UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL LUCAS ANTÔNIO DE ARAÚJO A REPRESENTAÇÃO DO SERTÃO NA METRÓPOLE: A CONSTRUÇÃO DE UM GÊNERO MUSICAL (1929-1940) FRANCA 2008 LUCAS ANTÔNIO DE ARAÚJO A REPRESENTAÇÃO DO SERTÃO NA METRÓPOLE: A CONSTRUÇÃO DE UM GÊNERO MUSICAL (1929-1940) BANCA EXAMINADORA Presidente: _________________________________________________________ Profa. Dra. TÂNIA DA COSTA GARCIA 1° Examinador: ______________________________________________________ Profa. Dra. MARISA SAENZ LEME 2° Examinador: ______________________________________________________ Prof. Dr. JOÃO MARCOS ALEM Franca, 5 de março de 2008 Dedico este trabalho aos violeiros... AGRADECIMENTOS Agradeço à Érika, minha esposa, pelo apoio e ajuda nas horas difíceis e a meu filho Pedro, estímulo para realização deste trabalho; Agradeço aos meus pais, com quem sempre pude contar, pelo apoio e ajuda desinteressados, aos meus irmãos Murilo e Heitor e à minha avó; Agradeço à minha orientadora Tânia pelo apoio, seriedade, paciência e amizade; Aos amigos Cléber, Miltinho, Anderson, Marcelo, Zé e Lobão pelo companheirismo e pelas discussões de alto nível, sempre de grande valia, e a meus amigos de infância que a despeito da distância e das mudanças continuam preservando o valor da amizade: Alcyr, Daniel, Lúcio e Fabrício, também aos amigos de faculdade que espero um dia reencontrar: Iago, Mônica, Carlinhos, Valéria, Renato e Igor; Aos funcionários da Biblioteca, principalmente Laura e Lourdes, eficientes e sempre prontos a ajudar, negação do estigma do funcionalismo público brasileiro; Ao Ivan Vilella pela solicitude; Aos meus amigos de Piracicaba do Mercadinho; Por fim agradeço a Deus. Às vezes, seu prazer consistia em narrativas eivadas de pilhérias. E acontecia que nos acampamentos de beira-estrada, ou sob as amoreiras, ou nos barrancos de beira-rio, surgiam narradores de histórias, e os homens se reuniam ao clarão das fogueiras para escutá-los. E o interesse com que os homens ouviam essas histórias faziam com que essas histórias se tornassem grandes. John Steinbeck RESUMO O presente trabalho pretende desenvolver algumas análises acerca das características do processo de formação do gênero musical atualmente conhecido como “música sertaneja de raiz”, denominado aqui “música sertaneja tradicional”. Sua formação e consolidação remete a aspectos fundamentais para compreensão da construção da imagem do sertão no contexto da urbanização e seus impactos na capital paulista, cenário da formação de sua trajetória, que se dá entre as décadas de 1920 e 1940. Este gênero musical que se desenvolveu apoiado nos avanços técnicos da indústria fonográfica e da radiodifusão, assumiu freqüentemente a posição de elemento crítico, de grande popularidade, ao “mundo em transformação” e às concepções culturais modernas. Para tanto opôs a esta realidade a representação mítica do sertão, do passado e da vida rural. Palavras-chaves: Música sertaneja; História da música; Sertão. ABSTRACT The present work has as its goals to develop some analysis about the creation process of different kinds of music, known nowadays as " música sertaneja de raiz" nominated in this work as "música sertaneja tradicional". Its formation and consolidation give us the fundamental aspects to understand the urbanization and its impacts towards São Paulo State Capital. São Paulo was the birth of this music stilly formation and its scenery. This fact happens from 1920 to 1940. This music stile has been developed being supported by the technical progress of the phonographic and the broadcast industry. On the other hand, it is considered, frequently, a critical element, with great popularity to the "transforming world" and to the modern cultural conceptions. Otherwise, the country mythical representation is opponent it this music reality. Key words: Music sertaneja; Music history; Hinterland. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: Museu Cornélio Pires,Tiête-SP, p. 66. Figura 2: Jornal de Piracicaba, Piracicaba-SP, 2007, p. 67. Figura 3: (NEPOMUCENO, 1999), p. 82. Figura 4: (NEPOMUCENO, 1999), p. 82. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 09 CAPÍTULO 1 IMAGENS E INTERPRETAÇÕES DO SERTÃO 1.1 O sertão na história e literatura................................................................ 22 1.2 Ruralidade e sonoridades na metrópole paulista................................... 26 1.3.1 Interpretações acerca do surgimento e aspectos gerais da Música Sertaneja..................................................................................................... 33 1.3.2 Influências para o surgimento do gênero sertanejo..................................... 40 CAPÍTULO 2 ATORES E AGENTES NA FORMAÇÃO DE UM BEM SUCEDIDO GÊNERO MUSICAL 2.1 Imagens do Homem Rural na Efervescência Cultural da Metrópole..... 48 2.2.1 Os Pioneiros............................................................................................... 60 2.2.2 A Emblemática Moda-de-Viola..................................................................... 67 CAPÍTULO 3 LAPIDANDO A ROCHA: a definição dos primeiros padrões que notariam a Música Serteneja 3.1 Alvarenga e Ranchinho: dupla caipira e narrativa cômica..........................74 3.2.1 Raul Torres e Florêncio: dupla sertaneja e a narrativa épica...................78 3.2.2 A pecuária como referência marcante na formação da música sertaneja..... 83 3.2.3 Breve olhar sobre algumas canções de Raul Torres e Florêncio...................87 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 95 REFERÊNCIAS.................................................................................................... . 98 ANEXOS.................................................................................................................105 9 INTRODUÇÃO A pesquisa histórica voltada para a música demanda diversas dificuldades inerentes, inclusive no que concerne à metodologia, por se apoiar numa fonte que não tem como prioridade outra forma de registro, a não ser o sonoro. Datas, localidades nem sempre constam nos materiais analisados e diversas vezes encontramos ausência de dados ou imprecisões. Esta ausência de referências mais concisas é uma constante na história da indústria fonográfica nacional. A autoria das músicas, por exemplo, pode não corresponder ao nome que consta nas capas de discos e nos próprios discos. Por muitas razões ocorrem estes tipos de “imprecisões”, entre elas o hábito comum de se registrar músicas recolhidas, as chamadas de “domínio público”, com o nome dos intérpretes ou de compositores de destaque, o costume também comum de autores originais “venderem a autoria” da composição a artistas mais consagrados, que as registram como obra sua; falta de registro dos instrumentistas participantes e mesmo confusões como uma mesma música aparecer ora com um título ora com outro, também não são situações raras. Quanto ao registro de datas o problema se mantém, pois é comum nos depararmos com gravações sem a mínima referência à data de gravação ou de lançamento, o que torna o trabalho dos pesquisadores da história da discografia brasileira, muitas vezes, desalentador (SANTOS, 1982, p. 08). As dificuldades se tornam ainda mais latentes se levarmos em conta o fato de que durante muito tempo as gravadoras não tinham preocupações de registro e arquivamento de suas gravações, o que levou à perda de inúmeras obras. Algo que foi definido como “falta de perspectiva histórica de nossa indústria de disco” (SANTOS, 1982, p. 02). De acordo com a pesquisadora Márcia Tosta Diaz, em seu estudo sobre a trajetória da indústria fonográfica (2002), as gravadoras só se tornarão profissionais e terão bem definidos seus objetivos e definição de padrões a partir da década de 1960. Antes disso pode-se atribuir a esta mesma indústria fonográfica a característica do pioneirismo e do experimentalismo em virtude mesmo da (in)definição de seus horizontes e de seu papel. O amadorismo, se não favorecia a organização das gravações, na sistematização da produção a qual pressupõe o registro rigoroso, por outro lado oferecia possibilidades e espaço diversificado para uma heterogênea gama de estilos e referências 10 musicais, como é o caso da formação do gênero musical a que se propõe abordar o presente trabalho. Os problemas mencionados acima adquirem proporções bem maiores do que o comum no caso do objeto escolhido. A primeira se refere à temporalidade, pois se trata justamente de buscar a formação de um gênero musical que remete prioritariamente às décadas de 1930 e 1940, ou seja, um período onde o profissionalismo e o apreço ao registro estavam longe de se configurar como regra na atividade da indústria fonográfica nacional. A outra dificuldade remete à própria temática, pois a música sertaneja, a despeito de sua popularidade, tem como característica marcante o desprezo que sofre por parte da mesma indústria fonográfica que oferece as bases para sua existência enquanto gênero musical. Em suma, a música sertaneja é tratada com desleixo no que concerne à preservação e valorização por uma indústria fonográfica que já não tinha grande organização, nem política de arquivamento rigorosa. A música sertaneja tradicional, denominada comumente como música sertaneja “de raiz” ou música “caipira”, quando se trata de frisar sua diferenciação em relação à música sertaneja “moderna” (ou pop como preferem alguns), se configura em uma importante fonte para apreensão de relevantes aspectos da tão propalada “cultura popular1 brasileira”. Embora tenha sido sistematicamente marginalizada e obscurecida pela maior parte daqueles que construíram e definiram as características e adjetivos desta mesma cultura, a música sertaneja tradicional, possui popularidade e significados que abrangem consideráveis contingentes populacionais dos centros urbanos e do interior destacadamente nas regiões sudeste e centro-oeste. [...] o público da música sertaneja embora tenha a este respeito um gosto convergente, é geograficamente disseminado, ocupacionalmente diferenciado e diversificado quanto ao poder aquisitivo. É possível, entretanto, que se tivéssemos que pensar, operacionalmente, nesse público em termos de categorias amplas, poderíamos considerá-lo como constituído predominantemente por trabalhadores urbanos e rurais assalariados (MARTINS, 1975, p. 119). Este gênero musical e aspecto cultural da música brasileira foi, durante muito tempo ignorado de forma surpreendente, o que deixou espaço para as mais 1 [Ao apontarmos a idéia de “cultura popular” estamos nos referindo justamente a isso, a uma “idéia”, algo que carece de definição objetiva, que tem muito mais a conotação de um anseio, de uma busca, seja por identidade, nacionalidade, ou definição das características de um povo.] 11 superficiais definições na maior parte das poucas abordagens acerca do tema. Não lhe foi reconhecido o status de um dos mais significativos elementos desta referida e almejada “cultura popular nacional”, esta definida e redefinida desde há muito, ora por elites políticas e intelectuais tradicionais, ora grupos de intelectuais de esquerda e movimentos culturais. É bastante sintomático que a primeira forma musical popular reconhecida, e talvez a única que realmente possua o status de música popular nacional e difundida seja o samba. Muito mais regional e específico do que os ritmos que viriam a compor o gênero sertanejo, por exemplo, o samba passa a portar a bandeira da música “genuinamente” brasileira, popular e representante do povo, a despeito de ter sua área de popularidade e difusão bem mais definida e restrita geograficamente do que gêneros musicais como a música nordestina e marcadamente a música sertaneja tradicional. Não há dúvida, ao menos em termos de abrangência territorial, que a maior popularidade ou identificação está na música de inspiração rural e interiorana, capaz até de se unificar em um gênero que abrange culturas musicais de diversas regiões