dois tipos de vergonha. Por um lado, a vergonha de não cumprir uma obrigação humana. Por outro, a loucura de ser a primeira de uma multidão a ousar um gesto.6 (CLEAVE, 2010, p. 38-39) Eu tentava me debruçar mas havia mãos em meus cotovelos me detendo. Eu lutava para me soltar, olhava todos os rostos horrorizados ao redor do túmulo e pensava: Por que ninguém faz nada? Mas é difícil, muito difícil ser o primeiro.7 (CLEAVE, 2010, p. 51) Vislumbramos na atitude de Sarah uma representação da percepção de Cleave acerca da sociedade inglesa: a atitude passiva de Sarah, em contraste com seu pensamento, ressoa algo considerado por Cleave como lugar comum na sociedade da qual faz parte. Podemos relacionar suas palavras com as da escritora Chimamanda Ngozi Adichie em sua palestra The Danger of a Single Story (2009). A meu ver, o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e vulneráveis face a uma história, principalmente quando somos crianças. Porque tudo que eu havia lido eram livros nos quais as personagens eram estrangeiras, eu convenci-me de que os livros, por sua própria natureza, tinham que ter estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar. Bem, as coisas mudaram quando eu descobri os livros africanos. Não havia muitos disponíveis e eles não eram tão fáceis de encontrar quanto os livros estrangeiros, [...] (ADICHIE, 2009, 01'32-02'03) Bem, eu amava aqueles livros americanos e britânicos que eu lia. Eles mexiam com a minha imaginação, me abriam novos mundos. Mas a consequência inesperada foi que eu não sabia que pessoas como eu podiam existir na literatura. Então o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma única história sobre o que os livros são. (ADICHIE, 2009, 02'24-02'47) Ao falar sobre o perigo de uma única narrativa como um molde ideal e único, uma ideia solitária, Adichie aponta o modo como narrativas hegemônicas estruturam nossas formas de pensamento criando construtos representacionais que excluem elementos apartados dos focos de poder. Nesse sentido, enquanto sujeito hegemônico, existe internalizado em Sarah um único 6 The sheer number of well-meaning people made compassion awkward. One of us would have had to push the others aside, and make an example of ourselves, which wouldn’t have been terribly British. I wasn’t sure I was up to administering tenderness like that, on a crowded train, under the silent gaze of others. It was awful of me not to help the man but I was torn between two kinds of shame. On the one hand, the disgrace of not discharging a human obligation. On the other hand, the madness of being the first in the crowd to move. (CLEAVE, 2008, p. 44) 7 I tried to go forward but the hands on my elbows were holding me back. I strained against their grip and looked at all the horror-struck faces around the grave and I was thinking, Why doesn’t someone do something? But it is hard, very hard, to be the first. (CLEAVE, 2008, p. 62-63) 28 relato, uma única história do que é ser britânico, não havendo espaço para quebras no rol de regras a serem obedecidas pelo sujeito hegemônico. Assim como Sarah, Pequena Abelha também vivencia descobertas ao afastar-se de uma narrativa única. Ao ser deportada para a Nigéria, observa com admiração uma realidade distante de qualquer vivência sua no país. Toda a vida pregressa da personagem, baseada em experiências de uma vila parcialmente isolada no interior do território, se diferencia demasiadamente da realidade que a personagem encara da janela de um hotel da capital. Em diálogo com Sarah, Pequena Abelha demonstra sua admiração relativa a algo ao qual ainda não tem um sentimento de pertencimento: “— É a sua cidade — ela disse. — Está orgulhosa dela? / — Nem sabia que existia algo assim no meu país. Ainda estou tentando acreditar que é minha.”8 (CLEAVE, 2010, p. 254) Em ambos os casos, podemos considerar as falas das personagens como resquícios autorais. O deslocamento sentido por Sarah em relação à cultura inglesa, bem como a falta de pertencimento sentida por Pequena Abelha, pode ser vistos como representações das percepções do autor acerca de seu envoltório social na Inglaterra e da infância na África. Ainda, é perceptível a valorização de aspectos da cultura e sociedade britânicas em detrimento à nigeriana, durante a narrativa tanto de Pequena Abelha quanto de Sarah. Talvez explicável devido ao trauma vivido pela protagonista quando de sua fuga da Nigéria e seu acolhimento, ainda que turbulento, na Inglaterra. Mesmo assim, é bastante clara a maneira como a identidade britânica do autor é reforçada a partir do modo como a cultura e sociedade inglesas são representadas, principalmente por meio dos olhos de Pequena Abelha. O autor utiliza-se diversas vezes de estereótipos hegemonicamente construídos sobre