UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES (IA) SUSANNA DE OLIVEIRA SILVA MOVIMENTO SENTADO: Outras formas de usar as cadeiras São Paulo 2024 SUSANNA DE OLIVEIRA SILVA MOVIMENTO SENTADO: Outras formas de usar as cadeiras Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência parcial para obtenção do grau de Licenciatura em Arte – Teatro, sob orientação da Prof. Dra. Lilian Freitas Vilela e co-orientação da Profª Ma. Renata Fernandes dos Santos. São Paulo 2024 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP. Dados fornecidos pelo autor. S586m Silva, Susanna de Oliveira (Susanna Oliveira), 2000- Movimento sentado : outras formas de usar as cadeiras / Susanna de Oliveira Silva. -- São Paulo, 2024. 72 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lilian Freitas Vilela. Coorientadora: Prof.ª Ma. Renata Fernandes dos Santos. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Arte-Teatro) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Ensino fundamental. 2. Adolescentes. 3. Ambiente de sala de aula. 4. Corpo humano. 5. Postura humana. 6. Estilo de vida sedentário. 7. Disciplina escolar. 8. Dança na educação. 9. Cadeiras. I. Vilela, Lilian Freitas. II. Santos, Renata Fernandes dos, 1983-. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título. CDD 792.07 Bibliotecária responsável: Catharina Silva Gois - CRB/8 11323 SUSANNA DE OLIVEIRA SILVA MOVIMENTO SENTADO: Outras formas de usar as cadeiras Trabalho de conclusão de curso, apresentado à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, São Paulo Para obtenção do título de licenciatura em Arte-Teatro. DATA DE DEFESA: 03/12/2024 BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________ Prof. Dra. Lilian Freitas Vilela Orientadora ______________________________________________________ Profª Ma. Renata Fernandes dos Santos Co-orientadora ______________________________________________________ Prof. Dra. Fernanda Raquel Banca examinadora Agradecimentos Agradeço à minha mãe por encontrar o Cursinho Popular Heleny Guariba e encontrar tantas outras coisas por mim. Agradeço ao meu pai por ter confiado em mim e me deixado desistir da outra faculdade. Agradeço a minha irmã pela fé ininterrupta em mim. Agradeço ao Cursinho Popular Heleny Guariba por viabilizar o acesso à Universidade pública de Teatro. Agradeço a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho por este curso de graduação. Agradeço a Profª. Dra. Lilian Freitas Vilela pela orientação carinhosa que tive a sorte de receber. Agradeço a Profª Ma. Renata Fernandes dos Santos pela co-orientação generosa, cuidadosa e com apontamentos certeiros. Agradeço também a Profª Dra. Denise Pereira Rachel por ter sido parte deste estudo que se iniciou com a Iniciação Científica em 2023 sob sua orientação. Agradeço a Profª Dra. Carminda Mendes André por me receber nesse curso já me ensinando tanto sobre educação sem que eu me desse conta. Agradeço a Luma Marinatto Fernandes por ser cúmplice na descoberta do mundo da pesquisa. É bonito dar as mãos e ir. Agradeço a todas as pessoas que me mandaram uma obra de arte envolvendo cadeiras dizendo ter se lembrado de mim ao longo do ano de 2024. Agradeço às amizades que foram alegria e ombro durante este curso e trabalho. Agradeço às minhas professoras, todas. RESUMO Através de pesquisa de campo com adolescentes do Ensino Fundamental II realizada durante pesquisa de Iniciação Científica através do PIBIC e análise bibliográfica, o estudo revela como o processo de escolarização silencia os corpos, especialmente por meio da arquitetura da sala de aula e do uso excessivo de cadeiras em promoção da posição sentada. A partir da obra “O Pensamento Sentado” de Norval Baitello Júnior (2012), e de autores como Lepecki (2011) e Foucault (2007), foi analisada a relação entre o sedentarismo, a disciplina corporal e a organização espacial da escola. Inspirado por André Lepecki, o trabalho propõe que o movimento na escola é uma coreografia que normaliza comportamentos, questionando a função civilizatória da escola. Além disso, o estudo compila obras de dança nas quais a cadeira é usada artisticamente, sugerindo que ela pode ser mais do que um instrumento de controle. Por fim, são propostas ações pedagógicas que utilizam a cadeira de maneira criativa no ambiente escolar. Palavras-chaves: Dança; Escola; Adolescentes, Corpo Sentado, Proposições Pedagógicas. ABSTRACT Through field research with middle school adolescents conducted during a Scientific Initiation project via PIBIC and bibliographical analysis, this study reveals how the schooling process silences bodies, particularly through classroom architecture and the overuse of chairs to promote the seated position. Based on the work *"O Pensamento Sentado"* by Norval Baitello Jr. (2012) and authors such as Lepecki (2011) and Foucault (2007), the relationship between sedentarism, bodily discipline, and the spatial organization of schools was analyzed. Inspired by André Lepecki, the study suggests that movement in schools constitutes a choreography that normalizes behaviors, questioning the civilizing role of education. Furthermore, the study compiles dance works where chairs are used artistically, proposing that they can serve beyond their function as instruments of control. Lastly, pedagogical actions are proposed to creatively integrate chairs into the school environment. Keywords: Dance, School, Adolescents, Seated Body, Pedagogical Proposals. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Raio-X: arquitetura interna 09 Figura 2 - Yvonne Rainer coreografando Chair Pillow em São Paulo 30 Figura 3 - Chair Pillow de Yvonne Rainer em São Paulo 32 Figura 4 - Café Muller de Pina Bausch 33 Figura 5 - Pina em Café Muller 34 Figura 6 - Rosas Danst Rosas de Anne Teresa Keersmaeker 35 Figura 7 - Rosas Danst Rosas (Estrutura) 36 Figura 8 - Corpo Sentado - 10 anos 37 Figura 9 - Quando Quebra Queima 39 Figura 10 - Cadeira-Barricada 40 Figura 11: Cadeira-armadura 41 Figura 12 - Trabalho Normal 42 Figura 13 - Claudia Muller contando os segundos 43 Figura 14 - Corpos Velhos, Para Que Servem? 44 Figura 15 - Décio Otero e Marika Gidali 45 Figura 16 - História de Gestos: Sentar 46 Estou, nesse momento, sentada pensando que preciso escrever um TCC para que eu possa me formar no final de 2024 e possa trabalhar mais no próximo ano. Tenho trabalhado bastante. Tenho dançado pouco. Tenho dado pouca atenção ao meu movimento interno e medido as sensações apenas pelo que o corpo organiza em palavras. No entanto, acontecem denúncias quando a vida não está fluida. Minha boca estoura herpes sempre que eu passo por dias de muito stress. Minha coluna tem duas curvaturas de escoliose porque o meu corpo tentou se manter alinhado quando a primeira curva surgiu. São 41ºC de curvatura na lombar e 32ºC de curvatura na torácica. Decidi que iria operar para colocar parafusos e alinhar, mas não operei. Minha coluna dói mais que o normal quando o movimento consciente não faz parte do meu dia. O maior motivador para escrever um TCC que convoque o movimento é: a falta dele. Figura 1 - Raio-X: arquitetura interna Fonte: imagem da autora, 2023 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO: o começo 11 2 AS CADEIRAS 18 2.1 No Mundo 18 2.2 Na Escola 24 3 OUTRAS FORMAS DE USAR A CADEIRA 30 3.1 Na Dança | Obras de dança com cadeiras 30 3.1.1 CHAIR PILLOW (1969), de Yvonne Rainer 30 3.1.2 CAFÉ MULLER (1978) - Pina Bausch 33 3.1.3 ROSAS DANST ROSAS (1983), de Anne Teresa de Keersmaeker 35 3.1.4 CORPO SENTADO (2005), de Jussara Müller 37 3.1.5 QUANDO QUEBRA QUEIMA (2016), da ColetivA Ocupação 39 3.1.6 TRABALHO NORMAL (2018), de Claudia Muller 42 3.1.7 CORPOS VELHOS, PARA QUE SERVEM? (2023), de Luis Arrieta 44 3.1.8 HISTÓRIA DE GESTOS (2023), de Elisabete Finger 46 Como dançam as cadeiras 48 3.2 Na Escola | Proposições Pedagógicas 49 3.2.1 Movimento Sentado 1 - Pilha 56 3.2.2 Movimento Sentado 2 - Dança: Um pronto-socorro para a preguiça 56 3.2.3 Movimento Sentado 3 - Mapa de Sala 58 3.2.4 Movimento Sentado 4 - Escola Sentada (APÊNDICE C) 59 3.2.5 Movimento Sentado 5 - Em Cadeiras, Cabem Corpos 60 3.2.6 Movimento Sentado 6 - Aula Normal 60 3.2.7 Movimento Sentado 7 - Corpos Sentados, Para Que Servem? 61 3.2.8 Movimento Sentado 8 - História do Brasil 62 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 63 REFERÊNCIAS 65 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 67 APÊNDICE A - Mapa de Sala 69 APÊNDICE B - Cartas do Hábito (Movimento Sentado 3) 70 APÊNDICE C - Ementa de disciplina eletiva ( Movimento Sentado 4) 71 11 1 INTRODUÇÃO: o começo Este trabalho de conclusão de curso germinou da pesquisa de Iniciação Científica através do PIBIC, intitulada “CORPO E MEMÓRIA: Percepções do corpo na escola a partir das Histórias de Vida1”, realizada entre 2023 e 2024 sob orientação da Profª. Dra. Denise Pereira Rachel, com investigação sobre as percepções dos estudantes sobre o próprio corpo na escola. Inicialmente, o estudo de Iniciação Científica pretendia acompanhar duas turmas de estudantes do Ensino Fundamental II, uma turma de escola privada e uma de escola pública e, através da Metodologia das Histórias de Vida, descobrir se eles percebiam que o corpo é cada vez menos considerado ativamente nos processos de aprendizagem ao longo da vida escolar. A pesquisa de campo enfrentou algumas dificuldades de contato com a Escola Municipal pretendida, e assim, o estudo foi realizado apenas com estudantes do 9º ano de uma escola privada na Vila Olímpia, em São Paulo. Realizar uma pesquisa de Iniciação Científica no período que antecede o TCC foi importante para compreender os modos de pesquisar, criar hábitos de escrita e principalmente ter a oportunidade de dar continuidade a pesquisa iniciada, a partir de perguntas que surgiram durante o processo mas que não puderam ser investigadas e aprofundadas durante os 12 meses do PIBIC. O referencial teórico principal foi o livro “O Pensamento Sentado: Sobre glúteos, cadeiras e imagens (2012)” de Norval Baitello Júnior. No início, a pesquisa apontava um problema que se relacionava com a arquitetura escolar, mas ao longo da leitura deste livro e da observação em sala de aula, as cadeiras tornaram-se as protagonistas do estado de imobilização em sala de aula. O autor