do interior. Reconhece-se o samba como a típica música popular brasileira, um estilo formado predominantemente em uma paisagem urbana e litorânea, em um país cuja maior parte da população ainda habitava o campo e a realidade do ambiente rural. A urbanização recente da maior parte desta mesma população não eliminou traços, aspectos, valores e formas narrativas e musicais características de seu passado rural, que ainda causam grande impacto cultural. Estas se ajustam diante do novo cenário urbano, e acabam se constituindo em um fator de grande valia para a consolidação de laços sociais e culturais neste imenso público de migrantes e trabalhadores rurais, trazendo noção de continuidade em momentos de ruptura. Por outro lado, muitos modernistas objetivaram alcançar uma outra dimensão da cultura popular. Mário de Andrade, um dos maiores representantes deste movimento cultural, resumidamente, achava que só seria possível uma cultura popular que fizesse jus a esse nome, quando artistas letrados e eruditos desvendassem e utilizassem como matéria-prima para sua produção artística as músicas folclóricas de antigas comunidades rurais (ANDRADE, 1962). Seria esta a junção de uma música “que brota naturalmente”, e por isso sua autenticidade, com o conhecimento, o cientificismo e elaboração da erudição. Tal projeto, a despeito de procurar “a genuína” cultura popular e nacional, olha para estas manifestações 12 “folclóricas” e populares como incapazes de algum desenvolvimento técnico, estético ou narrativo. São vistas como cristalizadas e estagnadas no tempo. O gênero sertanejo, que começa sua ascensão e popularização principalmente a partir da década de 1930, também jamais mereceu atenção dos modernistas. Resumidamente pode-se ter a dimensão da exclusão da música sertaneja e seu significativo público quando nos deparamos com o heterogêneo conjunto definido como MPB, onde não há praticamente nenhum espaço para diálogos com o estilo musical que surge construído e constituído a partir das tradições da música rural e de vastas regiões do interior, a música sertaneja. Antes de mais nada, é importante que nos debrucemos sobre as denominações “música sertaneja” e “música caipira”. Na maior parte das vezes, quando se trata da música sertaneja tradicional -o centro do presente estudo- público, artistas e analistas tendem a confundi-los e até a utilizá-los sem distinção. Em verdade, a definição plena ou definitiva é impossível, levando-se em conta que não se trata de definições científicas nem conceituais que resultaram em definições metódicas. Como será mais profundamente exposto no desenvolvimento do trabalho a primeira tentativa de definição conceitual no âmbito da pesquisa acadêmica acerca do tema é elaborada por Waldenyr Caldas e posteriormente, por José de Souza Martins. De forma geral e sintética podemos afirmar que para ambos “música caipira” é definida como música produzida por comunidades rurais, principalmente do interior paulista, e como tal não pode ser empregada para denominar canções produzidas na realidade urbana e sob influência da indústria cultural. Para esta é que se adequaria a expressão “música sertaneja”, ou seja, o que definiria essa denominação é sua condição de ser mercadoria, produto disposto para consumo. Em outra perspectiva encontramos definições oriundas dos indivíduos que de diversas formas participam e mantêm o gênero musical. Neste caso, as denominações só dizem respeito às canções produzidas na cidade, mas que de forma alguma são identificadas com ela. O ambiente da produção, para eles, parece não tirar dela a condição de ser a música da “roça”. Nos primórdios do gênero, no final da década de 1920, a denominação mais utilizada era “música caipira” e o gênero, que compreendia uma abrangência espacial mais específica do que viria a ter posteriormente, tinha como base músicas oriundas do interior paulista, (LOPES, 1999), região tradicionalmente denominada “caipira”. “Música sertaneja” era a definição no ambiente musical da época, entre as rádios e gravadoras, que se 13 referia à música de inspiração nordestina, interiorana, que nas primeiras décadas do século XX desfrutava de grande popularidade na capital paulista e principalmente na capital nacional, Rio de Janeiro. (LOPES, 1999). Há casos em que duplas, conjuntos ou artistas individuais gravavam e apresentavam músicas caipiras intercaladas com emboladas nordestinas. (NEPOMUCENO, 1999, p. 106). Com o passar do tempo, a depreciação e estigmatização do termo “caipira”, bem como sua constante utilização e identificação com o humor e o tom jocoso, duplas que se propunham a cantar um repertório de temática considerada mais sóbria passaram a denominar-se e a serem denominadas “sertanejas” e a alcunha de “caipira” se tornaria, posteriormente, ofensiva, marcadamente a partir da década 1940 e o seria ao longo dos anos até início da década de 1990. “Música caipira” só voltaria a ser o termo em voga e valorizado, utilizado pelos próprios violeiros e duplas para se autodenominar, a partir de uma certa saturação e completa separação em relação aos músicos da chamada música sertaneja pop. Nos dias atuais, então, popularmente a denominação “sertaneja” se refere a esta música com roupagem moderna, que encontra entre seus maiores representantes duplas que vendem milhões de discos tais como Zezé di Camargo e Luciano e Chitãozinho e Xororó. José Roberto Zan denominará esta vertente “nova música sertaneja”. O mercado fonográfico brasileiro foi marcado, ao longo dos últimos anos, pela explosão da nova música sertaneja ou como também é chamada, do “sertanejo romântico”. Na verdade, o apogeu desse “gênero” popular ocorreu no período que vai, aproximadamente, de 1989 a 1992. Durante esses anos, duplas como Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, Zezé di Camargo e Luciano, juntamente com os intérpretes individuais Sérgio Reis e Roberta Miranda, lideraram a vendagem de discos no país. Na esteira destes grandes astros, as gravadoras passaram a investir em novas duplas na tentativa de explorar ao máximo esse novo filão do mercado de discos (1994, p.113-114). Até final dos anos 1980, a denominação “música sertaneja” servia para designar um “caldeirão” indefinível, de uma heterogeneidade muito mais acentuada do que o habitual, e inclassificável. Abrangia desde duplas que faziam sucesso nos anos 1950, como Tonico e Tinoco com viola de dez cordas acompanhada de violão e vozes ancestrais, até Zezé di Camargo e Luciano com suas vozes “jovens” e apoiados em bandas estrondosas, com guitarristas, baixistas, tecladistas e bateristas. 14 É importante frisar que a partir da desvinculação em relação às temáticas, estética e forma em geral da “nova vertente” do gênero em relação à música sertaneja tradicional, as duplas de ambos os estilos, que poderiam ser definidos já como gêneros distintos, têm atualmente uma relação relativamente amistosa. No boom dos anos 1980 houve tendência marcante dos jovens astros em buscar cada vez mais se desvencilhar da “velharia” e assumir de forma empolgada à modernização e à estética “jovem”. Atualmente as restrições, quando ocorrem, vêm do outro lado, das duplas de violeiros tradicionais, que classificam a “nova música sertaneja” de forma pejorativa como “sertanojo” ou “música de motel” em referência à temática praticamente única do estilo: as desventuras amorosas. Em relação aos astros desta “nova música sertaneja” assumem postura bem diferente daquela dos anos 1980, onde as duplas tradicionais eram encaradas pelas jovens duplas da nova música sertaneja de forma depreciativa, representando um verdadeiro “conflito de gerações”. Atualmente dizem respeitar muito as duplas antigas a quem se referem como verdadeiros mestres e vez por outra fazem questão de inserir um “clássico sertanejo” na gravação de seus discos, quando não gravam um inteiro composto somente de “músicas de raiz”.2 Diante deste quadro e de suas diversas variações, optamos por utilizar a denominação “música sertaneja tradicional” para diferenciar o gênero que sempre teve como referência a estrutura de músicas rurais, bem como instrumentos e temáticas referentes, da nova “geração”, que nos referimos acima e que se autodenominará sertanejo, tirando do termo seu significado até conceitual. No caso, o uso que adotamos do termo tradicional (música sertaneja tradicional) não pressupõe de maneira alguma uma música “pura”, livre de influências externas e cristalizada no tempo, mas sim a referência à vertente do atualmente tão heterogêneo gênero sertanejo, que assumiu como postura na sua produção musical, tanto na estrutura e ritmos, como nas temáticas, a exploração das formas da cultura musical de inspiração rural, de ritmos conhecidos comumente como “folclóricos”3 do eixo geográfico da música sertaneja: sudeste, centro-oeste e 2 [Exemplo: (CHITÃOZINHO; XORORÓ, 1996)]. 3 [Avaliamos que o termo “folclórico” é ainda mais associado do que “tradicional”, a manifestações culturais tidas como desatualizadas, imutáveis e “primitivas”, sendo mais propenso a gerar interpretações que contribuam para corroborar a já pejorativa imagem imputada, nos círculos “letrados” e “cosmopolitas” nacionais, a estas culturas originárias das sociedades agrárias]. 15 em alguma medida o norte do estado do Paraná. Vejamos o trecho selecionado que remete a tais características Vincada pelas tradições e tendo suas matrizes genealógicas situadas no fundo peninsular da Idade Média, a Literatura Popular de antiga procedência não pode ser entendida como matéria estática, guardiã do atraso. Como outras manifestações autênticas das camadas marginalizadas, que têm um sentido de persistência ligado ao beira-chão, está sujeita a transformações pelas adaptações ao meio, pelos retoque imaginativos e transfiguradores, num contínuo processo de reelaboração comunal: quem modifica são as gerações de cantadores e ouvintes (SANT’ANNA, 2000, p. 32). Em relação à característica de elemento “detentor” do passado e da construção de uma interpretação e discurso histórico, a música sertaneja conquista sua legitimidade, em grande medida, pela detenção, uso e apropriação que faz desse mesmo passado, assim compactuando, compartilhando e forjando referências, mantendo e reordenando valores, símbolos e visões de mundo, cotidiano e mitos, homens comuns e heróis, de grande parte deste contingente de trabalhadores migrantes dos grandes centros urbanos, principalmente São Paulo. Uma das principais características da música sertaneja tradicional é a de se autodenominar como mantenedora da “legítima tradição”, e para tanto precisa também inventar a totalidade e coesão desta tradição,4 através de elementos que “pesca” do passado e outros que assimila do presente. Neste aspecto o tema está intimamente ligado ao ofício do historiador, pois se trata justamente da relação das pessoas e seus grupos com o passado e a idéia que fazem deste. Na citação abaixo estão delineados aspectos desta apropriação do passado, definida pelos autores como “tradição inventada”: Todavia, todos os historiadores, sejam quais forem seus objetivos, estão envolvidos neste processo, uma vez que eles contribuem, conscientemente ou não, para a criação, demolição e reestruturação de imagens do passado que pertencem não só ao mundo da investigação especializada, mas também a esfera pública onde o homem atua como ser político. Eles devem estar atentos a esta dimensão de suas atividades. A propósito deve-se destacar um interesse específico que “as tradições inventadas” podem ter, de um modo ou de outro, para os estudiosos da história moderna e contemporânea. Elas são altamente aplicáveis no caso de uma inovação histórica comparativamente 4 Por “tradição inventada” entenda-se o conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abstratamente aceitas; tais práticas de natureza real, ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico. (HOBSBAWN; RANGER, 1984, p. 21) 16 recente, a “nação”, e seus fenômenos