a sociedade e cultura africanas para identificar o continente, a partir de seu discurso sobre a Nigéria, como um lugar de pessoas selvagens e ignorantes. Uma exemplificação pode ser vista ao observarmos o interesse de Pequena Abelha em aprender o Queen’s English, como uma maneira de sobreviver na nova sociedade: Só estou viva porque aprendi a falar o Inglês da Rainha, o Queen’s English. [...] De fato, mas o problema é que na minha terra falamos inglês muito melhor do que vocês. Para falar o Inglês da Rainha, tive de esquecer todos os melhores truques da minha língua natal. [...] Aprender o Inglês da Rainha é como tirar o esmalte vermelhão das unhas dos pés na manhã seguinte a um baile. Leva um tempo enorme, sempre fica um pouco nos cantos e, quando a unha cresce, 8 ‘This is your city,’ she said. ‘Are you proud?’ ‘I did not know such a thing existed in my country. I am still trying to feel that it is mine.’ (CLEAVE, 2008, p. 353) 29 a mancha vermelha faz lembrar como a gente se divertiu naquela noite.9 (CLEAVE, 2010, p. 10-11) Fiquei zangada comigo mesma. E pensei: Você não pode se dar ao luxo de sair por aí cometendo erros como esse, garota. Se falar como uma selvagem que aprendeu inglês no navio, os homens vão descobri-la e mandá-la direto para casa. Foi o que fiquei pensando.10 (CLEAVE, 2010, p.12) Se, inicialmente, Pequena Abelha expressa contentamento quanto à variedade nigeriana da língua inglesa, admitindo que, em sua terra, se fala o inglês melhor do que na Inglaterra, em seguida ela compara seu modo de falar com o de uma pessoa selvagem. Por extensão, ao “falar como uma selvagem”, Pequena Abelha não apenas desabona sua língua materna como também a si mesma. Seja como crítica ou enquanto fruto dos construtos representacionais hegemônicos de Cleave, a construção da narrativa mostra os resquícios autorais comuns no texto literário, além de descortinar o modo como a representação do estrangeiro africano é condicionada ao discurso civilizatório europeu. Um outro autor importante no estudo dos resquícios autorais presentes na obra literária é o escritor estadunidense James Olney. Em Autobiography and the Cultural Moment: A Thematic, Historical, and Bibliographical Introduction (1980), Olney comenta acerca do gênero narrativo autobiográfico, bem como sobre seus elementos constitutivos. A partir de suas ideias propomos reflexões sobre os elos entre aquele que escreve, aquele que conta e aquele que é representado na narrativa literária. Apesar de nosso objeto de estudo claramente não ser uma autobiografia, ou mesmo uma biografia, gostaríamos de comentar as ideias de Olney, especificamente aquelas nas quais o autor discute a maneira como resquícios autorais apresentam-se como elementos intrínsecos ao texto literário. Olney tece considerações indagando sobre os elementos identitários da autobiografia, concentrando-se particularmente nas maneiras como o autor se utiliza do texto de modo a perpetuar sua subjetividade e sua história pessoal. Embora, como declaramos, o romance em questão não se tratar de uma autobiografia, e não ter a intenção de evidenciar o autor para além do nome estampado na capa, as afirmações 9 I am only alive at all because I learned the Queen’s English. […] Yes, but the trouble is that back home we speak it so much better than you. To talk the Queen’s English, I had to forget all the best tricks of my mother tongue. […] Learning the Queen’s English is like scrubbing off the bright red varnish from your toenails, the morning after a dance. It takes a long time and there is always a little bit left at the end, a stain of red along the growing edges to remind you of the good time you had. (CLEAVE, 2008, p. 3-4) 10 I was angry with myself. I was thinking, You cannot afford to go around making mistakes like that, girl. If you talk like a savage who learned her English on the boat, the men are going to find you out and send you straight back home. That’s what I was thinking. (CLEAVE, 2008, p. 5) 30 de Cleave consonam com a percepção de Olney acerca dos fragmentos autorais presentes no texto literário. Cleave, podemos considerar, reafirma essa crença ao apontar The Other Hand como fruto de suas pesquisas, mas, também, como reflexo de suas experiências de infância no continente africano. Olney defende que todo texto escrito é imbuído de resquícios da voz autoral, como uma representação, velada ou não, do autor. Assim, ainda que nem toda obra escrita seja (auto)biográfica, todo texto retém em si elementos autorais: […] se a autobiografia não consegue persuadir o crítico com a tolice de duvidar ou negar sua existência, então surge a tentação oposta (ou talvez seja a mesma tentação com outra roupagem) de argumentar não só que a autobiografia exista, mas que só ela existe: toda a escrita que aspira ser literária é autobiografia e nada mais.11 (OLNEY, 1980, p. 4, tradução nossa) A ideia de argumentar que toda obra literária seria autobiografia é rejeitada por Olney, entretanto, o autor reafirma sua declaração de que a os resquícios da voz autoral são parte do texto, uma vez que comenta sobre o constante desejo, que parece fazer parte da psique do ser humano, de escrever sua própria história, enquanto indivíduo e enquanto comunidade. Mesmo que o registro cultural exista desde os primórdios da humanidade, desde quando fomos capazes de marcar paredes de cavernas há muitos milhares de anos, também é verdade que o registro de nossa própria história enquanto indivíduos exerce um grande apelo no sujeito. Olney argumenta que “A ousadia de escrever as próprias vidas, direta e indiretamente, parece constituir-se como um forte apelo a todos.”12 (OLNEY, 1980, p.4, tradução nossa) O desejo subconsciente de reconhecimento, de sublinhar a história individual do sujeito na história mundial, parece auxiliar na sinalização da representação autoral na narrativa. Ao citar Nietzsche: “De pouco a pouco tem se tornado claro para mim que toda grande filosofia foi a confissão de seu criador, assim como foi também sua autobiografia involuntária e inconsciente […]”13 (OLNEY, 1980, p.4-5, tradução nossa) Olney sugere que os resquícios autorais são 11 […] if autobiography fails to entice the critic into the folly of doubting or denying its very existence, then there arises the opposite temptation (or perhaps it is the same temptation in a different guise) to argue not only that autobiography exists but that it alone exists—that all writing that aspires to be literature is autobiography and nothing else. 12 The daring venture of writing their own lives directly as well as indirectly seems to have an overwhelming appeal for all such. 13 Little by little it has become clear to me that every great philosophy has been the confession of its maker, as it were his involuntary and unconscious autobiography […] 31 elementos comuns mesmo em campos literários não biográficos, como o filosófico e, por que não, o ficcional. No caso de Cleave, não temos expressamente a intenção de assinalar sua existência através do texto, no entanto, parece claro o fato da ocorrência de tal demarcação por meio da subjetividade autoral estar presente na narrativa, além de elementos paratextuais, como entrevistas e interações entre autor e leitor em sítios virtuais. Nesse interim, o autor torna-se parte importante da compreensão do texto, uma vez que para além das ideias de Compagnon, as ideias do autor, sua interação com os leitores, seu envoltório social e cultural, são componentes que agregam sentido ao texto literário. O texto pode ser lido desconsiderando-se a presença autoral? Sim, mas acreditamos que ao considerarmos novos ingredientes como parte do texto, não apenas a leitura é enriquecida, como também aprofundada. Como menciona Olney, ainda que alguns críticos, como Foucault e Derrida, prezem por desvincular a obra literária da imagem do autor, defendendo que, uma vez escrito, o texto adquire vida própria, o que não negamos, parece-nos verdadeira a concepção de que, uma vez incorporada sua subjetividade à narrativa, o autor não possa ser desvinculado do texto literário. Enquanto existência constante, o autor tem em seu poder a prerrogativa de representar seus sentimentos e pensamentos livremente, podendo interpretar a realidade conforme suas experiências o guiem. Embora quem nos conte aquela história seja o narrador, ou as personagens, toda a narrativa tem uma força motriz autoral. Na mescla de olhares que se desenrolam no texto, mesmo que o autor figure apagado frente à narrativa das personagens, parece-nos clara a ideia da presença do autor em cada ponto do texto literário. Olney defende, ainda, que a vivência autoral nos textos apresenta-se como fonte inestimável de informações sobre diferentes períodos e culturas. Ao construir representações e marcar seus rastros na narrativa, autores de sociedades e grupos socialmente marginalizados, muitas vezes ignorados pela cultura europeizante contemporânea, firmam testemunhos de vivências que, de outra maneira, certamente sofreriam um apagamento social temporal: [...] a história de uma cultura distinta escrita em personagens individuais, e do interior, oferece um acesso privilegiado a uma experiência (a americana, a negra, a feminina, a africana) que nenhuma outra variedade de escrita pode oferecer.14 (OLNEY, 1980, p. 13, tradução nossa) 14 [...] the story of a distinctive culture written in individual characters and from within—offers a privileged access to an experience (the American experience, the black experience, the female experience, the African experience) that no other variety of writing can offer. 