RAFAEL QUEIROZ ALVES A GEOPOLÍTICA DA BELT AND ROAD INITIATIVE VISTA PELA TEORIA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: UM DEBATE ENTRE OS REALISMOS MORAL E OFENSIVO MARÍLIA 2023 2 RAFAEL QUEIROZ ALVES A GEOPOLÍTICA DA BELT AND ROAD INITIATIVE VISTA PELA TEORIA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: UM DEBATE ENTRE OS REALISMOS MORAL E OFENSIVO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília. Área de concentração: Ciências Sociais Orientador: Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos MARÍLIA 2023 3 4 Rafael Queiroz Alves A GEOPOLÍTICA DA BELT AND ROAD INITIATIVE VISTA PELA TEORIA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: UM DEBATE ENTRE OS REALISMOS MORAL E OFENSIVO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Área de concentração: Ciências Sociais Linha de pesquisa: Relações Internacionais e Desenvolvimento Banca Examinadora Prof. Dr. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos (Orientador) Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Profª. Dra. Érika Laurinda Amusquivar (Examinadora) Universidade de Brasília Prof. Dr. Marcos Cordeiro Pires (Examinador) Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Marília, dia sete de março de 2023 5 À minha família, aos meus amigos e aos meus professores. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço à minha família, aos meus amigos e aos meus colegas por terem participado desta fase da minha vida, compartilhando experiências e dando suporte emocional. Esta dissertação foi escrita em um período difícil da história, em meio à pandemia de COVID-19 e quando a população brasileira sofria devido ao extremismo político e a uma crise econômica. Concluir o Mestrado acadêmico não teria sido possível sem a presença da minha família e dos meus amigos. Devo mencionar alguns nomes de pessoas que foram importantes no ciclo da minha vida em que escrevi este trabalho. Primeiramente, cabe citar os nomes dos meus pais e irmãos: Nancy Queiroz, Nelson Alves, Marcelo Queiroz Alves e Renato Queiroz Alves. Especialmente, agradeço minha avó Irene Soria, que partiu no início deste período mas foi lembrada em cada dia que sentei para escrever. Sobre meus amigos, alguns nomes dignos de nota são: Alexandre Batista, Bruna Diniz, Hermano Azevedo, Guilherme Nobrega, Júlia Midory, Júlia Mori, Júlio Bueno, Leonardo Franco, Lutty Fortes, Matheus Bertin, Paloma de Oliveira, Paulo Bittencourt, Rafael Moraes, Rafael Nascimento, Raquel Spiri, Rebecca Blasotti e Vinícius Brean. Outras pessoas poderiam ser mencionadas, mas devido aos desvios naturais da vida não foram tão presentes neste ciclo. Expresso aqui também o meu mais profundo respeito ao povo chinês e agradeço a todos os que passaram pela minha vida na difícil trajetória da sinologia. Se não fosse pelo Instituto Confúcio na Unesp dificilmente as portas para este caminho teriam sido abertas. Sendo assim, também agradeço pelos maiores articuladores que possibilitam a estadia do instituto no Brasil: Prof. Marcos Cordeiro e Prof. Luis Paulino. Por fim, registro aqui minha gratidão por toda a dedicação e o companheirismo de meu orientador, Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos, que não só executou um excelente trabalho acadêmico, mas também cumpriu a função de um grande amigo capaz de me dar força para manter a serenidade e a estabilidade necessárias para o exercício de pesquisa. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 7 《望岳》 岱宗夫如何 齐鲁青未了 造化钟神秀 阴阳割昏晓 荡胸生层云 决眦入归鸟 会当凌绝顶 一览众山小 杜甫 Contemplando Yue E eis o Grande Tai – como dizê-lo Além de Lu e Qi tudo é verdura Aqui divino e belo se concentram Se lado sul ou norte claro-escuro O peito estende às nuvens que acumulam Olhos distendem pássaros que entram É preciso alcançar o extremo o cume De um só olhar mil picos se apequenem Du Fu 8 RESUMO O presente estudo objetiva analisar os fundamentos estratégicos da Belt and Road Initiative no contexto de ascensão geopolítica da China rumo à liderança do sistema internacional. Os referenciais teóricos adotados para examinar os aspectos da iniciativa são o realismo ofensivo, desenvolvido pelo cientista político estadunidense, John J. Mearsheimer, e o realismo moral, elaborado pelo cientista político chinês, Yan Xuetong. Ambos possuem os preceitos da geopolítica clássica imbuídos em seus escopos teóricos realistas. Entretanto, as perspectivas dos autores a respeito do funcionamento do sistema internacional são divergentes, e essas diferenças se inserem na compreensão do escopo do megaprojeto sistêmico e institucional de expansão comercial, diplomática e política arquitetado pela China durante o governo de Xi Jinping por meio da Nova Rota da Seda. Consequentemente, pela exposição das diferenças de análise e avaliação das procedências argumentativas dos referenciais teóricos, deve ser propiciada uma compreensão objetiva e precisa sobre a função geopolítica da Belt and Road Initiative. Palavras-chave: China. Belt and Road Initiative. Geopolítica. Realismo moral. Realismo ofensivo. 9 ABSTRACT The present study aims to analyze the strategic foundations of the Belt and Road Initiative in the context of China's geopolitical rise towards the leadership of the international system. The theoretical frameworks adopted to examine aspects of the initiative are offensive realism, developed by the American political scientist, John J. Mearsheimer, and moral realism, elaborated by the Chinese political scientist, Yan Xuetong. Both have the precepts of classical geopolitics embedded in their realistic theoretical scopes. However, the authors' perspectives regarding the functioning of the international system are divergent, and these differences are part of the understanding of the scope of the systemic and institutional mega-project of commercial, diplomatic and political expansion architected by China during the Xi Jinping government through the New Silk Road. Consequently, by exposing the differences in analysis and evaluation of the argumentative provenances of the theoretical references, an objective and precise understanding of the geopolitical role of the Belt and Road Initiative may be provided. Keywords: China. Belt and Road Initiative. Geopolitics. Moral realism. Offensive realism. 10 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – O mapa do coração continental eurasiático ....................................................... 40 FIGURA 2 – Balcãs Eurasiáticos ............................................................................................ 45 FIGURA 3 – Configuração do Tiānxià ................................................................................... 77 FIGURA 4 – Componentes da ordem e do sistema internacionais ......................................... 89 FIGURA 5 – Impactos da liderança e das capacidades estatais sobre preferências estratégicas .................................................................................................................................................. 89 FIGURA 6 – Tipos de liderança de Estados ascendentes e mudanças nos sistemas internacionais .......................................................................................................................... 90 FIGURA 7 – Tipos de liderança internacional e formação de normas internacionais ............ 93 FIGURA 8 – Mecanismos pelos quais Estados mudam normas internacionais ..................... 93 FIGURA 9 – Novos tipos de liderança internacional e transformações nos sistemas internacionais ........................................................................................................................ 103 FIGURA 10 – Um tabuleiro de Wéi qí ................................................................................. 142 FIGURA 11 – A rota da Grande Marcha .............................................................................. 164 FIGURA 12 – Linha das nove raias ...................................................................................... 175 FIGURA 13 – O desenvolvimento da guerra em torno do Paralelo 38º ............................... 177 FIGURA 14 – Estatística do Índice Composto de Capacidade Nacional até 2016 .............. 194 FIGURA 15 – O poder abrangente da China em 2021 ......................................................... 194 FIGURA 16 – Comparação do PIB de RPC e EUA em trilhões de dólares por PCC desde 1990 até 2020 ........................................................................................................................ 217 FIGURA 17 – Exportações globais de armas de 2008 a 2020 .............................................. 221 FIGURA 18 – Estudos de caso da Armadilha de Tucídides ................................................. 224 FIGURA 19 – Mapa da Belt and Road Initiative .................................................................. 235 11 LISTA DE TABELAS TABELA 1 – As principais teorias realistas ………………………...……………………… 63 TABELA 2 – Tipos de liderança estatal .................................................................................. 86 TABELA 3 – Tipos de liderança internacional ....................................................................... 87 TABELA 4 – Tipos de normas internacionais ........................................................................ 93 TABELA 5 – Os componentes do sistema interestatal academicamente definido ............... 100 TABELA 6 – Equilíbrio de poder entre China e Estados Unidos ......................................... 220 12 LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS - AIIB – Asian Infrastructure Investment Bank - ASEAN – Associação de Nações do Sudeste Asiático - BRI – Belt and Road Initiative - BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - CENTO – Organização do Tratado Central - CIA – Agência de Inteligência Central - ELP – Exército da Libertação Popular - EUA – Estados Unidos da América - FMI – Fundo Monetário Internacional - KMT – Kuomintang - NBD – Novo Banco de Desenvolvimento - OCX – Organização para a Cooperação de Xangai - OMC – Organização Mundial do Comércio - ONU – Organização das Nações Unidas - OTAN – Organização do Tratado Atlântico Norte - OTASE – Organização do Tratado do Sudeste Asiático - PCCh – Partido Comunista da China - PIB – Produto Interno Bruto - PDP – Partido Democrático Progressista - PPC – Paridade de Poder de Compra - RPC – República Popular da China - SDNU – Sistema de Desenvolvimento das Nações Unidas - TPP – Parceria Transpacífica 13 - UE – União Europeia - UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - ZEEs – Zonas Econômicas Especiais 14 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 16 2 DIÁLOGOS ENTRE GEOPOLÍTICA E REALISMO POLÍTICO 28 2.1 EVOLUÇÃO DA TEORIA GEOPOLÍTICA DO SÉCULO XIX AO XXI 28 2.2 GEOPOLÍTICA ENQUANTO COMPONENTE DO REALISMO POLÍTICO 52 2.2.1 Realismo Ofensivo e Geopolítica 61 2.2.1.1 Síntese do Realismo Ofensivo 62 2.2.1.2 Diálogo entre Realismo Ofensivo e Geopolítica 67 2.2.2 Realismo Moral e Geopolítica 70 2.2.2.1 Escola Chinesa de Relações Internacionais 70 2.2.2.2 Síntese do Realismo Moral 81 2.2.2.3 Diálogo entre Realismo Moral e Geopolítica 104 3 DEBATES ENTRE YAN XUETONG E JOHNMEARSHEIMER 109 3.1 DIVERGÊNCIAS EM MENÇÕES MÚTUAS 109 3.2 DEBATES DIRETOS ENTRE YAN E MEARSHEIMER 117 3.2.1 Debate de 2013 117 3.2.2 Debate de 2019 129 4 GEOESTRATÉGIA CHINESA 138 4.1 PENSAMENTO ESTRATÉGICO NA FILOSOFIA TRADICIONAL CHINESA 141 4.2 PENSAMENTO ESTRATÉGICO NA REVOLUÇÃO CHINESA 154 4.2.1 Conflitos Militares da República Popular da China 171 4.2.1.1 Tensões Marítimas 171 4.2.1.2 Conflitos Terrestres 176 4.2.2 Fundamentos Defensivos 185 4.3 GEOESTRATÉGIA DO GOVERNO DE XI JINPING 192 4.3.1 Quantificação do Poder 192 4.3.2 Os Avanços das Forças Armadas 198 4.3.3 Expansão Global Branda 208 4.3.4 Disputa com os Estados Unidos 213 5 A GEOPOLÍTICA DA BELT AND ROAD INITIATIVE VISTA PELOS REALISMOS OFENSIVO E MORAL 230 5.1 COMPOSIÇÃO OBJETIVA 230 15 5.2 INTERPRETAÇÃO GEOPOLÍTICA 241 5.3 INTERPRETAÇÃO REALISTA OFENSIVA 249 5.4 INTERPRETAÇÃO REALISTA MORAL 254 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 260 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 265 16 1 INTRODUÇÃO Esta pesquisa propõe a análise da Belt and Road Initiative1 enquanto um projeto geopolítico instrumental que foi anunciado