UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” – UNESP FACULDADE DE CIÊNCAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS NORBERTO BOBBIO E O DEBATE SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E PODER: A Proteção dos “Direitos do Homem” na Comunidade Internacional Juscelino da Silva Pessoa Araraquara – São Paulo 2016 Juscelino da Silva Pessoa NORBERTO BOBBIO E O DEBATE SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E PODER: A Proteção dos “Direitos do Homem” na comunidade internacional Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, Campus de Araraquara, sob orientação da professora doutora Maria Teresa Miceli Kerbauy como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Sociais. Araraquara – São Paulo 2016 1Ao mestre de música. Um salmo de Davi, servo do SENHOR. Não te indignes por causa das más pessoas; nem tenhas inveja daqueles que praticam a injustiça. 2Pois eles em pouco tempo secarão como o capim, e como a relva verde logo murcharão. 3Confia no SENHOR e pratica o bem; assim habitarás em paz na terra e te nutrirás com a fé. 4Deleita-te no SENHOR, e Ele satisfará os desejos do teu coração. 5Entrega o teu caminho ao SENHOR, confia nele, e o mais Ele fará. 6Ele exibirá a tua justiça como a luz, e o teu direito como o sol ao meio-dia. 7Aquieta-te diante do SENHOR e aguarda por Ele com paciência; não te irrites por causa da pessoa que prospera, nem com aqueles que tramam perversidades. 8Deixa a ira e abandona o furor; não te impacientes. Não te inflames, pois assim causarás mal a ti mesmo. 9Pois os malfeitores serão exterminados, mas os que depositam sua esperança no SENHOR herdarão a terra. 10Mais algum tempo apenas, e já não existirá o ímpio; tu o procurarás em seu lugar, porém não mais o encontrarás. 11Os humildes herdarão a terra e se deleitarão na plenitude da paz. (SALMOS 37, VV. 1-11). UNESP – FCLar Juscelino da Silva Pessoa http://bibliaportugues.com/psalms/37-1.htm http://bibliaportugues.com/psalms/37-2.htm http://bibliaportugues.com/psalms/37-3.htm http://bibliaportugues.com/psalms/37-4.htm http://bibliaportugues.com/psalms/37-5.htm http://bibliaportugues.com/psalms/37-6.htm http://bibliaportugues.com/psalms/37-7.htm http://bibliaportugues.com/psalms/37-8.htm http://bibliaportugues.com/psalms/37-9.htm http://bibliaportugues.com/psalms/37-10.htm http://bibliaportugues.com/psalms/37-11.htm P567n Pessoa, Juscelino da Silva. Norberto Bobbio e o debate sobre as relações entre Direito e Poder: a proteção dos “Direitos do Homem” na Comunidade Internacional/ Juscelino da Silva Pessoa. Araraquara: PPGCSo/UNESP, 2016. 139 f. Orientador (a): Maria Teresa Miceli Kerbauy Dissertação (mestrado) – UNESP/ Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais, 2016. Referências Bibliográficas: 133– 136 1. Teoria Política. 2. Democracia. 3. Estado Democrático de Direito. 4. Direitos Humanos. I. Maria Teresa Miceli Kerbauy. II. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. III. Título. CDD – 323. UNESP/FCLar Juscelino da Silva Pessoa NORBERTO BOBBIO E O DEBATE SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E PODER: A Proteção dos “Direitos do Homem” na comunidade internacional APROVADO PELA BANCA EXAMINADORA EM 18 DE AGOSTO DE 2016 Profa. Dra. Maria Teresa Miceli Kerbauy (UNESP) – Orientadora Profa. Dra. Maria Aparecida Chaves Jardim (UNESP) Prof. Dr. Thales Haddad Novaes de Andrade (UFSCar) AGRADECIMENTOS A Deus, pelo dom da vida, pela saúde, pela vontade de viver, pela capacidade de sonhar e de realizar uma grande quantidade de projetos, pelos recursos materiais que me sustentam e sustentam tais projetos, pela proteção física e espiritual, pelo amor incondicional demonstrado a cada dia e, enfim pela oportunidade de estudar e ampliar os horizontes do conhecimento; Aos meus familiares, pelo amor, pelo cuidado, dedicação, atenção e ajuda desde sempre; Aos meus amigos, os quais são para mim motivos de grandes alegrias; Aos irmãos da minha Igreja, em especial, ao pastor André, a pastora Branka e as suas filhas Caroline e Rebeca, os quais me receberam em São Carlos com demonstrações do verdadeiro amor de Jesus Cristo; À Professora Doutora Maria Teresa Miceli Kerbauy, por ter aceitado orientar a dissertação e todo o meu trajeto pelo curso de Pós-Graduação; A todos os funcionários, professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, em especial, à Professora Doutora Maria Aparecida Chaves Jardim, pelas valiosas sugestões, indicações e apoio imprescindível durante todo o curso; Aos professores Milton Lahuerta, Eduardo Garutti Noronha e Thales Haddad Novaes de Andrade, pela colaboração; Aos funcionários do Instituto Norberto Bobbio, em especial, a estagiária Fernanda, que me receberam no Circolo Italiano de portas e braços abertos e colaboraram com esta pesquisa com dedicação e competência. E, finalmente, à minha namorada, Natalia Baidina, canção de amor que traz inspiração, sentido e felicidade para a minha vida. Resumo A presente investigação tem como objetivo analisar criticamente as contribuições do pensamento de Norberto Bobbio para o debate sobre as lutas, as conquistas e a necessidade de proteger os “Direitos do Homem”. Bobbio chamou a era moderna de “A Era dos Direitos” e fez dos “Direitos do Homem” um objeto de estudo que completou uma trilogia que, segundo ele, é composta de “três momentos necessários do mesmo “movimento” histórico”. (BOBBIO, 1992). Os três momentos a que se refere o pensador italiano são Direitos do Homem, Democracia e Paz. Esta pesquisa visa a abordar o problema dos conflitos existentes nas relações entre Direito, Poder e Estado no contexto das lutas por reconhecimento, da redistribuição e da busca da proteção dos direitos do Homem. PALAVRAS-CHAVE: Bobbio; Direitos do Homem; Direito e Poder; Reconhecimento; Proteção dos Direitos do Homem. Abstract This research aims to critically analyze the Norberto Bobbio´s thinking contributions to the debate about the struggles, achievements and the need to protect the "human rights". Bobbio called the modern era "The Age of Rights" and made of "Human Rights" an object of study that completed a trilogy which, he said, consists of "three required times of the same historic move”. (BOBBIO, 1992). These three times referred to the Italian thinker are Human Rights, Democracy and Peace. This research aims to address the problem of conflicts in the relationship between law and power in the context of struggles for recognition, redistribution and the pursuit of protection of human rights. Key-words: Bobbio; human rights; law and power; recognition; protection of the human rights. Lista de Ilustrações Figura 1= Norberto Bobbio em seu gabinete, sorridente e rodeado de livros...............................................................................................................................28 Figura 2 = Assembleia do comissariado dos direitos humanos em Bruxelas, Bélgica ...................................................................................................................................... 113 Figura 3 = Atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo, em Paris, França, em janeiro de 2015 ..............................................................................................................................122 Figura 4 = Autoridades socorrendo as vítimas do ataque ao Charlie Hebdo ...............122 Figura 5 = Destroços de vagão de metrô em Bruxelas, Bélgica, após atentado terrorista .......................................................................................................................................123 Figura 6 = Barco lotado de imigrantes ilegais e rodeado de outros .............................125 Figura 7. Imigrantes sírios descansando em via férrea ................................................125 Sumário Introdução .............................................................................................................11 1 - A Formação Intelectual e as Filiações autorais de Norberto Bobbio ..................................................................................................................................28 I. A Vida e a Obra de Noberto Bobbio – uma breve biografia de um mestre da paz, da democracia e dos direitos do Homem ......................................28 II. As Filiações Intelectuais de Norberto Bobbio .....................................35 2– Direito e Poder no pensamento de Norberto Bobbio .................................46 I. O que é Direito? ....................................................................................47 II. O que é Poder? ......................................................................................56 III. A leitura de Norberto Bobbio da obra de Hans Kelsen.........................62 IV. A Teoria Pura do Direito e seus adversários ........................................66 V. As relações entre Direito e Estado na leitura de Norberto Bobbio da obra de Emanuel Kant ......................................................................................74 3. Os Direitos Humanos no pensamento de Norberto Bobbio....................81 A modernidade e seus conflitos – o berço dos “Direitos do Homem”.....82 II. Norberto Bobbio, o problema dos fundamentos e o problema da proteção dos Direitos do homem.................................................................................................95 III. O Estado e o problema dos direitos humanos .....................................104 IV. O problema da proteção dos “Direitos do Homem” na ordem interna dos Estados...................................................................................................................109 V. O problema da proteção dos “Direitos do Homem” no âmbito internacional..........................................................................................................113 VI. Os direitos humanos e a Comunidade Internacional...........................117 Considerações finais............................................................................................128 Referências ...........................................................................................................133 Webgrafia .............................................................................................................137 11 Introdução A presente pesquisa teve como objetivo analisar criticamente as contribuições do pensamento de Norberto Bobbio para o debate sobre as lutas, as conquistas e a necessidade de proteger os ―Direitos do Homem‖ no interior dos Estados e acima dos Estados, já que ele reconhece que tais entes são um dos principais réus nos casos de desrespeito àqueles direitos. Bobbio chamou a era moderna de ―A Era dos Direitos‖ e fez dos ―Direitos do Homem‖ um objeto de estudo que completou uma trilogia que, segundo ele, é composta de ―três momentos necessários do mesmo movimento histórico‖. (BOBBIO, 1992). Os três momentos a que se refere o pensador italiano são Direitos do Homem, Democracia e Paz. Esta pesquisa visa a abordar o problema dos conflitos existentes nas relações entre Direito e Poder no contexto das lutas por reconhecimento, da redistribuição e da busca da proteção dos direitos do Homem analisando as ideias de Bobbio e dialogando com alguns autores que se destacaram com estudos no campo da análise de tais problemas, como, por exemplo, William Edmundson (2006). A relação entre Direito e Poder é um problema de suma importância para o pensamento contemporâneo, tanto no que concerne à Filosofia (Filosofia Política e Filosofia do Direito), como no que concerne à Sociologia, à Ciência Política e à Ciência do Direito. Os conflitos entre os atores engajados nas lutas pela conquista de direitos de diversos tipos, como, por exemplo, os direitos civis, os direitos sociais, os direitos políticos, os direitos econômicos e os direitos simbólicos, e os atores do mundo da política institucional marcaram a História de várias nações nas mais diversas épocas. Tais conflitos ganharam impulso na modernidade e no mundo contemporâneo passando para a História através de várias lutas, manifestações, revoltas, protestos, guerras, revoluções, embates entre populações diversas e o poder instituído, e também por meio de reformas políticas e sociais. Entretanto, sabe-se que durante a Antiguidade Clássica também houve conflitos entre determinados segmentos sociais e o governo, conflitos motivados pela busca do reconhecimento e proteção de direitos, incluindo os direitos fundamentais da pessoa humana. 