32 Representar, nesse contexto, não se configura apenas como uma forma de manifestação das verdades individuais, mas como modos de resistência e de preservação cultural. Ao incluir sua voz no texto, autores pertencentes a camadas periféricas da sociedade mostram concepções novas de realidade, distantes das sociedades hegemônicas eurocentradas. Em The Other Hand, apesar de Cleave ser hegemônico, ele tenta representar indivíduos não hegemônicos, como Pequena Abelha e outros indivíduos do Centro de Imigrantes. Cleave propõe-se a representar em The Other Hand duas realidades distintas. Ao lançar foco sobre a vivência de Pequena Abelha e Sarah, separadas e unidas, o autor explora diferentes pontos de vista sobre a cultura nigeriana e inglesa, ao percorrer o campo íntimo de ambas as personagens, mostrando suas inseguranças, preconceitos e mal entendidos provocados por elementos culturais. Nesse sentido, continuamos a tecer indagações à representação confeccionada na narrativa de The Other Hand ao retomar nosso questionamento inicial, ou seja, como Cleave constrói a narrativa a partir do olhar de Pequena Abelha e, também, através das percepções de Sarah. Quando Olney considera a narrativa como portão de acesso à realidade íntima do autor/a, à sua realidade e subjetividade, podemos compreender o olhar das personagens do romance como reflexo da subjetividade de Cleave, um testemunho de sua verdade pessoal. Assim como a subjetividade é parte da vida material e imaterial de um indivíduo, sua representação literária reclama a possibilidade de explorar também o depósito cognitivo autoral. Consequentemente, os resquícios autorais presentes no texto literário são elementos ativos na construção textual. Enquanto repositórios das experiências individuais, a voz do autor encontra- se intimamente trançada na voz de suas personagens. Aproveitando-nos das considerações de Olney acerca da maneira como a voz autoral por diversas vezes serve como repositório representacional das vivências de grupos socialmente marginalizados, gostaríamos de explorar as teorias sobre representação e sociedade do teórico cultural e sociólogo Stuart Hall. 1.3 Hall e a representação enquanto elemento de apreensão/construção cultural O sociólogo e teórico cultural Stuart Hall fornece argumentos significativos para a compreensão do conceito de representação. Entretanto, antes de discorrermos acerca das contribuições de Hall para esse campo, faz-se necessário o entendimento de seu pensamento sobre a concepção de cultura, em especial, das culturas nacionais. 33 Para o sociólogo, a cultura não é algo orgânico do ser humano, mas uma construção a partir de um processo de identificação do sujeito com um conjunto de significados ligados a ideias particulares. Hall, em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade (2002), defende o reconhecimento de uma identidade nacional a partir das características socialmente atribuídas a ela. Assim, a nação não seria apenas uma unidade política, mas uma ideia à qual o sujeito adere, de forma a integrar esse conjunto simbólico. Ao considerarmos a identidade cultural como ligada a uma ideia subjetiva de nação, compreendemos a constante comparação que Pequena Abelha evoca ao falar da Rainha Elizabeth II. Como uma garota africana, a personagem vê na imitação da figura de autoridade da Rainha a uma representação da possibilidade de sobrevivência e adaptação à realidade na Inglaterra: Se a rainha falasse com você assim com essa voz, acha que seria possível desobedecer? Li que as pessoas perto dela — até reis e primeiros-ministros — sentem seus corpos obedecendo às ordens que ela dá antes mesmo que os cérebros consigam sequer pensar num motivo para não o fazer. E vou lhes dizer uma coisa: isso não acontece por causa da coroa e do cetro. Eu poderia espetar uma tiara na minha carapinha curta e segurar um cetro do mesmo jeito que ela numa das mãos e ainda assim os policiais viriam andando na minha direção com seus sapatões e diriam: Gostei muito do visual, madame, mas agora vamos dar uma espiada na sua carteira de identidade, certo? Não, não são a coroa e o cetro da rainha que mandam na sua terra. São a gramática e a voz dela. É por isso que as pessoas querem falar como ela. Para que se possa dizer ao policial, com uma voz tão clara quanto o diamante Cullinan: Ponha- se no seu lugar! Como se atreve a falar assim comigo?15 (CLEAVE, 2010, p. 10) Talvez você pense que, afinal, não é tão difícil assim. O inglês é o idioma oficial do meu país, a Nigéria.16 (CLEAVE, 2010, p. 10) A supervalorização do outro dominador, nesse caso um colonizador, é constantemente reforçada por toda a narrativa. Parece não haver figuras de autoridade nigerianas cuja imitação seja capaz de permitir a sobrevivência da protagonista, dessa maneira, a solução é a valorização do proveniente da metrópole. 