durante o governo Xi Jinping para consolidar a ascensão chinesa. Os referenciais teóricos principais são constituídos pelos realismos ofensivo e moral, desenvolvidos respectivamente pelos cientistas políticos John Mearsheimer, da Universidade de Chicago, e Yan Xuetong, da Universidade Tsinghua. As perspectivas desses autores a respeito das relações internacionais e da geopolítica chinesa são divergentes, e essas contrariedades encontram extensões aplicáveis ao escopo da Belt and Road Initiative enquanto objeto de análise. Expostas as diferenças argumentativas, esta pesquisa pretende identificar semelhanças e incompatibilidades entre as avaliações para chegar em conclusões sobre as relações entre China, Estados Unidos e os demais países dentro de um contexto de ascensão chinesa rumo à liderança do sistema de Estados. O pano de fundo desse debate é a consideração de que a Nova Rota da Seda representa um caminho geopolítico de consolidação da afirmação da liderança chinesa. A Belt and Road Initiative é um megaprojeto internacional de construção de obras de infraestrutura que visa interconectar com maior profundidade principalmente os países de Ásia, Europa e África no entorno da China. Seu título faz homenagem à antiga Rota da Seda que expandiu e sustentou as relações comerciais chinesas na Antiguidade. As instituições centrais que financiam e organizam a execução de projetos através da iniciativa são o Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura, o Fundo da Rota da Seda e o Fórum do Cinturão e Rota para Cooperação Internacional, que contam com contribuições de outras instituições adjacentes, como o Banco de Desenvolvimento da China, o Novo Banco de Desenvolvimento (ou Banco dos BRICS) e entidades financeiras de países associados à rede de conexões promovida pela iniciativa. Apesar de Xi Jinping ter anunciado a Belt and Road Initiative como um megaprojeto de construção de obras de infraestrutura em torno da China, primando pelo aprofundamento sistemático das relações comerciais com a vizinhança, um caráter geopolítico foi imediatamente cogitado por acadêmicos e analistas internacionais devido ao seu escopo geográfico. A grande iniciativa envolve o Sudeste Asiático, a Ásia Central, a Eurásia, o leste e 1 O nome oficial é em inglês porque o projeto tem pretensões de abrangência global. A tradução para o português é: “Iniciativa Cinturão e Rota”. Também costuma ser chamada alternadamente de “Nova Rota da Seda”. O nome em mandarim é yī dài yī lù (一带一路), que significa “Um Cinturão, Uma Rota”. 17 norte da África e a Europa Ocidental, circundando exatamente a área compreendida pela geopolítica clássica como “Heartland”. Em termos geopolíticos, a partir da primazia do poder terrestre, quem controla o leste da Europa, controla o “Heartland”, e quem controla o “Heartland” domina o mundo (MACKINDER, 1904). O debate levantado avalia a possibilidade dessas relações profundas que devem ser desenvolvidas entre os membros da Iniciativa poderem evoluir de um patamar comercial a um nível de alianças mais amplas e até mesmo militares. Considerando a abertura ao debate e a negação das lideranças chinesas de que haja fundamentações desse gênero é necessário avaliar de maneira mais adequada em quais termos que o megaprojeto pode se inserir dentro desse viés de análise a partir da compreensão de seu funcionamento e de quais são suas potencialidades até o presente momento. Alguns autores compreendem que a geopolítica apenas pode se mostrar como uma ferramenta de análise útil diante do programa de projeção em análise se a ramificação teórica da geoeconomia for adotada (LUTTWAK, 1990), além de conceder um espaço necessário de atenção ao poder marítimo chinês, que vem se expandindo estrategicamente como via para estabelecer uma liderança global (LIU, 2010; BURGER, 2022; CHENG E.; LI J., 2020). Avaliada a expansão geopolítica chinesa, as noções estadunidenses sobre tal fato podem ser representadas pelo referencial teórico do realismo ofensivo, enquanto a perspectiva chinesa pode ter lugar no realismo moral. Ambas as ópticas têm a geopolítica imbuída como componente em seus escopos, apesar de terem grandes diferenças. Mearsheimer se insere no debate proposto por Mackinder sobre a superioridade do poder terrestre em comparação ao marítimo no quinto capítulo de sua obra mais famosa, “The Tragedy of Great Power Politics” (2001). E Yan reconhece em seu livro mais recente, “Leadership and the Rise of Great Powers”, a relevância das formulações geopolíticas clássicas quando foram desenvolvidas, mas alerta que, uma vez que o centro de gravitação geoeconômica se deslocou para o leste asiático, a teorização geopolítica focada em determinações espaciais do Heartland eurasiático necessita de reformulações (YAN, 2019, p. 93-101). Ao passo que Yan Xuetong traz à tona uma teoria que concebe a possibilidade de estabelecer a moralidade como um fator multiplicador de poder na política internacional. Herdando a moralidade como atributo basilar do realismo a partir da obra de Morgenthau e inserindo influências da filosofia tradicional chinesa, Yan constrói um modelo teórico em que a moralidade é a variável independente (YAN, 2016, p. 4). Na teoria de Mearsheimer (2001) a 18 moralidade não passa de uma variável dependente útil para moldar retóricas onde subjazem as buscas objetivas por poder material. O realismo ofensivo considera que o sistema internacional é definido como um palco de reprodução de mecanismos de poder e imposição de vontades de Estados com profundas pretensões hegemônicas sobre unidades menos poderosas, não importando as características domésticas, culturais, morais e ideológicas. Entendidas as diferenças preliminares entre as abordagens teóricas, cabe um aprofundamento na perspectiva realista ofensiva sobre a forma como a China se expressa na ordem internacional atual. A teoria de Mearsheimer tem a função de avaliar a realidade internacional de maneira estrutural para que a China seja enquadrada dentro de dinâmicas de reproduções de táticas e padrões comportamentais de potências ocidentais. Desse modo, os Estados Unidos podem se preparar para reagir aos movimentos dos chineses e conter a potência em ascensão, podendo realizar a manutenção da própria hegemonia. A China é detentora do segundo maior PIB do mundo e tende a superar os Estados Unidos até 2030 (MEARSHEIMER, 2005). Dado o cenário em que se interpõe como potência capaz de converter seu poder econômico em poder militar, é capaz de estabelecer futuramente uma hegemonia regional de acordo com a conceituação realista ofensiva enquanto referencial teórico. Conforme o World Bank (2020a), a China tinha em 2020 um PIB de US$ 14,72 bilhões e uma população total de 1,41 bilhões. De acordo com o Stockholm International Peace Research Institute (2021), até 2021 o orçamento militar anual da China era de US$ 293 bilhões, sendo o segundo maior do mundo (mas mantendo uma porcentagem modesta de 1,7% do PIB, que é metade do percentual que os EUA costumam destinar à área). Segundo o relatório “The Military Balance”, do International Institute for Strategic Studies (2022), consta na China um contingente de pessoal militar de 2 milhões. E, além disso tudo, é fundamental destacar que a China é detentora de armas nucleares. Sob qualquer medida, a China hoje é uma potência global e que tende a superar economicamente os EUA em um futuro iminente. É a primeira maior economia mundial em termos de paridade de poder de compra e a segunda maior em dólares depois dos Estados Unidos, contribuindo com 15% do PIB global em 2015 e 35% do crescimento global do PIB de 2010 a 2015. Exporta seus bens, capital e trabalho para todo o mundo, conquistando o título de maior potência comercial do mundo (ECONOMY, 2019, p. 186). 19 As dinâmicas comerciais chinesas foram aprofundadas desde o anúncio da Belt and Road Initiative e de todas as medidas que vêm sendo implementadas por meio dela. Segundo o site oficial do megaprojeto, até 23 de março de 2022 o governo chinês assinou 200 acordos de cooperação com 149 países e 32 organizações internacionais, expandindo-se para todos os continentes (YI DAI YI LU, 2022). Em termos de conversão de crescimento econômico em incrementos no orçamento militar, desde a crise financeira mundial de 2008 há uma tendência de aumento de investimentos no orçamento militar chinês em comparação com o orçamento americano (CARRIÇO, 2013). Além disso, é notável um aumento qualitativo das capacidades do Exército de Libertação Popular, que vem modernizando seus armamentos, flexibilizando suas atividades em termos de desenvolvimento de poder marítimo, aéreo e terrestre, e buscando se internacionalizar através de operações de paz e pela disposição para criar bases militares estrangeiras, como a que foi inaugurada em Djibouti (OFFICE OF THE SECRETARY OF DEFENSE, 2018). Perante a tendência de transformação da liderança global, Mearsheimer menciona a nascente superpotência asiática diversas vezes em sua obra. A grande questão que o autor se dedica a responder e que se repete em diversas de suas publicações é “se a China pode ascender pacificamente” (MEARSHEIMER, 2014a; 2014b). O cientista político, fazendo justiça ao título de sua teoria, sempre chega a uma conclusão negativa. Para o autor, em termos de interesse nacional, é importante que os estrategistas estadunidenses adotem uma postura de antagonismo em relação à China, pois a estrutura do sistema internacional constrange a maior potência do globo a conter os efeitos de balancing lançados automaticamente pela potência asiática ascendente (MEARSHEIMER, 2012; 2016). Para explicar a teoria que pressupõe a natureza violenta e individualista da ordem internacional, Mearsheimer sistematiza três aspectos que levam os Estados a temerem uns aos outros: 1) ausência de uma autoridade acima dos Estados para protegê-los, 2) os Estados sempre têm capacidade militar ofensiva, e 3) os Estados nunca têm certeza sobre as intenções dos demais (MEARSHEIMER, 2001, p. 31). Nesse sentido, o alcance da hegemonia global é impossível, pois é muito difícil projetar e sustentar o poder em todo o mundo devido a barreiras oceânicas e gastos logísticos. Até os Estados Unidos são uma hegemonia regional, mas não global, ainda que possa ser considerada como a maior de todas. O melhor resultado que uma potência pode esperar obter 20 é dominar seu próprio continente e conter a capacidade de outros Estados de dominarem os seus próprios continentes. É por isso que os Estados Unidos mantêm bases militares no sudeste asiático: almejam evitar que a China se configure como um hegemon regional ao dominar a Ásia (MEARSHEIMER, 2014a). Atualmente a China não tem condições de se comportar internacionalmente com um perfil agressivo, então se mantém fiel à estratégia de ascensão pacífica, promovendo o multilateralismo, a interdependência e o institucionalismo. Há, consequentemente, um impasse em relação às conclusões sobre a ascensão chinesa em termos de desenvolvimento econômico e tecnológico. Enquanto a retórica chinesa se mantém defensiva e pacifista, a estadunidense assume um caráter acusativo (MEARSHEIMER, 2010). Para finalizar o aprofundamento na teoria de Mearsheimer, é relevante destacar que é imbuída de aspectos das perspectivas geopolíticas de Mackinder e Spykman. Além de referências a Spykman, Mearsheimer põe em evidência a primazia do poder terrestre e seu controle como importante aspecto do poder de um Estado (MEARSHEIMER, 2001, p. 81-137). Segundo o autor, o poder naval e o poder aéreo não podem ser eficientes meios de projeção de poder se não forem combinados com o poder terrestre que, por sua vez, permanece o mais importante. Neste diapasão de uma assimilação parcial dos teóricos do poder terrestre há o entendimento também convergente com esta perspectiva da necessidade de uma hegemonia em nível regional (continental) para o credenciamento do estabelecimento de uma condição de hegemon. A relação de Mearsheimer com as contribuições teóricas de Mackinder, continuadas por Spykman, ganha forma devido à primazia concedida ao poder militar de cunho terrestre, que pode ser melhor aplicado e desenvolvido no contexto de uma centralidade estratégica da Eurásia enquanto região caracterizada por grande massa terrestre que compreende o “Heartland”, mas propõe ainda que a área externa a este, a “Rimland”, que concede acesso a mares abertos, pode ser também relevante em termos estratégicos (SPYKMAN, 1944). Exibida a perspectiva do realismo ofensivo relacionada preliminarmente com a Nova Rota da Seda, agora convém exibir a óptica realista moral de Yan Xuetong. O professor chinês sintetiza o realismo moral ao expor quatro corolários que derivam da premissa de que a moralidade é a variável independente da conduta dos Estados na política internacional: Corolário 1: A busca de interesses é a dinâmica primária das ações do Estado, bem como da evolução das normas internacionais [...] 