associados: o nacionalismo, o Estado nacional, os símbolos nacionais, as interpretações históricas, e daí por diante. Todos esses elementos baseiam-se em exercícios de engenharia social muitas vezes deliberados e sempre inovadores, pelo menos porque a originalidade histórica implica inovação (HOBSBAWN; RANGER, 1984, p. 22). Consideramos que o historiador da cultura não deve necessariamente se debruçar sobre esta última com o intuito prioritário de apreender nexos ligados a projetos políticos ou de afirmações de identidades nacionais de forma planejada e certamente também vinculada a concepções partidárias. No que diz respeito à música sertaneja tradicional, certamente a proposição de ação deliberada na construção de determinada tradição perde o seu chão já que o gênero, como será abordado mais adiante, tem seu surgimento e definições temáticas e de estilo relativamente desvinculado de patrocínio comercial ou político, embora não pudesse ficar imune a ambas influências. Outra característica fundamental para apreensão de aspectos da música sertaneja tradicional é a sua condição certamente híbrida (CANCLINI, 2000), desde a sua base, pois se assenta em matrizes culturais distintas: a música européia ibérica, a música indígena e em menor escala a música negra. Através destas influências musicais pode ser encarada como manifestação peculiar da música brasileira, contendo elementos de seus troncos étnicos básicos (SANT’ANNA, 2000, p. 32). A forte influência do elemento ibérico e a também marcante contribuição indígena a esta música rural, faz com que encontremos semelhanças em meio às características peculiares, com a música latino-americana em geral, também nitidamente constituída por características musicais provenientes da cultura ibérica, bem como do elemento ameríndio. Segundo pesquisadores este diálogo intenso da música ibérica, no caso nacional especificamente a portuguesa e a música indígena, se originaria nas jornadas e missões dos jesuítas que utilizariam a viola como instrumento privilegiado para “encantar índios”, atraí-los e convertê-los à fé cristã, (SANT’ANNA, 2000), para tanto adaptando ao instrumento linguagem, ritmos e danças indígenas como o faziam com teatro e danças (BOSI, [197-], p. 26). No geral a estrutura de sentimentos (WILLIANS, 1989), presente na música sertaneja tradicional remete a um medievalismo, adaptado à realidade de seu desenvolvimento e que nesse ponto faz jus à ampla difusão de narrativas e formas musicais que têm a estrutura dos “romances de cavalaria” (BURKE, 1992). 17 Os arquétipos, símbolos e narrativas remetem à mentalidade medieval em muitos de seus aspectos. [...] Confabulando com motivos literários antigos que incursionam, pelo mundo medieval, a Moda Caipira de raízes remoça metáforas e instâncias temáticas profundamente agregadas na cultura, como a tópica exordial, a do final feliz, a da invocação da natureza, do lugar ameno e bucólico, a da peroração, a das invocações bíblicas, a do passado feliz que não volta mais, a da moça roubada, a do homem mal, de coração satânico, a da rapariga pecadora, a do mundo às avessas, a da morte domada, a do pobre virtuoso, a das transformações zoomórficas, assombradoras ou angelicais, a da força das premonições e vaticínios, todas muito freqüentes e determinantes de núcleos temáticos e enredos das canções de gesta do Romanceiro tradicional[...] (SANT’ANNA, 2000, p. 34) Acrescentamos às enumerações acima a representação do cavaleiro portador dos valores nobres e pronto a colocar sua coragem à prova, no caso da música sertaneja tradicional, encarnado principalmente na figura de boiadeiros e tropeiros idealizados. O fato de abranger diversas regiões do país, muitas vezes distintas entre si, construindo uma determinada identidade cultural, da qual milhões de indivíduos compartilham, afasta da música sertaneja tradicional a definição dada por muitos de música regional. Na verdade ela tem como uma das principais características de sua formação, enquanto gênero musical, a sua fácil adaptação a novas situações, como o processo de urbanização e também a ampla identificação possibilitada pela incorporação de diversos ritmos regionais, instaurando o diálogo entre essas diversas culturas rurais no ambiente urbano. Os estudos a respeito da música sertaneja são escassos por motivos que já foram em alguma medida explanados, e os poucos que se aventuraram a realizá-los têm o mérito do pioneirismo, mas há dificuldade de se aprofundar e entender este universo musical, por serem os primeiros a “desbravar” esta “mata inexplorada”. Boa parte destas obras carece de algum ponto fundamental no desenvolvimento da pesquisa na área das Ciências Humanas. Ora falta o rigor científico e sobra paixão pelo tema, ora procura-se usá-lo como veículo para provar teses pré-concebidas, ora é enxergado apenas como mais uma “manifestação folclórica” pitoresca e estéril. Outro problema recorrente é a falta de conhecimento dos que pesquisaram a respeito do tema, do repertório vastíssimo e heterogêneo da música sertaneja tradicional. 18 Uma das mais recentes publicações, intitulada Música Caipira - da roça ao rodeio de Rosa Nepomuceno (1999), não se aprofunda em uma análise acerca da estrutura da música sertaneja, de sua contextualização, nem do seu discurso, visões de mundo e representações; desenvolve um trabalho factual, de cunho jornalístico, rico em dados e informações sobre as origens e processos de transformação do estilo, delineando a trajetória da música sertaneja do campo para a cidade. Bastante útil para a consulta de dados por parte do pesquisador. No trabalho de pesquisar a trajetória da música sertaneja a autora também localiza, posteriormente, os períodos chaves das transformações por que passa o gênero. Dentre os trabalhos que se voltaram para o tema, o que mais se aprofundou no universo da música sertaneja tradicional, que nele é denominada moda caipira de raízes, é intitulado A Moda é Viola: ensaio do cantar caipira (SANT’ANNA, 2000). O autor Romildo Sant’anna desenvolve uma minuciosa análise literária das letras das músicas, denominadas de literatura oral ou etnotexto, em que busca desvendar as formas de linguagem recorrentes bem como os sentidos e influências que exerceram a função de formadores desta “tradição oral”. Através de sua obra pode-se compreender a influência do imaginário medieval e ibérico na formação do gênero sertanejo, bem como a riqueza narrativa e simbólica de diversas destas canções, contestando o lugar comum que enxerga na música sertaneja como incapaz de ultrapassar a fronteira do simplório. Pode-se contestar o autor quando, em alguns momentos ultrapassa os limites de sua área e procura desenvolver análises sociais carregadas de jargões, onde acaba sem querer contestando o valor de seu estudo. Outro mérito a ser reconhecido em sua obra, se comparada às anteriores, é o profundo conhecimento do repertório da música sertaneja. Diante das poucas pesquisas referentes ao tema sempre há um risco maior de se incorrer em equívocos, acentuado ainda mais pela demanda e a necessidade de uma abrangência temporal maior pelo menos no sentido de localizar, tornar o leitor mais familiarizado com o tema. As fontes pesquisadas - no caso das que se referem ao período de introdução da música de inspiração rural do interior paulista, primeiramente na realidade urbana, mais especificamente na capital paulista - são predominantemente referentes ao próprio repertório musical e obras literárias que se ocuparam da reflexão sobre o sertão e o tipo humano rural, como os “causos” e histórias do caipira de Cornélio Pires, o pioneiro a se interessar em desvendar esta “cultura 19 rústica”, definido por muitos como o responsável pela criação do gênero sertanejo, e responsável por viabilizar a gravação das primeiras canções em discos e a iniciar sua relação com a cidade e a nascente indústria fonográfica. Através destas fontes foi possível delinear alguns fatores, contextos e situações que facilitaram a consolidação enquanto gênero musical desta música de inspiração rural. No que concerne ao repertório, fonte de esclarecimento sobre características diversas referentes ao tema, utilizamos a discografia, que consideramos mais relevantes para os objetivos da pesquisa, das duas duplas selecionadas: Alvarenga e Ranchinho e Raul Torres e Florêncio. A seleção das duplas teve como critério a imagem que carregam de representantes de tendências distintas do gênero que se inicia. No primeiro capítulos objetivamos, primeiramente, traçar um breve quadro acerca da representação do sertão como espaço e cenário da formação da identidade nacional entre escritores e intelectuais de grande referência na literatura, historiografia e ciências sociais em geral: Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Consideramos que esta abordagem se fez necessária a fim de adentrar um pouco mais na reflexão acerca dos significados tanto do lugar do sertão, como da oposição/interação rural e urbano. Em seguida nos voltamos para as características culturais do urbano, no caso, especificamente a capital paulista em modernização e transformações profundas. Com o intuito de situar a formação da música sertaneja enquanto gênero musical, buscamos expor as interpretações mais influentes e difundidas no âmbito das ciências sociais acerca da urbanização da música rural, e das principais influências para a formação da música sertaneja bem como das interpretações que os autores em questão fazem das características do gênero. Para encerrar o primeiro capítulo abordamos as imagens do caipira e do homem rural em geral, construídas no contexto, justamente, da metrópole paulista e das transformações decorrentes da rápida urbanização e avanços tecnológicos, privilegiadamente nos voltando para a construção da figura anti- heróica do Jeca Tatu, e das representações do caipira de Monteiro Lobato e Cornélio Pires. O segundo capítulo se voltará para os personagens que protagonizaram a formação do gênero sertanejo, bem como as circunstâncias 20 específicas de seu processo de formação. Veremos como Cornélio Pires, contando em grande medida com sua iniciativa pessoal reuniu duplas de violeiros do interior paulista dando origem á música sertaneja. Ainda neste capítulo refletiremos acerca de uma das principais referências sonoras da música rural, o estilo conhecido como moda de viola e também de características narrativas de uma emblemática representante das primeiras gravações. No terceiro capítulo o objetivo será mostrar o surgimento de duas tendências diferentes no interior do gênero, cada qual representando de uma forma a concepção de ruralidade e do homem rural. Para tanto selecionamos duas duplas que se consolidaram como representantes de cada uma delas: Alvarenga e Ranchinho e Raul Torres e Florêncio. Os primeiros encarnaram a representação, típica da realidade urbana, do caipira simplório e ingênuo que serve de instrumento crítico á modernidade, na maior parte das vezes representado em apuros ou alarmado diante do ritmo e concepções da metrópole. Já Raul Torres e Florêncio priorizaram nas narrativas de seu repertório e na imagem que consolidaram, o tom épico e a representação do homem rural no cenário do sertão onde é pintado com cores mais heróicas, dominando o ambiente e através do trabalho e/ou da coragem e força bruta. Esta última dupla seria a mais influente entre duplas de violeiros de grande sucesso da música sertaneja tradicional enquanto Alvarenga e Ranchinho tiveram pouca influência no interior do gênero, mas foram extremamente populares no ambiente metropolitano e cosmopolita. O recorte temporal estabelecido tem vai das primeiras gravações até a consolidação da dupla Raul Torres e Florêncio como grande referência, delineando padrões que se consolidariam entre as duplas de violeiros no gênero sertanejo.] O objetivo central do presente trabalho é debater com as interpretações mais correntes acerca da música sertaneja tradicional, bem