constroi em seu livro uma relação entre a vida sedentária e as cadeiras, trazendo o fim do nomadismo como parte do processo civilizatório, processo esse que tem como característica a redução da mobilidade. A escola, atualmente, é um lugar de poder civilizatório, visto que nas escolas existe uma expectativa de comportamento dos estudantes, rotinas específicas para se tornar um bom estudante e esses hábitos ainda são bastante semelhantes na maioria das instituições escolares tradicionais brasileiras. Sendo assim, as configurações de sala de aula impactam na educação comportamental dos cidadãos. Arrisco dizer que a lição magna da escola seja a civilização (Baitello, 2012), para além de qualquer outro conteúdo que ali se ensina. Ao longo desta monografia, Norval Baitello Junior (2012) e Michel Foucault (2007) serão convidados para o 1 Trechos do relatório final escrito para o PIBIC serão utilizados nesta monografia. 12 diálogo sobre essa relação entre civilizar e educar que acontece dentro das salas de aula brasileiras. A organização da sala de aula se modifica ao longo da trajetória escolar, a presença das cadeiras enfileiradas vem chegando e, aos poucos, os padrões de comportamento são construídos. As salas de aula de Educação Infantil, por exemplo, tem espaços variados para que as crianças possam brincar no chão, brincar sentadas em cadeiras ou até mesmo em pé e, em algumas salas, tem também um espaço para que as crianças possam descansar, se preciso for. Já no Ensino Fundamental I, a configuração do espaço começa a ter a forte presença de cadeiras e carteiras, mas, a organização espacial dessa mobília irá depender de cada escola, e sobretudo de cada professor, sendo perceptível que há abertura, tanto dos estudantes quanto dos educadores, para reformular a sala de aula e diferentes configurações, como grupos, duplas, círculo e outras possibilidades. Num geral, é no Ensino Fundamental II que as cadeiras enfileiradas começam a aparecer como regra da organização e assim segue até o Ensino Médio. Crescer faz parte da vida. Pensando nisso, as escolas deveriam estar preparadas para lidar com os desafios e alegrias de cada fase de desenvolvimento de seus estudantes, compreendendo suas necessidades. Veja que escrevi “deveriam estar preparadas”, pois percebo que a adolescência, principalmente, é ainda um grande desafio entre os educadores. Aos poucos, esses alunos, que antes mexiam na tinta, comiam com as mãos, corriam, brincavam, molhavam a camiseta com água e tinham liberdade para falar e se mover em sala de aula, vão se sentando, um atrás do outro, erguendo as mãos para pedir para ir ao banheiro, segurando o xixi durante uma explicação considerada importante e lembrando que têm centro, cintura e pernas apenas no fim do dia, ao levantarem-se para ir embora, ou para o intervalo. Fora da sala de aula, a vida pode existir por inteiro mas, dentro dela, muitas vezes o pacto do aprendizado coopera com um silenciamento do corpo.2 É importante deixar claro que ao dizer sobre o “intervalo” me refiro ao movimento livre, não guiado e à liberdade que os estudantes têm nesse momento do dia para escolher o que fazer e como se colocar no ambiente. As aulas de Educação Física e Artes são aulas onde essas novas possibilidades de organização corporal para o aprendizado são bem vindas e além disso, são as matérias escolares que consideram outras formas e processos de aprender, reconhecem as manifestações do corpo em movimento e os saberes do corpo. Ao nomear 2 Ao longo deste trabalho, alguns recursos de formatação foram utilizados. O itálico será utilizado poeticamente para trazer perguntas e também para as vozes poéticas envolvidas neste estudo. O negrito será utilizado para destaque de ideias consideradas importantes. Os recursos gráficos foram combinados entre eles. Além disso, comunico por meio desta nota de rodapé que os nomes dos estudantes citados são todos fictícios. 13 “Aulas de Artes”, estou realmente considerando as Artes no plural, pois as linguagens artísticas oferecidas aos estudantes se alteram de escola para escola, no entanto, a atenção ao corpo está presente em todas as linguagens artísticas, à sua maneira e isso precisa ser valorizado dentro das escolas. Pensando nisso, na importância dada ao corpo nas aulas de diferentes matérias, durante o estudo de iniciação científica, algumas conversas aconteceram com os estudantes da Escola particular que acompanhei, uma escola de alto padrão de São Paulo e, essa informação é importante para a leitura das impressões trazidas para essa monografia. Certo dia, eu e a turma conversamos sobre as principais diferenças entre o Ensino Fundamental I e o Ensino Fundamental II e uma estudante disse: - No “Fund I”, todas as salas são ateliê. A imagem-ideia da sala de aula como atelier foi um presente para meus ouvidos. O que seria uma sala de aula se não uma sala de pura criação? Por que essa característica se perde? Onde fica o cuidado com a criação de experiências significativas para os adolescentes? Acaso apenas as crianças precisam da arte para se desenvolverem de forma plena? O estado de criação do ateliê desperta a