21 Corolário 2: A natureza de soma zero do poder traz conflitos estruturais entre um Estado ascendente e um Estado dominante, bem como pressão sistêmica sobre o Estado ascendente [...] Corolário 3: Melhorias e declínios na liderança política dos Estados levam a mudanças na força nacional abrangente entre os Estados [...] Corolários 4: No sistema internacional anárquico, todos os Estados se envolvem na autoajuda para sua própria segurança, mas adotam estratégias diferentes para buscar a segurança (YAN, 2016, p. 10-15, tradução nossa). Yan Xuetong retorna aos princípios fundamentais do realismo clássico e aplica concepções de mundo chinesas às suas formulações ao focar na questão da ascensão da China através de métodos originais. Ao desenvolver o seu realismo moral, Yan se aprofunda também na abertura que Hans Morgenthau concede à moralidade no processo de formulação de políticas. Afinal, entre os seis princípios do realismo de Morgenthau, sintetizados em “A Política entre as Nações”, o quarto sublinha a necessidade de os tomadores de decisões considerarem a moralidade para agir na política internacional (MORGENTHAU, 2003, p. 4-28). É através do nexo com o realismo clássico que Yan distingue os tipos de moralidade: pessoal, estatal e universal. Ao julgar que a moralidade atribui responsabilidades às grandes potências, Xuetong a avalia enquanto componente central das unidades do sistema internacional a ser levado em consideração para compreender os processos de tomada de decisão na política interestatal: “Os realistas morais definem a moralidade da liderança política como moralidade do Estado, como o dever de praticar as normas internacionais, a credibilidade estratégica para com os aliados e a responsabilidade de proteger os interesses das pessoas” (YAN, 2016, p. 3, tradução nossa). Os realistas morais buscam dar continuidade ao pensamento teórico do realismo clássico ao distinguir as categorias de força e poder e suas relações com a moral e o interesse nacional. O cientista político chinês destaca que na língua chinesa há uma distinção entre poder e força. Os termos quánlì e shílì significam respectivamente “poder” e “autoridade”: enquanto o primeiro se relaciona com capacidades materiais e é proscritivo, o segundo diz respeito à influência normativa e é prescritivo. Essa distinção “com características chinesas” das definições de poder e autoridade deve levar à superação de deficiências metodológicas que permitiam generalizações conceituais (YAN, 2016, p. 5). Os realistas morais concordam que os interesses principais das nações são garantidos pela categoria de poder. Enquanto isso, a força sustenta o poder. O interesse nacional é preenchido pelos seguintes componentes: política, segurança, economia e cultura. 22 Especificamente, a modalidade “política” é um elemento operacional, enquanto “segurança, economia e cultura” são componentes recursivos. A política é exercida ativamente na estrutura internacional por meio da diplomacia. Os demais componentes têm função passiva, de preencher recursos de balancing perante as demais unidades do sistema de Estados (YAN, 2016, p. 10-15). Através dos componentes do interesse nacional Yan preenche o conceito de “força abrangente”, que se relaciona necessariamente com a categoria de “liderança política”. A força abrangente determina os “interesses estratégicos” e a liderança política define as “percepções políticas”. Uma associação entre interesses estratégicos e percepções políticas leva à “preferência estratégica” dos Estados. É a partir das relações entre esses conceitos que a estrutura teórica do realismo moral ganha forma (YAN, 2016, p. 16). Os tipos de preferências estratégicas são definidos especificamente de acordo com as condições e inclinações de cada Estado. Os níveis de força abrangente dos Estados os tornam dominantes, ascendentes, regionais ou pequenos e a partir do nível que possuem formulam seus interesses estratégicos. Dentro do escopo dos interesses estratégicos, tanto os Estados dominantes quanto os ascendentes primam pela dominação do sistema, os regionais buscam a dominação regional e os pequenos lutam para sobreviver através da associação com parceiros adequados. Já em termos de liderança política, os Estados podem assumir perfis inativos, conservadores, proativos ou agressivos para determinar suas percepções políticas. Através desses perfis, no escopo das percepções políticas, os Estados se determinam respectivamente por ideologia, economia, política e capacidades das forças armadas. Cruzamentos de variáveis que compõem os campos referidos permitem que haja até dezesseis tipos de preferências estratégicas. Uma aplicação da teoria à China liderada por Xi Jinping se configura da seguinte forma: Estado ascendente (prima pela dominação do sistema) e proativo na liderança política (tem percepções determinadas politicamente). Logo, uma preferência estratégia de “esforço para conquistar” ganhou forma ao deslocar o foco da política externa chinesa do crescimento econômico para a governança ativa na política internacional por meio de instituições (YAN, 2014b, p. 154-170). A nova política externa chinesa, baseada em proatividade, se afirma pela própria fundação da Belt and Road Initiative e instituições a ela associadas (como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura), e pela reivindicação de mais espaço nas instituições 23 internacionais já existentes. Por exemplo, a China propôs em 2016 reformas bem-sucedidas em organizações majoritariamente financiadas pelos EUA, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, para obter maior espaço, presença e voz ativa, aumentando seus direitos de voto. E o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura vem se mostrando como uma alternativa preferível aos países asiáticos pobres, substituindo o Banco Mundial e o Banco Asiático de Desenvolvimento (ECONOMY, 2018, p. 197). Compreendendo o deslocamento de força e poder a favor da China por vias econômicas e agora políticas, cabe relacionar o que essa dinâmica representa em termos geopolíticos. No dizer do autor chinês, o eixo geopolítico internacional sofreu um significativo deslocamento da Europa para a Ásia em vista da maior relevância de todas as nações asiáticas mais ricas, incluindo China, Japão, Coreia do Sul e membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático. O valor de seus PIBs somados é maior que a soma de toda a União Europeia e a Rússia. Os gastos militares dos Estados europeus e países e regiões do Leste Asiático refletem a mesma situação. Enquanto os países do Leste Asiático ascendem, a União Europeia se desintegra (vide o Brexit2) e perde influência política na governança mundial (YAN, 2019, p. 93-101). Yan, buscando superar Mackinder, afirma que o centro geopolítico global não é definido pela sua localização geográfica natural. Dois critérios são postulados para definir essa centralidade: em primeiro lugar, deve haver a concentração dos Estados detentores de maior força abrangente e poder (por meio de liderança ativa sustentada por normas e instituições de governança); em segundo, a região deve ser um foco de rivalidade intensa entre Estados em conflito. Entretanto, essa rivalidade não necessariamente deve se manifestar apenas no centro geopolítico, mas, sim, pode se prolongar para regiões externas, periféricas, contando com participantes de fora. É nesse sentido que uma rivalidade entre China e EUA deve ganhar lugar na Ásia enquanto novo centro geopolítico mundial e configurar uma nova ordem internacional bipolar (YAN, 2019, p. 94-95). A partir dos conceitos fornecidos pelos realismos ofensivo e moral, pode-se examinar a geopolítica da Belt and Road Initiative e observar, em maior ou menor medida, pontos harmônicos e desarmônicos entre os conteúdos teóricos: ao passo que o realismo ofensivo aponta um processo fatalista de formação de uma hegemonia chinesa, o realismo moral dá ênfase na Autoridade Humana pela qual a China conduzirá as relações internacionais. 2 Sigla que representa o processo de retirada do Reino Unido da União Europeia desde 2017. 24 O presente trabalho dá luz a um tema de suma importância para o estudo da realidade do sistema internacional atual: a ascensão da Ásia simultânea ao possível declínio do Ocidente. Verificada esta transformação no sistema internacional, o estudo sobre a China se torna cada vez mais relevante nas Relações Internacionais. Nesse contexto, a Belt and Road Initiative foi escolhida como objeto da análise porque, conforme indicam os recentes dados acerca do crescimento e desenvolvimento econômico da China após seu anúncio e implementação, esse megaprojeto de construção e aprimoramento de infraestrutura vem se mostrando como uma variável fundamental. Além disso, dentro de perspectivas como a do realismo ofensivo, que avaliam que capacidades econômicas elevadas se convertem automática e necessariamente em maiores capacidades militares, a Iniciativa pode ser assimilada à geopolítica clássica devido ao seu mapeamento em torno do denominado “Heartland”, então se almeja através desta pesquisa utilizar o referencial teórico do realismo moral para transcender qualquer automatismo do gênero. Pôr em evidência as bibliografias de John Mearsheimer e Yan Xuetong enquanto representantes respectivos das perspectivas estadunidense e chinesa para compreender a transformação do sistema internacional é outro fator que justifica a realização da pesquisa. Pode ser de relevante importância trazer ao campo acadêmico nacional as formulações destas correntes teóricas em relação ao tema para que se compreenda as tendências e os meios pelos quais o sistema internacional está sendo conduzido pelas grandes potências contemporâneas. Será conveniente apresentar à comunidade acadêmica brasileira uma corrente de pensamento acadêmico chinês em voga e que ainda não possui obras traduzidas para o português nem goza da mesma visibilidade de Mearsheimer entre os pesquisadores brasileiros dedicados ao tema do crescimento do poderio chinês, embora se revele como um dos autores mais renomados internacionalmente para o estudo do assunto. O objetivo desta pesquisa é responder à seguinte questão-problema: Como explicar a relevância geopolítica da Belt and Road Initiative para a ascensão chinesa no sistema internacional? A seguinte hipótese deve ser testada: Considerando o debate entre os realismos moral e ofensivo, que compartilham em seus escopos aspectos geopolíticos devido à compreensão da política internacional em termos de poder projetado territorialmente, a variável da “liderança política” proposta por Yan Xuetong expressa uma categoria sofisticada e dinâmica para compreender a Belt and Road Initiative enquanto instrumento geopolítico inerente ao processo de ascensão chinesa. O realismo ofensivo, por outro lado, proporciona 25 uma narrativa restrita às preocupações de cunho diretamente militar e adota, nesse contexto, uma metodologia de compreensão de poder essencialmente material e insuficiente para entender a geoestratégia chinesa. A formulação de Yan Xuetong acrescenta à dimensão militar da geopolítica uma nova variável baseada em poder político para explicar o deslocamento de poder à Ásia, trazendo ao público uma perspectiva mais capacitada para explicar os fundamentos da iniciativa que configura o objeto desta pesquisa. De modo geral, frente ao debate entre os realismos moral e ofensivo devem ser abstraídos aspectos úteis para analisar os fundamentos geopolíticos da iniciativa internacional. Para a testagem da hipótese é pretendido trabalhar com uma base de referências constituída pelas principais obras de John Mearsheimer (2001; 2013; 2014a; 2014b; 2014c; 2018; 2019) e Yan Xuetong (2006; 2013; 2014; 2015; 2016; 2018; 2019) com ênfase nas publicações feitas após o anúncio da Belt and Road Initiative em 2013. Além disso, serão evocados discursos do atual líder chinês, Xi Jinping (2019), estatísticas e notícias sobre a ampliação da iniciativa que podem ser encontrados em seu website oficial (YI DAI YI LU, 2022). Essas fontes foram trabalhadas através de revisão bibliográfica de referenciais teóricos, discursos de governo, e aspectos quantitativos e qualitativos da Belt and Road Initiative. Os objetivos específicos são: compreender os fundamentos oficiais e o funcionamento prático da Belt and Road Initiative pela consulta histórica de seu modus operandi; avaliar a evolução da iniciativa; validar aproximações da iniciativa às acepções geopolíticas; apontar as capacidades e limitações explicativas dos realismos moral e ofensivo aplicadas ao objeto de análise. Serão apresentados agora os desdobramentos metodológicos dos referenciais teóricos ao objeto de análise e as técnicas e materiais de pesquisa. No que se refere às consequências teóricas para o objeto em tela, dois pontos relevantes devem ser mencionados. Um se refere à maneira como Mearsheimer e Yan situam a moral em seus escopos teóricos e o outro está ligado ao método sistêmico que utilizam. Mearsheimer sublinha que sua teoria considera poucos aspectos da política doméstica das unidades do sistema internacional, como a moral e a ideologia das nações. Neste sentido e a título de exemplificação a partir do próprio autor, a teoria pode funcionar como um feixe de luz para auxiliar a compreensão de tais questões. Na mesma direção, o autor elucida uma análise sobre o Estado americano, a despeito de forte ênfase de teor liberal no discurso das elites, a portas fechadas tomar decisões sobre a política externa sob uma lógica realista 26 (MEARSHEIMER, 2001, p. 25). Cabe avaliar se tal analogia é cabida para as análises pertinentes à Nova Rota da Seda no sentido de verificar se a retórica moral chinesa destoa ou não de sua atuação no âmbito internacional, além de outras questões relacionadas à pesquisa. No tocante ao seu método sistêmico, há uma abordagem que busca recortar a realidade, retratando com especial ênfase uma estrutura internacional que inclui as principais potências. De acordo com o realismo ofensivo, a estrutura anárquica do sistema de Estados encoraja as unidades a buscar a hegemonia. É relevante neste sentido a identificação da arquitetura do sistema em termos de seu(s) polo(s) de poder, de modo a configurar um hegemon ou um potencial hegemon (MEARSHEIMER, 2001, p. 12). A teoria de Yan Xuetong possui profundas diferenças metodológicas em relação à de Mearsheimer. Em primeiro lugar, sua teoria não partilha uma perspectiva completamente sistêmica porque articula três níveis de análise: liderança no nível individual, elaboração de política no âmbito estatal e o sistema internacional. Em segundo lugar, ela não partilha do eurocentrismo da perspectiva geopolítica de Mearsheimer ao atribuir um papel importante da economia asiática em termos de seu peso mundial como um importante parâmetro geopolítico que desloca o epicentro da política internacional para o oriente (YAN, 2019: p. 79 e 96). Em terceiro lugar, a teoria realista moral tem a moralidade como variável independente ao considerar que as instituições internacionais são meios fundamentais à articulação da governança dos Estados em busca da autopreservação, enquanto o realismo ofensivo compreende os meios de equilíbrio de poder em busca da sobrevivência em termos predominantemente materiais, negligenciando a relevância da liderança política para as relações internacionais (YAN, 2016, p. 4). A articulação destes três pontos é fundamental para compreender a especificidade da proposta do cientista político chinês. Através da aplicação do método dedutivo sobre a hipótese a ser testada em resposta à questão-problema consta uma pesquisa de revisão bibliográfica. Metodologicamente, também é contemplada uma exposição comparativa de duas referências teóricas que ilustram a disputa entre as duas maiores potências do sistema internacional no século XXI. Pretendemos, conclusivamente, evidenciar as conexões entre teoria e prática nas relações internacionais para contribuir com o avanço da compreensão de um objeto de pesquisa central na contemporaneidade, isto é, a ascensão chinesa. Preferencialmente, tal objeto exige referenciais próprios, que deem andamento ao processo de globalização e democratização da 27 teoria em voga na medida em que concentrações ocidentais que a fundaram começam a ceder espaço para a construção desta (ACHARYA; BUZAN, 2009). 28 2 DIÁLOGOS ENTRE GEOPOLÍTICA E REALISMO POLÍTICO Este capítulo pretende apresentar o referencial teórico. Para isso, primeiramente faremos uma exposição da evolução da teoria geopolítica desde sua gênese até sua faceta mais atualizada. Por conseguinte, faremos uma discussão sobre os conceitos centrais dos realismos moral e ofensivo. Para finalizar, traçaremos os pontos de interseção existentes entre geopolítica e os realismos em questão. 2.1 EVOLUÇÃO DA TEORIA GEOPOLÍTICA DO SÉCULO XIX AO XXI O objetivo deste tópico é executar uma síntese da evolução teórica referente à geopolítica tendo como foco o conceito de Heartland desenvolvido pelo professor de geografia da Universidade de Oxford, Halford John Mackinder. Pretendemos evocar os conceitos basilares para verificar nos itens que sucedem este a aplicabilidade da teorização atualizada da geopolítica aos realismos políticos que compõem os referenciais primários desta pesquisa e, por vias objetivas, à geoestratégia chinesa. O desenvolvimento teórico da Geopolítica ganhou ímpeto na virada do século XIX para o XX e encontrou aplicabilidade prática principalmente durante e após as Grandes Guerras Mundiais (1914-1945). Formulações de estratégias políticas e militares haviam se tornado fundamentais para que as potências se posicionassem em um novo quadro de correlações de forças em formação no qual os resultados das revoluções industriais acirraram concorrências por mercados e expansões imperialistas. A compreensão da geopolítica se tornara necessária para o desenvolvimento estratégico, conjugando a dimensão territorial para a disputa por poder. As diretrizes geopolíticas dos Estados são alcançadas pela identificação dos componentes políticos que os compõem, isto é, pela consideração de propriedades de espaço e tempo. Diante disso, é basilar a categoria de poder projetado na dimensão territorial para esta subárea da teoria geográfica: A geopolítica – enquanto definição conceitual – passou a ser utilizada pelos acadêmicos de modo a compreender a relação entre a lógica de poder dos Estados a partir da demarcação dos territórios e as características geográficas aos quais esses atores dispunham; e pelos estadistas, uma vez que lhes assegurou uma primazia política, econômica e militar por meio da expansão da estratégia do poder territorial. O conceito, portanto, passou a chamar a atenção, pois sua aplicabilidade tornou-se fundamental para a história, uma vez que sua inserção às vésperas das Guerras Mundiais permitiu inovar as estratégias políticas dos Estados e, portanto, a lógica de poder implementada nesse novo contexto do século XX (AMUSQUIVAR e PASSOS, 2018, p. 20). 29 A Geopolítica ganhou forma em um período da história em que não existia uma sistematização dos estudos sobre o internacional. A teoria das Relações Internacionais é desenvolvida, a saber, após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, quando foi fundada em Aberystwyth a primeira cátedra de Relações Internacionais, intitulada “Woodrow Wilson” em homenagem ao 28º presidente dos EUA. E após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, na Conferência de São Francisco, foi discutida e assinada a Carta das Nações Unidas, que deu forma à ilegalidade da guerra e à institucionalização do sistema internacional, que serve como objeto da teoria. Seguindo uma trajetória mais primitiva e posteriormente paralela, sob um viés objetivo, estadocêntrico e militarista, durante a virada do século XIX para o XX a geopolítica funcionou como uma fonte produtora de discursos e projetos úteis ao internacional dentro de sua área de aplicação antes de haver uma teoria propriamente voltada à análise do internacional. Na Geopolítica o internacional não é substancial, se inserindo como componente de metas de Estado que, por sua vez, definem suas finalidades. A geopolítica é, em gênese, marcada por características específicas, como a utilidade ao ramo militar e a perspectiva centrada no Ocidente, pois seus formuladores pioneiros e mais influentes todos fizeram contribuições pragmáticas aos interesses estratégicos dos Estados nos quais estavam inseridos profissionalmente. Esta corrente de pensamento geográfico, dedicada ao estudo da dominação dos territórios, partiu de colocações acerca da ação do Estado sobre o espaço. Os principais autores “desenvolveram teorias e técnicas, que operacionalizavam e legitimavam o imperialismo. Isto é, discorriam sobre as formas de defender, manter e conquistar os territórios” (MORAES, 2009, p. 20). Trata-se de uma área de estudos persistente, que ainda é objetivamente debatida nos Departamentos de Estado e nas Academias militares para que sejam formuladas grandes estratégias das potências do sistema internacional. As contribuições pioneiras são as de Friedrich Ratzel ao publicar “Geografia Política” em 1897, que comparava o Estado a um “organismo” político para trazer uma conotação naturalista à atuação estatal das civilizações no internacional enquanto habitat. Mais tarde, o termo “geopolítica” foi oficialmente cunhado por Rudolf Kjellén no final do século XIX. As disposições para lapidar essa nova área do conhecimento foram publicadas por ele apenas em 1916 no livro “Estado como Forma de Vida”. As contribuições de Kjellén partiram principalmente das bases da antropogeografia de Friedrich Ratzel e, consequentemente, em 30 síntese, caracterizam o estudo da natureza profunda do Estado como um fenômeno do espaço, organismo geográfico e domínio político (AMUSQUIVAR e PASSOS, 2018, p. 20). A ciência geopolítica propriamente dita ganhou um impulso produtivo e de influência sobre as áreas acadêmicas, políticas e militares no início do século XX pela “Escola Alemã de Geopolítica”, que passou a publicar a “Revista de Geopolítica” em 1924. Os já citados Ratzel e Kjellén, junto com Karl Haushofer, protagonizaram esse movimento intelectual (VESENTINI, 2000). Entre os autores principais da subdisciplina que se formava figuram Halford Mackinder, Alfred Mahan, Giulio Douhet, Karl Haushofer e Nicholas Spykman. Nesta pesquisa as categorias produzidas por Halford Mackinder e por correlatos compõem os instrumentos majoritários de exame teórico. Cronologicamente, segundo Korybko (2018), Mahan pode ser classificado como o “pai do pensamento geopolítico”, ainda que não tenha criado tal termo. Quando publicou “A Influência do Poder Marítimo na História” em 1890, Mahan trouxe uma metodologia de análise que incentivava o financiamento e a inovação técnica e militar em uma modalidade de poder móvel em que os EUA se inserem naturalmente por sua geografia. Essa inserção desencadeia uma estratégia naval capaz de levar à projeção de influência em dimensão global. O autor avaliava que o controle estratégico de certas áreas do mar seria traduzido em controle e influência sobre outras regiões próximas e conectadas às alvejadas. A geoestratégia de potências marítimas foi pensada ao longo da história tendo a obra de Mahan como referência teórica. O autor central da presente análise, o inglês Halford Mackinder (2004), por sua vez, em oposição a Mahan, trouxe um enfoque conceitual que dá primazia à mobilidade de poder terrestre. O teórico contribuiu com a criação de uma vertente inglesa da geopolítica pelo desenvolvimento da teoria sobre as “áreas pivôs” dos territórios que, caso fossem dominadas, permitiriam seus domínios completos. No caso da Europa e da Ásia, o coração continental eurasiático comporia essa área pivô, sendo circundado por um arco crescente interno e outro externo, que são respectivamente anfíbios e oceânicos. Este autor contribuiu substancialmente para a formação da geopolítica, expressando o viés de um estrategista