como apoiado principalmente no repertório das duplas, esclarecer aspectos que forma deixados de lado ou interpretações definitivas que levam a reducionismos e ás vezes imagens pejorativas. Estamos longe de achar que supriremos todos os problemas, ou que as interpretações abordadas tenham somente defeitos. Ao contrário. Em virtude de seu pioneirismo enfrentaram dificuldades que hoje estão superadas, embora haja muitas outras à frente, além de fornecerem preciosos instrumentos de análise e ângulos de abordagem. No caso, nossa principal restrição não se dirige diretamente aos 21 autores, mas a esquemas teóricos que muitas vezes enquadram o objeto da pesquisa. Cabe alertar que o terreno se mostra de difícil acesso quando se busca desvendar o universo da música sertaneja através de definições absolutas. A necessidade, então, de apreensão, compreensão, busca de fluxos de ondas causais, (BLOCH, 2002, p. 157), na trajetória do gênero musical denominado sertanejo é grande no sentido de desvendar visões de mundo, valores e concepções em geral de uma considerável parcela da população brasileira que se vincula a ele. Certamente o mais difundido e por regiões distintas, carrega registro e construções simbólicas que não puderam se fixar por outros meios. A literatura não pode ser considerada parte dos instrumentos e recursos de auto-representação e nem de representação do mundo entre a considerável população que forma seu público, indivíduos com vivência, passado ou identidade constituídas ou assentadas em valores e concepções características da realidade rural, tradicionalmente sempre estiveram afastado das letras, tidas como privilégios das elites. Este mesmo público é bastante heterogêneo, mas unificado pela representação simbólica e pelos mitos contidos nas narrativas presentes na música sertaneja tradicional. A música aí se faz, às vezes, de instrumento de registro, de relação com as histórias consideradas dignas de serem passadas adiante no tempo e no espaço, daquelas que possam ensinar, que tragam “lições de vida”, como costumam definir aqueles que fazem parte de seu público e da construção e representação do próprio passado. Esperamos de alguma forma, longe de definitiva, ainda mais se tratando de terreno tão inexplorado, contribuir para que tão abrangente e permanente construção musical possa ser mais compreendida assim como aqueles que com ela se identificam. 22 CAPÍTULO 1 - IMAGENS E INTERPRETAÇÕES DO SERTÃO 1.1 O sertão na história e literatura E ali estão com suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às tradições mais remotas, o seu sentimento religioso levado até o fanatismo, e o seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo de rimas de três séculos... Euclides da Cunha O intuito de delinear e apreender parte da história da música sertaneja tradicional, traz de forma implícita a necessidade de se utilizar as denominações “rural” e “urbano”. Na maior parte das vezes em que são empregadas, são posicionadas de forma oposta uma à outra e tem a imagem comum de lados contrários. Para nós, tal separação muitas vezes é impossível de ser feita, quanto mais avança o processo de urbanização que jamais consegue eliminar traços e tradições em geral que remetem ao “rural”. Avaliamos que antes de nos debruçarmos sobre a formação do gênero sertanejo e sua trajetória é de suma importância uma breve introdução ao capítulo que procure desvendar minimamente as concepções que trazem algumas das noções mais gerais e as de maior influência no debate historiográfico e literário brasileiro acerca das denominações em questão. Diversas são as análises que se ocupam de conceituar a realidade rural brasileira, buscando características comuns entre as regiões do vasto interior e baseadas em vivências distantes dos centros urbanos em permanente contato com a natureza em suas diversas formas de paisagem. O mito do “sertão” a ser desbravado sempre provocou fascínio no imaginário e na produção literária nacional e o homem habitante destas paragens foi objeto de análise de intelectuais que buscam encontrar os sentidos da nacionalidade brasileira, codificar, ordenar, sistematizar e até encontrar o que comumente se chama de a “identidade nacional”. Já a idéia de urbanidade desde algum tempo, principalmente a partir do século XIX e encontra-se intimamente relacionada com o conceito de modernidade (BERMAN, 23 1986), de movimento e mudança permanentes, fim de tradições, valores, avanço estrondoso da técnica, descrença, movimento de massas, cultura de massas, individualismo, hedonismo, juventude, esportes (SEVCENKO, 1992), liberação dos costumes e liberalismo, enfim, o triunfo do novo sobre o velho. Todos estes conceitos são associados, em diversos estudos que buscam compreender o mundo a partir do momento em que a cidades passam a ter mais importância social e política do que a tradicional sociabilidade rural, e à idéia de urbanidade e modernidade. O escritor Guimarães Rosa nos traz um olhar sobre o sertão, em certos aspectos inovador. Pode-se avaliar que em sua obra, apesar do caráter mítico permanente, ele deixa de ser exótico. Passa a ser, assim, palco onde há espaço para o desenvolvimento de toda sorte de dilemas humanos e reflexões, é o espaço onde se desenrola por excelência o drama, com conotações épicas, da formação e “civilização” do Brasil. Para ele “o sertão é o mundo”, “No sertão tem de tudo” (2001, p. 544), não pode ser definido ou apreendido, “Porque o sertão se sabe só por alto” (2001, p. 548). É o local ermo, belo e perigoso, a ser civilizado. Em Grande Sertão: Veredas que compreende o sul da Bahia, o interior de Minas Gerais e Goiás. “... Sertão aceita todos os nomes: aqui é os Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a caatinga” (2001, p. 506). Por estas terras campeia Riobaldo com seu exército de jagunços que buscam levar a “lei para o sertão”, dominado por bandos armados e regido pela lei do mais forte. O sertão não tem fim nessas andanças e quando se acha que o deixou para trás ele volta com mais força “...o sertão não chama ninguém às claras”. (2001, p. 538). Pode ser definido na obra de Guimarães Rosa como o ambiente onde a sociabilidade é organizada precariamente e onde reina a imprevisibilidade. O mais belo e o mais perigoso dos lugares. Neste ponto, pode-se filiar Rosa, literariamente, à visão introduzida pelo pioneiro historiador Capistrano de Abreu a respeito das características que ele considera fundamentais e essenciais para a formação do povo brasileiro, bem como para a compreensão do processo de construção nacional. Capistrano de Abreu parte da concepção de que só poderíamos formar uma verdadeira auto-imagem, uma idéia coerente do que somos a partir do momento em que nos desvencilhássemos do “estigma” litorâneo. O país não poderia ser definido moral e culturalmente a partir do ambiente eclético, heterogêneo e indefinível que se encontra à beira-mar. Para o autor, a chave para adentrarmos as características nacionais só será encontrada nas 24 estradas que levam ao interior do país. Somente neste ambiente distante das diversas influências metropolitanas e estrangeiras em geral, com a rigidez e proximidade do controle português é que se pode encontrar o brasileiro digno desta definição. Enquanto diversas das análises que se ocupam em compreender as características culturais e sociais do povo brasileiro, partindo justamente do ponto a que se opõe Capistrano, enxergando apenas a cultura urbana litorânea, a contribuição do elemento negro e da escravidão na formação do país, ele inverte tal perspectiva o que lhe rende um acirrado debate com Silvio Romero. Influenciado por Spencer e pelo determinismo geográfico, destacou, embora não em termos absolutos como muitos o fizeram, a influência do meio e da raça na formação do brasileiro. Para ele a gênese étnica fundamental deste é baseada nos troncos indígena e ibérico,5 que encontrará sua representação privilegiada no sertanejo, no caboclo, no caipira, no gaúcho, enfim no tipo vinculado à formação e conquista territorial e habitante das vastas regiões interioranas do Brasil. Acerca da relevância a que atribui aos indígenas na formação da identidade nacional e contrapondo-o ao negro a que Silvio Romero atribui o papel cultural fundamental, abaixo apenas da portuguesa, para formação do sentimento de nacionalidade e auto-imagem do brasileiro, afirma Capistrano: Parece que o povo sempre teve consciência deste fato. Nos contos populares, de que depois tratarei ligeiramente, o brasileiro é figurado no caboclo, nunca no negro ou no mulato. Na literatura tivemos o indianismo, não o negrismo ou mulatismo. Nos tempos da independência os nomes de família, jornais, e partidos eram tupis e não negros (ABREU, 1976, p. 118) É este tipo interiorano e mestiço que, segundo Capistrano de Abreu, forjará a identidade brasileira, o “sentir-se brasileiro”, a consciência nacional. Se oporá aos portugueses litorâneos em diversas passagens da história nacional e encontrará na figura mítica do bandeirante o fundamento da nacionalidade. São os primeiros, segundo Capistrano, a superar o sentimento de inferioridade característico dos brasileiros em relação aos portugueses e a buscarem a equiparação pelos grandes feitos épicos, e o desafio do sertão inexplorado (ABREU, 1976, p. 120). 5 “Minha tese é a seguinte: o que houver de diverso entre o brasileiro e o europeu, atribuo-o em máxima parte ao clima e ao indígena. Sem negar a ação do elemento africano, penso que ela é menor que a dos dois fatores, tomados isoladamente ou em conjunção.” (ABREU, 1976, p. 107) 25 Entre os olhares que se ocuparam em desvendar a alma nacional partindo da premissa de que ela poderia ser codificada se afastando do ambiente litorâneo tais como os citados acima, podemos incluir escritores como Euclides da Cunha, também jornalista e pesquisador, Érico Veríssimo, Raquel de Queiroz, José Lins do Rêgo. Eles trazem à luz uma realidade bem diversa daquela que localiza culturalmente o Brasil a partir de manifestações como o carnaval, a malandragem, o “jeitinho brasileiro”, enfim das características comumente atribuídas como típicas ao brasileiro e os verdadeiros símbolos do país em outros países. Já nas áreas afastadas das metrópoles que possuem influência significativa de culturas e valores ligados à realidade rural, seus moradores são descritos comumente em diversas obras acadêmicas e literárias como portadores de uma moral rígida e tem o trabalho estafante na conta de algo quase sagrado e mesmo purificador. Seu fervor religioso, de uma religiosidade também mestiça, muitas vezes beiraria ao fanatismo, como o caso do sertanejo nordestino descrito por Euclides da Cunha, que possui algumas características em suas crenças e mitos que podem facilmente ser estendidas para outras regiões interioranas. [...] E as suas crenças singulares traduzem essa aproximação violenta de tendências distintas. É desnecessário descrevê-las. As lendas arrepiadoras do caapora travesso e maldoso, atravessando célere, montado em caititu arisco, as chapadas desertas, nas noites misteriosas de luares claros: os sacis diabólicos, de barrete vermelho à cabeça assaltando o viandante retardatário, nas noites ázigas das sextas-feiras, de parceria com os lobisomens e mulas-sem-cabeça noctívagos; todos os mal-assombramentos, todas as tentações do maldito ou do diabo – esse trágico emissário dos rancores celestes em comissão na terra; as rezas dirigidas a S. Campeiro, canonizado in partibus, ao qual se acendem velas pelos campos, para que favoreça a descoberta de objetos perdidos; as benzeduras cabalísticas para curar os animais, para amassar e vender sezões: todas as visualidades, todas as aparições fantásticas, todas as profecias esdrúxulas de messias insanos; e as romarias piedosas; e as missões; e as penitências... todas as manifestações complexas de religiosidade indefinida são explicáveis (CUNHA, [197-], p. 110). O objetivo da breve explanação acima acerca de