curiosidade, a criatividade e isso, requer a lida com a subjetividade e as individualidades de cada pessoa envolvida. A escola em questão, tem as artes como pilar estruturante de sua criação, então, quando essa estudante diz que “todas as salas são ateliê”, ela usa a ideia de ateliê de arte como metáfora pois, ao seu ver, as salas do Ensino Fundamental I conta com diversas possibilidades de materiais e também de brincadeiras, imaginação e criação. No Ensino Fundamental II desta escola, eles têm aulas de Artes Visuais no ateliê, mas suas salas de aulas regulares já não se parecem com um. Reconheço que as condições de trabalho oferecidas aos professores no Brasil não colabora para uma sala de aula diferente, mas este trabalho pretende expor a cultura do não-movimento em sala de aula como sinônimo de bom comportamento. Para minha surpresa, assim que a estudante comentou sobre as “salas ateliê”, outra estudante se manifestou com uma fala bastante significativa no que diz respeito ao processo de escolarização, em específico da organização coreográfica da sala de aula: - Ah, mas eu não queria ter salas assim, desculpe. O Infantil traz uma coisa mais infantil… é uma coisa mais leve, aulas mais descontraídas e eles aprendem de formas diferentes. Aqui, no “Fund II”, tem que ter algo mais “vamos estudar e é isso”, algo mais “fora da escola”, como a Faculdade! Algo mais sério. Eu entendo que temos que buscar a forma mais confortável (de organização para a sala de aula) possível, mas 14 não adianta a gente querer imaginar como se estivéssemos no 1º ano (do Ensino Fundamental I). Vejamos então; uma estudante aponta que no Ensino Fundamental I as salas de aula são como ateliês e uma outra diz que não gostaria de ter uma sala assim agora que “aprende para valer”. Esses dois comentários podem ser combinados para olharmos para o quanto a valorização do saber através das artes, do corpo e da experiência (associados à infância), já não são valorizadas por certos estudantes do Ensino Fundamental II. No que diz respeito à temática da pesquisa realizada, que pretendia investigar o que os adolescentes percebem sobre o próprio corpo nesse espaço (escola), descobri que eles estão exaustos e estar sentado o dia todo foi um dos motivos mais apontados junto ao longo período de horas que passam na escola. No entanto, apesar de relatarem estar cansados por estarem sentados, recorrem às cadeiras para aliviar este cansaço. Em um mundo de cadeiras, a escola não escapa disso. Ainda que tenha descoberto muitas coisas, sigo me questionando sobre como defender os saberes a partir do corpo na escola. Pergunto-me se é possível imaginar salas de aula que deem importância para o corpo como parte do processo de ensino, atentando-se para a presença ativa dos mesmos. Pensando na presença do corpo ativo e consciente na escola, relembro que a minha adolescência foi o momento em que me conectei profundamente com o meu corpo e o momento em que estive intensamente atenta a mim, as minhas questões internas, aos meus órgãos, as minhas sensações e desejos. Aprofundar-me nos estudos no corpo nessa fase foi fundamental para o meu desenvolvimento. Foi através do contato com as “aulas de corpo” no curso de Teatro que descobri várias possibilidades de movimento e descobri o prazer que ele proporciona. As aulas em questão, eram aulas de consciência corporal para atores em formação através de abordagens variadas de movimento somático, como o BMC (Body Mind CenteringTM) e a Ideokinesis, mas a explicação sobre o que são essas linhas de estudos do corpo não entrarão neste trabalho. Até hoje, me mover é estar segura, só e comprometida com o que há de prazeroso em mim. Relembrar disso, me faz seguir imaginando novas formas de aprender dentro das escolas regulares. 15 Movimento Somático: um modo de mover que diz SIM para tudo o que compõe o ser movente. Diz sim para as emoções para as dores para o feio para o bonito para a pausa, para o difícil… Iniciei esta jornada de TCC desejando estudar “Movimento Somático”, no entanto, ainda nos primeiros passos da pesquisa, percebo que a questão somática não será exatamente o foco deste estudo. Acredito que esse tópico será apenas um ponto de partida para o entendimento de qual lugar eu experienciei e me sinto confortável com a dança. Ao fim do processo de Iniciação Científica, percebi que ainda me inquietava sobre essa organização “fadada” da sala de aula e gostaria de encontrar caminhos na arte como possibilidade de experiências diferentes na escola e também como ação de questionar essa imobilização. O autor André Lepecki (2011), cunha os termos “coreopolítica” e “coreopolícia” para falar sobre a coreografia da cidade, apontando a influência da arquitetura da cidade para a forma como nos movemos nela e aponta também a polícia como a grande coreógrafa das cidades, determinando quais movimentos são permitidos e quais não, enfatizando a expressão social da dança. Em termos escolares, são a arquitetura e os educadores os responsáveis pela coreografia deste espaço. Estar sentada na escola, sob essa perspectiva, é parte deste ato coreográfico diário e quem não o segue, está “errando” a coreografia. Relacionei o processo de escolarização com o processo de ensaio em arte - repetir, repetir, repetir, até que se compreenda a como se comportar na escola. Estive em contato com estudantes bastante coreografados, pois durante os dias em que eu pude propor atividades que envolviam uma reorganização do espaço, todos os estudantes apresentavam bastante resistência para embarcar na proposta de sentarmos no chão, por exemplo. Além disso, conversamos muitas vezes sobre como tornar a sala de aula mais confortável e eles sempre recorriam a outras cadeiras para solucionar o desconforto da sala de aula - cadeiras estofadas, cadeiras com rodinhas e puffs foram soluções apontadas recorrentemente. Foi a partir dessas experiências e observações no processo de pesquisa de Iniciação Científica, que a cadeira se tornou a protagonista da investigação, pois compreendi 16 que ela é um objeto muito forte no ambiente escolar, colaborando para a cultura do não-movimento em sala de aula. Escalei esse monte, e daqui de cima, consegui enxergar diversas obras de dança em que a cadeira aparece como objeto, como cenário, como parceira de dança, como parte do discurso para além de um item civilizatório. O próximo capítulo deste trabalho recebe como título “AS CADEIRAS” e tem dentro deles os tópicos “No Mundo” e “Na Escola”. Este capítulo irá falar sobre a presença desse objeto no mundo, sua relação com o estilo de vida atual e também trazer a perspectiva da relação com as cadeiras no ambiente escolar, que possui salas de aula repletas de cadeiras compondo a arquitetura das escolas. Neste capítulo, os autores Norval Baitello Junior (2012), Ivaldo Bertazzo (2021), André Lepecki (2011), Cora Laszlo (2018), Byung Chun-Han (2015) e Michel Foucault (2007) foram convocados para aprofundar as perspectivas. Uma reunião das obras de dança será compilada no Capítulo 3 deste trabalho, que recebe como título “OUTRAS FORMAS DE USAR A CADEIRA” e tem dentro, os tópicos de subcapítulos “Na Dança” e “Na Escola”. No tópico “Na Dança” estão listadas e comentadas as obras artísticas nas quais a cadeira é um elemento significativo. Já o tópico “Na Escola” reúne propostas de ações artísticas e pedagógicas envolvendo a cadeira no ambiente escolar para além da sua utilidade comum que é sentar-se. 17 5h30min sentados. E S T O U S E N T A D A C O M O U T R O S L U G A R E S A G I T A D O S S E N T E I E N Q U A N T O N O T A V A T O D O S A Q U E L E S D I A S A Z U I S3 Onde está o espaço para que eu conheça a pessoa que passa 6h por dia comigo? Em que espaço da escola a vida cabe por inteiro? 3 Esse tipo de escrita partiu de uma das proposições contidas no livro “Gramática da Fantasia” de Gianni Rodari, 1973. 18 2 AS CADEIRAS 2.1 No Mundo O pensamento humano não se organiza de forma lógica, a linha do raciocínio não é realmente uma linha (Baitello, p. 15). Até mesmo no campo das ideias, o movimento se faz presente. Norval Baitello aponta que os “saltos” de pensamento fazem parte da natureza humana e cria um comparativo com os primatas que saltavam na copa das árvores; que antes de ganharem o chão, tinham visão de 360º e moviam-se aos saltos - esse paralelo criado pelo autor busca retomar o nosso princípio, que não é linear e nem imóvel . O esforço para manter o raciocínio em linha faz parte da tentativa de ser fiel à lógica. Esse modo lógico de pensar foi desenvolvido com a chegada da escrita, que possibilitou linearizar o tempo e inscrever essa mesma característica ao modo de pensar (Baitello, 2005, p. 4); a tentativa de seguir o raciocínio em linha , colabora para uma educação que desconsidera a inquietação muitas vezes natural do corpo, tratando o movimento como algo que atrapalha o andamento de uma aula, por exemplo. O movimento é a curiosidade pulsando e não aceitar a agitação como forma expressiva e cognitiva é podar a curiosidade e experimentação infantil. (Baitello, 2012, p. 15). O que estou sugerindo aqui, é que o movimento é uma necessidade e muitas vezes, dentro das organizações tradicionais das salas de aula das escolas brasileiras, ele não é bem vindo. Ainda em diálogo com Norval Baitello Junior, gostaria de apontar para algo central no livro estudado para essa monografia, que é a transição do nomadismo para o sedentarismo e o quanto essa mudança reflete também nos hábitos e na forma com que lidamos com o acúmulo de bens atualmente. Entende-se por nomadismo a forma de vida sem moradia fixa, um modo de viver que pressupõe mudança de localização e movimento contínuo sem “criar raízes” em nenhum lugar; já o sedentarismo acomoda a ideia de residir, de ter um local fixo para abrigo e é a forma de vida da maioria das pessoas hoje em dia. Quem vive em movimento não pode carregar nada além do necessário, não há acúmulo na vida nômade, pois quem deseja reunir posses, precisa se assentar (Baitello, 2012, p. 37). Criar animais, plantar, construir casas e todo tipo de reunião de bens, estão associados ao território fixo, à segurança e progresso e de certa forma à redução da mobilidade. Esse pensamento é um motor para o mundo contemporâneo sentado. A vida sedentária é parte do processo civilizatório, talvez o estágio mais contemporâneo da civilização (Baitello, 2012, p. 18). 