e político que viveu no Reino Unido como membro da elite intelectual do país. Cabe observar, em adição, que a dita geopolítica foi elaborada na mesma época em que as contribuições científicas trazidas por Charles Darwin (2002) estavam em evidência, 31 durante um momento de afirmação da modernidade e que sucede a chamada “revolução científica”. Após a descoberta e a comunicação do processo de evolução das espécies pela adaptação ao ambiente, que seleciona os indivíduos por determinações biológicas, este fato passou a ser incluído como componente de elaborações teóricas das mais diversas áreas do conhecimento. Nas ciências humanas, por exemplo, a referida geopolítica abrigou o determinismo ambiental, assumindo a coerência do espírito de seu tempo. A análise da realidade social passou a ser feita por pontos de partida mais deterministas do que em períodos anteriores (LIVINGSTONE, 2003, p. 4). Mackinder acompanhou o “clima” político, acadêmico e intelectual da época, aceitando e reproduzindo perspectivas darwinistas sociais, assim como fizera Kjellén, o desenvolvedor do termo “geopolítica”: Na virada do século XIX para o século XX já se encontravam nas análises das ciências humanas e sociais, e não apenas ao campo das ciências biológicas a ideia positiva de uma competição na qual os indivíduos mais fortes deveriam prevalecer em detrimento dos mais fracos. Essa ideia também fora aplicada aos Estados, visto sua analogia orgânica. Mais tarde, essa interpretação seria utilizada como discurso para ratificar a condução dos Estados no processo nacionalista, imperialista e nas Grandes Guerras Mundiais (AMUSQUIVAR e PASSOS, 2018, p. 24). Mais um aspecto relevante da obra de Mackinder é o reconhecimento como um dos mais expressivos “realistas” da teoria política moderna. O pensamento do autor mencionado sempre teve suporte de fontes de dados e métodos científicos que definem com consistência a política internacional em termos de equilíbrio de poder como uma expressão de relações racionais e estratégicas, ainda que essa abordagem seja feita em sua complexidade, considerando determinações territoriais na construção da história humana (ASHWORTH, 2011). Para contextualizar o ambiente de discussão em que o autor se inseriu é relevante afirmar que a área de estudos geográficos no Reino Unido, diferentemente da Alemanha e da França, foi institucionalizada por meios não ligados ao Estado e tampouco à academia, mas sim por empreendedores coloniais. A Sociedade Real de Geografia era uma organização que compreendia esse estrato da sociedade britânica. O objetivo dos pesquisadores era analisar as condições de investimentos sobre áreas colonizadas. Essa sociedade foi responsável por diversas expedições, como as de Charles Darwin, David Livingstone e Robert Scott. Principalmente, foram realizadas expedições aos Polos Norte e Sul e ao topo do Monte Everest (LIVINGSTONE, 2003, p. 32). 32 Em 1904, após a exposição de sua pesquisa na Sociedade Real de Geografia, Mackinder transcreveu e aprimorou o conteúdo mencionado, e publicou o artigo que sintetiza as perspectivas que representam a geopolítica clássica: “O Pivô Geográfico da História”. Concluídas as pesquisas de campo derivadas de grandes expedições, na virada do século XIX para o XX, Mackinder formulou o texto em questão fazendo uso de amplas generalizações geográficas e históricas para afirmar a ideia de que há influência da geografia sobre o decorrer da história mundial. O professor avaliava que naquele período de avanços acadêmicos e científicos pode-se “perceber algo da proporção real de recursos e eventos em escala mundial, e pode-se buscar uma fórmula que expressa certos aspectos, pelo menos, do nexo de causalidade geográfica na história universal” (MACKINDER, 2004, p. 4). Há no escrito disposição clara de determinação de caráter científico pela criação de uma fórmula. No trecho citado há a manifestação da busca por comprovação de cientificidade da área de estudos proposta. Paralelos com as metodologias das ciências duras podem ser traçados, por consequência. Por outro lado, o interesse por uma explicação universal da história deriva da expressão de um espírito nacional protestante devido à reivindicação de posição missionária em prol da “evolução” da humanidade. Há uma compreensão automática ou mesmo inconsciente da história por suposições progressistas e unidirecionais sob a liderança da civilização ocidental. A história é visualizada como uma trajetória da evolução humana. Sendo assim, tempo e espaço determinam os pressupostos fundamentais da geopolítica clássica de modo mais evidente na obra de Mahan. Trata-se de uma área de estudos marcada por um momentum cientificista e racional e por um ambiente nacional imperialista e colonial que contraditoriamente justificava suas ações internacionais pelas causas espiritualmente humanitárias do cristianismo (CARMONA, 2012). Indo além, o autor declara que se tivesse sorte ao publicar seus estudos (e teve) a fórmula proposta “deveria ter um valor prático na definição da perspectiva de algumas das forças concorrentes no atual momento da política internacional” (MACKINDER, 2004, p. 4). De modo contínuo, as teorias estruturalistas de Relações Internacionais que sucederam a geopolítica clássica também põem em perspectiva as grandes potências concorrentes pela primazia no sistema internacional. E as ambições pela instrumentalização da teoria não podem ser dispensadas ou desconsideradas. A geopolítica pode ser entendida como uma teoria 33 utilitarista e funcional, totalmente voltada para a produção de medidas práticas. A teoria e a prática dialogam enquanto componentes complementares. O autor em foco declara o objetivo de seu trabalho em termos razoáveis e claros: Meu objetivo não é discutir a influência deste ou daquele tipo de recurso ou, ainda, fazer um estudo da geografia regional, mas sim expor a história humana como parte da vida do organismo mundial. Eu reconheço que só posso chegar a um aspecto da verdade, e eu não tenho nenhum desejo de fugir perder-me (sic) em um materialismo excessivo. O homem inicia e não a natureza, mas esta em grande parte determina. Minha preocupação é com o controle físico geral, ao invés das causas da história universal. É óbvio que apenas uma primeira aproximação da verdade pode ser esperada (MACKINDER, 2004, p. 4). Sinergicamente, o resultado dessa abordagem, que deriva de um espaço e um tempo bastante ilustrativos e que não podem ser desconsiderados na presente pesquisa, é uma forma científica de tipo determinista e naturalista. Frente à relação entre o ser humano e o meio ambiente, há primazia na determinação do ser por parte do meio em que se encontra, de acordo com o presente referencial teórico. Desde as conceituações feitas pela Escola Alemã, o ambiente é compreendido como “habitat” e “organismo” que funciona como parcial e indispensável força motriz da história humana politizada em escala global (VESENTINI, 2000). Essa posição teórica expressa contrariedade às perspectivas que avaliam que há relevância mais expressiva nas iniciativas humanas que conduzem a história mundial (MORAES, 2009). Para explicar a movimentação da história internacional, o papel da diplomacia não pode ser sobreposto em relação a variáveis úteis e dotadas de pesos específicos, ainda que os políticos, diplomatas e representantes internacionais sejam os agentes ativos da política internacional. Indo na contramão de teorias como a da “história diplomática” e da “história dos grandes homens”, Mackinder, consequentemente, estava interessado em afirmar quais seriam as forças de constrangimento natural que agiriam como condicionantes sobre as variáveis da política entre Estados, constituindo “controles físicos”. O geógrafo em verificação estava interessado em gerar uma nova ciência, avançando ao estatuto de “lei” inerente às ciências duras e sobrepujando conceituações humanísticas: [...] parece-nos bastante evidente que a Geopolítica clássica procurou afirmar-se como uma nova ciência através de um processo que podemos designar como imitatio scientiae (i.e. procurou constituir-se como ciência por cânones positivistas, mais ou menos próximos do modelo das chamadas Ciências Naturais). Este facto pode detectar-se na sua preocupação de captar a realidade geográfico-política tal como ela é (i. e. na sua preocupação de uma objectividade «realista»), na separação das análises geográfico-políticas e das questões éticas por elas levantadas, e no seu esforço de estabelecer leis e efectuar previsões, entre outros aspectos. Sintomaticamente, este esforço de aproximação ao modelo das Ciências Naturais 34 ressalta, de alguma maneira, da já referida citação de Democratic Ideals and Reality, de Halford Mackinder: «quem controlar a Europa de Leste domina o Heartland; quem controlar o Heartland dominará a Ilha-Mundial; quem controlar a Ilha-Mundial dominará o mundo», que é a mais famosa de toda a Geopolítica, e que, talvez por isso mesmo, foi quase elevada ao estatuto de «lei científica» em muitos dos textos que a referem simplificadamente (FERNANDES, 2002, p. 16). A percepção registrada é fortemente moldada pela inserção do autor em uma delimitação temporal modernista que deu lugar à revolução científica representada pelas contribuições de Galileu Galilei, Isaac Newton etc. Essa onda de renovações metodológicas objetivas, no entanto, trouxe diferentes manifestações e facetas na medida em que avançou pelo mundo. A territorialidade molda a concepção da propagação informacional de acordo com diferentes necessidades e condições do povo que a ela pertence, produzindo culturas científicas. A racionalidade objetivamente expansionista, frente a essa processualidade, foi selecionada como a escolha mais adequada para o desenvolvimento da geografia e da geopolítica como disciplinas científicas: Em uma escala diferente de análise – a região – a ciência também foi marcada por circunstâncias geográficas. Em diferentes contextos regionais europeus, as formas de investigação que mais tarde passaram a ser descritas como “a Revolução Científica” traziam a marca de suas arenas locais de engajamento. Em alguns casos, uma cultura marítima era a principal força motriz por trás do cultivo de atividades científicas; em alguns predominava uma cultura cortês; em outros, a convicção religiosa foi o agente modelador; em outros ainda, as ambições econômicas forneceram tanto ímpeto quanto constrangimento. Em outros lugares, e também na escala sub-regional, outras combinações circunstanciais foram operadas. Qualquer que fosse o trabalho, aquelas atividades que vieram a ser reunidas sob a designação de “ciência” estavam enraizadas nas particularidades do lugar. E, portanto, não é de surpreender que em diferentes locais as teorias científicas tenham sido recebidas de maneiras diferentes. Seja a filosofia mecânica de Newton, ou a teoria da evolução de Darwin, ou a relatividade de Einstein, o significado e as implicações dessas concepções científicas foram construídos de forma diferente em diferentes lugares (LIVINGSTONE, 2003, p. 181). Até a consolidação da geografia como área científica ao final do século XVIII, estudos dispersos e ainda sem rótulos deram andamento ao processo de avanço científico que marcou a época moderna e racional. Não só as contribuições científicas constituíram a formação do pensamento geográfico, como o próprio pensamento geográfico “pré-histórico”, disperso e ainda sem rótulo auxiliou na formulação das leis sistematizadas por Isaac Newton. A obra “Geografia Geral”, publicada em 1650, de Bernardo Varenius, um pioneiro da Geografia moderna, por exemplo, foi uma referência dos fundamentos das leis da Física. Houve, assim, uma determinação de mão dupla na construção científica das áreas em questão, pois ambas compartilham do espírito científico revolucionário do tempo em que estavam inseridas (MORAES, 2009, p. 11). 