15 If the Queen spoke to you in such a voice, do you suppose it would be possible to disobey? I have read that the people around her—even kings and prime ministers—they find their bodies responding to her orders before their brains can even think why not. Let me tell you, it is not the crown and the sceptre that have this effect. Me, I could pin a tiara on my short fuzzy hair, and I could hold up a sceptre in one hand, like this, and police officers would still walk up to me in their big shoes and say, Love the ensemble, madam, now let’s have a quick look at your ID, shall we? No, it is not the Queen’s crown and sceptre that rule in your land. It is her grammar and her voice. That is why it is desirable to speak the way she does. That way you can say to police officers, in a voice as clear as the Cullinan diamond, My goodness, how dare you? (CLEAVE, 2008, p.3) 16 Maybe you are thinking, that isn’t so hard. After all, English is the official language of my country, Nigeria. (CLEAVE, 2008, p. 3) 34 A fala de Pequena Abelha demonstra um claro juízo de valor quanto ao estrangeiro e uma tentativa de aproximação de si para com a realidade inglesa. Ao falar do diamante Cullinan, descoberto em uma mina na África do Sul e considerado um dos maiores já encontrados, a personagem tenta aproximar-se de elementos monárquicos ingleses ao citar algo que, também originário de um território colonial, figura hoje como parte das joias reais. Ao lembrarmos que tudo o que um dia foi de uma região passa para o domínio do colonizador depois da conquista colonial, a citação de Pequena Abelha parece corroborar com sua tentativa de se igualar a uma posse colonial, também retirada de seu local de origem, e habilmente incorporada à cultura britânica. Diferentemente do diamante Cullinan, entretanto, Pequena Abelha não se configura enquanto elemento economicamente ou simbolicamente importante na história inglesa. Talvez sua ciência enquanto tal motive a revisitação da simbologia econômica frequente na narrativa, como a declaração de Pequena Abelha que abre o primeiro capítulo: Às vezes eu penso que gostaria de ser uma moeda de uma libra esterlina em vez de uma menina africana. Todo mundo ficaria satisfeito ao me ver. Talvez eu fosse à sua casa no fim de semana e então, de repente, como sou muito inconstante, eu iria visitar o homem da loja da esquina — mas você não ficaria triste, porque estaria comendo um pãozinho doce com canela ou tomando uma lata de Coca-Cola gelada, e nunca mais pensaria em mim. [...] Estão vendo como uma moeda de uma libra fala direitinho? Ela fala com a voz da Rainha Elizabeth Segunda da Inglaterra. O rosto da rainha está gravado na moeda e às vezes, quando olho bem de perto, vejo os lábios dela se mexendo. O que ela está dizendo? Largue-me agora mesmo, mocinha, ou vou chamar meus seguranças.17 (CLEAVE, 2010, p. 9-10) Os pensamentos de Pequena Abelha deixam transparecer o quanto a cultura nigeriana é apagada frente à inglesa. Podemos recorrer a Hall que, ao citar o autor Ernest Renan, afirma a promoção de uma unificação social da nação em culturas nacionais a partir de três elementos: “as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança.” (HALL, 2002, p. 58). Entretanto, em The Other Hand, a herança perpetuada está ligada principalmente aos elementos culturais da nação colonizadora, um provável reflexo da nacionalidade do autor. Se a autoria fosse norte-americana, a possibilidade de termos declarações semelhantes acerca 17 Most days I wish I was a British pound coin instead of an African girl. Everyone would be pleased to see me coming. Maybe I would visit with you for the weekend and then suddenly, because I am fickle like that, I would visit with the man from the corner shop instead—but you would not be sad because you would be eating a cinnamon bun, or drinking a cold Coca-Cola from the can, and you would never think of me again. […] See how nicely a British pound coin talks? It speaks with the voice of Queen Elizabeth the Second of England. Her face is stamped upon it, and sometimes when I look very closely I can see her lips moving. I hold her up to my ear. What is she saying? Put me down this minute, young lady, or I shall call my guards. (CLEAVE, 2008, p. 1-3) 35 do dólar parece palpável. Entretanto, podemos perguntar o que ocorreria no caso do romance ser de autoria nigeriana; qual a probabilidade da cultura e valores de nações colonizadoras ainda serem a fonte de salvação da protagonista? Dentro de uma lógica colonial na qual a história única é constantemente reforçada, à maneira da metrópole, talvez a representação de elementos colonizadores ainda