19 Na vida nômade, os glúteos são verdadeiros impulsionadores, alavancas poderosas para sustentar o movimento das pernas e suportar o peso da postura ereta (Baitello, 2012, p. 21). Não deveria ser surpreendente o número de pessoas com problemas na coluna vertebral desde muito cedo. “O inquieto e alerta guerreiro (ser humano) fincou-se em base estática, já não salta ligeiro, já não corre de repente, já não se esquiva com agilidade. Está preso ao chão por quatro pernas, inativo, imóvel” (Baitello, 2012, p. 69). Com a vida sedentária, as coisas tornam-se menos imprevisíveis, dando a sensação de maior controle sobre a própria vida. “Com a postura sentada pretende-se acalmar o animal inquieto e criativo, um verdadeiro vulcão pronto para entrar em erupção a qualquer momento. Com a ação de sentar acredita-se ter domado o corpo e civilizado o homem.” (Baitello, 2012 p. 18) No entanto, essa visão apontada por Baitello pode ser questionada, já que foi o sedentarismo que nos permitiu o avanço do pensamento e da linguagem. Bertazzo aponta para algo precioso para o diálogo que estou propondo aqui, ao dizer que, por milênios, vivemos ocupados com a manutenção de nossa existência (Bertazzo, 2021, p. 29) e traz em uma das partes de seu livro “Próximo Passo Adolescência”, um percurso sobre a evolução humana desde os primatas até o que nós conhecemos como seres humanos hoje. Bertazzo evidencia que houve, em certo momento, algo entre 70 e 40 mil anos atrás, uma revolução, ao pensar em escala evolutiva, pois foram mudanças súbitas que proporcionaram um maior nível de transmissão de saberes, cooperação e o desabrochar do imaginário humano com tudo o que vem dele: a criação de mitos, as manifestações artísticas e tudo o que advém do potencial imaginativo (Bertazzo, 2021, p. 30). Ivaldo Bertazzo associa o nosso desenvolvimento como espécie ao desenvolvimento motor e o refinamento das manualidades (Bertazzo, 2021, p. 30), principalmente para a confecção de objetos que auxiliam para a nossa segurança, permitindo assim, nosso desenvolvimento imaginativo e nossa distinção evolutiva como espécie. Vejam, Bertazzo sugere que toda nossa evolução e criação de um mundo próprio está diretamente relacionada ao nosso envolvimento motor no aperfeiçoamento da criação de itens que nos auxilie e possam suportar nossas ideias advindas da imaginação. Diferente de Baitello, que sugere um olhar negativo para o que chamamos de vida sedentária, Bertazzo aponta que foi com certo nível de assentamento (o oposto ao modo nômade de vida) que conseguimos desenvolver linguagem, imaginação e então, as artes. Há, no entanto, um momento do processo histórico evolutivo em que o corpo é cooptado pelo processo civilizatório e passa a ter outra leitura diante da sociedade, fazendo 20 com que suas relações com o mundo se modifiquem, como aponta Bertazzo ao dizer sobre a depreciação do corpo por parte das culturas ocidentais: Enquanto na Grécia Antiga o corpo era tão valorizado quanto o intelecto, na Idade Média ele já havia sido rebaixado à noção de pecado; no Renascimento, à condição de mero objeto de estudo; e, com o advento das sociedades industriais, à categoria de máquina para produção de riqueza. Ainda hoje, embora muito se fale da importância dos cuidados com o corpo para o nosso bem-estar, as motivações para isso são quase sempre de natureza estética, e ele está longe de receber a atenção que merece como parte imprescindível em nosso crescimento psicossocial. (Bertazzo, 2021, p. 31) Ambos os autores, Norval Baitello e Ivaldo Bertazzo defendem o corpo e o movimento como uma necessidade da natureza humana através de pontos de vista diferentes. Enquanto Baitello é um pouco mais radical pois nega em seu discurso a ideia de progresso, evolução e acúmulo, Ivaldo Bertazzo reconhece a importância do desenvolvimento de tecnologias de segurança e previsibilidade para o desenvolvimento de nossa linguagem e evolução como espécie e também reconhece que a forma com que lidamos com o corpo hoje, está afastada do que nos faz conscientes de nossa existência e potencialidade e muito aproximada da busca incansável pelo “corpo perfeito”, ligado às aparências, e medido pelos ideais padrão de beleza. Esse afastamento do corpo e aproximação do ideal de imagem do corpo talvez seja um dos impactos da atual combinação poderosíssima para a sedação dos corpos que acontece diariamente na vida de todas as pessoas: a combinação de cadeiras e máquinas de imagem. Essa relação se inicia cada vez mais cedo e os impactos da exposição a telas para crianças e adolescentes ainda não pôde ser dimensionado. Essa combinação é uma dupla sedação, enquanto a cadeira imobiliza, as imagens distraem a mente (Baitello, 2012, p. 80). A relação preocupante com as telas merece atenção pois ela, atualmente, está gerando um modo de comportamento social, organizando a forma com que nos relacionamos. Estamos aqui falando de meios (mídia) terciários em seus mais recentes desenvolvimentos. E isso significa que a tele-dependência também é uma