12 A História retrata, por exemplo, a existência de movimentos sociais que atuaram na Roma Antiga no período da República Imperialista. Os historiadores relatam o problema da rebelião dos plebeus, os quais se retiraram para o monte Sagrado, o chamado Monte Aventino, e depois ameaçaram fundar uma cidade independente de Roma se as autoridades romanas não atendessem às suas reivindicações. Como resultado dos protestos, os plebeus conquistaram o direito de eleger seus próprios magistrados, os tais tribunos da plebe. A História trata também da questão das leis escritas e da garantia da igualdade jurídica defendida por tais leis. Segundo os documentos históricos, os plebeus conquistaram também, em 450 a. C., a publicação de leis escritas, as quais garantiam a igualdade jurídica entre patrícios e plebeus. As leis a que os documentos fazem alusão são as chamadas Leis das Doze Tábuas, leis que os romanos gravaram em placas de bronze e expuseram no fórum para que toda a população de Roma pudesse conhecer. Tais leis se transformaram em um dos fundamentos do Direito Romano. Contudo, segundo Norberto Bobbio, os Direitos do Homem surgiram durante a modernidade. Os Dez Mandamentos e As Leis das Doze Tábuas são, segundo Bobbio (1992), documentos relativos às obrigações dos indivíduos, e não relativos aos seus direitos. Os ―Direitos do Homem‖ surgem juntamente com uma concepção de sociedade baseada no individualismo, o qual é uma influência do liberalismo, e se desenvolveram no contexto das lutas pela conquista de direitos na França revolucionária e no contexto da hegemonia no processo histórico de definição e da institucionalização dos mesmos no seio da sociedade burguesa. Esse processo se deu por meio da criação das declarações sobre os direitos do homem e da promulgação das constituições nos estados nacionais, conquistados pela burguesia, mediante revoluções, contra-revoluções ou golpes de Estado. Para Bobbio, os Direitos do Homem se transformaram em um dos principais indicadores do progresso histórico. (BOBBIO, 1992). No que diz respeito ao mundo contemporâneo, principalmente depois do surgimento, nos Estados Unidos, do movimento denominado ―multiculturalismo‖ e das diversas pesquisas e debates em torno de desta temática, é possível descrever uma enorme quantidade de conflitos entre Direito e Poder que suscitaram lutas por reconhecimento e redistribuição de direitos. No que concerne aos objetos de estudo de Norberto Bobbio, vale salientar que o término da Segunda Guerra Mundial e a volta da liberdade são dois fatos históricos 13 significativos que fizeram surgir no cenário dos debates filosóficos dois problemas importantes para Bobbio abordar: o problema da Democracia e o problema da Paz. (DIAS, 2012). Esses problemas complexos se constituíram nos dois primeiros objetos de estudo que compuseram a trilogia intelectual do filósofo de Turim, os quais ele denominou os três momentos necessários do mesmo ―movimento‖ histórico. (BOBBIO, 1992). O terceiro objeto de estudo que completou a sua trilogia é o dos ―Direitos do Homem‖. De acordo com a literatura especializada, Dias (2012) e Lafer (2004), Bobbio chegou ao estudo desse importante tema (importante, tanto para a Filosofia do Direito, como para a Filosofia Política) através das suas reflexões a respeito da democracia e através das suas reflexões a respeito das condições de paz. Segundo Dias, a primeira obra de Bobbio sobre o problema dos ―Direitos do Homem‖ é de 1951, quando ele escreveu La Dichiarazione universale dei diritti dell´uomo. Esse escrito foi chamado de lição e versou sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Essa lição foi dada em 4 de maio em Turim. Bobbio já havia abordado o problema acima referido quando escreveu na Prefazione à tradução italiana da La Dichiarazione dei diritti socialli, obra escrita por Georges Gurvitch. A leitura de La Dichiarazione universale dei diritti dell´uomo nos leva e perceber que Bobbio se ocupa de teses que ele abordou durante toda a sua carreira. (DIAS, 2012, P. 9). A literatura especializada revela que a análise da bibliografia utilizada por Bobbio evidencia uma ―ligação estreita‖ entre os problemas da Democracia, da Paz e dos Direitos do Homem, não obstante ao fato de as obras do filósofo italiano sobre cada um dos três temas terem surgido sem depender uma das outras. (DIAS, 2012, P. 6). A apresentação feita por Bobbio da ligação estreita entre os três temas citados se constituiu como um projeto de elaboração de uma Teoria Geral do Direito e da Política, projeto que o pensador italiano jamais efetuou. De acordo com Dias (2012), a Teoria Geral do Direito e da Política seria uma obra cuja constituição se daria com base em três partes pertencentes a um único sistema. Para o filósofo italiano, as contribuições democráticas da era moderna são baseadas no reconhecimento e na proteção dos ―Direitos do Homem‖, os quais apareceram, como já foi dito, justamente na era moderna. Bobbio explica na obra A Era dos Direitos que a 14 instituição dos Direitos do Homem ocorre no início da modernidade com a Revolução Francesa. (BOBBIO, 1992). O pressuposto necessário para o reconhecimento e para a proteção efetiva e eficaz dos ―direitos fundamentais‖ no interior de cada Estado e também no Sistema Internacional, esfera em que a situação dos direitos é bastante complicada, devido à complexidade do mundo das relações internacionais, é a instituição de um Estado Democrático de Direito Supra - estatal. Por fim, o processo de ―democratização‖ do Sistema Internacional é possível a partir do reconhecimento, da proteção dos direitos do Homem acima do Direito e do Poder dos Estados nacionais e de seus respectivos governos. O Sistema Internacional é visto por Bobbio como o caminho obrigatório para se chegar ao estágio da paz perpétua, de Kant, o que faz com que o pensador italiano trate com destacada importância o problema da democracia no âmbito internacional, por isso, ele considera o problema do reconhecimento e o problema da proteção dos Direitos do Homem como questões cuja abrangência ultrapassa os limites das fronteiras nacionais. É nesse sentido que Bobbio afirma que os Direitos do Homem, a Democracia e a Paz ―são três momentos necessários do mesmo movimento histórico‖. (BOBBIO, 1992). Existe essa ligação entre os temas da trilogia do pensador italiano, porque para o mestre de Turim ―sem Direitos do Homem, reconhecimento e proteção, não existe democracia; sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos sociais‖. (BOBBIO, P. 1. 1992). Segundo Dias, a afirmação acima pode ser resumida da seguinte forma: a democracia é a Sociedade dos cidadãos. Os ―súditos‖ se tornam cidadãos quando são reconhecidos seus direitos fundamentais. Bobbio acredita que ―Existirá paz estável, uma vez que não tenha mais a guerra como alternativa, somente existirem cidadãos não só deste ou daquele Estado, mas do mundo ―ordenado‖ num Sistema Jurídico Democrático‖. (DIAS, 2012, P. 7). O problema central foi compreender como Bobbio, pensador que acredita na solução pacífica dos conflitos entre pessoas, grupos sociais e Estados, através do Direito e do Poder com base nos instrumentos da Democracia, analisa o problema dos conflitos nas relações entre Direito e Poder, o qual é o principal obstáculo no processo de construção da cidadania internacional baseada em um Sistema Jurídico Democrático, defendida por ele com entusiasmo, e contribui para o debate sobre o reconhecimento e proteção dos Direitos do Homem para além das fronteiras dos Estados nacionais. 15 O objetivo geral do presente estudo foi uma abordagem crítica da terceira parte da trilogia do filósofo italiano Norberto Bobbio – os Direitos do Homem – com a finalidade de compreender o surgimento e a evolução do problema ao longo da era moderna, seu contexto histórico, jurídico, político e filosófico e o avanço do debate sobre o tema dos direitos do Homem até as lutas pela proteção deles na comunidade internacional no mundo contemporâneo. Os objetivos específicos da presente investigação foram os seguintes: -em primeiro lugar, compreender o problema do reconhecimento dos direitos do Homem e o problema da proteção de tais direitos acima dos Estados nacionais; - em segundo lugar, compreender o projeto da criação de um sistema Jurídico Democrático Internacional, o que denominamos neste estudo Estado Democrático de Direito Global; - em terceiro lugar, analisar o pensamento de Bobbio sobre o problema da proteção dos direitos do homem dialogando com autores que abordaram a questão dos direitos apontando as contradições do projeto político de universalização da concepção ocidental de direitos humanos. O estudo ora apresentado foi efetuado por meio de uma revisão bibliográfica que teve como objeto de análise as obras de Norberto Bobbio, obras que tratam especificamente do tema dos Direitos do Homem, enfatizando o problema da proteção de tais direitos no interno dos Estados e no Sistema Internacional. Esse tipo de pesquisa é denominado pesquisa documental. Sobre esse tipo de pesquisa, Betanho leciona que de acordo com Oliveira: A revisão de literatura não é uma simples transcrição de pequenos trechos de livros e materiais científicos da internet, mas uma discussão sobre as idéias, fundamentos, problemas etc. de vários autores, devidamente examinadas, combinadas e criticadas. (OLIVEIRA, 2001 APUD BETANHO, 2012, P. 5). Para efetuar a investigação, o método foi o estudo baseado em uma análise acurada e em um debate crítico a respeito das questões relevantes para a abordagem do problema da pesquisa. Com o objetivo de realizar um debate em perspectiva comparada utilizando os argumentos de Norberto Bobbio sobre a questão do reconhecimento e sobre a questão da proteção dos Direitos do Homem acima dos Estados nacionais visa-se estudar, analisar e comparar criticamente com as proposições de Bobbio, as afirmações de outros estudiosos da questão dos direitos do homem, como, por exemplo, Edmundson (2006). 