diferentes imagens utilizadas para descrever culturalmente o Brasil passa ao largo de se filiar plenamente a uma delas. Primeiramente porque descrevem características de localidades distintas do país, embora as aproximações culturais, a despeito das diferenças geográficas também sejam inegáveis. Mas o que fica claro, e nesse ponto caro ao eixo temático da presente pesquisa, é que, primeiramente, pode-se aglutinar essa disputa pela identidade nacional, inclusive na esfera musical em dois campos 26 bem definidos. De um lado o Brasil do litoral, com suas características representativas típicas como a liberação dos costumes, o mito da pouca afeição ao trabalho, o arquétipo do “malandro”, o “jeitinho brasileiro”. De outro lado o Brasil do interior, entendido comumente como afastado do litoral, pois abrange metrópoles do porte de uma São Paulo. Estes tendem a olhar os litorâneos como preguiçosos. Esta tensão muitas vezes é definida ou pautada nos termos “rural” e “urbano”, o primeiro referente ao interior e o litoral invariavelmente, talvez por sua efervescência e contato com lugares dos mais distintos, em termos mundiais, ao segundo. Este quadro mais amplo acerca da identidade cultural nacional se fez necessário para definir melhor o universo de representação da música sertaneja. Se a tendência que olha o Brasil “de dentro” esta equivocada, ou é insuficiente, é ela que pautará o imaginário, o universo simbólico da música sertaneja tradicional. E através desse mesmo imaginário, ela congregará características e culturas distintas de diversas localizações geográficas que têm em comum entre si a tradição da pecuária e da pequena agricultura. Se analisarmos a questão de forma mais geral é fácil identificar que, ao menos no campo cultural, ou mais especificamente ainda musical, as concepções que definem “o brasileiro” a partir do litoral foram relativamente vitoriosas. Na temática em questão é notório o distanciamento que a denominada MPB, atualmente símbolo maior da música nacional entre as elites culturais, possui em relação à música sertaneja, majoritariamente vista de modo pejorativo. Se a música sertaneja tradicional, em determinados momentos, assimilou características, principalmente estéticas da música brasileira em geral, os artistas mais intelectualizados que buscariam definir musicalmente a música brasileira passaram ao largo de uma das expressões musicais mais populares, talvez a mais popular em termos quantitativos, apoiada e realizada a partir da estrutura propiciada pelos avanços tecnológicos que permitirão a difusão musical em proporções incrivelmente superiores às anteriores. 1.2 Ruralidade e sonoridades na metrópole paulista A chamada “cultura caipira”, de fato, não é objeto de muitas análises a despeito de ser extremamente heterogênea e avessa a formas cristalizadas de 27 enquadramento, tendo como uma de suas principais características exatamente a modificação e adaptação à diversas situações drasticamente diferentes como estratégia justamente de conservação. Por trás de diversas mudanças estéticas, de forma, de grau de elaboração, de conteúdo e ambiente onde se desenvolvem suas temáticas que encontram na música sua expressão privilegiada, inclusive pela abrangência, há sempre um núcleo que concentra uma determinada gama de concepções, visões de mundo, estruturas de sentimento, (WILLIANS, 1989), e até gosto estético. São respaldados por determinados valores que relativamente são conservados com o passar dos anos, alheias a diversos movimentos e inovações conceituais e paradigmáticos, tão recorrentes ao longo de todo século XX, tempo de surgimento e desenvolvimento da “música caipira” como gênero musical distinto e relativamente sem contato com os demais no que diz respeito à incorporação de elementos que mudem a estrutura sonora básica. A relação com os demais gêneros, quando ocorre, é mais por uma questão de adaptação estética, uma troca de roupagem adaptando-se a novas formas que são assentadas sobre a sua estrutura tradicional, ritmos, acordes, temáticas que, quando ocorre, atinge principalmente instrumentos e forma de cantar. Então, a genericamente denominada “cultura caipira” passará por grande expansão com o surgimento de um gênero que tinha como característica fundamental assimilar elementos estéticos, rítmicos, conceituais e culturais em geral, da vivência do imenso contingente populacional vinculada a uma realidade bem diversa em vários aspectos como quotidiano, trabalho, valores, paisagem, entre outros, da realidade em construção e franca ascensão do espaço urbano metropolitano. Não se pode compreender a formação do gênero musical denominado caipira ou sertanejo sem nos voltarmos para a São Paulo das décadas de 1920 e 1930. Esse é um tempo de industrialização na cidade e é também um espaço de grande efervescência cultural, cosmopolitismo e modernização. [...] Os modos de viver e conviver em São Paulo, de maneira geral, foram marcados, nesses anos por tais mudanças modernizadoras, apesar da permanência de resquícios do universo rural. Nos anos 20, novas aspirações, inovações e perspectivas vinculadas aos aspectos modernos de viver agitaram a vida cultural do país e da capital paulista. O universo cultural acompanhou e colaborou com os ritmos das mudanças, criando novos padrões e identidades culturais específicas da “nova” metrópole. 28 Apesar da consagração e hegemonia de algumas manifestações culturais, como as de 1922, a cidade recolhia, impunha, transformava, recriava, esquecia, marginalizava e criava no seu dia-a-dia um turbilhão de movimentos sociais e culturais vinculado ao novo universo urbano que agitava São Paulo (MORAES, 2000, p. 18). É notória a perspectiva que mostra a cidade de São Paulo envolvida em uma densa atmosfera de desenvolvimento tecnológico, inovações culturais, efervescência política, influência direta de hábitos e teorias que provêm dos países mais adiantados e mesmo definidores dos aspectos considerados componentes da modernidade. Nicolau Sevcenko define o ambiente da capital paulista nas primeiras décadas do século XX permeado de sonhos de grandeza: No caso de São Paulo, o problema era obviamente muito mais delicado. É em torno de 1919-20 que – refletindo sobre o grande crescimento industrial do período de guerra, as estatísticas do último censo demográfico- econômico, a iminência de se tornar um dos palcos da celebração do centenário da Independência e o complexo conjunto de reformas urbanas desenvolvidos nesse momento – a imprensa suscita e repercute, ao mesmo tempo, a imagem de São Paulo como uma das grandes metrópoles do mundo, com um ritmo prodigioso de crescimento e potencialidades incalculáveis de progressão futura. O Rio de Janeiro e Buenos Aires podiam ser provisoriamente maiores, mas o compasso do crescimento e a magnitude dos recursos da capital paulista eram tais, que seu triunfo sobre as duas rivais mais próximas era inapelável e apontava para destinos ainda mais altos. Verifica-se, pois, o início de uma tomada de consciência tanto de um sentido de identidade, quanto de uma manifestação de destino da cidade. Cortada do passado pelo seu modo de desenvolvimento abrupto, São Paulo, tal como era figurada pelos seus cronistas, aparecia insistentemente refletida num improvável espelho do futuro (1992, p. 36). Pode-se inferir que a almejada “ruptura com o passado” não poderia ser plenamente bem sucedida em seu intento. É fundamental para compreensão da formação do gênero musical que nos propusemos a analisar e também do próprio processo de formação da cidade de São Paulo, que voltemos nossos olhos para a cultura rural neste quadro que nos pinta Sevcenko. Até que ponto ela também está presente neste ritmo cada vez mais veloz e em direção a diversos caminhos diferentes? Terá influência significativa? O próprio Sevcenko, embora concentre sua análise nos aspectos modernizantes, responderá que sim. Em meio a essa fabulosa incidência de expressões artísticas internacionais e modernas, seria igualmente importante lembrar, em paralelo, o esforço sistemático e concentrado pelo desenvolvimento de pesquisas sobre cultura popular sertaneja e iniciativas pela instauração de uma arte que fosse imbuída de um padrão de identidade concebido como autenticamente brasileiro. Essa busca pelo popular, o tradicional, o local e o histórico não era 29 tida como menos moderna, indicando, muito ao contrário, uma nova atitude de desprezo pelo europeísmo embevecido convencional e um empenho para forjar uma consciência soberana, nutrida em raízes próprias, ciente de sua originalidade virente e confiante num destino de expressão superior (1992, p. 237). De fato as contínuas mudanças e inovações conceituais que causarão impacto nos aspectos cultural e político da capital paulista não demorarão, como será apontado mais à frente de forma mais detalhada, a voltarem seus olhos para as tradições, para a vivência e a cultura rural e reinventá-las (HOBSBAWN, RANGER, 1984). Mas também é notório que grandes contingentes populacionais estavam relativamente à margem tanto das modernizações quanto das representações da cultura rural da atmosfera urbana da qual estes mesmos contingentes eram parte, ou tinham a referência rural e tradicionalista como elemento fundamental de suas identidades. Não é difícil chegar à conclusão de que a chamada “cultura caipira” estava presente, e bastante latente, inserida no turbilhão de pretensões modernizantes e também, de certa forma, paradoxalmente, alheia a ele.6 Setores consideráveis da população, principalmente a imensa massa iletrada pertencente às classes menos abastadas compartilhavam de valores e visões de mundo em geral, vinculados à vivência de muitas gerações no ambiente rural em que as regras de conduta sempre foram muito bem definidas, tudo regido por uma religiosidade e códigos de valores compartilhados e com grande poder de nortear suas vidas. Essas pessoas abundavam, mesmo na São Paulo que se moderniza, mas traziam consigo concepções, e mentalidade em geral, que estavam consideravelmente distantes e em contradição com os ideais de progresso, quebra de tradições e ruptura com o passado. É notório também que a cidade de São Paulo durante as primeiras décadas do século XX esteve permeada por chácaras, pequenas propriedades rurais, com galinhas e porcos andando pelas ruas dos bairros populares e/ou periféricos. Se levarmos em conta que o transporte, principalmente na primeira metade do século XX, mesmo com o impacto do automóvel e do bonde, era viabilizado essencialmente, para maior parte da população, em cavalos e muares 6 "[...] Além da sua heterogeneidade nacional, étnica, social, na cidade conviviam simultaneamente temporalidades múltiplas e diversas, em alguns casos incomunicáveis na sua estranheza recíproca, em outros mutuamente hostis, na maior parte se ajuizando equivocadamente umas sobre as outras.” (SEVCENKO, 1992, p. 41). 