35 Após a sistematização da geografia, no desenvolvimento da geopolítica o pensamento físico-científico exerceu influência na obra de Mackinder pela suposição de que um “corpo” só para de se expandir quando é confrontado com barreiras físicas. Dessa maneira, a expansão de uma civilização é refreada e demarcada por delimitações traçadas pela natureza, como montanhas, mares, rios etc. Parte do epítome da geopolítica clássica, que mais tarde se fez presente no realismo político e nas teorias internacionais estruturalistas, julga que as relações de disputas de poder entre potências se manifestam em um sistema fechado. Uma vez que todos os territórios antes desconhecidos, como as Américas, África, Ásia e Pólos Norte e Sul, foram descobertos após a realização de grandes navegações e expedições coloniais, a história internacional avançava para uma nova etapa na época em que Mackinder escrevia. Pela avaliação de que todos os atores já se conheciam e não havia mais nada para ser desbravado ou para surpreender as iniciativas de expansão das grandes potências ocidentais, os cálculos para cada movimentação estavam se tornando mais seguros, pois todas as variáveis úteis eram compreendidas. Em outras palavras: pela primeira vez, todas as cartas do jogo estavam na mesa. No entanto, assim como um jogo de cartas, há as cartas mais fortes e mais fracas. Portanto, os raciocínios estratégicos deveriam passar a ser realizados dentro dessas prerrogativas: Toda explosão de forças sociais, ao invés de se dissipar em um circuito ao redor do espaço desconhecido e caos bárbaro, será fortemente ecoada do outro lado do globo, e os elementos fracos no organismo político e econômico mundial irão destarte romper-se. Há uma grande diferença de efeito na queda de uma barreira em um aterro, e sua queda em meio a espaços fechados e estruturas rígidas de um grande edifício ou navio. Provavelmente, alguns com alguma consciência desse fato, são os últimos a desviar parte significativa da atenção dos estadistas em todas as partes do mundo da expansão territorial para a luta por uma eficiência relativa (MACKINDER, 2004, p. 4). A despeito de limites físicos e objetivos que modulam as políticas externas dos Estados, o autor se mostra relativamente flexível ao assumir que expansões são viabilizadas pelo surgimento e pela afirmação de grandes ideias humanas que ambicionam fins do gênero durante periodizações favoráveis em termos de equilíbrio de poder entre potências em disputa. A caracterização do sistema internacional como algo “fechado” transformou os rumos da história, segundo a teoria em questão. Em um sistema aberto, quando um corpo muda de lugar os outros não mudam necessariamente, pois há grande variedade de possibilidades de movimentações no ambiente; em um sistema fechado as leis da física são obedecidas no relacionamento com o ambiente. Em um sistema fechado há, logo, maior previsibilidade, relacionalidade e, por isso, interdependência entre atores. Movimentações A são causas de 36 efeitos B, então há determinação lógica de A sobre B. Esse viés relacional explica a transposição das relações de poder definidas pela Ciência Política para a Geopolítica, conforme explicam Érika Amusquivar e Rodrigo Passos: Uma vez que o conceito de Estado passa a ser denominado pelas suas características determinísticas, isto é, pelo que está fadado a acontecer, Kjellén direciona o campo da geopolítica mais para perto da Ciência Política ao invés da Geografia. O Estado enquanto organismo possui poder, mas essa definição só pode ser relacional, ou seja, comparada ao poder dos outros Estados (2018, p. 25). A própria ideia de “Europa”, por exemplo, parte de fundações baseadas no “desconhecido” e na luta contra a invasão realizada pelo “outro”, isto é, pela Ásia. Segundo Mackinder, “foi sob a pressão externa da barbárie que a Europa conseguiu sua civilização” (2004, p. 5). O confronto dos europeus contra os asiáticos teria unido o continente que possuía antes suas próprias disputas por poder. De modo polêmico, Mackinder esbanja aqui uma perspectiva etnocêntrica, que visualiza os asiáticos como “bárbaros” ou “incivilizados”. Entretanto, o etnocentrismo ocidental de Mackinder não o impediu de abandonar o eurocentrismo metodológico quando adotou a delimitação espacial eurasiática. Para o teórico, a “ilha-mundo” ou o coração continental da Eurásia determinaria as relações entre Ásia e Europa dentro de uma processualidade de mobilidade de poder terrestre marcado pelo deslocamento de nômades por uma porção terrestre gigante. A história, então, seria movida pelos conflitos entre o interior da Eurásia (o coração continental) e suas quatro regiões marginais (Europa, Oriente Próximo, Índia e China). Na direção norte, porém, a região estaria coberta por gelo (MELLO, 1997). Uma compreensão newtoniana e darwinista é reiterada, ainda, pelo entendimento de que um corpo permanece firme em um ambiente porque está adaptado, e de lá tende a gravitar, se expandindo. As premissas inerentes em camadas internas da perspectiva do autor indicam que a adaptação bem-sucedida às disputas por seleção determinadas pelo ambiente compõe a dinâmica-chave para a construção civilizacional, justificando processos de determinação da biologia e do território rumo à expansão (LIVINGSTONE, 2003, p. 2) Partindo desse viés, são produzidas avaliações que compreendem que povos originários de territórios abundantes em recursos e dotados de climas tropicais não necessitam do mesmo esforço empreendido por populações que habitam locais com solos menos férteis e climas desfavoráveis devido ao frio, por exemplo. O conjunto referido constrói uma categoria relacional que cria margens para raciocínios etnocêntricos e deterministas, pela dinâmica ação-reação, isto é, em que pressões físicas trazem reações físicas (MORAES, 2009, p. 20). 37 As justificativas para as disparidades de poder trazem à tona a consideração da “mobilidade” do poder. Preocupado com questões estratégicas úteis à Europa, Mackinder divide o mundo entre populações nômades e vikings ou poderes terrestres e marítimos. As populações nômades têm a mobilidade de seu poder “condicionada pelas estepes, e necessariamente interrompida nas florestas e montanhas circundantes [... e] o poder rival dos vikings era condicionado pela mobilidade em seus barcos” (MACKINDER, 2004, p. 9). Mackinder, por consequência, cria um sistema de pressões mútuas entre terra e mar e uma rivalidade natural. Ao reconhecer as disputas naturais entre poder terrestre e poder marítimo, o geógrafo traz uma contribuição conceitual própria à tona ao questionar a primazia do poder marítimo. Para a geopolítica de Mackinder (2004, p. 14-15) o poder terrestre é profundamente mais determinante para a formulação estratégica dos Estados, apesar de superficialmente parecer ter sido superado. Para sustentar seu argumento, o autor lembra que na Idade Média a disputa pelo istmo de Suez3 levou à necessidade de consolidação desse tipo de poder móvel pelos povos que habitavam o coração continental, marginalizando a função do poder marítimo dos povos das regiões marginais. Entretanto, já durante a era colombiana, a Europa moderna contra-atacou os povos eurasiáticos através da então nova rota marítima do Cabo da Boa Esperança4. Depois disso, o poder marítimo teria superado temporariamente o terrestre e tomado seu lugar de protagonista na história moderna, criando uma impressão de primazia devido a uma sucessão estratégica bem-sucedida. Assim, as potências com forças de mobilização marítima organizaram “um cinturão de bases exteriores (formado pela Inglaterra, Canadá, Estados Unidos, África do Sul e Austrália), que configurou uma retaguarda estratégica inacessível a um contra-ataque do poder terrestre, sitiado agora no interior do coração continental” (MELLO, 1997, p. 26). Apesar da nova supremacia do poder terrestre sobre o marítimo, o primeiro continuou a existir e se modernizar, mesmo sofrendo com comparativa desvantagem econômica e tecnológica. Após a ascensão do Ocidente, que protagonizou as Revoluções Industriais, as potências líderes da ordem internacional aprimoraram as tecnologias da mobilidade do poder marítimo, por exemplo, pela invenção do barco a vapor e pela construção do canal de Suez. Por outro lado, o surgimento das locomotivas e das ferrovias transcontinentais também 4 Percurso relevante localizado no sul da África que foi descoberto em 1488, marca a transição entre os oceanos Atlântico e Índico e que se tornou uma alternativa à rota de seda. 3 Estreito que separa os mares Mediterrâneo e Vermelho e liga a África e a Ásia. Nele foi construído o canal de Suez. 38 representou um avanço das tecnologias de mobilidade terrestre dentro do coração continental. Esse progresso está relacionado com a mesma significação que a logística de mobilidade a cavalo e a camelo tiveram na Antiguidade e na Idade Média, mas assume uma nova faceta. Avaliando as potencialidades de tais processos, estes poderiam permitir uma exploração exclusiva da Sibéria pela Eurásia, gerando um polo econômico geograficamente exclusivo e autossuficiente em longo prazo. Com essas transformações, que gerariam um Estado-pivô, a correlação de forças geopolíticas poderia ser modificada e a Eurásia poderia ascender novamente. No entanto, tal Estado estaria rodeado por um arco interior (Alemanha, Áustria, Turquia, Índia e China) e outro exterior (Inglaterra, Canadá, Estados Unidos, África do Sul, Austrália e Japão). Ambos constituiriam um sistema defensivo natural contra a expansão do Estado-pivô, mas se o Estado realizasse investimentos em prol do desenvolvimento de uma poderosa frota e, também, se aliasse à Alemanha, segundo Mackinder (2004, p. 18), poderia se tornar o centro de um império mundial. As forças do Ocidente necessitariam garantir a separação entre a Alemanha e a Rússia e o enfraquecimento militar de ambas para manter sua hegemonia. Por isso, o autor propôs a formação de uma barreira constituída por Estados-tampões da Europa Oriental a partir do mar Báltico até o mar Negro. Essa barreira seria chamada de “cordão sanitário”. E a instrumentalização desse conceito perdura até a atualidade: O “cordão sanitário” mackinderiano não impediu a eclosão da Segunda Guerra – ainda que Alemanha e União Soviética tenham ficado em lados opostos –, mas continuaria o principal paradigma para a reorganização política da Europa após este novo conflito, e novamente com o fim da Guerra Fria através da desintegração da União Soviética e da Iugoslávia (BRIGOLA e DE ALBUQUERQUE, 2011, p. 28). Para Mackinder, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não modificou a luta entre o poder marítimo e o terrestre. Somente o segundo se fortaleceu após o desenvolvimento da aviação, do automobilismo e das ferrovias. Contudo, a Revolução Russa (1917) não alterou a situação geopolítica da Rússia, que continuou sendo um Estado-pivô inclinado a se expandir sobre suas margens. Essa guerra, então, apenas adiou a decisão entre os dois poderes (MELLO, 1997, p. 30). A oposição entre populações que projetam e mobilizam poder por instrumentos inseridos nos meios terrestres ou marítimos compõe o quadro de disputas da geopolítica clássica. E este é o princípio basilar para a compreensão da teoria do Heartland5. Dentro dessa disputa existe uma grande meta final a ser atingida: se uma população terrestre puder alcançar 5 Em português: “Coração continental”. Contudo, é comumente não traduzido para o português em diversas referências acadêmicas. 