16 Além da leitura e do estudo das obras de Bobbio, bem como de diversos autores que exploraram o tema do reconhecimento, da redistribuição de direitos e o tema da justiça, cujos principais expoentes foram citados acima, contamos com o auxílio dos trabalhos de alguns comentadores e críticos das obras do filósofo e jurista italiano: dissertações de mestrado, teses de Doutoramento, artigos acadêmicos e livros, bem como blogs e sites voltados para os debates acerca do tema em questão, além do acervo da Bolsa de valores e Futuros, a qual contém uma grande coleção de obras inéditas de Bobbio escritas em italiano, inclusive o artigo ainda não traduzido para o português sobre os direitos humanos na esfera internacional denominado Il Diritti Del` Uomo e La Comunità Internazionale. Inicialmente, foi realizada uma pesquisa sobre a vida e a obra do autor italiano (pesquisa biográfica) cujo objetivo foi o de levantar dados e informações, de modo que fosse possível construir uma bibliografia. A partir dessa pesquisa biográfica e de uma pesquisa bibliográfica, foi possível descobrir quais são as filiações intelectuais do mestre de Turim. Em seguida, foi elaborada uma seleção das obras do autor que importam para o roteiro da pesquisa. Desde então, tais obras foram lidas e estudadas e, em seguida, foi construído o sumário da dissertação. A questão dos procedimentos metodológicos aparece como um dos elementos constitutivos da presente introdução. A partir daí, apresenta-se as seções teóricas. A primeira delas é sobre a vida e a obra de Norberto Bobbio, sobre sua formação intelectual e sobre suas filiações autorais. A segunda seção é sobre a discussão de Norberto Bobbio a respeito da obra do jurista austro-estadunidense Hans Kelsen. Nessa seção, são abordados os conceitos de Direito e de Poder em Norberto Bobbio a partir da leitura dele da obra kelseniana. Para a terceira seção, foram efetuadas várias leituras da obra A Era dos Direitos, obra em que o autor italiano reúne em livro uma série de artigos nos quais ele retoma o tema dos ―direitos do homem‖, para fundamentar as discussões sobre o problema da declaração, do reconhecimento e, principalmente, da necessidade da proteção dos direitos humanos no mundo atual. Além disso, foi realizada uma pesquisa sobre o projeto de Norberto Bobbio no que concerne à criação de um ordenamento jurídico global e foi constatada a dimensão política da luta pela proteção dos direitos do Homem. 17 Os resultados preliminares da pesquisa foram apresentados na disciplina Seminário de Pesquisa I, disciplina obrigatória. Na ocasião, foram feitas algumas sugestões de leituras e adoção de algumas perspectivas teóricas de alguns autores para a presente abordagem. Pode-se considerar a questão da proteção dos direitos humanos no mundo globalizado como um elemento que serve para a construção do debate sobre a criação de um novo paradigma para as Ciências Sociais. O problema do reconhecimento e da proteção dos direitos humanos na atualidade se constitui em um importante elemento para a abordagem científica sociológica progressista devido ao fato de que tal elemento é um desafio interdisciplinar nas sociedades complexas contemporâneas. Os direitos humanos impõem limites que parecem intransponíveis para o relativismo, assim como para o ―ocidentalcentrismo‖, para usar uma expressão de Schritzmeyer (2014) em que se baseiam os documentos sobre os direitos do homem dos países ocidentais. Como já foi dito, será abordado, na segunda seção, o pensamento de Norberto Bobbio acerca do direito e do poder a partir da leitura que o autor italiano faz da obra do jurista austro-estadunidense Hans Kelsen. Assim sendo, tratar-se-á da teoria pura do direito e de seus adversários, dentre os quais os principais, segundo, Norberto Bobbio, são os jusnaturalistas católicos e os sociólogos. Pretende-se ainda, nessa discussão, tratar da definição de direito e da definição de poder no autor italiano com base em sua leitura de Kelsen. (BOBBIO, 2007). A seção será concluída abordando a questão da relação entre direito e Estado com base na leitura que Bobbio (1992) fez de Kant. Na terceira seção, será abordado o problema central da dissertação, qual seja, o problema dos direitos humanos, procurando demonstrar como tal questão é um dado da modernidade e mostrando as conexões do plano nacional, isto é, o Estado particular, com o plano global no que concerne o problema maior apontado por Norberto Bobbio no que tange aos direitos humanos na atualidade, o problema da proteção dos direitos humanos. Será enfatizado o papel do Estado na questão dos direitos humanos e também a ocorrência do problema da violação de tais direitos no plano internacional com base no livro de Norberto Bobbio denominado A Era dos Direitos (2004). 18 A partir daí, a discussão será sobre do projeto político do autor italiano sobre a criação de um ordenamento jurídico supranacional para proteger os direitos humanos, o qual ele chamou de ―utopia realista‖. A coletânea de artigos denominada A Era dos Direitos (2004), obra fundamental em nosso debate sobre a questão dos direitos do Homem, é um livro em que Norberto Bobbio analisa a emergência dos direitos do Homem demonstrando que esses direitos são resultantes das lutas de uma imensa parcela da população francesa (o Terceiro Estado) no contexto da Revolução Francesa, fato histórico que marca o fim da Idade Média e o início da modernidade. Em A Era dos Direitos, o filósofo de Turim chama a atenção para o problema do reconhecimento e para o problema da necessidade da proteção dos chamados Direitos do Homem como uma via imprescindível para atingir os fins concernentes ao avanço no processo de democratização do Sistema Internacional e para assegurar as condições necessárias para a realização do ideal kantiano da paz perpétua a partir da criação de um mundo organizado através das normas de um Sistema Jurídico Democrático de alcance internacional. A tese defendida por Bobbio é a de que uma ordem jurídica internacional baseada nos princípios da democracia impediria a existência de guerras garantindo a paz estável por meio da solução pacífica dos conflitos existentes nas relações entre a busca pela conquista de direitos e os poderes constituídos nas esferas individual, social, estatal e internacional, esfera que ele chamou de ―Comunidade Internacional‖ na obra A Era dos Direitos, no artigo I Diritti Del`Uomo e La Comunità Internazionale, assim como em outras obras importantes, como, por exemplo, Direito e Poder. Em outras palavras, Bobbio propõe em todos os seus escritos jurídicos, políticos e filosóficos o estabelecimento de uma espécie de Estado Democrático de Direito Internacional. O Estado Democrático de Direito Internacional pensado pelo mestre italiano seria uma ordem jurídica que coloque os Direitos do Homem acima dos interesses dos Estados nacionais assegurando a solução dos conflitos através do uso de instrumentos jurídicos e democráticos efetivos e eficazes na tarefa de tornar os impasses concernentes às relações conflituosas entre indivíduos, grupos sociais e Estados problemas passíveis de serem resolvidos pacificamente com base no diálogo entre Direito e Poder pela via da aplicação dos princípios democráticos. Seyla Benhabib, analisando o avanço da democracia ao redor do mundo nas últimas décadas, cita Alex de Tocqueville para defender a tese de que a democracia tende à 19 internacionalização. (BENHABIB, P. 1, 1994). Para a autora estadunidense, as mudanças que ocorreram em vários países desde 1989, como, por exemplo, as transformações nos países da Europa Central, do Leste europeu e na antiga União Soviética, atestam essa tendência universalista da democracia. In view of the momentous transformations which have occurred in the countries of Central and Eastern Europe and the former Soviet Union since 1989, and even prior to them, with the transition from dictatorships to democracy in the Philippines, Argentina, Chile, and Brazil, ―the thought of the approaching irresistible and universal spread of democracy throughout the world‖ sounds more true today than ever. Yet, as Tocqueville also reminds us, ―It is not force alone, but rather good laws, which make a new government secure. After the battle comes the lawgiver. The one destroys; the other builds up. Each has his function.‖ When we watch the aftermath of these bloodless peoples‘ revolutions, with their wonderful sensual images of the velvet and the carnations, in cases like Poland, Hungary, Czechoslavakia and the Philippines, we observe their colors fading and their scent diminishing as the routine of everyday as opposed to revolutionary politics settles in; in others like the new Commonwealth of Independent Republics of the former Soviet Union and in the former Yugoslavia civil war conditions, violent upheavals, social chaos and nuclear perils darken the future. (BENHABIB, P. 1, 1994). Benhabib (1994) aponta também o descompasso existente entre o pensamento político (tanto a teoria política empírica como a teoria política normativa) e a ação política no dia a dia dos países em questão. These momentous transformations have caught the political thought of the present breathless and adrift. With very few exceptions, neither empirical nor normative political theory was prepared to deal with the magnitude of these issues with the self-confidence of Tocqueville.This may not necessarily be lamentable; perhaps the ―owl of Minerva‖ truly flies at dusk and reflective thought can only paint its ―grey on grey.‖ It is my deep sense, however, that the lack of orientation in political theory in view of the transformations of the present is not due to the inevitable gap betwen political action and political reflection alone. There is a profound lack of simultaneity between the time of theory and the time of political action of such magnitude that Ernst Bloch‘s phrase of ―non-simultaneous simultaneities‖ (―ungleichzeitige Gleichzeitigkeiten‖) 4 strikes me as being quite apt to capture the mood of the present. While almost all so-called western industrial capitalist democracies are caught in the throes of this sense of being at the end of something-consider some of the bewildering array of theoretical prefixes which have come to dominate our intellectual and cultural lives, postmodern, postindustrial, post-fordist, post- Keynesian, post-histoire, post-feminist-the efforts of the countries of Central and Eastern Europe appear as ―nachholende‖ revolutions, as revolutions which are at the beginning, which are catching up with or making good for processes that others have already been through. For normative political theory, this unusual 20 concatenation of historical circumstances has meant that the postmodernist critique of western democracy with which we have become so familiar in the last two decades and the Central and Eastern European as well as Latin American aspirations to democracy coexist in the same intellectual and political space. Postmodernist skepticism toward ―really existing western democracies,‖ and at times the naively apologetic confirmation of western capitalism and democracy by their new aspirants are contemporaries of our current political and cultural horizon. It is this proximity and distance which is so disorienting as well as explosive. (BENHABIB, pp. 2-3). Bobbio, por sua vez, escreveu em O Futuro da Democracia – em defesa das regras do jogo que é preciso defender e valorizar a democracia como um método de organização e manutenção da vida política assegurando a legalidade do processo de participação dos cidadãos através do direito e a legitimidade de tal processo através do sufrágio universal. Em Três ensaios sobre a democracia, o pensador italiano esclarece o seguinte sobre a questão da democracia como método: Quando falamos da democracia como método, não queremos referir-nos apenas à regra da maioria, mas a todo o conjunto das chamadas ―regras do jogo‖ que permitem chegar a uma conclusão por meio do livre debate, e introduzem várias formas de controle das decisões, de modo a tornar possível sua revisão, quando elas se mostram inoportunas, injustas. (BOBBIO, P. 35, 1991). Com a publicação de A Era dos Direitos, o objetivo de Bobbio foi introduzir o tema dos Direitos do Homem (direitos humanos, no jargão jurídico cotidiano hodierno) no patamar dos temas mais importantes nos debates jurídicos, filosóficos e políticos no cenário da abordagem sobre os conflitos entre Direito e Poder nas agendas nacionais e internacionais gerando discussões e propostas de alternativas sobre a possibilidade do alargamento da atuação das instituições do Estado Democrático de Direito para a esfera internacional. O filósofo de Turim busca a promoção do reconhecimento e a proteção dos referidos direitos no interior de cada país em específico e entre as nações em geral, de modo a viabilizar a solução dos conflitos entre