30 usados como montaria ou tração, imagina-se facilmente o espaço e a estrutura para acomodá-los e alimentá-los: pastos, terrenos com capim, quintais adaptados, entre outros. Hortas, vacas de leite, mesmo que apenas uma, para o consumo familiar, não poderiam ser exceções. Diante desta paisagem, de tantos hábitos, trabalhos e reproduções, mesmo que minimizadas, da vida rural, conclui-se que a “cultura do interior”, visões de mundo “arcaicas” e o sentimento de identidade baseado na ruralidade fazem parte, dão a dimensão e aproximam-se da explicação do sucesso e popularidade do gênero musical que nasce na metrópole baseado numa variada gama de elementos que remete à diversas facetas desta mesma ruralidade. Além de antigos habitantes a cidade já sofria ainda nas primeiras décadas do século XX uma corrente migratória também de indivíduos oriundos das áreas rurais do país, que buscavam condições mais promissoras de vida, ou haviam sido substituídos pela mão-de-obra de imigrantes europeus ou perdido suas terras em virtude da expansão das fazendas pelo interior paulista, ou simplesmente avaliado que a capital poderia oferecer mais oportunidades. Nicolau Sevcenko cita brevemente tal situação em sua obra dedicada a investigar o processo de modernização na cidade de São Paulo. [...] Aos caipiras, acuados e pressionados pelo avanço das fazendas, a demanda crescente da cidade poderia oferecer uma alternativa de pequenos serviços e vendas, muito limitados, porém, dados os custos implicados pela concorrência dos “chacareiros” imigrantes, pelos controles oficiais do acesso aos mercados e pela ação inelutável dos açambarcadores (1992, p. 39). A denominação “música caipira” ou “música sertaneja” e o seu surgimento enquanto gênero musical, deve ser atribuído ao resultado de uma construção tipicamente urbana, ou seja, antes de estar no ambiente da capital paulista a música de inspiração rural, primeiramente as recolhidas no interior do estado de São Paulo, não se constituíam em um gênero musical, e muito menos a cultura musical dos habitantes do meio rural era denominada por eles de música caipira ou sertaneja, era simplesmente a sua expressão musical. A partir do momento em que estas canções são gravadas em discos e apresentadas em rádio pela primeira vez, embora nesse estágio possam ser encaradas muito mais como reproduções, do que produções, originárias da realidade rural, elas já passam a ter uma outra conotação, passaram a ser vistas de uma outra forma, pois se trata de um “novo” gênero musical e se constitui no cenário urbano, assim como o samba, as marchinhas, etc. 31 Cada gênero é caracterizado por um conjunto de relações entre seus aspectos formais [harmonia, ritmo, performance], seus registros temáticos [letra] e seus usos sociais possíveis [“é preciso que essa ordem seja reconhecida pela comunidade criando um determinado horizonte de expectativas suscitando determinados comportamentos de produção e de recepção“ p.15] (MATOS, 2004, p. 16). Obviamente não estamos com isso, afirmando que a música só possa existir plenamente tendo a realidade urbana como parâmetro, mas que esta, marcadamente a partir da radiodifusão e desenvolvimento da indústria fonográfica, traz consigo uma variedade de estilos, sonoridades e ritmos que jamais poderiam ser tão heterogêneos e conviverem tão próximos. Pode remeter a tão distintos grupos, países, culturas e sentimentos a partir de sua incorporação pelo ambiente urbano, bem como ao desenvolvimento tecnológico que passou a ser comum a este. Abre-se um leque de possibilidades de escolha. Isto passa a ser cada vez mais racionalizado no ambiente urbano e a indústria de difusão musical, a fonográfica e as rádios, começam a trabalhar com a classificação por estilos, por gêneros, resultado de uma realidade onde as músicas não possuem variações apenas dentro das semelhanças - como o caso da música rural quando adentra o meio urbano, com ritmos variados - mas sim da convivência e do contato com uma variada gama de formas musicais que muitas vezes diferem na maior parte dos aspectos. São diferenciais que caracterizam a música urbana a partir do surgimento da indústria fonográfica e do rádio. Quanto à definição “gênero” para referência à música sertaneja tradicional, difere da habitual em se tratando da comumente utilizada pela indústria fonográfica, que tem por característica equiparar “gênero” ao ritmo da música. A batida é de fato, na música popular brasileira, um dos principais elementos pelos quais os ouvintes reconhecem os gêneros. Neste país, e certamente em outros também quando escutamos uma canção, a melodia, a letra ou o estilo do cantor permitem classifica-la num gênero dado. Mas antes mesmo que tudo isso chegue a nossos ouvidos, tal classificação já terá ocorrido graças a batida, que precedendo o canto, nos fez mergulhar no sentido da canção e a ela literalmente deu o tom (SANDRONI, 2001, p. 14). Em relação à música sertaneja tradicional, e neste ponto ela se assemelha ao country, o gênero que designa a música de influência rural norte- americana, é baseada genericamente na música rural de regiões do sudeste e centro-sul do Brasil, o que faz com que o significado da própria terminologia “gênero” 32 tenha um sentido mais abrangente do que comumente se atribui, pois embora tenha o ritmo como parâmetro a sua definição enquanto gênero, em sua unicidade se refere a uma gama de ritmos que lhe são característicos. Trata-se de uma aglutinação de diversos ritmos e estilos tradicionais reconhecíveis ao seu público. É regra entre as tradicionais duplas sertanejas, nas gravações de seus discos, que estes tragam a referência do ritmo, popularmente chamado entre as duplas de “batida”, a que pertence a canção, logo na frente do título. O gênero, no caso, terá então em seu interior diversos ritmos tradicionais tais como “cateretê”, “cururu”, “toada”, com o tempo incorporará outros vinculados à região centro-sul como a “guarânia” e o “rasqueado”. Contudo não se pode perder de vista as limitações, que nas primeiras décadas do século XX, estes mesmos meios de difusão, por sua conotação embrionária e pelo distanciamento de boa parte da população em relação aos avanços tecnológicos, possuíam no que diz respeito a atingir grandes contingentes populacionais (DUARTE, 2000). Veremos também, mais adiante, que no caso específico do rádio as limitações logo seriam relativamente superadas principalmente pelo hábito difundido em algumas localidades na São Paulo da época, de se instalar caixas de som em praças e avenidas tornando o acesso mais abrangente e de certo modo independente da capacidade econômica. De certo modo porque em muitos casos a segregação ocorre por regiões da cidade, bem como a instalação de tais benefícios e outros serviços municipais, como os de saneamento e que tendiam a priorizar locais onde as condições de vida não fossem tão precárias (SEVCENKO, 1992, p. 128-129). 1.2.1 Interpretações Acerca do Surgimento e Aspectos Gerais da Música Sertaneja Antes de buscarmos o ambiente e os aspectos do desenvolvimento da música sertaneja tradicional é preciso que nos voltemos para as interpretações acerca de seu surgimento e características mais difundidas e aceitas, muitas delas formando uma espécie de “senso comum” no meio acadêmico. Para tanto, selecionamos duas abordagens que se destacam primeiramente pelo seu 33 pioneirismo, já que se debruçaram sobre a temática em questão, que tivera, até então, sido solenemente ignorada nas pesquisas referentes a uma sempre almejada cultura nacional. Tais trabalhos exerceriam grande influência em outros posteriores que também não seriam muitos. Os trabalhos mencionados como pioneiros e difusores dos parâmetros arraigados na imagem que se faz da música caipira/sertaneja são de autoria de Waldenyr Caldas apoiado nas reflexões e crítica cultural de Theodor Adorno e José de Souza Martins ligado à tradição marxista. Ambas as filiações teóricas levaram a conclusões que são convergentes em muitos aspectos em seus estudos da música caipira. De um lado, os escritos de Adorno acerca das obras de arte no capitalismo e especificamente da produção musical tendem a considerar a obra de arte como simples fetiche, emprestando de Marx categorias por ele utilizadas para definir a condição da mercadoria no desenvolvimento da indústria. Nesta apropriação Adorno faz uma espécie de transferência e chega a conclusão de que o avanço da tecnologia vem tirar da arte seu valor intrínseco, ela perderia suas características essenciais para se tornar mero produto de consumo. Adorno desenvolveria, no sentido da apropriação dos conceitos tradicionais marxistas sobre valor da mercadoria, as noções de “indústria cultural” e “cultura de massas”, que podem ser encontradas na obra Dialética do Esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). O modo de produção capitalista teria sobre a produção artística o mesmo efeito que Marx aponta na produção dos bens de consumo comuns, a na teoria do valor dessesbens, expostas de forma mais minuciosas no primeiro volume de O Capital (1985). Esta última teria como uma de suas funções essenciais grandes contingentes populacionais alienados, anestesiados para as contradições inerentes ao sistema capitalista. Depois das construções teóricas de Adorno, teóricos marxistas tais como Lukács e Gramsci e correntes socialistas atentariam cada vez mais ao viés cultural, não somente o econômico, como fundamental para ação política transformadora. Daí a origem de uma longa tradição da crítica cultural, marxista ou não, que se empenha tanto em desconstruir teoricamente os valores culturais tradicionais como a criação artística típica do capitalismo. Para Adorno, por exemplo, o cinema e os ritmos musicais advindos da realidade urbana são alienantes e artificiais. O jazz seria sinônimo de anti-música e o cinema não passaria de uma indústria, de um desenvolvimento tecnológico que jamais poderia almejar o status de arte. 34 Após a breve digressão acerca das filiações teóricas dos dois autores pioneiros, na pesquisa do tema em questão, será abordado, em virtude dos objetivos do presente capítulo, suas razões para explicar o surgimento do gênero musical a que nos propomos analisar. Para os autores em questão, música caipira e música sertaneja são denominações com significados marcadamente distintos e até opostos em certo sentido. Música caipira para eles se refere à música do trabalhador rural vinculado ainda a uma economia dos mínimos vitais, nas características de uma sociabilidade denominada “bairro”. Antônio Cândido, no seu reconhecido estudo sociológico sobre as unidades sociais tradicionais do modus vivendi caipira (1964) busca apreender este universo social, suas regras, tendências, continuidades e descontinuidades.7 A música caipira seria então aquela que emergiria destas comunidades rurais, que se tornam cada vez mais raras. Na abordagem dos dois autores, a música caipira teria como condição fundamental de existência a sua função social, neste estágio estando diretamente ligada aos rituais coletivos, religiosos ou profanos, dos bairros rurais. Sua condição e motivo de existência pode ser definido como mantimento e fortalecimento de laços sociais fortemente arraigados e cristalizados. Se estas formas musicais estão fora de seu “ambiente natural”, da sociabilidade rural, perderiam a sua razão de ser. Vejamos como Caldas se refere à música rural paulista antes e depois de seu processo de urbanização. A música caipira, após sua urbanização (música sertaneja), passa a exercer, quase que exclusivamente, o papel de instrumento da ideologia burguesa, desvinculando-se inteiramente de sua condição de elemento catalisador das relações sociais do campo. Ela, hoje, é apenas um produto a mais do consumo de massa do meio urbano, dirigido principalmente ao proletariado (CALDAS, 1979, p. 146). As abordagens referidas também se ocupam em procurar o contexto da inserção da música rural na realidade urbana e tendem a apontar apenas um único fator como o responsável por preparar esse terreno, definido a partir da “cultura da classe dominante” no caso de José de Souza Martins e o avanço tecnológico que dará bases para o advento da “cultura de massas”, para isso Waldenyr Caldas. Ambas as abordagens ignoram a relevância de outros fatores que 7[Mais à frente procuraremos demonstrar que a base social, estética e sonora da música sertaneja tradicional está relacionada ao universo de pequenos sitiantes, mais arraigada em outros tipos de sociabilidades, como a atividade pastoril e o modo de vida errante dos boiadeiros, ou o mundo dos colonos de grandes fazendas] 35 propiciam o surgimento e desenvolvimento do gênero em questão no espaço urbano, pois trata-se, como veremos adiante, de uma conjunção de fatores onde se destacam alguns. Através de José de Souza Martins, podemos observar a influência das velhas elites agrárias na difusão da chamada “cultura do interior” (MARTINS, 1975) em oposição ao crescimento do discurso modernizante do final da década de 1920, do processo de