39 a possibilidade de se tornar marítima, poderá dominar o mundo inteiro. Esse é o fundamento lógico da máxima de Mackinder frequentemente parafraseada em estudos geopolíticos: Quem domina o Heartland domina a ilha mundial, e quem domina a ilha mundial domina o mundo6. O coração continental referido teria uma capacidade de poder centrífuga pelos seguintes motivos: 1) posição central entre as massas continentais europeias e asiáticas; 2) grande mobilidade ao norte, com planícies; 3) oferecimento de grande área de retaguarda estratégica na Eurásia; 4) vasta concentração de recursos naturais; 5) enclausuramento em relação às saídas marítimas de águas quentes dificulta possibilidades de neutralização e conquista pelas potências marítimas – o acesso marítimo dificultoso se dá pelas águas frias do Oceano Ártico ao norte. Estas características geraram um padrão: o pivô geográfico de explicação da história observável desde as invasões dos mongóis contra a Ásia e a Europa central até a expansão do império russo. Diante da observação desses fatores, algumas conclusões produzidas por Mackinder (2004) apontaram que: o controlador do poder central buscaria poder terrestre para se expandir, neutralizando o poder marítimo; e a grande potência controladora do Heartland precisaria se projetar para as saídas marítimas quentes saindo da região do crescente interno. Toda a margem do velho mundo mais cedo ou mais tarde sentiu a pressão do poder móvel da estepe. Enquanto isso, a mobilidade oceânica se posicionou como rival das formas de mobilização terrestre (representadas por camelos e cavalos). Delimitando e tipificando repartições territoriais, a Eurásia compõe o Heartland, possui povos nômades e envolve as maiores porções de mobilidade de forças terrestres e os países com saída ao mar, especialmente os insulares, têm um perfil populacional viking e mobilizam poder marítimo. O Oriente Médio se qualificaria, por sua vez, como uma categoria literalmente intermediária para tais definições, pois os povos pertencentes aos países da região já conquistaram margens e porções dos mares Mediterrâneo, Vermelho e Negro, e o Oceano Índico, enquanto mantiveram um perfil de movimentação por terra. O Heartland é composto por uma grande porção territorial que é distinguida como uma área pivô, isto é, que sustenta a direção de movimentação das disputas geopolíticas. No contexto eurasiático, a área pivô tem uma abrangência completamente terrestre e se estende 6 Máxima não citada diretamente no “Pivô Geográfico da História”, publicado em 1904, ainda que no artigo haja todas as condições e afirmações para atestar a presença desta como um significado geral. A máxima foi publicada em Democratic Ideals and Reality, em 1919, quando Mackinder buscou alertar os vencedores da Primeira Guerra Mundial para que estes impedissem que houvesse domínio de um Estado ou bloco de Estados concentrados sobre o Heartland (FERNANDES, 2002). 40 do Rio Volga (Rússia) ao Yangtzé (China) e da cadeia montanhosa dos Himalaias (Butão, China, Índia, Nepal e Paquistão) à Região Ártica (Alasca – Estados Unidos –, Canadá, Finlândia, Noruega, Rússia e Suécia). Assim, forma-se uma área circular que, adicionalmente, é circundada pelo que Mackinder chamou de “crescente interno” e “crescente externo”, que são mais dois cinturões de abrangência territorial externa ao pivô com dois níveis de gradação. Ambos possuem um alcance transcontinental, mas o primeiro tem um aspecto anfíbio, envolvendo porções de terra e dos oceanos que as banham; o segundo abarca uma área totalmente oceânica. O crescente externo permeia o Hinterland, que diz respeito ao restante do mundo fora do Heartland e assume um perfil de dependência e afirmação de forças logísticas e militares de mobilização marítima. Figura 1 – O mapa do coração continental eurasiático Fonte: MACKINDER, 2004, p. 17. As categorias de região pivô e de equilíbrio de poder dialogam nesta teorização. O equilíbrio de poder é um conceito trazido pela tradição realista da ciência política, mas aqui ganha uma determinação natural e territorial: A definição do equilíbrio de poder, em favor do Estado Pivô, que resulta em sua expansão sobre as terras marginais da Eurásia, permitiria a utilização dos vastos recursos para a construção da frota continental, e o império do mundo, então, estaria à vista. Isso pode acontecer se a Alemanha viesse a se aliar da Rússia [...] as combinações particulares de poder postos em equilíbrio não são exatas; minha tese é que, do ponto de vista geográfico, é provável que as combinações mais prováveis ocorram em torno do Estado Pivô, que é sempre suscetível de ser grande, mas com 41 mobilidade reduzida em comparação com o ambiente periférico e os poderes insulares (MACKINDER, 2004, p. 18). A lógica de poder como categoria relacional em um sistema fechado de Estados evoca a necessidade de reconhecimento da relacionalidade como um fato, como uma condição de existência, que deve preceder qualquer formulação estratégica racional (AMUSQUIVAR e PASSOS, 2018, p. 25). Transformações internas, como avanços em capacidades materiais (crescimento econômico e de orçamentos militares), automaticamente exercem pressões sobre outros atores do sistema, provocando um “efeito dominó”. Entretanto, essa pressão ganha maior força quando se localiza nos territórios do entorno eurasiático, que concentraria uma vasta porção territorial de facilidades de acesso logístico a recursos estratégicos. Então o equilíbrio de poder deve ser mensurado por dois níveis: o que envolve as variáveis geográfica, econômica e militar em primeiro lugar; e, em segundo, o que abrange condições populacionais, números demográficos, visibilidade, equipagem e organização. A conclusão objetiva de Mackinder (2004) é que a formulação interna de políticas estratégicas da Grã-Bretanha deveria sempre considerar as políticas e as composições de outros países, tendo em perspectiva a posição de primazia que a divisão territorial do Heartland naturalmente possui. A recomendação do geógrafo é que devem ser exercidas táticas de contenção contra concorrentes e rivais que ocupam a área, enquanto a influência deve ser buscada em seu entorno estratégico. Essa foi a centelha do avanço conceitual desta área do conhecimento em um prolífico período de grandes guerras que necessitava de contribuições instrumentais do gênero. A teoria de Mackinder influenciou autores como o general alemão Karl Haushofer e o estrategista estadunidense Nicholas Spykman. Haushofer é responsável pela proposta de edificação de um bloco eurasiático. Para o autor, a Alemanha deveria se alinhar com a União Soviética e com o Japão para formar um bloco transcontinental eurasiático e liderado pelo Terceiro Reich7. Partindo de uma perspectiva estratégica alternativa, que representa os 7 Segundo Haushofer, tendo a Alemanha sido derrotada pelas forças do Ocidente na Primeira Guerra Mundial (1914-8), um caminho para a restauração de sua hegemonia se daria através da constituição de um bloco transcontinental de potências euroasiáticas. Tal bloco ideal seria composto por Alemanha, União Soviética, China, Índia e Japão. Principalmente a URSS seria necessária para que houvesse controle, por parte da Alemanha, da área compreendida como “Heartland” da Eurásia e suas regiões marginais. Por meio desta coalizão o poder terrestre teutônico ascenderia, seguindo os preceitos teóricos de Mackinder. Um desdobramento histórico das formulações teóricas de Haushofer é exemplificado pelo chamado pacto de não agressão germano-soviético (ou “pacto Molotov-Ribbentrop”) em 1939. O firmamento desse pacto representou uma vitória dos partidários de Haushofer no círculo dirigente do Terceiro Reich. Após firmar uma relativa aliança com a URSS, os nazistas poderiam avançar contra a Ásia, levando ativamente a guerra para o outro continente para se aproximar das colônias inglesas (principalmente a Índia) e desafiar a hegemonia de tal potência. O Japão seria um aliado fundamental nas operações que seriam lançadas sob tal processo. Essa manobra evitaria a intervenção dos Estados Unidos na Segunda Guerra. Em 1941, todavia, o bloco eurasiático 42 objetivos exteriores dos Estados Unidos, Nicholas Spykman (1942) desenvolveu a teoria da consolidação do poder marítimo anglo-americano por meio do cerco do “Heartland” após a dominação do “Rimland”8. A obra de Spykman recomenda que o isolamento da Ilha-Mundial deve ir além do rimland para que, efetivamente, a segurança nacional estadunidense seja garantida. Assim, se faz necessário garantir pontos de apoio na América Latina, na África, na Oceania e nas margens meridionais da Ásia. Bases militares estratégicas podem ser instaladas nesses locais, por exemplo. Vale ressaltar, contudo, que qualquer aliança militar firmada deveria ser limitada e realizada com cautela. Relações de equilíbrio de forças constantes deveriam ser mantidas. Uma Europa unida, industrializada, rica e fortemente armada pode ameaçar a hegemonia estadunidense em uma correlação de forças futura. As associações em curto prazo, por isso, devem ser sempre calculadas cautelosamente. A mesma consideração se aplica à Ásia. Um Japão poderoso demais pode ameaçar os EUA, mas, ainda mais do que este, a China é o Estado com maior potencial para tomar o posto estadunidense de líder mundial devido à extensão e à demografia robustas que ao possuírem tecnologia e fortes armamentos podem comprometer os EUA para sempre (MELLO, 1997). As teorias geopolíticas clássicas evoluíram notavelmente ao longo do século XX, sendo construídas como armas úteis ao Departamento de Estado dos EUA e às agências de inteligência do mundo inteiro. Compreendendo funções diferentes de acordo com aplicações às posições de cada Estado em recortes temporais precisos, primeiro a geopolítica foi desenvolvida nos prenúncios e nos andamentos das grandes guerras mundiais, depois foi adaptada à Guerra Fria (1947-1991). O surgimento da URSS após a Revolução Russa em 1917 edificou uma potência impositiva no epicentro da Eurásia, desafiando as pretensões hegemônicas globais dos EUA. O foco territorial da teoria geopolítica na região que envolvia a URSS estava, então, concatenado com a realidade que era iniciada no pós-guerra. É nesse 8 O conceito principal formulado por Spykman é o de “Rimland”, que corresponde geograficamente a uma ressignificação ampliada do “crescente interno” mackinderiano (KORYBKO, 2018). O “Rimland” seria formado pelos limites continentais (regiões anfíbias, isto é, com frente marítima e terrestre) da periferia da Eurásia, cercando o “Heartland”. Seria “um colossal semicírculo que se estendia da Europa Ocidental, passando pelo Oriente Médio e Ásia Meridional, até o Extremo-Oriente” (MELLO, 1997, p. 48). Essa área funcionaria como uma zona de amortização entre os poderes marítimo e terrestre, possibilitando que o primeiro controlasse os Estados constituintes do cerco. Isso permitiria que as forças anglo-americanas instrumentalizassem tais Estados, auxiliando-os, para isolar o poder terrestre. Isso ocorreria, concretamente, por exemplo, através da instalação de bases militares internacionais ao longo do “Rimland”. Spykman inverteu a fórmula geopolítica de Mackinder afirmando que: “quem controlar os espaços periféricos (“Rimland”), dominará a Eurásia; quem dominar a Eurásia, controlará os destinos do mundo” (MELLO, 1997, p. 50). em gestação foi cancelado devido à invasão da União Soviética. Esse foi o momento em que os partidários do general Haushofer foram derrotados pelo círculo de Hitler e a Alemanha caminhou para a derrota na guerra em 1945. 43 instante que o Heartland começa a ser tratado praticamente como um local de disputa e um palco de sucessivas guerras de procuração, revoluções e contrarrevoluções que exprimiam expansões e contrações dos EUA e da URSS. Durante o período entreguerras (1914-1945) o pensamento geopolítico recebeu a contribuição da teoria do “Prometeísmo estratégico” pelo estadista polonês Józef Piłsudski. O pensamento de Piłsudski é orientado por uma inclinação antirrussa e que tinha como finalidade traçar um plano inicial de fragmentação da URSS. Korybko (2018) sintetiza o prometeísmo pela explanação do modus operandi que defendia: de alguma maneira, os cidadãos não russos que viviam sob a periferia da URSS deveriam ser influenciados externamente para se rebelar contra o centro do bloco de países. Como resultado, a URSS inteira seria fragmentada em diferentes entidades étnicas independentes, antirrussas e que poderiam se dispor a formar uma aliança com a Polônia. O projeto ambicioso de Piłsudski não teve sucesso na prática, apesar de ao longo de seu governo ter atingido objetivos geopolíticos de contenção parcial e temporária à expansão da URSS como resultado da Guerra Polaco-Soviética (ZAMOYSKI, 2008). Porém, teoricamente, em harmonia com o entusiasmo mackinderiano sobre a responsabilidade de projeção de poder do Ocidente sobre o entorno da área pivô da geopolítica, o líder polonês foi uma imagem histórica pioneira de um planejamento pragmático em torno da ideia de que a desestabilização estratégica da periferia pode ser canalizada para o interior da Rússia. Essa é “a gênese espiritual da ideia altamente influente dos Bálcãs Eurasiáticos de seu compatriota Zbigniew Brzezinski” (KORYBKO, 2018, p. 12). Após a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, teve início a Guerra Fria, marcada pela fragmentação do grupo devido à rivalidade estratégica sino-russa. Por consequência, os EUA formularam a “Doutrina da Contenção” inspirada no famoso artigo X, publicado em 1947 por George Kennan, e no documento do Conselho de Segurança Nacional (NSC-68). Em sua manifestação pragmática, a “Doutrina da Contenção” ganhou forma por meio da criação de instituições como Doutrina Truman, Plano Marshall, OTAN, OTASE e CENTO e pela formação de alianças militares bilaterais com países asiáticos, como Japão, Coreia do Sul e Filipinas. Estas alianças podem ser retratadas geograficamente como um cerco sistêmico de contenção à URSS dentro das áreas dos crescentes interno e externo ao redor do Heartland (PAUTASSO, 2019). 