pessoas, organizações, segmentos sociais e Estados pela via do Direito e, portanto, pacificamente dispensando, assim, o recurso do uso das forças armadas e evitando o terrorismo, bem como a predominância do ―poder arbitrário‖. Foi por conta da finalidade de abordar o problema dos direitos do Homem em uma perspectiva que levasse em consideração as especificidades do interno dos países e das condições estruturais do conjunto das nações desde a modernidade (momento da 21 História em que, segundo Bobbio, os Direitos do Homem, foram estabelecidos e amparados para a posteridade através da promulgação das chamadas constituições) que o pensador italiano procedeu a uma análise crítica da temática de tais direitos mediante um ―encontro‖ de seus temas recorrentes nas várias áreas do conhecimento em que ele atuou. Na apresentação à edição brasileira da supracitada obra A Era dos Direitos, o jurista Celso Lafer comenta: A ERA DOS DIREITOS TEM, como todos os livros de Bobbio, a inconfundível marca do seu modo de pensar e expor: o rigor analítico, a inexcedível clareza; a capacidade de contextualização histórica, o sábio uso da ―lição dos clássicos‖; o discernimento do relevante. Tem, ademais, uma característica própria que o singulariza no conjunto de sua obra. É o livro da convergência dos temas recorrentes de Bobbio nos diversos campos de estudo a que se dedicou e, por isso mesmo, um livro explicitador da coerência que permeia sua trajetória de pensador. Com efeito, em A Era dos Direitos, estão harmoniosamente presentes o grande teórico do Direito, da Política e das Relações Internacionais, não faltando também o intelectual militante que se dedicou à relação entre política e cultura. (LAFER, 1992, p. 1). Voltando ao problema da expansão do Estado Democrático de Direito para o âmbito internacional, é importante frisar que um ordenamento jurídico democrático com poderes internacionais garantiria, na concepção de Bobbio, o surgimento e a manutenção de uma condição de existência igual àquela que Kant pensou como um ideal a ser buscado constantemente independentemente de estarmos obtendo êxito na busca em À Paz Perpétua (1989), obra em que o filósofo do ―Direito Cosmopolita‖ defende a república como o melhor modelo de governo a ser implantado para implantar a paz entre as nações. (KANT, 1989). Na visão de Kant (KANT, 1989 APUD GOMES, 2005, 47-48), a partir do momento em que a decisão sobre a guerra se torna uma prerrogativa dos indivíduos a arbitrariedade do soberano deixa de vigorar o risco da deflagração da guerra por meio de uma vontade única deixa de existir. Kant pensa com base no conceito de vontade geral de Rousseau, expresso na obra Do Contrato Social, um importante tratado de Direito Político no qual o filósofo suíço defende a democracia como o governo em que o soberano é o povo. (ROUSSEAU, 1974). Entretanto, a concepção de soberania popular de Kant difere da concepção de Rousseau pelo fato do filósofo alemão argumentar que somente os cidadãos esclarecidos (esclarecidos no sentido do conceito de esclarecimento explicado por Kant no artigo ―Resposta à pergunta: que é o iluminismo?‖, o qual faz parte da obra À Paz 22 Perpétua e outros opúsculos (1988) procedem à tomada de decisões na República que Kant apregoa como o modelo excelente de organização política. As pessoas que ainda não saíram do estado de menoridade, para usar uma expressão do próprio Kant, a qual está expressa no artigo supracitado, não possuem o status de cidadãos com direito de participação no processo decisório das questões que digam respeito à vida em sociedade na República. Isso nos permite afirmar que na República Internacional da paz perpétua entre as nações apenas uma parcela dos indivíduos estaria capacitada para deliberar sobre a decisão de deflagrar a guerra, cessar-fogo e manter a ―paz estável‖. (KANT, 1989 APUD BOBBIO, 1992). A Democracia que Bobbio defende e que chama de ―as regras do jogo‖ (BOBBIO, 2000) é rejeitada por Kant pelo mesmo motivo que Platão a rejeita em A República (PLATÃO, 1990). Aqueles clássicos antigos da Política rejeitavam a democracia tendo como fundamento o argumento de que a maioria dos indivíduos do povo não é preparada para o exercício do Poder justamente por não ter passado por um processo de esclarecimento (KANT, 1988). Sem atingir o esclarecimento, ou seja, sem chegar à maioridade intelectual não é possível o indivíduo ter as habilidades necessárias para participar do processo de tomada de decisões na esfera pública, para usar uma expressão utilizada por Habermas para tratar de um tipo de democracia diferente daquele da democracia dos antigos, a democracia dos modernos, a ―democracia dos burgueses‖. Na obra Direito e Estado no Pensamento de Emmanuel Kant, (1992) o pensador de Turim argumenta que a discussão de Kant faz surgir o pacifismo democrático, o qual ele define como ―um pacifismo político, porque vê a causa principal das guerras e, portanto, conhece o remédio para a paz, principalmente numa transformação política‖. (BOBBIO, 1992 APUD GOMES, 2005, P. 48). Lafer, na já citada apresentação à edição brasileira da obra A Era dos Direitos, afirma o seguinte: É na Introdução de A Era dos Direitos que Bobbio afirma ―Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos não há democracia; sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos‖. Na sua obra, a interligação dos três temas é o modo pelo qual Bobbio foi tecendo conceitualmente a interação entre o ―interno‖ dos estados e o ―externo‖ da vida internacional. Esta tessitura articula continuidades e contigüidades que Bobbio realça apontando como a democracia e os direitos humanos, no âmbito das sociedades nacionais, criam condições para a possibilidade de paz no plano 23 mundial. Subjacente a essa interligação está o pressuposto, recorrentemente reiterado na sua obra, de que Direito e Poder são as duas faces de uma mesma moeda, pois a comum exigência da eficácia se complementa com o evidente paralelismo existente entre os requisitos da norma jurídica – justiça e validade – e os do poder – legitimidade e legalidade. (LAFER, p. 1, 1992). Em artigo publicado em O Estado de São Paulo na ocasião do aniversário de 94 anos do mestre italiano, o professor Celso Lafer reafirma alguns de seus comentários publicados na apresentação da obra sobre o autor: Se a democracia requer uma construção jurídica e o direito é um meio indispensável para modelar e garantir instituições democráticas, a razão é um instrumento necessário para elaborar e interpretar o direito. É um instrumento necessário porque o direito não é um dado da natureza. É uma construção, um artefato humano, fruto da política que requer a razão para pensar, projetar e ir transformando esse artefato, em função das necessidades da convivência coletiva. A convivência coletiva se dá num mundo no qual, como observa Bobbio com um olhar hobbesiano, a guerra é o produto da inclinação natural ao conflito. A paz é um ditame da razão, da capacidade humana de medir as conseqüências dos fatos que resultam dessa inclinação natural e instintiva. Como construir a paz, com a colaboração da razão? Mediante o nexo entre a paz e os direitos humanos, que instauram a perspectiva dos governados e da cidadania como princípio de governança. É garantindo os direitos humanos – o direito à vida, os direitos às liberdades fundamentais, os direitos sociais que asseguram a sobrevivência – que se enfrentam as tensões que levam á violência, à guerra e ao terrorismo. Lembra Bobbio, à maneira de Kant, que o progresso da convivência coletiva mediante os nexos acima mencionados não é necessário. É apenas possível. (LAFER, 2003, p. 1, APUD BOBBIOBRASIL EM 05/OUT/2009). Dias também destaca que para Bobbio Direito e Poder são duas faces da mesma moeda, mas utiliza o termo medalha no lugar de moeda: Direito e Poder, segundo ele, são duas faces da mesma medalha. Uma Sociedade bem ordenada precisa tanto do Direito quanto do Poder. Onde o Direito é impotente a Sociedade arrisca em precipitar-se na anarquia; onde o Poder não é controlado, a Sociedade corre o risco oposto do ―despotismo‖. (DIAS, 2012, P. 8). Qual seria então o modelo ideal do encontro ente Direito e Poder no pensamento de Norberto Bobbio? Dias enfatiza que no pensamento do mestre italiano o modelo ideal entre Direito e Poder é o seguinte: O modelo ideal do encontro entre Direito e Poder é o ―Estado Democrático‖. Isto é, o estado no qual através das leis fundamentais, não existe poder do mais ―alto‖ ao mais ―baixo‖ que não seja submetido a ―normas‖ jurídicas, não seja regulado pelo Direito, e no qual, do mesmo modo, a legitimidade do inteiro Sistema de normas deriva, numa última instância, do consensus ativo dos cidadãos. (DIAS, P. 8. 2012). 24 De acordo com Dias, as referências bibliográficas de Bobbio nas obras que ele escreveu durante cerca de três anos do período do pós-guerra revelam que os temas de que ele tratou são concernentes justamente ao problema da redemocratização da Itália. Sobre o tema da paz, havia um problema bem atual que foi o problema do ―federalismo europeu‖ de que se aguardava o final de uma guerra que já durava mais de cem anos – a guerra civil européia. Para Dias, a pátria ideal aos olhos de Bobbio era a Inglaterra, devido ao fato do pensador de Turim conviver em ambientes antifascistas. Dias salienta que Bobbio ―aprendeu, e nunca mais esqueceu, sobre o que dizia respeito à Teoria da Democracia, os dois volumes de Karl Reimond Popper (1902 - ?, The Open Society and its Enemies, 1945, dos quais Bobbio falou pela primeira vez na Itália‖. (DIAS, 2012 P. 7). Em sua abordagem sobre o problema dos ―Direitos do Homem‖, Bobbio argumenta que esses direitos são direitos históricos e sua marca é a marca das lutas por ―novas liberdades‖ contra ―velhos poderes‖ não concomitantemente nem de uma vez por todas, mas lenta, gradual e conflituosa. O caminho da concepção individualista da Sociedade é contínuo e se dá com lentidão, além disso, ele, às vezes, sofre interrupções. Tal caminho se dá a partir do reconhecimento dos ―direitos de cidadão do mundo‖. O primeiro arauto desse documento foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Esse percurso se deu a partir do ―direito interno‖ aos Estados, mediante o direito entre os demais Estados, o direito cosmopolita, como diz Kant. Bobbio cita Cassese (Bobbio, 1992), um eminente estudioso de relações internacionais, para afirmar que a declaração Universal dos Direitos do Homem, documento histórico lançado no ano de 1948, logo após a tragédia da Segunda Grande Guerra Mundial, auxiliou no processo de inclusão do indivíduo em uma dimensão que outrora estava reservada somente aos Estados soberanos. Essa declaração colocou em movimento um processo que não se pode mais reverter, o processo das lutas pelo reconhecimento e pela proteção dos Direitos do Homem em todo o mundo. (BOBBIO, 1992). Sobre a origem dos diversos tipos de direitos do homem existentes hodiernamente, O mestre italiano afirma que: A liberdade religiosa é um efeito das guerras de Religião; as liberdades civis são efeitos das lutas dos parlamentos contra os soberanos. As liberdades políticas e sociais são efeitos do nascimento, crescimento e maturação do movimento dos 25 trabalhadores assalariados, dos agricultores com pouca terra ou ―sem-terra‟, dos pobres que pedem aos públicos poderes a proteção do trabalho contra a desocupação; pedem ainda os primeiros rudimentos de instrução contra o analfabetismo; paulatinamente pedem a assistência para a invalidez e a velhice. Necessidades às quais os proprietários ricos podiam prover por si sós. (BOBBIO, 1992, P. 32). Os direitos sociais receberam o nome de direitos da ―segunda geração‖. Os direitos da ―terceira geração‖ surgiram ao lado dos direitos sociais e eles consistem em uma categoria por demais