industrialização e da crescente visão que coloca estas tradicionais elites como representantes do atraso. Estas oligarquias agrárias, para manter privilégios, são obrigadas a se voltar e reconhecer as camadas baixas da população de sua realidade social como capazes e responsáveis pela construção de uma cultura, de portadores de determinada identidade que seria exaltada para propagar a grandeza, a nobreza e a honra do meio rural. Seria através de uma perspectiva conservadora que a cultura musical rural teria se difundido na realidade urbana.8 Mais à frente veremos como tal exaltação da ruralidade não se resume apenas a isso, mas abrange também um movimento mais amplo, como por exemplo, a exaltação das raízes paulistas como forma de justificar o desenvolvimento do estado bem como de se contrapor à avalanche estrangeira que caía, principalmente pela capital São Paulo. Mas José de Souza Martins dá demasiada importância para o papel representado por essas elites tradicionais na construção do gênero sertanejo, deixando implícito em sua abordagem que este seria o fator privilegiado para explicar seu surgimento e propagação na grande cidade. Para ele quando são expressas posições consideradas conservadoras elas são fruto de alienação, de reprodução das classes “subalternas” da ideologia e concepções dominantes e a contestação às formas dominantes, quando ocorre, se dá através da dissimulação dessa mesma concepção dominante, definida pelo autor como linguagem dissimulada (MARTINS, 1975, p. 158). O autor, em muito por sua formação marxista, relaciona o conservadorismo dos contingentes populacionais moradores ou oriundos do campo, expressos em sua linguagem e costumes, também como representação da dominação de classes, do poder destas elites rurais em relação a seus 8 “Não nos esqueçamos de que a própria repressão institucionalizada, política e policial, impedindo que a experiência do trabalhador se traduzisse (e se traduza) diretamente nas suas próprias elaborações culturais, forçava-o (e força-o) a exprimir-se no quadro de referência do conservadorismo tolerado e estimulado.” (MARTINS, 1975, p. 141). 36 “subalternos”. Tal concepção traz implícita em sua formulação, a idéia de que as classes subalternas são incapazes de participar, ou de julgar adequadamente quais são os valores e a cultura em que estão embasados. A mentalidade desses “subalternos” é permeada de influências que muitas vezes remete à Europa ibérica e medieval, tais como as visões que colocam os preceitos religiosos do catolicismo como metas, aí incluído o apreço à família, a abnegação, o tradicionalismo, o respeito reverencial à hierarquia, a divisão do trabalho rígida das mesmas unidades familiares, a negação do prazer como corruptor do homem e o sofrimento como o caminho da redenção e da purificação. Estes exemplos, entre outros, das visões de mundo comuns à sociabilidade rural e interiorana, ao menos como metas, encontram justamente entre os setores, ou grupos denominados “subalternos” um dos mais dispostos a mantê-los e a repelir as concepções culturais e os valores que emergiram na ascensão do capitalismo e que vêm questionar a velha estrutura de sentimentos. Quanto a essas mesmas concepções e valores modernizantes, encontram nas elites políticas mais influentes, econômica e culturalmente seus mais entusiastas propagadores, às vezes a despeito da resistência dos grupos sociais “não-letrados”. Em virtude da época em que foram desenvolvidas, ditadura militar, pode-se compreender alguns reducionismos e excessiva politização, que a influente análise de José de Souza Martins, tal qual a de Waldenyr Caldas incorreram. Tendem a olhar a música sertaneja preferencialmente através do filtro político/ideológico, aspectos estes que estão longe de se constituírem nas reflexões e temáticas recorrentes na música sertaneja tradicional, mas era prática corrente a politização da cultura entre a intelectualidade que se opunha ao governo militar vigente no país quando foram realizados os trabalhos em questão. Um exemplo ilustrativo é a análise que Martins desenvolve da toada Chico Mineiro. Composta na década de 1940 por Tonico e Francisco Ribeiro, ela atravessaria os anos e até os dias atuais, é uma das canções mais lembradas e das mais populares de toda história do gênero sertanejo, juntamente com O Menino da Porteira e Rei do Gado, também remete ao ambiente da pecuária. Após expor a letra, mostraremos alguns aspectos da análise de Martins, juntamente com algumas considerações nossas, acerca desta que é também uma das músicas mais regravadas do gênero, ao longo do tempo. 37 Chico Mineiro (parte declamada) Cada vez que me "alembro" do amigo Chico Mineiro, das viagens que eu fazia era ele meu companheiro. Sinto uma tristeza, uma vontade de chorar, se "alembrando" daqueles tempos que não há mais de voltar. Apesar de ser patrão, eu tinha no coração o amigo Chico Mineiro, caboclo bom e decidido, na viola delorido e era peão dos boiadeiros. Hoje porém com tristeza recordando das proezas das viagens e motins, viajamos mais de dez anos, vendendo boiada e comprando por esse rincão sem-fim. Mas porém, chegou o dia que o Chico apartou-se de mim. (parte cantada) Fizemo a urtima viagem Foi lá pro sertão de Goiás. Fui eu e o Chico Mineiro também foi um capataz. Viajemo muitos dia pra chega em Ouro Fino aonde nóis passemo a noite numa festa do Divino. A festa tava tão boa mas ante não tivesse ido o Chico foi baleado por um home desconhecido. Larguei de compra boiada. Mataram meu cumpanheiro. Acabou o som da viola, acabou seu Chico Mineiro. Despoi daquela tragédia fiquei mais aborecido. Não sabia da nossa amizade. Porque nós dois era unido. Quando vi seu documento me cortou meu coração vim sabê que o Chico Mineiro era meu ligítimo irmão. Fonte: (TONICO; TINOCO., 1968) Vejamos como autor de Capitalismo e Tradicionalismo se refere à narrativa da canção. 38 O aspecto dramático não se encontra na morte do empregado Chico e sim no fato de que uma relação sagrada (ao mesmo tempo natural e sobrenatural), como a relação de irmãos (“havia algo que unia os dois”), fora encoberta, velada, pela relação patrão-empregado. Uma relação que não podia deixar de unir (a de irmãos) havia sido subjugada por uma relação que essencialmente separa e opõe (a de patrão/empregado). Em outras palavras Chico Mineiro não é o principal, nem a sua morte, e sim a relação consangüínea posta em perigo de não ser reconhecida devido à preeminência do vínculo de emprego. (MARTINS, 1975, p. 160) De fato, na parte declamada, encontramos a ressalva: “apesar de ser patrão eu tinha no coração o amigo Chico Mineiro”, mas não pode ser o suficiente para concluir que se trata de um sentimento, inconsciente talvez, de contestação social, mesmo que dissimulado. Na canção em questão está nítido que no centro da narrativa estão dois personagens boiadeiros que pelas agruras da vida e do destino não tinham conhecimento de que eram irmãos. Em nenhum momento encontramos a sugestão de que tal relação fora encoberta, camuflada pela relação patrão e empregado, que na verdade por obra do destino, essa sim uma idéia característica no gênero, fez com que irmãos separados na infância pudessem estabelecer laços de amizade, mesmo inconscientes dos laços sangüíneos. No caso da pecuária, atividade produtiva central no contexto da canção, a proximidade entre patrões e empregados é bem diferenciada no aspecto como relatam diversas músicas do repertório da música sertaneja tradicional9. A ressalva inicial acerca do fato de a amizade existir mesmo diante do fato dos dois personagens possuírem relações de trabalho, esta sim, no geral é senso comum, implica o distanciamento das relações, tanto entre patrões quanto entre empregados. O que pretendemos afirmar é que tal prerrogativa não pode ser atribuída ao ressentimento de uma classe em relação à outra, mas muito mais, no caso específico da música sertaneja tradicional, à constatação de fatos, “leis da vida”. Vejamos a conclusão do autor: A música sertaneja documenta um modo de dizer as coisas profundamente marcado pela repressão de classe. Esse modo de dizer refere-se a uma linguagem simultaneamente do “é” e do “não é”. A incorporação da música sertaneja por certos grupos sociais define a dissimulação como atitude de classe, como linguagem do subalterno. Isso quer dizer que a linguagem das classes dominantes não transmigra simplesmente para o universo do trabalhador, mas o faz redefinida, no conteúdo e na forma, incorporando inevitavelmente a tensão que permeia as relações de classe. Fá-lo também retendo a dominação de umas classes sobre as outras. Nesse plano a alienação do trabalhador é simultânea e necessariamente expressão da 9 [Conferir dois exemplos em Anexos: Travessia do Araguaia e Arreio de Prata.] 39 recusa objetiva da alienação e da situação que a ela corresponde. (MARTINS, 1975, p.161) Em toda a trajetória do gênero, embora não seja das temáticas mais recorrentes, podemos selecionar diversas canções que tratam de tensões sociais, especificamente dos desmandos de patrões em relação a seus empregados ou de senhores em relação aos subordinados, meeiros, colonos, escravos, entre outros, mas elas sempre possuem o tom de denúncia não às relações sociais, mas a injustiças, quebra de acordos e tratamento desumano. Estes acontecimentos são encarados como “quebra de regra”, na maior parte das vezes resultantes de maldades intrínsecas ao indivíduo que na circunstância estava em posição de poder. A proposta e o sentido de tais reflexões, na música sertaneja tradicional, têm na maior parte das vezes o intuito de restauração de valores perdidos, clamando por um passado mítico onde os homens tinham mais “coração” e faziam questão de “cumprir com sua palavra”, e de condutas individuais chamadas a assumirem responsabilidades em relação aos que estão a sua volta na condição de subordinado. Na interpretação que fazemos cabe deixar claro que a luta de classes como elemento, às vezes até inconsciente, não pode de forma alguma ser considerada como uma constante ou uma característica marcante da música sertaneja tradicional. Quanto a isso, pode-se afirmar até o contrário. Mesmo em canções onde há forte tensão entre homens localizados em posições diferentes na produção social, possuidores e não possuidores de meios de produção como definem diversas concepções marxistas, estas mesmas tensões são demonstradas como fruto da “má índole” do indivíduo que está no “lado mais forte”. Encontramos no gênero inúmeras canções que vão se referir a empregados espoliados por seus patrões, homens de “pouca posição” enfrentando seus senhores ou amargurando uma vida de labuta em troca de nada, mas nunca se questionará a validade ou não da existência das diferentes classes sociais. Na música sertaneja tradicional o que sempre está em destaque, o que sempre se procura ressaltar é, pois, a postura individual de homens e mulheres frente a situações difíceis, trágicas, violentas, enquanto estão sujeitos aos desígnios do “destino”. É uma constante, situações onde os indivíduos se deparam com essas contingências causadas por influência da natureza, secas, cheias, doenças que atacam rebanhos, animais ferozes, bem como por patrões e senhores cruéis. O problema nunca é a posição social, o poder, mas 40 sim não utilizá-lo com sabedoria e bondade aos que a ele estão submetidos. Somente aí se entende tanto a revolta resignada tão característica, bem como o sofrimento sem demonstração e sem grandes arroubos dramáticos. São na maior parte das vezes aceitos como contingências da vida. A música sertaneja não se propõe a questionar a ordem social no sentido de eliminar hierarquias ou elites sociais. A característica fundamental da música sertaneja é também de crítica social, mas ela é direcionada ao advento da modernidade, à quebra de valores tradicionais, ao fim do poder político e cultural da religião, da família e à relativização moral que enxerga no cenário em que se desenrola a história da música sertaneja tradicional. 