figurassem acima dos colonizados na hierarquia de poder cultural. Ainda sobre Ernest Renan, atualmente Hall tece uma linha argumentativa ligeiramente diferente, ao defender que as distintas culturas nacionais, antes apresentadas enquanto sistemas íntegros de significação, mostram-se cada vez mais fragmentadas, devido a uma série de fatores, como as diferenças culturais existentes no interior de cada sociedade; e as variedades de classes sociais, de gênero, religiosas e étnicas. Ainda de acordo com Hall, uma vez fragmentadas as culturas nacionais, a unificação cultural e identitária por elas antes promovida passa também por um processo de fragmentação. Essa fragmentação pode ser notada na percepção de Pequena Abelha acerca dos momentos em que se encontra presa no Centro de Imigrantes, pois, inserida em um nicho social formado por indivíduos que veem na nação colonizadora possivelmente a única maneira de sobrevivência às violências de seus países de origem, a protagonista passa por esse processo de fragmentação a fim de adaptar-se a uma realidade, a princípio, menos hostil. Aqueles anos frios estão congelados dentro de mim. A menina africana que eles trancaram no centro de detenção de imigrantes, coitadinha, aquela nunca saiu realmente dali. Dentro da minha alma, ela ainda está presa lá, para sempre, sob as luzes fluorescentes, encolhida no piso de linóleo com os joelhos enfiados debaixo do queixo. [...] Não há nada de natural em mim. Nasci — não, renasci — no cativeiro. Aprendi minha língua nos seus jornais, minhas roupas são o refugo das suas e é a sua libra que faz meus bolsos sofrerem com sua ausência.18 (CLEAVE, 2010, p.15) Não vim para conversar sobre as cores vibrantes da África. Sou uma cidadã renascida do mundo em desenvolvimento e vou lhes provar que a cor da minha vida é o cinza. E caso eu adore em segredo banana-da-terra frita, então isto deve ficar entre nós e imploro a você que não conte para ninguém. Combinado?19 (CLEAVE, 2010, p.16) 18 Those cold years are frozen inside me. The African girl they locked up in the immigration detention centre, poor child, she never really escaped. In my soul she is still locked up in there, forever, under the fluorescent lights, curled up on the green linoleum floor with her knees tucked up under her chin. […] There is nothing natural about me. I was born—no, I was reborn—in captivity. I learned my language from your newspapers, my clothes are your cast-offs, and it is your pound that makes my pockets ache with its absence. (CLEAVE, 2008, p. 11) 19 I did not come to talk to you about the bright African colours. I am a born-again citizen of the developing world, and I will prove to you that the colour of my life is grey. And if it should be that I secretly love fried plantain, then that must stay between us and I implore you to tell no one. Okay? 36 Em seu processo de adaptação à sociedade e cultura do colonizador, Pequena Abelha expõe a segmentação de si mesma, na qual a Nigéria é sempre uma recordação, nunca a ser trazida novamente à realidade. Seus laços com a África são confidenciados ao leitor, sob a condição de que não sejam mais mencionados, e ainda que o assassinato da irmã seja narrado para Sarah, suas lembranças em companhia de Nkiruka não são confidenciadas a nenhuma outra personagem. O apagamento, ao menos aparente, de seu passado, frente às outras personagens, é uma forma de Pequena Abelha garantir sua integração na sociedade britânica, ao mesmo tempo em que, ao dirigir-se diretamente ao leitor, a personagem procura algum laço empático no colonizador – sua cultura é exposta ao leitor, sem que possa atrapalhar sua adaptação e sobrevivência na sociedade colonizadora do romance. Ainda segundo Hall, em Representation: Cultural Representation and Signifying Practices (2003), temos mais uma explicação sobre a importância de questões culturais e identitárias no entendimento da representação, uma vez que para o autor existe uma ligação intrínseca entre cultura e representação: Mas o que a representação tem a ver com a “cultura”: qual é a ligação entre elas! Para dizer de forma simples, cultura é sobre “significados partilhados”. A língua é o meio privilegiado em que “fazemos o sentido” das coisas, em que o significado é produzido e trocado. Os significados só podem ser partilhados através do nosso acesso comum à língua. Assim, a língua é central para o significado e a cultura e tem sido sempre considerada como o repositório chave dos valores e significados culturais.20 (HALL, 2003, p. 1, tradução nossa) Dessa forma, por meio de um sistema representacional, a linguagem intermedeia a apreensão cultural. Na concepção de Hall, representação, cultura e linguagem são partes inerentemente ligadas à vivência e subjetividade do indivíduo, mas