heterogênea e vaga, portanto, uma categoria de difícil compreensão, de acordo com Bobbio (1992). Ele argumenta que a figura dos direitos da terceira geração teve sua introdução na literatura que trata dos ―novos direitos‖ no artigo de Jean Rivera denominado La evolución contemporânea de la teoria de l´hombre (1985). Entre os ―novos direitos‖ estão os ―direitos de solidariedade‖, o direito ao ―desenvolvimento‖, o direito à ―paz internacional‖, o direito a um ambiente protegido; o direito à ―comunicação‖. De acordo com Bobbio, dentre os ―novos direitos‖, o direito de maior importância é o direito que os movimentos ecológicos reivindicam, qual seja, o direito a viver num ambiente sem poluição. (BOBBIO, 1992). O mestre italiano fala ainda em uma quarta geração de direitos. Os ―direitos da quarta geração‖ se referem aos efeitos ―perturbadores‖ das pesquisas empreendidas pela biotecnologia, as quais possibilitam a manipulação do patrimônio genético de cada um dos indivíduos humanos. A posição do pensamento de Bobbio no que concerne aos conflitos entre Direito e Poder e no que concerne ao reconhecimento de direitos e à sua proteção é uma posição de mediação, uma posição de busca do consenso, através da aplicação das ferramentas do Direito (no plano jurídico) e do cumprimento das ―regras do jogo‖ (no plano político). É nesse sentido, que Bobbio argumenta que ―sem direitos do homem, reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos‖. (BOBBIO, 1992. P. 1.). Como ele próprio revelou na entrevista ao professor Bresser Pereira, em 1994, em Turim, ele se definiu como ―um intelectual mediador, aquele que procura encontrar soluções, ao invés de dividir. Evitar opostos extremistas, como na Itália, o Fascismo e o comunismo‖. (BOBBIO, 1994 APUD BRESSER-PEREIRA, 1994, P. 4). A questão fundamental que Bobbio aduz ao debate é a de lançar mão dos instrumentos da democracia e dos instrumentos do direito para proceder à resolução dos 26 conflitos entre indivíduos, grupos sociais, povos e nações pacificamente, de modo a abrir mão dos dispositivos bélicos e afastar as forças arbitrárias, sejam elas de indivíduos, grupos de indivíduos organizados, sejam elas dos agentes estatais e dos próprios Estados. Daí por que Bobbio argumenta que a defesa dos ―Direitos do Homem‖ precisa ocorrer também como ações para além da dimensão estatal, ou seja, acima dos Estados. Outros autores como Chantal Mouffe nos auxiliam na busca da compreensão do problema das diferenças no âmbito da vida na comunidade política com destaque para o problema dos conflitos. Para Mouffe (2012), ―a política tem a ver com o conflito‖. Mouffe defende a existência do pluralismo na comunidade política. O pluralismo é um fator muito importante no debate a respeito do reconhecimento e da proteção de direitos de que se ocupa Bobbio. Sobre a pluralidade, é salutar verificar a relevante crítica tecida por Mouffe (2009) sobre a perspectiva de Carl Schmitt a respeito desse importante tema no contexto da democracia. Chantal Mouffe em uma análise bastante esclarecedora sobre a teoria de Carl Schmitt adverte que devemos nos distanciar daquele autor no que concerne à afirmação dele de que não há lugar para o pluralismo no âmbito de uma comunidade política democrática. Para Schmitt, ressalta Mouffe, a democracia requer a existência de um demos homogêneo, a qual exclui toda possibilidade de pluralismo (MOUFFE, 2009, P. 21). Na esteira dessa discussão sobre o pluralismo na comunidade política de uma democracia, é importante lembrar que boa parte da literatura que encontramos sobre o multiculturalismo procura enfatizar essa atitude de oposição do ―projeto multicuturalista‖ em relação ao etnocentrismo. O problema é que, muitas vezes, em nome da ―Ideologia Multiculturalista‖ algumas culturas são ―demonizadas‖, como vem acontecendo com os judeus e com os muçulmanos ao longo dos séculos. Anne Phillip chama esse movimento de ―Multiculturalismo sem cultura‖. (PHILLIP, 2007). Voltando à obra de Bobbio, vale destacar que ele realiza a sua Filosofia Política e a sua Filosofia do Direito dialogando com os mais destacados estudiosos dos problemas jurídicos e políticos. Ele estudou e escreveu sobre as obras de autores que estudaram a política, o direito e a filosofia na Antigüidade Clássica, passando pelos pensadores da Grécia Antiga, 27 como, por exemplo, Aristóteles (Ética à Nicômaco) e Platão (A República), e pelos pensadores modernos, explorando a ―lição dos clássicos‖, como, por exemplo, Hegel, Marx, Hobbes, Locke, Kant e Rousseau, indo até os pensadores que foram seus contemporâneos. Desse modo, Bobbio aborda as questões relacionadas aos conflitos existentes entre o Direito (direito entendido nessa pesquisa como a demanda e as lutas pela concessão, uso e proteção dos direitos humanos) e o Poder, focando, principalmente, os fatos que ocorreram a partir do momento histórico que ele denomina ―A Era dos Direitos‖, isto é, a era moderna. Norberto Bobbio se dedicou ao estudo das relações entre Direito e Poder escrevendo obras magistrais, como, por exemplo, Direito e Poder, A Era dos Direitos e O Futuro da Democracia – em defesa das regras do jogo. As questões analisadas por Bobbio nessas três obras e em várias outras publicações, entre artigos, livros e entrevistas, fazem parte de um conjunto de problemas cujas interpretações são contribuições inestimáveis para o debate acerca do Estado Democrático de Direito e demonstram a preocupação do pensador italiano com temas de extrema importância para a humanidade. 28 1. A Formação Intelectual e as Filiações autorais de Norberto Bobbio A presente seção tem por objetivo apresentar (à) ao leitor (a) informações sobre a vida e sobre a obra de Norberto Bobbio, mostrar o cenário intelectual no qual ele foi formado e quais autores fizeram parte de sua trajetória acadêmica, literária e política. Assim sendo, ela é dividida em duas partes. A primeira parte é denominada A Vida e a Obra de Noberto Bobbio – um mestre da paz, da democracia e dos direitos do Homem - e trata da biografia do professor, escritor e político italiano. A segunda parte aborda a questão do contexto histórico, cultural, político e social em que o autor foi formado salientando também a questão de sua filiação intelectual, o ambiente sócio-cultural, as influências intelectuais, políticas, literárias e filosóficas que fizeram parte de sua vida como docente universitário e ativista político. I. A Vida e a Obra de Norberto Bobbio – uma breve biografia de um mestre da paz, da democracia e dos direitos do Homem Figura 1. Norberto Bobbio em seu gabinete, sorridente e rodeado de livros Fonte: Folha Press/Reprodução (2016) 29 Norberto Bobbio nasceu na Itália, na cidade de Turim, em 18 de outubro do ano de 1909, no seio de uma abastada família católica e faleceu em 09 de janeiro de 2004. Segundo Gonçalves: [...] Norberto Bobbio foi, como um dos seus colaboradores mais próximos o qualificou, uma testemunha fundamental dos acontecimentos que ocorreram no século XX e que marcaram a história da Europa e do mundo. Actor privilegiado no combate intelectual que conduziu ao confronto entre as três principais ideologias do século XX – o fascismo-nazismo, o comunismo e a democracia liberal – responsável, em grande parte, pela arquitectura do sistema internacional e sua modelação bipolar (pelo menos até ao Inverno de 1989), Bobbio foi pensador, activista político, professor de direito e, mais tarde, de ciência política, mas, sobretudo, um protagonista da esquerda europeia. O seu pensamento circunscrito, durante grande parte da fase da maturidade da sua carreira ao círculo restrito dos meios intelectuais italianos, tornou-se, gradualmente, apreciado no mundo de língua espanhola, francesa e inglesa, primeiro por força dos seus estudos de filosofia do direito, sobre o jusnaturalismo e positivismo jurídicos, seguidamente nos estudos constitucionais, depois nos seus ensaios e controvérsias com a esquerda comunista e socialista sobre democracia representativa, o ofício dos intelectuais, a natureza e as múltiplas dimensões do poder, a díade esquerda-direita, o futuro de um socialismo não-marxista e democrático, e finalmente os problemas da relação truculenta entre ética e política. (GONÇALVES, 2006, P. 1). O pai de Norberto Bobbio, Luizi Bobbio, era médico cirugião. Bobbio, embora tenha nascido no seio de uma família detentora de bastante capital econômico e social, aprendeu lendo Marx a enxergar o mundo a partir do ângulo dos oprimidos. Foi nos anos dos seus estudos universitários, e não na convivência familiar, que ele adquiriu a percepção da luta de classes. Em suas entrevistas ele costumava declarar sobre sua condição em termos de lugar social o seguinte: Na minha família nunca tive a impressão do conflito de classe entre burgueses e proletários. Fomos educados a considerar todos os homens iguais e a pensar que não há nenhuma diferença entre quem é culto e quem não é culto, entre quem é rico e quem não é rico." E registra: "recordei esta educação para um estilo de vida democrático numa página de Direita e Esquerda em que confesso ter-me sentido pouco à vontade diante do espetáculo das diferenças entre ricos e pobres, entre quem está por cima e por debaixo na escala social, enquanto o populismo fascista tinha em mira arregimentar os italianos dentro de uma organização social que cristalizasse as desigualdades. (BOBBIO, 1998, p.1). Além de professor, pesquisador, conferencista internacional, escritor e jornalista (e até mesmo parlamentar), Norberto Bobbio foi um grande ativista político opositor do 30 totalitarismo, do Fascismo original, isto é, do Fascismo de Benito Mussolini. Suas atividades como ativista político se devem a: A sua entrada no antifascismo activo em Camerino faz-se por via do movimento liberal-socialista reunido à volta de Guido Calogero, Aldo Capitini, Umberto Morra do Lavriano, Cesare Luporini que irá incorporar alguns anos mais tarde o Partito d’Azioni. O «proselitismo» escrevia um companheiro seu da frente liberal- socialista, Rugero Zangrandi, «era a actividade de base aguardando o dia em que as coisas mudariam, integrada por tímidas acções de propaganda que se transformavam, no entanto, numa aprendizagem para a luta». O movimento liberal- socialista é uma rede de grupos de oposição que se constitui espontaneamente nas universidades, nas colectividades recreativas, nas associações religiosas e nos organismos culturais, perante o que Zangrandi designa pelo «degelo das consciências» na sequência da promulgação das leis raciais e constitui o primeiro movimento cultural antifascista de inspiração não marxista que se afasta da tradição crociana e que consegue exprimir as suas aspirações sociais e libertárias, «dando resposta às exigências mais vivas da juventude intelectual». Como Norberto Bobbio sublinhará, décadas mais tarde, em Maestri e Compagni,como que antecipando o seu próprio caminho intelectual e político: «embora proclamando-se liberal-socialista, desde o princípio o movimento fez questão de distinguir o seu liberal-socialismo do dos outros pelo empenho ético- religioso e não apenas político de que o animara. Refutou sempre tenazmente a absolutização da política (que era a saída do totalitarismo) e por isso a resolução de todas as actividade humanas na actividade política, na confusão dos movimentos sociais com os partidos. O liberal-socialismo não era ao princípio (e nunca deveria tornar-se) um partido; era uma atitude de espírito, uma abertura numa direcção, uma certeza e uma esperança em contínua renovação, uma orientação de consciência». É por via dessa postura mais ética e valorativa que politicamente militante que prefigurará anos mais tarde a ponte entre as sensibilidades liberal- socialista de Guido Calogero e Aldo Capitini e o socialismo-liberal