1.2.2 Influências para o Surgimento do Gênero Sertanejo Todavia podemos apontar uma, entre as influências da construção do estilo “sertanejo” que, embora ainda não seja decisiva, traz em seu bojo bases ideológicas para a sua relativa aceitação, pelo menos inicial, por um público mais intelectualizado. Ela é em grande medida oposta à anterior. A difusão de idéias modernistas acompanhadas da preocupação em se desvendar “as raízes” da cultura brasileira, da construção de uma identidade nacional através da busca pela “cultura do povo”. Mário de Andrade, especialmente, voltou suas atenções para busca teórica do que seria a música brasileira e de como deveria ser a partir da elaboração de um projeto em que se pudesse unir o erudito com o popular. Mas a despeito de suas intenções, no que diz respeito à música rural, tinha uma visão onde ela aparecia como uma manifestação cristalizada no tempo, preservada e imutável. É nesse tom que se refere às primeiras gravações, consideradas inauguradoras do gênero sertanejo. Mas nota-se em suas explanações o grande apreço que tem em relação tanto à música rural nordestina quanto da região central, na verdade neste caso, referindo-se às primeiras gravações do gênero sertanejo tradicional. Tanto a moda (de viola) quanto a toada, do “centro” são estilos emblemáticos do gênero sertanejo que deram origens a músicas de grande popularidade. 41 [...] as milhores (sic) manifestações da canção brasileira são de origem rural ( L. Gallet, “Melodias Populares Brasileiras” 12 documentos harmonizados, ed. Chiarato, S. Paulo). Das várias regiões climáticas do país, as que milhor suberam (sic) caracterizar a canção nacional foram a zona nordestina, criadora do Romance e da Embolada, e a central criadora da Moda e da Toada. Também no Rio Grande do Sul, onde a influência espanhola é mais sensível, a canção brasileira tem manifestações interessantes (Ernani Braga, “Prenda Minha” ed. Recordi). No meio do país, na chamada zona caipira, a Moda, geralmente cantada a duas vozes fazendo falsobordão em sextas ou terças, parece conservar firme influência indígena. É uma das manifestações mais curiosas da nossa musicalidade popular “disco Victor n° 33297-B e 33395-B; discos Columbia 20021-B e 20006-B, sendo que este último disco tem a originalidade de reproduzir, numa das suas faces, alguns cantos de galináceos selvagens do Brasil). Aproveitada pelos nossos músicos, a Toada, tem dado uma das mais belas manifestações da música brasileira (ANDRADE, 1976, p. 23). Quanto ao modernismo em geral, Mário de Andrade descreve-o como um movimento que tem como característica chave a destruição, de parâmetro e concepções tradicionais ou elitistas. Paradoxalmente o movimento também teve como característica a busca de tradições populares bem como conotações elitistas, como declara Mário de Andrade, pois as expressões do modernismo, muitas por sua conotação vanguardista eram voltadas, mesmo que sem o intuito, a uma elite intelectual e artística. Mário de Andrade reflete, não sem certa amargura, o quão distante os modernistas ficaram de suas intenções e também o quanto acabaram reproduzindo muitas vezes aquilo que se propunham a enfrentar. Não só importávamos técnicas e estéticas, como só a importávamos depois de certa estabilização na Europa, e a maioria das vezes já academizadas. Era ainda um completo fenômeno de colônia, imposto pela nossa escravização econômico-social. Pior que isso: esse espírito acadêmico não tendia para nenhuma libertação e para uma expressão própria (ANDRADE, 1965, 249). Para Mário, o modernismo acabou por importar, em sua busca pela cultura nacional, os conceitos artísticos e iconoclastas europeus. Mas é inegável ao menos, que a difusão das idéias modernistas e a Semana de Arte Moderna10 criaram um espaço propício para a busca e difusão da “autêntica música brasileira”, e da busca do Brasil do interior onde se insere a música interiorana e rural. Em suma, o modernismo brasileiro é um fator preponderante naquilo que diz respeito à busca do país por se conhecer, desvendar-se e por buscar qual é a sua tradição popular, embora suas realizações raramente, como pelo viés musical, tenham se 10 “No clima modernista e ufanista dos anos 20, a produção literária, musical e cênica inspirada no Brasil rural vingava sem resistência em São Paulo.” (NEPOMUCENO,1999, p.103) 42 tornado também populares, como almejavam. Mas contribuiu para a formação de uma atmosfera propícia para as manifestações populares consideradas “autênticas”, adjetivo que logo seria desvinculado da música sertaneja que se formava. Vinci de Moraes descreve rapidamente o ambiente musical da época. No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, os debates sobre a relevância da cultura/música rural e seu papel marcante na construção de nossa “cultura nacional” ocuparam a maior parte de nossos intelectuais e artistas, sobretudo os modernistas. Discutidas, trabalhadas e reaproveitadas por inúmeros compositores populares e eruditos de perfil nacionalista, desde o início do século, elas eram encaradas como parte das mais “autênticas tradições folclóricas” e, portanto, expressões das mais puras referências da “cultura nacional” e do homem brasileiro (MORAES, 2000, p. 235). Uma das causas fundamentais para a formação e popularização do gênero sertanejo, que não foi percebida nos estudos apontados a não ser Waldenyr Caldas, mas que o vê justamente como fator de descaracterização, e que propiciou além de tudo as bases materiais para sua construção e popularização, pode ser atribuída ao grande desenvolvimento da indústria fonográfica e da radiodifusão que iriam influenciar tanto aspectos sociais, políticos, educativos, culturais e relacionados ao entretenimento e lazer. Nicolau Sevcenko nos dá a dimensão do ritmo frenético propiciado pelo desenvolvimento tecnológico que influenciará e modificará em muitos aspectos a própria percepção e função da música no ambiente ansioso por modernidade da metrópole paulista. Não foram só os salões, clubes e bailes pagos que vieram mudar a cena. Por trás deles estava a universalização da indústria fonográfica, com grande destaque das distribuidoras americanas. O ano de 1919 assinalou justamente a transição tecnológica no mercado do obtuso gramofone para a moderna vitrola: mais versátil, mais potente e sobretudo mais acessível. “A mais importante revelação da época!!!”, anuncia com três exclamações de acento rítmico e comercial da Victor Talking Machine Co.; e acrescenta: “Todos podem e devem possuir uma vitrola [...]. Aceitamos seu gramofone de qualquer marca como parte do pagamento”. Apesar da técnica moderna e agressiva de promoção, o fato é que nem todos podiam adquirir uma vitrola. Mas aos grupos, em sociedade, em clubes, o acesso era natural e a rentabilidade estupenda. Por isso se o gramofone estivera associado com as audições privadas, no lar, em família, de música erudita ou óperas, a vitrola se oferecia para audições públicas de jovens excitados com o frenesi de bandas estridentes, que é aliás o que passa a predominar no mercado de discos, como informa a propaganda da Casa Murano (SEVCENKO, 1992, p. 90). Os avanços tecnológicos ajudarão também a popularizar, tornar mais abrangente a difusão musical e de estilos igualmente mais populares. Não é difícil 43 enxergar nos aspectos descritos acima um cenário bastante propício à formação do gênero sertanejo. Outro fator importante a ser lembrado é o poder da influência norte-americana em todas estas modificações que irão agir inclusive nas preferências musicais, principalmente dos jovens, bem como ao caráter mais popular, propenso a atingir grandes contingentes, que destoa de forma drástica das preferências musicais anteriores, eruditas e reservadas, dos setores sociais, por exemplo, que possuíam o aparelho de gramofone. A radiodifusão, a princípio mero veículo e atividade de lazer de uma restrita elite, mas gradativamente vai sendo difundido e popularizado. É importante ressaltar que segundo Vinci de Moraes esta elitilização da radiodifusão logo foi relativizada, ainda mais se levarmos em conta o hábito de se ouvir coletivamente os programas das rádios. Seu papel seria ainda não ser uma forma de entretenimento apenas individual, ou para os poucos de uma casa, mas também coletivo. Era ouvido quando pouco, pela família ou grupo de amigos, e geralmente em praças, festas entre outros eventos característicos pelas aglomerações. Em muitos locais públicos da capital paulista haviam alto-falantes instalados a transmitiram programas de rádio. Além disso, ainda segundo Vinci, os agentes e difusores dessa nova forma de comunicação e entretenimento, composta de membros de uma elite intelectual, letrada, logo se imbuíram de uma “missão civilizadora” que, apoiada no novo meio e nas potencialidades que oferecia de abrangência, poderia facilmente difundir valores, concepções e hábitos pré-planejados. Além do amadorismo dos primeiros tempos, a radiodifusão deve muito de sua existência a pequenos grupos de pessoas reunidas muito mais por motivos que não eram diretamente ligados ao desenvolvimento mesmo da radiodifusão, mas sim aos já mencionados projetos civilizatórios que almejavam levar a “civilidade” até o povo. Essa meta abrangia a difusão de hábitos de higiene doméstica, gosto cultural considerado mais evoluído, com o intuito de popularizar a chamada “alta cultura”. Os primeiros decretos de regulação e ordenação da atividade, o primeiro em 1924 e o segundo, que revia o primeiro, de 1931, deixam claro a concepção que enxerga a radiodifusão como um meio para avançar na educação do povo. É sintomático que diversas das emissoras fundadas no período traziam em seu nome o adjetivo “educadora” (MORAES, 2000, p. 49). 44 A partir desta perspectiva pode-se compreender o processo de desenvolvimento das rádios em São Paulo como vinculado prematuramente com objetivos de atingir grandes contingentes populacionais, “o povo”, embora tal objetivo tivesse restrições consideráveis. Esta nova tecnologia teria sido apropriada por uma elite intelectual que não a restringiria a si, mas dirigiria esse novo recurso como forma de propaganda política e difusão de valores e normas de comportamento considerados evolutivos, “civilizatórios”; para tanto, se utilizando do lazer, da música, da cultura em geral como pontes para a difusão das concepções que queriam disseminar. A propaganda política também tinha na radiodifusão um veículo de grande eficácia tanto nas sublevações de militares quanto na revolta liberal de 1932. [...] A radiodifusão, que começava a participar do cotidiano da cidade, não ficou distante deste quadro e constituiu uma relação íntima com rebelião e rebelados, aprofundando-se a tal ponto que, nas palavras do radialista Nicolau Tuma, as emissoras foram utilizadas “como autênticas armas de guerra”. Apesar das pretensões e características universalistas e de integração, a jovem radiodifusão paulistana reforçou aspectos políticos e culturais regionais e locais (MORAES, 2000, p. 48). A respeito da exaltação e utilização desta “cultura regional”, modas de viola e cateretês trouxeram mensagens de apoio aos tenentes revoltosos de 1924 e à causa constitucionalista em 1932. Com bravatas dirigidas aos adversários e lamentações pela intensidade da violência, a mais emblemática dentre essas músicas e de maior repercussão intitula-se Moda da Revolução.11 A música caipira neste cenário de conflito se mostraria como um dos gêneros mais populares do espaço dedicado à música nas rádios paulistas. Este aspecto marcante nos primórdios da música sertaneja será abordado de forma mais detalhada à frente. Diante dos incontáveis êxitos da “cultura sertaneja” na cidade, as emissoras de rádio começaram a organizar alguns programas voltados para artistas e público crescentes. No transcorrer da década de 1930, a maioria delas já mantinha em sua programação algum tipo de “sertanejo”, geralmente