também cultural e socialmente construídas. Uma vez considerada a subjetividade como elemento criador e organizador da realidade individual, a ideia de uma “realidade verdadeira”, una e objetivamente passível de comprovação perde força, e a concepção de representação como elemento fundamental na construção cognitiva do sujeito frutifica. Em The Other Hand, como vimos, Pequena Abelha revisita a questão da linguagem como forma de mostrar sua tentativa de integração na cultura inglesa. A recorrente menção da 20 But what does representation have to do with 'culture': what is the connection between them! To put it simply, culture is about 'shared meanings'. Now, language is the privileged medium in which we 'make sense' of things, in which meaning is produced and exchanged. Meanings can only be shared through our common access to language. So language is central to meaning and culture and has always been regarded as the key repository of cultural values and meanings. 37 necessidade vital de aperfeiçoar-se na norma padrão da língua inglesa, o chamado “Queen’s English”, também aparece nas frequentes correções do modo de falar de Charlie, feitas por Sarah no decorrer dos diálogos entre mãe e filho. Entretanto, notamos grandes diferenças nos discursos direcionados a cada personagem, pois, para Pequena Abelha, o erro de linguagem pode significar a diferença entre a permanência em terras britânicas e sua repatriação, ou seja, entre a vida e a morte. Quando nos voltamos para Charlie, filho de Sarah, percebemos que, assim como Pequena Abelha, o menino está aprendendo a norma padrão, em outras palavras, o Queen’s English: Assenti e mordi o lábio. — Bom dia, Batman. — O que você e papai estão fazendo, mamãe? — Ahn… — Cês tão lutando contra os bandidos? — “Vocês estão” lutando contra os bandidos, Charlie, e não “cês tão”. — Vocês estão? — Estamos, Batman, é exatamente o que estamos fazendo.21 (CLEAVE, 2010, p. 36) Assim como Pequena Abelha, Charlie precisa aprender as formas corretas para se expressar, de modo a garantir, se não sua sobrevivência, ao menos sua integração à comunidade britânica, uma vez que o reconhecimento e exclusão da diferença configura peça fundamental na manutenção do colonizador. Ainda que as correções parentais ao modo de falar dos filhos seja algo comum em muitas famílias, não deixa de ser significativo que, em um romance no qual a linguagem opera como um dos principais elementos culturais a assegurar a sobrevivência da protagonista, a insistência na expressão correta apareça textualmente por diversas vezes. Charlie deve aprender o inglês corretamente, de modo a perpetuar a diferenciação entre a linguagem do colonizador e a do colonizado. Enquanto característica própria da sociedade na qual deseja buscar sua liberdade, a linguagem é elemento primordial para que a protagonista tenha sucesso para se integrar, ou ao menos para passar despercebida, na sociedade inglesa. Pequena Abelha esclarece esse pensamento ao citar o conselho recebido durante a estadia no Centro de Imigrantes: “[...] 21 I nodded, and bit my lip. ‘Good morning, Batman.’ ‘What is you and Daddy doing, Mummy?’ ‘Er…’ ‘Is you getting baddies?’ ‘Are you getting baddies, Charlie. Not is you.’ ‘Are you?’ ‘Yes, Batman. Yes, that’s exactly what we’re doing.’ (CLEAVE, 2008, p. 40-41) 38 quando as moças mais velhas me cochichavam: Para sobreviver, precisa ter boa aparência ou tem de falar direito, decidi que falar direito seria mais seguro para mim.”22 (CLEAVE, 2010, p. 14). Essa decisão faz com que Pequena Abelha esqueça aos poucos sua forma de falar a fim de aproximar-se o máximo possível ao sotaque britânico, uma vez que acredita ser essa a melhor forma de garantir sua sobrevivência na nova realidade. Entretanto, sua conversa com uma das guardas que a escoltam durante sua deportação traz à luz a barreira, talvez quase intransponível, das relações coloniais. O diálogo entre Pequena Abelha e a funcionária reforça os limites entre colonizador e colonizado. Apesar de seus esforços para aprender as inflexões próprias do inglês britânico, parece não existir a possibilidade da personagem nigeriana ser integrada à sociedade inglesa, pois ela será sempre reconhecida como estrangeira. [...] A funcionária da imigração me algemou nas costas do banco à minha frente. — Não é necessário me algemar — eu disse. — Como eu poderia fugir daqui? A mulher virou para trás e me olhou. Estava surpresa. — Você fala inglês muito bem — disse ela. — A maioria das pessoas que trazemos não fala uma palavra. — Achei que se aprendesse a falar como vocês eu poderia ficar. A mulher sorriu. — Não importa como se fala, não é mesmo? — disse ela. – Vocês sugam recursos. A questão é que vocês não são daqui. [...] — Mas, por favor, o que isso