pós-marxista de Carlo Rosselli. Em 1941 é fundado o Partido de Acção e o movimento liberal- socialista conflui nele, forçando a entrada da Itália na guerra a passagem do movimento à oposição. (GONÇALVES, 2006, P. 2). No que concerne à atuação de Norberto Bobbio como professor universitário, sua biografia mostra que ele foi um docente bastante ativo, produtivo, crítico e respeitado, não somente dentro da Itália, mas em todo o mundo. Bobbio passa a ser referência a quem muitos recorrem para escrever e debater sobre democracia, direitos humanos e muitos outros temas universais de extrema importância para a academia e para a humanidade. A importância da obra do autor, bem como o início e a continuidade de sua trajetória na vida intelectual, acadêmica, literária e política é bastante rica e essa riqueza pode ser notada na passagem abaixo: Adquire a educação política no liceu Massimo d‘Azeglio, nas aulas de Augusto Monti, amigo de Piero Gobetti e colaborador na revista La Revoluzioni Liberali, na convivência como Leone Ginzburg, judeu russo, de quem se diz impressionado por uma inteligência viva, um «antifascista abosluto». Completa-o na Universidade na 31 companhia de Vittorio Foa, «antifascista de sempre». Ambos, regista, fazem-no sair, pouco a pouco do «filofascismo familiar». Acaba no liceu em 1927 e inscreve-se na Faculdade de Jurisprudência, na Universidade de Turim. Convive com professores notáveis que lhe ajudam a moldar a personalidade, os gostos e a traçar o seu próprio caminho: Francesco Ruffini, Luigi Einaudi, Gioele Solari. Em 1931 licencia-se em Jurisprudência com uma tese de Filosofia do Direito. O orientador é Gioele Solari com quem se licenciara Piero Gobetti em 1922 e que será um dos seus maestros mais reverenciados, [12] que substituirá anos mais tarde na cátedra de Filosofia do Direito. Inscreve-se no terceiro ano de Filosofia com o objectivo de tirar um segundo curso, licenciando-se em 1933 com uma tese sobre a fenomenologia de Husserl, orientada por Annibate Pastore. Nessa década de trinta frequenta o círculo de oposição ao regime de Barbara Allason, e é preso em Maio de 1934 conjuntamente com Vittorio Foà numa acção policial do regime contra o grupo liberal Giustizia e Libertà, não obstante não militar nele. É condenado à pena mais leve, a de advertência. Em 1935 obtém um lugar de docente de Filosofia de Direito na Universidade de Camerino, mas são-lhe levantadas dificuldades, dada à prisão e a pena de advertência a que é condenado. Escreve a Mussolini pedindo que lhe seja removida a pena. A carta é pungente e será sessenta anos mais tarde citada como prova de fraqueza e de cedência dos intelectuais antifascistas. Declara a este propósito ao jornalista Giorgio Fabre que subscrevera a peça Alla lettera no semanário «Panorama»: ―quem viveu a experiência do Estado de ditadura sabe que é um Estado diferente de todos os outros. E até esta minha carta, que agora me parece vergonhosa o demonstra (…) A ditadura corrompe o espírito das pessoas. Constrange à hipocrisia, à mentira ao servilismo‖. Conquistada a cátedra em Camerino é chamado para a Universidade de Siena em fins de 1938, onde permanece por dois anos. Em Dezembro de 1940 obtém a cátedra de Filosofia de Direito na Faculdade de Jurisprudência da Universidade de Pádua. (GONÇALVES, 2006, P. 2). Os últimos anos da vida de Norberto Bobbio foram marcados pela lucidez e pela preocupação em concluir seu projeto da trilogia que ele se propôs a realizar desde que começou a escrever sobre a paz, a redemocratização e sobre os direitos do Homem. Sobre as suas últimas décadas de vida, sua biografia (que não é menos extensa do que aquela que aborda sua trajetória de vida durante o apogeu de sua existência intelectual, acadêmica, literária e política) aponta que: Dedica os vinte anos seguintes à escrita, ao comentário político e ensaístico, à polémica, ao sabor dos acontecimentos que marcam a vida política italiana. Assume-se a mor das vezes como observador e analista independente, incapaz de se acomodar a uma militância e alinhamento partidários que no fundo julga inibidor e desinteressante. Recusa ostracizar os comunistas, sustenta um diálogo democrático com eles, vendo ―não adversários mais interlocutores‖. Inconformado com o beco sem saída que o socialismo italiano se remete, Bobbio traz, sobretudo nos anos 70, uma contribuição central ao debate político italiano na revisão dos postulados do socialismo, perguntando em Quale socialismo? o que é que poderia ajudar a resolver a grande contradição entre os dois modelos contrapostos, porquanto quer um quer outro se revelam amplamente insatisfatórios. Polemiza com Togliatti e com Galvano Della Volpe, estudiosos marxistas, 32 «tentando reconhecer as razões que podem ter as pessoas com ideias diferentes das suas». Na sequência do envolvimento no debate socialista, quebra a promessa que fizera a si próprio de se afastar definitivamente da política partidária, quando o sonho de uma alternativa política liberal se esfumara perante a realidade dos dois partidos de massas dominantes: a democracia-cristã e o partido comunista. Empenha-se na batalha política que em 1976 leva o PSI das mãos de Francesco de Martino às de Bettino Craxi. Faz parte do grupo de dissidentes que tenta opor-se a Craxi defendendo a candidatura de Giolitti no Congresso de Turim (30 de Março a 2 de Abril de 1978), mas Craxi vence e abre nos dias seguintes ao Congresso as hostilidades contra os comunistas e Berlinguer. Bobbio discorda e di-lo numa carta a Craxi. O afastamento em relação à linha oficial prefigurada por Craxi acentua-se. No Congresso de Verona de Maio de 1984, que reforça o poder pessoal do secretário do PSI, eleito por aclamação, Bobbio escreve em La Stampa uma contundente denúncia dos meandros do poder partidário sob o título irónico La democrazia dell’ aplauso a que Craxi responde. O desencontro entre os dois reatar- se-á em 1987 e 1990 a propósito das reformas introduzidas no programa eleitoral do PSI para as eleições de 14 de Junho de 1987 e de uma conferência organizada pelos socialistas sobre as reformas institucionais e o diálogo com os comunistas. (GONÇALVES, 2006, P. 3). Gonçalves (2006) também aborda a nomeação de Bobbio a senador vitalício pelo presidente italiano Sandro Pertini, na década de 1980: Em 18 de Julho de 1984 é nomeado senador ad vitam pelo Presidente Sandro Pertini (juntamente com o escritor católico Carlo Bo). [28] Inscreve-se no grupo socialista, como independente integra a Comissão de Justiça do Senado (pertence agora ao grupo parlamentar Democratici di Sinistra-L’Ulivo). Nesse mesmo ano, Bobbio deixa definitivamente a vida universitária, com setenta e cinco anos, e a Faculdade de Ciência Políticas concede-lhe por unanimidade o título de professor emérito. Inicia uma nova actividade pública - a colaboração em La Stampa – e trata matérias da sua predilecção: o pluralismo, os conteúdos do socialismo, a relação com a violência, a terceira via, a crise das instituições. Parte dos artigos serão compilados em Le ideologie e il potere en crisi que sairá em 1981, seguida anos mais tarde por L’utopia capovolta . A traumática reconfiguração política italiana iniciada em 1992, quando o sistema político italiano se desmorona como um castelo de cartas em razão da corrupção, das ligações entre a Mafia e a Democracia Cristã de Andreotti, da inépcia da classe política de perceber as mudanças profundas ocorridas na sociedade, de um sistema político que titubeia ao sabor dos governos que se formam e caiem, mobilizam-no para o combate ético e moral, alertando os seus concidadãos para a frágil sustentabilidade da vida democrática, num país com grandes tradições autoritárias e que só conheceu, tardiamente, a unidade política. Perturba-o uma sociedade que leva muito tempo a recuperar do trauma do assassinato de Aldo Moro às mãos das Brigadas Vermelhas [31] que se contenta com uma justiça parcial face à nuvem de acusações, nunca deslindadas, da cumplicidade da Democracia Cristã, da polícia e dos serviços secretos italianos na sua eliminação. Como escreve Gregorio Peces-Barba Martinez, ao ser visitado na sua casa no dia em que perfaz 90 anos, pelo presidente do Senado, Nicola Manzino, que o felicita pelo aniversário, relembra a ideia do labirinto a propósito da vida política italiana (...) (GONÇALVES, 20006, P. 3). 33 Já no que concerne a sua autobiografia, alguns críticos destacam os seguintes pontos: A carta de 12 de Novembro de 1990, citada na sua Autobiografia, é a todos os títulos um espelho de uma postura e de uma independência incómoda e incomodada: Nunca fui comunista, como sabes, mas agora que com o ruir do comunismo histórico teria surgido a ocasião propícia para uma grande iniciativa unitária, a pequena polémica quotidiana parece-me absolutamente estéril. (Bobbio refere-se ao editorial do Avanti órgão oficial do PSI que é dedicado nove em cada dez vezes a qualquer tareia polémica com os comunistas, sic). Na minha opinião, não basta mudar o nome do partido, pôr a «unidade» no título e aguardar que o filho pródigo retorne à casa paterna. Sem uma grande iniciativa, receio que não vá tornar (…) Mas eu não sou político, sou apenas um observador. Não exprimo propriamente uma opinião e muito menos faço propostas. Limito-me a expressar uma impressão. Essa reflexão sobre os caminhos irreconciliáveis entre uma postura cívica digna e as contradições do envolvimento partidário é continuada em Liberalismo e Democracia [26] e em inúmeros artigos recolhidos em ‗‘l’Utopia capovolta’’ (a utopia virada ao contrário) ainda inédito fora de Itália. (GONÇALVES, 2006, P. 3). Pode-se notar através da leitura da trajetória acadêmica de Norberto Bobbio uma grande preocupação com as condições atuais da política, da chamada real politik, como costumam chamar os cientistas políticos e os jornalistas políticos. Norberto Bobbio, portanto, não era um autor que se prendia apenas ao mundo das preocupações meramente teóricas, mas buscava o conhecimento da vida política, tanto na dimensão estritamente intelectual, como na dimensão dos fatos, da vida cotidiana. Certamente, foi essa conexão da teoria com a práxis, essa influência do empiricismo, aquele bem próximo ao pensamento de David Hume, talvez a influência daquela frase de Karl Marx que dizia que ―até hoje os filósofos se ocuparam em explicar o mundo. Agora é preciso transformá-lo‖, que transformou Norberto Bobbio em um dos pensadores mais bem qualificados no que concerne às abordagens sobre a vida cotidiana do mundo da Política, do Direito e da Filosofia do Direito. Norberto Bobbio fez uma importante escolha ao longo de sua trajetória de pensador, a qual foi a de preferir as análises sem sínteses as sínteses sem análises. E foi em relação a essa questão que o mestre de Turim tomou partido em termos teóricos em favor da Filosofia do Direito dos juristas em detrimento da Filosofia do Direito dos filósofos. Ferraz Júnior apresenta uma explicação plausível para a escolha de Norberto Bobbio. 