44 O pensamento geopolítico atinge seu ápice em termos de produção de resultados estratégicos estadunidenses ao atravessar as contribuições do já citado Spykman e, ao fim do século XX, desencadear na obra do cientista político e Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA do governo de Jimmy Carter (1977-1981), Zbigniew Brzeziński. A inovação nos escritos dos autores se encontra na identificação da possibilidade de direção da política internacional pelo controle dos crescentes internos e externos, dispensando a tarefa mais agressiva e ambiciosa de lutar pelo controle da área pivô. Tirar o domínio da periferia da área pivô já é suficiente para influenciar os destinos da política global. Ao dar andamento à formulação estratégica da geopolítica por um viés instrumental para os EUA, Brzeziński evocou em sua obra-prima publicada em 1997, “O Grande Tabuleiro de Xadrez”, a categoria de “balcãs eurasiáticos” pela exploração instrumental da realidade social e étnica da região identificada por precursores como um conjunto de Estados-tampão relevantes para que o domínio do Heartland fosse refreado. Um exame da história das disputas sociais impulsionadas pela plurinacionalidade concentrada nos Balcãs leva à conclusão oportunística de que forças passíveis de cooptação podem servir como aparatos úteis às pretensões mais extensas das grandes potências. Nesse sentido, Brzezinski cita Mackinder diretamente em sua obra como uma influência secundária (BRZEZINSKI, 1997, p. 38), sem assumi-lo como referência das suas análises geopolíticas. A definição do autor sobre os Balcãs também está conectada com os objetivos táticos traçados pelo prometeísmo de seu conterrâneo, Piłsudski, servindo, porém, à estratégia hegemônica dos EUA. Seu escrito também se distingue por significar uma conclusão sobre iniciativas militares historicamente bem-sucedidas devido à vitória dos EUA na Guerra Fria9. Como resultado, dialogando com a história recente das vitórias militares indiretas dos EUA, a zona prioritária demarcada em sua análise se desloca entre Eurásia, Ásia Central e Meridional, e Oriente Médio: Na Europa, a palavra “Balcãs” evoca imagens de conflitos étnicos e rivalidades regionais de grandes potências. A Eurásia também tem seus "Bálcãs", mas os Bálcãs da Eurásia são muito maiores, mais populosos, ainda mais heterogêneos religiosa e etnicamente. Eles estão localizados dentro desse grande oblongo geográfico que demarca a zona central de instabilidade global [...] que abrange porções do sudeste da Europa, Ásia Central e partes do sul da Ásia, a área do Golfo Pérsico e o Oriente Médio. Os Bálcãs da Eurásia formam o núcleo interno desse grande oblongo [...] e 9 O planejamento estratégico proposto por Brzeziński para a atuação dos EUA na Guerra do Afeganistão (1979-89) foi decisivo para que a URSS gastasse recursos militares até atingir um limite econômico e social que contribuiu para que fosse instaurada a crise que levou ao seu esfacelamento. A guerra por procuração foi desencadeada pela criação dos Mujahedin como força terrorista e contrarrevolucionária armada e treinada pela CIA no âmbito da Operação Ciclone (GASPER, 2001). 45 diferem de sua zona externa de uma maneira particularmente significativa: são um vácuo de poder. Embora a maioria dos Estados localizados no Golfo Pérsico e no Oriente Médio também seja instável, o poder americano é o árbitro final dessa região. A região instável na zona externa é, portanto, uma área de hegemonia de uma só potência e é moderada por essa hegemonia. Em contraste, os Balcãs da Eurásia são realmente uma reminiscência dos Balcãs mais antigos e mais familiares do sudeste da Europa: não só as suas entidades políticas são instáveis, mas também tentam e convidam à intrusão de vizinhos mais poderosos, cada um dos quais está determinado a se opor à dominação da região por outro. É essa combinação familiar de vácuo de poder e sucção de energia que justifica a denominação de "Bálcãs da Eurásia" (BRZEZINSKI, 1997, p. 123-4, tradução nossa). Figura 2 – Balcãs eurasiáticos Fonte: BRZEZINSKI, 1997, p. 124 Após todos os desdobramentos teóricos da geopolítica ao longo do século XX, ao fim da Guerra Fria (1991) surge um ímpeto de consolidação e institucionalização dos valores liberais e de mercado na ordem internacional que se reconfigurara da bipolaridade para a unipolaridade liderada pelos EUA. Dentro desse fluxo de processos transformadores que inauguraram uma globalização que teve as instituições americanas como núcleo gerador de interdependência econômica entre os atores do sistema internacional, então reforçando componentes táticos essenciais à hegemonia estadunidense, uma definição de geopolítica aparentemente “nova” começa a ser desenhada em harmonia com tal momento: a geoeconomia (PECEQUILO, 2017). 46 Ao fim do século XX, o ambiente acadêmico se tornara fértil para uma contribuição intelectual do gênero da geoeconomia. Os princípios da geopolítica clássica saíram de cena no mainstream teórico para que fossem propugnadas perspectivas plurais e correspondentes com táticas de exercício de projeção de poder e participação da ordem internacional globalizada e multilateralista conduzida pelos EUA. Segundo Vesentini (2000, p. 12), foi nesse momento de planejamento de uma hegemonia mundial adaptada ao século XXI que novas geopolíticas passaram a ser pensadas. Foi nesse impulso que as condições dadas pela realidade abriram margens para se pensar em uma teorização da geoeconomia. Segundo Blackwill e Harris (2020), geoeconomia diz respeito ao uso de instrumentos econômicos para produzir resultados geopolíticos benéficos. O estrategista estadunidense Edward Luttwak (1990) é o principal elaborador da teoria, uma vez que foi o primeiro a empregar o termo “geoeconomia” no artigo “From Geopolitics to Geoeconomics” na revista National Interest. O neologismo geoeconômico se dispõe, segundo Luttwak, “[a] descrever a mistura da lógica do conflito com os métodos do comércio – ou, como Clausewitz teria escrito, a lógica da guerra na gramática do comércio” (1990, p. 19, tradução nossa). Sumariamente, a geoeconomia caracteriza uma nova versão da antiga rivalidade entre os Estados. O arsenal geoeconômico envolve ações de orientações ou estímulos estatais nos seguintes âmbitos: capital para investimentos industriais, desenvolvimento de produtos subsidiados, penetração em mercados, e pesquisa e desenvolvimento. A teoria de Edward compara e logo sobrepõe os meios econômicos de atuação aos instrumentos militares ativos, pois os primeiros estariam entrando em maior evidência do que os últimos (LUTTWAK, 2001). É curioso observar que a abordagem do professor vai na contramão das tendências ocidentais que dão primazia aos pressupostos do laissez-faire. Esta abordagem surpreende o mainstream ao defender a presença relativa do Estado para que vantagens competitivas sejam obtidas. Entretanto, Pedro de Pezarat Correia (2015) chama a atenção para a ambiguidade inerente à subárea delineada por Luttwak. Frente a uma revisão bibliográfica é possível perceber que a relação entre economia e geopolítica não é uma novidade, pois instrumentos comerciais e financeiros sempre foram colocados em pauta em disputas estratégicas. Ainda, os autores que evocam a geoeconomia como subárea aparentemente autônoma apresentam visões conflitantes sobre a direção da determinação da relação que a constitui. Não há um consenso objetivo, como o apresentado por Blackwill e Harris (2020), sobre a geopolítica 47 determinar funções de subordinação aos instrumentos econômicos. Segundo De Pezarat Correia (2015), há múltiplos autores que abordam a geopolítica como objeto da economia, trazendo uma ambiguidade para que haja consolidação da subárea proposta por Luttwak (1990). Apesar das contradições bibliográficas, as referências da geoeconomia se impõem como um arsenal útil para a formulação da estratégia de grandes potências no século XXI, e por isso tal subárea está entrando em evidência. Teoria e história dialogam como um organismo de determinação mútua. Se a realidade atual impõe a necessidade de uma conceituação geoeconômica, os grupos interessados a põem em voga. É nesse ritmo que Graham Allison (2020) enxerga na grande estratégia da China contemporânea fundamentos geoeconômicos, estando concatenado com os alertas trazidos pelo próprio Luttwak já em 2012 no livro “The Rise of China vs. The Logic of Strategy”. Diante do desafio geopolítico entre China e Estados Unidos, que marca o século XXI devido ao crescimento econômico elevado e imparável da potência asiática emergente, a saída apontada para os Estados Unidos é a exploração de táticas relacionadas à economia dentro de uma grande estratégia geoeconômica, segundo Luttwak (2012). A geoeconomia pode ser enquadrada como um referencial útil para compreender a política externa chinesa devido ao seu foco em crescimento econômico por meio de exportações, principalmente. Investimento público-privado e consumo doméstico também são fatores relevantes para o crescimento econômico chinês, mas o primeiro tem funções voltadas a retroalimentação, manutenção e inovação tecnológica, enquanto o segundo se mantém constantemente relevante devido ao fato de a maior demografia do planeta estar concentrada na China, contando com cerca de 1,4 bilhão de habitantes e PIB per capita crescente. A atividade exportadora sistematizada desde a criação das ZEEs na costa leste do país teve uma função de longo prazo para que Pesquisa e Desenvolvimento e Ciência e Tecnologia avançassem em políticas industriais que tinham como base a engenharia reversa. Depois que esse processo atingiu patamares mais elevados, a logística exportadora chinesa foi aprimorada com a fundação da BRI (FARIAS e MARTINS, 2020). Coincidentemente, o contorno da BRI constante em seu projeto circunda toda a área compreendida como Heartland, mas ainda vai além, envolvendo o Rimland e mais áreas envolvidas, transcendendo os limites eurasiáticos e abordando também territórios ocidentais e africanos. A China, então, apresenta uma proposta de movimentação e ocupação logística por 48 meio de iniciativas comerciais e financeiras. Relações de troca e de investimentos marcam a presença do Estado chinês com um revestimento diplomático pacífico e adaptado aos preceitos da geoeconomia (JUNQUEIRA, 2019). Uma vez que o crescimento econômico chinês se dá por suas políticas industriais, forte atuação estatal no direcionamento de capital produtivo (JABBOUR; GABRIELE, 2021) e busca por recursos petrolíferos no golfo pérsico (MEARSHEIMER, 2014a) – presente no crescente interno mackinderiano –, a ascensão chinesa representa uma adequação adaptativa aos preceitos reconhecidos e sugeridos pela geoeconomia. Constatada a razão de ser e justificada a necessidade de desenvolver uma teoria geoeconômica, cabe uma síntese de seu escopo e do modus operandi que propõe. A geoeconomia executada por potências consiste, em suma, em dominar setores industriais, mercados e posições na cadeia de valor para que comportamentos geopoliticamente indesejados de países dependentes sejam suprimidos e, assim, disputas sejam vencidas indiretamente. Para isso, investimentos, direcionamentos e manutenções de capital são exigidos em longo prazo. É por essa via que uma condição estrutural defensiva é criada para que uma capacidade potencial seja reconhecida por todos os atores relacionados com a potência. Em curto prazo, após a conquista de um estatuto de detentora de relações verticais de dependência, uma potência pode agir ofensivamente pela imposição de sanções, tarifas, aumento de taxas de juros etc. A geoeconomia se revela como uma faceta da geopolítica útil em um período histórico em que as disputas são mais silenciosas do que antes devido à config