significa? — perguntei. — O que significa “ser daqui”? A funcionária da imigração virou-se outra vez para olhar para mim. — Ora, você tem de ser britânica, não é? Precisa ter nossos valores.23 (CLEAVE, 2010, p.248) A percepção de Pequena Abelha de que o Queen’s English não é suficiente para garantir sua presença em território britânico, ou mesmo para sua sobrevivência, evidencia para 22 […] when the older girls whispered to me, To survive you must look good or talk good, I decided that talking would be safer for me. (CLEAVE, 2008, p. 9) 23 […] The female officer handcuffed me to the back of the seat in front. “It is not necessary to handcuff me,” I said. “How could I run away?” The female officer looked back at me. She was surprised. “You speak pretty good English,” she said. “Most of the people we bring in don’t speak a word.” “I thought if I learned to speak like you people do, I would be able to stay.” The officer smiled. “It doesn’t matter how you talk, does it?” she said. “You’re a drain on resources. The point is you don’t belong here.” […] “But please, what does it mean?” I said. “What does it mean, to belong here?” The female officer turned to look at me again. “Well, you’ve got to be British, haven’t you? You’ve got to have our values.” (CLEAVE, 2008, p. 344-345) 39 a personagem a impossibilidade de sua inserção na sociedade colonizadora, uma vez que ela é ainda vista como uma estrangeira indesejada. O “ser britânico” é mais do que apenas um verniz linguístico, pois perpassa o reconhecimento do colonizado e sua exclusão da metrópole. O britânico é tudo aquilo que difere do colonizado. Em seu texto Da diáspora (2003), Hall oferece algumas considerações acerca da compreensão da representação enquanto elemento inerente à formação cognitiva do sujeito. Ao valer-se das ideias de Althusser sobre o tema, Hall explora os liames entre representação e questões socioculturais. Antes de aprofundar-se em observações sobre representação, o escritor disserta a respeito de ideologia, no tocante aos significados e usos do termo. Inicialmente, Hall questiona “O que é a ideologia, senão precisamente a tarefa de fixar significados através do estabelecimento, por seleção e combinação, de uma cadeia de equivalências?” (HALL, 2003, p. 164). Sua pergunta abre espaço para a compreensão da representação não como um entendimento apartado, mas como um processo encadeado de cognições e percepções cultural e socialmente fomentadas. É importante notarmos que, como defende Hall, as “equivalências” citadas não apresentam correspondências fixas com elementos socioculturais. Apesar de seu discurso abranger especificamente círculos sociológicos referentes a ideologias de estratos sociais (aqui o teórico utiliza como exemplo os trabalhadores, soldados, intelectuais e camponeses russos durante os acontecimentos de 1917), podemos acolher em suas palavras diversificadas camadas da sociedade contemporânea. Explicamos: embora, como o próprio autor comenta, a representação seja construída social e culturalmente, a apreensão e interpretação dessas representações processam-se a partir da subjetividade individual. Ao extrapolar a esfera psíquica, indagamos qual seria o espaço no qual as ideias são expressas. Hall responde ao mencionar o pensamento de Althusser sobre o assunto: Ele [Althusser] enfatiza o lugar de onde as ideias surgem, onde os eventos mentais são registrados ou concretizados enquanto fenômenos sociais. Trata- se, naturalmente, da linguagem (compreendida no sentido de práticas significativas que envolvem o uso de signos; no domínio semiótico, o domínio do significado e da representação). (HALL, 2003, p. 173) A citação de Hall clarifica uma vez mais seu entendimento sobre a ligação intrínseca entre a representação, a linguagem e a sociedade. A menção da ideia de linguagem, entretanto, opera um questionamento autêntico acerca da concepção de linguagem idealizada por Hall. Ao 40 indagarmos qual seria a apreciação do sociólogo sobre a ideia de linguagem, o autor clarifica a questão em Representation: Cultural Representation and Signifying Practices: Estes elementos – sons, palavras, notas, gestos, expressões, vestuário – fazem parte do nosso mundo natural e material; mas a importância para a linguagem não se dá pelo que são, mas pelo que fazem, a função. Constroem significado e transmitem-no. Significam. [...] são os veículos ou meios que carregam significado, porque funcionam como símbolos, retratando ou representando (isto é, simbolizam) os significados que desejamos comunicar. Para utilizar outra metáfora, funcionam como sinais. Os sinais retratam ou representam os nossos conceitos, ideias e sentimentos de modo a permitir que outros “leiam”, descodifiquem ou interpretem o significado quase da mesma forma como o fazemo