34 (...) o modo recorrente do trabalho intelectual de Bobbio é o artigo que tem um problema como ponto de partida, cujos termos são esmiuçados para um subsequente encaminhamento com base na análise crítica de diversas posições, sendo a qualidade e a pertinência das suas análises e considerações no trato dos problemas da vida do direito que o tornaram um excepcional ponto de referência para o mundo jurídico. Ressalta, assim, com Riccardo Guastini (2005), um dos grandes estudiosos da obra jurídica de Bobbio, que o estilo analítico é uma das características mais notáveis de como foi elaborando a sua Teoria do Direito. Contudo, um estilo analítico que opera com base no dividir, distinguir, seccionar para considerar as coisas nos seus elementos mais simples. Daí a atenção de Celso Lafer para a contraposição da análise à síntese, o que leva Bobbio (1972), na sua defesa da filosofia do direito de juristas em alternativa à dos filósofos, a considerar que é ―sempre preferível uma análise sem síntese ( do que com frequência se critica os juristas filósofos) a uma síntese sem análise (que é o vício comum dos filósofos juristas)‖. O estilo analítico de Bobbio, mostra Celso Lafer, explica, assim, por que sua obra, em todos os campos do conhecimento a que se dedicou, é um contínuo work in progress por meio do qual, por aproximações sucessivas, vai, com base nesse estilo, aprofundando e refinando os temas Recorrentes de suas inquietações intelectuais. É por isso que uma parte significativa dos seus livros são reuniões de ensaios em torno de matérias conexas, fugindo a essa regra aqueles livros que, na sua origem, foram cursos universitários provenientes da sua atividade de professor. (FERRAZ JÚNIOR, 2013, P. 281). Ainda sobre a conexão entre a dimensão teórica e a dimensão da ação, a dimensão da vida cotidiana, Ferraz Júnior enfatiza o seguinte: Celso Lafer principia, heuristicamente, por uma dicotomia: Bobbio homem de ação e de contemplação. Essa dicotomia – vita activa/vita contemplativa – buscada em Hannah Arendt, conduz a uma interessante convergência. De um lado, a passagem de uma atividade que começara na clandestinidade em tempos do fascismo até a nomeação de Bobbio, em 1984, como senatore a vita; de outro, o intelectual, expoente da vertente inovadora de esquerda, cuja reflexão neocontratualista e republicana o conduz ao diálogo fecundo na resistência contra a opressão da direita. Daí a convergência apontada por Celso Lafer na constituição de uma autoridade pública como paradigma da relação entre o intelectual e o político. Nessa convergência Celso Lafer faz menção ao estranho interesse de Bobbio por Carl Schmitt que considerava o político como a relação entre amigo/inimigo, nesse ponto, verdadeiro antípoda do jurista italiano. E arrisca: Schmitt teria sido para Bobbio como um ―sombra‖, um Dr. Fausto de gênio que vendera sua alma ao diabo. O que me faz lembrar de um texto de Goethe (no Divã ocidental- -oriental) em que a tragédia de Fausto é anunciada e que muito tem a ver com a dicotomia e a dramaticidade da convergência: ―O sentido amplia, mas paralisa; a ação vivifica, mas bitola‖. Bobbio, na velhice, relata as experi ências penosas impostas pelas limitações físicas da idade. Fausto, que se entrega à ação vivificada e sem peias, perdendo o senso, olha para o futuro. Ao contrário de Bobbio que, laico em sede de crença numa outra vida, recorre à memória como meio de sobreviver. Ou seja, olha para o passado. E nisso, como bem aponta Celso Lafer, encontra paz e não angústia. A paz é o tema da guerra, na reflexão de Bobbio. E vice-versa. Aí também encontra Celso Lafer seu fio condutor na coerência do teórico e do político. De um lado, política internacional é política do poder. Hobbes, um dos preferidos de Bobbio, estampa nisso uma realidade incontornável. Para enfrentá-la, sem desmerecê-la, recorre à mão de Grócio e Kant. Assim, de outro lado, política internacional é também política jurídica, igualmente uma realidade, um dado de sociabilidade e de razão, donde a ordem internacional. Entre a guerra e a paz 35 converge Bobbio para um realismo nem pacifista nem belicoso. Na linguagem metafórica da mosca dentro da garrafa, do peixe na rede e do homem no labirinto, Celso Lafer mostra a importância da terceira hipótese: viver num mundo de becos sem saída como reflexão sobre os caminhos da paz nos labirintos da guerra. (FERRAZ JÚNIOR, 2013, P. 282). Em suma, quem foi Norberto Bobbio? Essa pergunta é respondida por Ferraz Júnior da seguinte maneira: Na verdade, Bobbio foi um filósofo perguntador: quale? Quale socialismo? Quale democrazia? Quale positivismo? Quale teoria giuridica? Celso Lafer, em seu livro, não deixa de ser também, com genialidade levemente transparente, um perguntador: quale Bobbio? Afinal, como ele bem mostra, há um Bobbio jurista, um Bobbio político, um Bobbio teórico do direito e da política, um Bobbio internacionalista, um Bobbio filósofo, um jovem Bobbio e um velho Bobbio. Na heurística dicotômica dos vários Bobbio, Celso Lafer resiste à ―fúria dos extremos e aos riscos de seus desdobramentos‖. Nos vários Bobbio encontra, na serenidade intelectual, ―a tarefa da inteligência humana de tirar o valor das coisas da obscuridade para a luz‖, como diz a epígrafe de San Tiago Dantes que usa em seu livro. E aí encontra também uma convergência consigo mesmo. (FERRAZ JÚNIOR, 2013, PP. 283 - 284). Assim como o filósofo Cornelius Castoriadis demonstra na obra denominada A Instituição Imaginária da Sociedade (CASTORIADIS, 1982) que ele sabe que não existe somente um marxismo, Norberto Bobbio demonstra em seus escritos, em suas conferências e em suas entrevistas, que não existe um só tipo de democracia (e fez escolha por um dos tipos de democracia existente, a chamada democracia procedimental), um só tipo de socialismo, um só tipo de positivismo, e nem um só tipo de teoria jurídica. Por saber muito bem disso, isto é, que os conceitos nas Ciências Sociais são polifônicos, ou seja, um conceito possui mais de um significado, foi que ele se tornou um ―filósofo perguntador‖ como tem de ser todo ―bom filósofo‖. II. As Filiações Intelectuais de Norberto Bobbio O fato de Norberto Bobbio considerar Direito e Poder como dois lados da mesma moeda foi um fator determinante no processo de escolha dos autores de que precisou para fundamentar seus argumentos em suas aulas nos diversos cursos em que lecionou nas duas universidades em que foi professor de Filosofia do Direito (e na última delas, a Universidade de Turim, onde foi professor de Ciência Política), nas suas obras acadêmicas e nas centenas de debates de que ele participou na Itália e no exterior. 36 Seu contato com um conjunto imenso de estudiosos de importantes escolas filosóficas, jurídicas e sociológicas o colocou no rol dos grandes leitores, analistas e debatedores dos mais variados temas de interesse público, o que acabou por transformá- lo no filósofo mais importante da Itália e em um dos filósofos mais importantes do mundo na contemporaneidade. Além disso, ele escreveu centenas de obras sobre Direito, sobre Filosofia e sobre Política ao longo de meio século de produção acadêmica e de militância política, além de ter sido escolhido pelo presidente da Itália para ser senador vitalício. Sobre a formação intelectual, a vida e a obra de Bobbio, Leão Rego escreveu: Falar de Bobbio é rememorar uma fecunda tradição teórica italiana, que correu mundo fertilizando com sua experiência inúmeras pesquisas e reflexões sobre os temas da liberdade, do socialismo e da democracia. Norberto Bobbio morreu aos 94 anos, no dia 10 de janeiro de 2004. Nasceu na cidade de Turim em 18 de outubro de 1909, formou-se em Direito e Filosofia na universidade local, tornando-se livre-docente em 1934. Nessa época freqüentou a secção turinesa do grupo antifascista e liberal socialista Giustizia e Liberta, fundado por Cario Rosseli, assassinado em Paris em 1937 a mando de Mussolini juntamente com seu irmão, o historiador Nelo Rosseli. Ainda em 1937, Bobbio participou de reuniões na cidade de Cortona debatendo essas questões com dois filósofos da mesma tradição: Aldo Capitini e Guido Calogero. Sobre este último, sempre o reconheceu como sendo seu mâitre à penser. Esses pensadores, na clandestinidade imposta pelo fascismo e na esteira dos impulsos rossellianos, estiveram fortemente empenhados na fundamentação teórica e política do movimento liberal socialista italiano. Seu principal objetivo era dotar o socialismo de uma dimensão política liberal. Nos anos de 1930, na Itália, isso significava tentar reunir em uma mesma fórmula política a tradição do liberalismo ético italiano, de matriz fincada na filosofia de Benedetto Croce, e a tradição socialista européia, cujo cromatismo apresentava-se intenso e variado - porque impregnado das diversas tradições políticas nacionais — dotando o movimento socialista internacional de conflitos e tensões que resultaram em combinações surpreendentes. Em geral, a ênfase posta nessas combinações fundava-se tanto na sugestão de Rosseli como em debates mais amplos, como, por exemplo, as propostas do marxista austríaco Otto Bauer. Para esses autores, apesar de suas grandes diferenças de concepção revolucionária, tratava-se de fazer a revolução socialista, mas sem perder o que Rosselli denominavade ocidente político e Bauer de democracia funcional. Isto é, preservando-se as conquistas encarnadas nos direitos de liberdade, sobretudo aquelas que garantiam as formas democráticas e republicanas de convívio político. De fato, o que estava em jogo nesse debate era a construção de uma alternativa ao movimento comunista dirigido pela Terceira Internacional. Assim, torna-se impossível escrever sobre Bobbio, autor cujo perfil apresenta tantas faces e dimensões, sem se referir, de um lado, às tradições políticas e teóricas italianas que atuaram decisivamente na sua formação; de outro, à sua personalidade filosófica, cujo desempenho marcante realizou-se no papel que ocupou em seu país, o de intelectual público, talvez um dos últimos da atualidade. Refiro-me especialmente àquele tipo de intelectual que fala ao público sobre as questões centrais que atingem a vida coletiva. (REGO, p. 7, 2013). 37 De acordo com Leão Rego, a participação de Bobbio em atividades de caráter público voltadas para a educação política e intelectual dos cidadãos italianos foi bastante expressiva desde o ano de 1976. Essa participação se intensificou na década de 1980, com sua presença no jornal de Turim, La Stampa, como articulista. Suas intervenções realizaram-se de várias maneiras e durante muito tempo. Mais recentemente, podemos situar aquelas ocorridas a partir de 1976, as quais ganham corpo e densidade cada vez maior nos anos de 1980, com seus artigos escritos para o jornal de Turim, La Stampa. Suas reflexões políticas e teóricas eram comentadas e debatidas em quase todos os demais diários do país, e, às vezes, na televisão. Durante muito tempo a opinião de Bobbio fez parte do cotidiano de milhares de cidadãos italianos que o liam e o discutiam indo ao trabalho, à escola, nos metrôs, ônibus, cafés e bares. Conhecer seu ponto de vista sobre este ou aquele problema político ocorrido na semana era mote para uma conversa no café da esquina e acabava, na maioria das vezes, em apaixonadas polêmicas. Isso o convertia em um verdadeiro tribuno republicano. Afinal, tais intervenções contribuíam para aproximar as pessoas através do debate, ajudavam a refinar a sensibilidade política coletiva e introduziam densidade intelectual à esfera pública. Nos últimos 25 anos, essa posição fez dele uma espécie de oráculo do país. Função que o acompanhou até há muito pouco tempo. Quem viveu na Itália nessa época — antes da atual degradação moral e política, cuja encarnação mais emblemática é a ascensão ao poder de uma figura como Silvio Berlusconi - pôde notar a rapidez e a sobriedade com que debatia questões postas pela vida política do dia-a-dia de seu país. Essa capacidade de resposta rápida e imediata aos fatos se devia tanto ao temperamento polêmico como à compreensão ética que portava da condição intelectual. Na verdade, Bobbio pertencia a uma geração de intelectuais italianos para a qual fazia parte de seu ofício, à maneira de Sócrates, andar pelas ruas da cidade tentando esclarecer e persuadir permanentemente seus concidadãos. (REGO, 2003. pp. 7-8). Contudo, as atividades de Bobbio não se restringiram ao ensino universitário e à escrita de artigos de opinião para jornais e revistas, mas se estenderam a todas as prerrogativas do chamado ―intelectual público‖. Além disso, como expartiggiano e militante antifascista tornou-se senatore a vita, título honorífico concedido somente aos heróis da pátria e aos fundadores da Primeira República italiana de 1948. A honraria, contudo, mantém as prerrogativas parlamentares normais de um senador eleito pelo sufrágio universal. A dupla pertinência, à academia e à política, ampliou sua presença na vida pública italiana. Comparecia a inúmeras entrevistas, debates, mesas-redondas, conferências, escrevia muito para jornais, revistas, publicações acadêmicas, semanários, lecionava na universidade, ou seja, realizava inteiramente a condição de intelectual público. Incansável polemista, estava sempre em debate colocando questões, tentando esclarecer pontos da história nacional, tomando posições diante dos fatos políticos cotidianos. Enfim, um intelectual verdadeiramente compromissado com o esclarecimento dos problemas, fossem eles de ordem política prática ou complexas questões teóricas. Em suma, um sábio ilustrado tout court, herdeiro daquele pathos missionário retomado fortemente no Iluminismo como destino reservado aos grandes homens de cultura. (REGO, p. 8, 2003). 38 Ao efetuar um balanço sobre o conjunto de autores relevantes que sempre estiveram presentes nas discussões de Bobbio, Dias menciona a afirmação do filósofo de Turim sobre a necessidade de se estabelecer entre a Filosofia Jurídica e a Filosofia Política ―fecundas relações‖ de colaboração: Acontece, segundo Bobbio, sobretudo no Estado Democrático de Direito, que Filosofia Jurídica e Filosofia Política devem estabelecer entre si ―fecundas relações‖ de colaboração; dando assim origem àquele ―agir político‖ que em todos os níveis deve desempenhar-se nos limites de normas estabelecidas. Estas mesmas normas podem ser continuamente submetidas à revisão através do agir político, promovido pelos mais diferentes centros de formação da opinião pública, sejam grupos de interesse, associações, livres movimentos de reforma e de resistência. (DIAS, 2012, P. 8). Em seguida, Dias aponta dois teóricos importantes na obra de Bobbio, quais sejam, Hans Kelsen e Max Weber: No que tange a esta dupla análise, os constantes pontos de referência para Bobbio, os autores que lhe acompanharam sempre foram Hans Kelsen (1881 – 1973 e Max Weber (1864 – 1920). Mesmo partindo de dois pontos de vista diferentes – Hans Kelsen parte das normas e do Direito como Ordenamento de Normas e Max Weber parte do Poder e das várias formas de Poder -, os dois autores terminaram por encontrar-se apesar de fazerem caminhos opostos: Kelsen da validade formal das normas à efetividade, através das várias formas de poder degradantes do alto ao baixo; Max Weber, porém, do poder de fato às várias formas de poder legítimo. (DIAS, 2012. P. 8). Bobbio foi bastante influenciado pelo positivismo jurídico de Kelsen. Reale comenta que Bobbio, quando este esteve no Brasil, ele se declarava um positivista, não no sentido filosófico. O comentário é o seguinte: Nessa ordem de idéias, em seu pronunciamento em Brasília, Bobbio confessava que se considerava ―positivista no sentido jurídico, e não no sentido filosófico‖, acrescentando que o neopositivismo foi para ele uma experiência útil, visto parecer-lhe que os instrumentos lingüíticos que ele fornece à análise do direito são da maior relevância para a hermenêutica jurídica. (REALE, 2009 APUD BOBBIOBRASIL, 2009, P. 2). Reale ressalta também que Bobbio manteve o ―mesmo equilíbrio‖ quando analisou a ―Teoria Pura do Direito‖ de Kelsen contribuindo para o conhecimento jurídico ao demonstrar que na seara do Direito o essencial é a dimensão da norma, o que o levou a considerar algo secundário o fato de sua apresentação ser baseada no formalismo, influenciada pelo pensamento de Immanuel Kant. (REALE, 2009 APUD BOBBIOBRASIL, 2009, P. 2). 39 A obra em que Bobbio realiza essa análise mencionada por Miguel Reale é Direito e Poder, um livro escrito especialmente para abordar o pensamento do jurista austro- norte-americano Hans Kelsen (1881 – 1973), o qual elaborou a chamada Teoria Pura do Direito, uma teoria ―que exclui do Direito quaisquer referências estranhas, especialmente aquelas de cunho sociológico e axiológico (os valores), consideradas áreas de estudo da Sociologia e da Filosofia‖ (BOBBIO, 2008). Essa obra revela a influência do pensamento de Kelsen sobre a Filosofia do mestre italiano e demonstra a sua preocupação em estudar as relações entre Direito e Poder mostrando que os recursos oferecidos pelo Direito e pelo Poder são complementares e imprescindíveis para o funcionamento do Estado Democrático de Direito e fundamental para pensarmos no ideal da expansão do ordenamento jurídico e também no da organização político-administrativa para além do plano interno dos Estados nacionais contemporâneos. De acordo com Bobbio, a ―norma‖ precisa do ―Poder‖ para que tenha efetividade. O ―Poder‖, por sua vez, precisa que a obediência ocorra continuamente em relação ao comando e ás regras que derivam dele para que ele possa obter legitimidade. Retomando o pensamento de Kelsen e o pensamento de Weber, vale destacar que para o jurista autor da ―Teoria Pura do Direito‖, mestre e principal expoente da Escola Positivista do Direito, somente o ―Poder legítimo‖ possuiu efetividade. Na concepção de Max Weber, o Poder tem legitimidade quando ele tem efetividade. Mas como o Poder se transforma em algo legítimo? O Poder se transforma em algo legítimo por meio do Direito, ao passo que o Direito se converte em algo efetivo mediante o Poder. Segundo Bobbio, quando ocorre uma separação entre Direito e Poder, surgem dois extremos. A partir do momento dessa separação a sociedade ordenada tem que se proteger, tanto do ―Direito impotente‖, como do ―poder arbitrário‖. (BOBBIO, 2007). Outro importante autor que influenciou Bobbio e o acompanhou por toda a sua trajetória intelectual foi Immanuel Kant. Por ser um autor de suma importância para a Filosofia, devido suas ideias sobre a liberdade, sobre o Direito, sobre a paz e sobre o Estado, ele despertou bastante interesse no pensador italiano. Bobbio, como já foi visto em citação acima, escreveu um livro especialmente para discorrer sobre a questão do Direito e do Estado no pensamento de Kant. Kant é o autor do ―direito cosmopolita‖, tema que provocou grande interesse em Bobbio, o qual via tal tema como fundamental para pensar o problema dos direitos do 40 Homem no âmbito do sistema Internacional, assim como o problema da paz, o problema dos conflitos, da guerra e das relações internacionais. Entretanto, de acordo com Reale, Bobbio não se transformou em um ―kantista‖, pois o mestre italiano é ―um filósofo que timbrava em extrair o suco essencial das doutrinas, sem se filiar a nenhuma delas‖, devido ao fato de ele ser ―menos um filósofo do que um teórico da Ciência‖ na visão do professor brasileiro. Desde então fiquei cada vez mais convencido de que Bobbio nunca se preocupou com a qualificação de sua própria posição filosófica, preferindo o papel de maior esclarecedor e mentor das idéias jurídicas e políticas fundamentais, visando sempre ao aprimoramento da democracia. Assim sendo, declarei não considerá-lo um neopositivista, como geralmente se fazia, mas sim um filósofo que timbrava em extrair o suco essencial das doutrinas, sem se filiar a nenhuma delas. Na resposta por ele dada e que muito me sensibilizou, concordou o mestre itálico com essa minha observação, chegando a se considerar menos um filósofo do que um teórico da ciência, sem ter tido jamais a pretensão de ―formular concepções gerais da realidade‖. (REALE, 2001, P. 31). Reale prossegue afirmando no que concerne à preocupação de Bobbio em relação à revelação daquilo que é essencial nas doutrinas fundamentais, tanto do campo da Filosofia, como do campo da Política e do Direito: Talvez tenha sido a sua maior contribuição à história da cultura a sua constante preocupação no sentido de revelar o essencial das doutrinas fundamentais. Ninguém, a meu ver, soube penetrar tão profundamente na essência do pensamento filosófico-jurídico de Kant, sem se tornar kantista, ou de Hegel ou Marx sem ser hegeliano ou marxista. (REALE, 2009 APUD BOBBIOBRASIL, 2009, P. 1). Para reforçar a sua afirmação a respeito da capacidade intelectual de Bobbio para se aprofundar na análise das obras de importantes autores clássicos sem se apegar como discípulo a suas ideias, Reale prossegue argumentando o seguinte: Uma das obras mais aliciantes de Benedetto Croce é O que Está Vivo e o que Está Morto na Filosofia de Hegel, na qual é apresentado o que há de profundo e perene no idealismo hegeliano, sem necessidade de se tornar adepto dessa corrente de pensamento. Pode-se dizer que Bobbio aplicou essa diretriz em relação aos fundadores da ciência jurídico- política atual, dispensando especial atenção às condições peculiares de cada momento histórico. (REALE, 2009 APUD BOBBIOBRASIL, P. 2, 2009). Em uma entrevista a Luiz Carlos Bresser-Pereira, em outubro de 1994, Bobbio confirma a afirmação de Miguel Reale a respeito de sua não-filiação às doutrinas dos autores que ele estudou: 41 Sim. Eu me considero sincretista, no sentido de que, no fundo, eu nunca fiquei preso a uma corrente determinada. Sempre procurei ir além das tendências contrapostas. Eu me defini como um intelectual mediador, aquele que procura encontrar soluções, ao invés de dividir. Evitar opostos extremistas, como na Itália, o fascismo e o comunismo. (BOBBIO, 1994 APUD BRESSER-PEREIRA, 1994, P. 4). Miguel Reale destaca a capacidade analítica de Bobbio que o fez ultrapassar a ―mera apreciação doutrinária dos livros e monografias dos autores‖, devido à aplicação de ―critérios relativistas‖ para investigar o período histórico em que tais autores desenvolveram seus trabalhos: Na realidade, ele foi além da mera apreciação doutrinária dos livros e monografias dos autores, porquanto aplicou os mesmos critérios relativistas no exame da época em que eles atuaram, daí resultando um historicismo aberto às inovações imprevisíveis da sociedade e da ciência, livre dos obstáculos e impedimentos apontados por Karl Popper em sua conhecida crítica do historicismo. O que mais me seduz na obra de Bobbio é a sua crítica histórica, a sua capacidade de captar o que há de mais significativo e fecundo nas produções filosóficas e científicas, sempre em íntima e concreta correlação com as necessidades individuais e coletivas. (REALE, 2009 APUD BOBBIOBRASIL, P. 2, 2009). Prosseguindo em sua avaliação à capacidade analítica do filósofo italiano, Reale acrescenta o seguinte: Ele, por exemplo, soube ver, em Hobbes, mais do que um teórico do Leviathan, do estado autoritário (como via de regra se fazia), para nos revelar um pensador empenhado em demonstrar a positividade essencial do poder, motivo pelo qual tanto o direito como a política não devem deixar de ser estudados como ciências positivas. Nesse sentido, lembrava ele o ensinamento hobbesiano de que ―auctoritas, non sapientia, facit leges‖ (a autoridade, não a sabedoria, faz as leis). Era, em suma, toda uma nova visão de Hobbes que se descortinava graças à sua aguda interpretação. (REALE, 2009 APUD BOBBIOBRASIL, P. 2, 2009). No que concerne às fontes do pensamento de Norberto Bobbio, Dias afirma o seguinte: Segundo Bobbio, seria embaraçoso declarar quais foram os seus ―autores‖, ou seja, as ―fontes‖ do seu pensamento; apesar de enumerar uma dezena deles, não seria fácil encontrar entre estes, uma convergência ou afinidade eletiva do seu pensamento. Os primeiros cinco dos seus Autores são os maiores filósofos políticos da idade moderna e, portanto, representam escolha quase obrigatória que não requer justificação. São Eles: Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Os outros cinco são Autores contemporâneos, que Bobbio enumera na o