teledependência, ou seja, uma dependência da distância. Busca-se proximidade do distante na forma da imagem. Tudo o que está próximo, ao redor, é em alguma medida, ignorado ou minimizado: o espaço concreto (onde e como estou), as sensorialidades (sinto frio, sinto sono, sinto fome, sinto desconforto, dor nas costas, sinto mãos acariciando meus ombros?), o tempo imediato (afinal que horas são e é hora de fazer o que?), as sincronizações, os ritmos da vida e os ritmos sociais (hora de comer, hora de dormir, hora de ir para o trabalho, hora de conversar com a família?). (Baitello, 2012, p. 90) 21 Nesse mesmo trecho, o autor apresenta a ideia do nomadismo moderno, um tipo de nomadismo causado pelas viagens nas janelas sintéticas das telas, isso evidencia uma brusca mudança na forma com que os seres humanos estão se relacionando com o que é concreto no mundo (Baitello, 2012, p. 90). A exacerbação das imagens externas nos tira presença e nos tira o tempo da imaginação, que é um momento que nasce da contemplação, da atenção plena e da relação com as coisas. Para imaginar precisamos que as imagens decantem, sejam absorvidas e re-elaboradas pela mente. Imaginar é a ação de recriar o mundo, os mundos, as relações, tudo (Baitello, 2012, p. 96). Se somos bombardeados por imagens, que tempo (e espaço) temos para imaginar? As relações que estabelecemos com o corpo hoje também passam por essa falta de tempo para observar, perceber e conhecer e essa forma de lidar com o corpo está bastante ligada a essa relação com as imagens. Ivaldo Bertazzo sugere em seu livro uma forma de se relacionar que valorize o desenvolvimento da psicomotricidade, para que possamos reconhecer nossos movimentos como atos que nos conectem a nível sensório-motor, gerando integralidade ao nosso corpo de modo que ação e pensamento se tornem indissociáveis. Por isso, há anos venho insistindo que nas escolas, além da prática do esporte, exista um espaço para práticas psicomotoras, nas quais os alunos semanalmente vivenciem estímulos e exercícios que despertem suas estruturas mais profundas e lhes tragam a satisfação de descobrir e acolher o próprio corpo. (Bertazzo, 2012, p. 35) Bertazzo fala sobre “descobrir o próprio corpo” e esse pensamento é fundamental para este capítulo intitulado “AS CADEIRAS”. Voltemos às cadeiras. Até aqui, criei um breve percurso de como nossa relação com o corpo se transformou ao longo da trajetória evolutiva da espécie humana, apresentando dois pontos de vista que se diferem em certo modo, mas apontam para a mesma problemática que é a forma com que nos relacionamos com o corpo hoje; uma forma afastada, sem presença e sem atenção. Dando continuidade ao pensamento, criarei a seguir um diálogo entre Norval Baitello Junior (2012) e o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2015), para juntos estabelecerem as relações entre o assentamento dos corpos e a Sociedade do Cansaço, partindo do reconhecimento de que em algum momento da História, a ideia de descanso foi associadas ao ato de se sentar e consequentemente às cadeiras. No entanto, a contemporaneidade vive um momento da história em que descansar não é um direito e nem um hábito. Em Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han argumenta que a sociedade disciplinar de Foucault, feita de instituições que têm a disciplina como estrutura, não é mais a sociedade atual. Estamos agora 22 vivendo a sociedade do desempenho (Han, 2015, p. 23), onde os sujeitos operam como empresários de si mesmos em busca de alta performance. Essa mudança de estrutura social se concretiza a partir de modificações de mentalidade, sendo a principal delas a mudança de um princípio negativo para um princípio positivo das ideias, como aponta o autor em: A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela negatividade da proibição. O verbo modal negativo que a domina é o não-ter-direito. [...] A sociedade do desempenho vai se desvinculando cada vez mais da negatividade. [...] O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade do desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade do desempenho. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados. (Han, 2015, p.24) Esse trecho toca um aspecto sensível da lógica do desempenho, que é a frustração por não alcançar os ideais de eu, produzidos por agentes externos ao eu. Para o sujeito com sapiência a respeito de sua liberdade para fazer o que quiser, o não-fazer é auto-punitivo, pois gera culpa, frustração e comparação direta com os seus pares. A mudança de ótica do dever para o poder alimenta a atitude de auto-cobrança e a solidão, pois o indivíduo passa a ocupar-se de “tornar-se ele mesmo” (Han, 2015, p. 26), de forma individualista, desconsiderando a importância dos vínculos para a construção dos sujeitos. Segundo Han (2015), o indivíduo contemporâneo não é mais coagido por forças externas, mas se submete voluntariamente ao imperativo de maximizar sua própria performance. Um dos sintomas que enfrentamos com o que Byung Chul Han (2015) chamou de sociedade do desempenho, é o excesso de estímulos. Isso implica numa modificação no tempo e na qualidade de atenção, na dificuldade de se concentrar profundamente em uma única coisa e ainda consequentemente, uma dificuldade de lidar com o tédio. Todas essas mudanças comportamentais resultam no que chama-se hoje de técnica de atenção multitasking (multitarefa), ou seja, a capacidade de se concentrar em diversas coisas ao mesmo tempo. Isso soa como algo moderno que é resultado de um desenvolvimento do progresso, mas o autor aponta que isso na verdade nos aproxima de animais selvagens. Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo - nem no comer nem no copular. O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar ao mesmo tempo o que tem atrás de si. Não apenas a multitarefa, mas também atividades como jogos de 23 computador geram uma atenção ampla, mais rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem. (Han, 2015, p. 32) O animal que se alimenta, preocupa-se com muitas coisas ao seu redor para que continue vivo. Nós não precisamos desse estado de alerta e prontidão constante para que existamos com qualidade de presença, pelo contrário, nesse trecho o autor fala sobre uma habilidade importantíssima que é a contemplação. A contemplação é essencial para processos criativos… junto ao tédio, ao ócio. Os excessos da vida atual nos roubam essa habilidade e é preciso treiná-la; Quem se entedia ao andar e não tolera estar entediado, ficará andando a esmo inquieto, irá se debater ou se afundará nesta ou naquela atividade.Mas quem é tolerante com o tédio, depois de um tempo irá reconhecer que possivelmente é o próprio andar que o entedia. Assim, ele será impulsionado a procurar um movimento totalmente novo. O correr ou o cavalgar não é um modo de andar novo. É um andar acelerado. A dança, por exemplo, ou balançar-se, representa um movimento totalmente distinto. Só o homem pode dançar. Possivelmente no andar é tomado por um profundo tédio, de tal modo que por essa crise o tédio transponha o passo do correr para o passo de dança. Comparada com o andar linear, reto, a dança, com seus movimentos revoluteantes, é um luxo que foge totalmente do princípio do desempenho. (Han, 2015, p. 34) Veja o que propõe Han neste trecho de seu livro: o autor está dizendo que apenas a contemplação de uma ação permite que percebamos o que ela nos causa, podendo assim, escolher transformá-la, ou não. Além disso, evidencia que dançar é algo que não cabe dentro da lógica do desempenho, visto que é uma atitude criativa que carece de atenção (ao próprio corpo, eu diria) para que aconteça. Ao dançar, fazemos escolhas de movimento, ainda que seja a escolha de não controlá-los, deixando que o corpo se impulsione livremente pelo espaço, por exemplo. Pensando nisso, para que recriemos a coreografia escolar, é necessário antes que os estudantes percebam que ela existe, percebam quais são os impactos físicos e mentais gerados pela organização corporal no espaço escolar. Essas reflexões se conectam com as ideias de Norval Baitello Jr. em Pensamento Sentado (2012), especialmente no que se refere à imobilização do corpo e à sedação pela repetição mecânica e tecnológica. Baitello (2012) crítica como a cadeira e a tela impõem uma passividade corporal que condiciona o comportamento e enfraquece a capacidade imaginativa. Assim como Han (2015) vê na hiperatividade da produtividade um modo de controle, Baitello (2012) percebe na vida sedentária e na dependência da imagem uma forma de anestesiar a mente e limitar a criatividade. Ambos autores, de maneiras complementares, denunciam como as exigências da sociedade contemporânea — seja pelo excesso de produtividade ou pela 24 imobilização dos corpos — geram sujeitos exaustos, desconectados de suas experiências sensoriais e afetivas. No tópico seguinte, a luz será colocada nos impactos desses processos sociais na configuração das salas de aula das instituições brasileiras de ensino básico, as escolas. 2.2 Na Escola Na sala de aula, pouca importância é dada ao corpo. O corpo fica então sujeito do movimento do intelecto. No entanto, segundo Bertazzo (2021, p. 62), essa separação de funções motoras e intelectuais, é quase impossível. Além disso, o autor ilumina através de alguns exemplos da necessidade de dar atenção ao corpo e inserir o movimento na sala de aula sentada: Por outro lado, é impossível exigir atenção dos alunos mantendo-os sentados por muito tempo. Algumas medidas motoras simples podem ajudar a aumentar seu estado de vigilância e vivacidade durante a aula: convidá-los a se levantar, a sacudir os pés, a bater as mãos, a estimular os músculos da face, a friccionar o couro cabeludo, etc. Esses gestos aparentemente banais podem, na verdade, ser bastante úteis (grifo meu). De início, talvez uma bagunça se instale, mas não desista. Com o tempo, os próprios alunos notarão o benefício dessas práticas e, talvez, até comecem a recorrer a elas mesmo sem serem solicitados. (Bertazzo, 2021, p. 62) Gostaria de chamar a atenção a alguns pontos dessa citação apontada por Bertazzo, pois ele expõe como o estar sentado em sala de aula não é necessariamente um problema se feito com responsabilidade e respeito às necessidades naturais dos corpos. Ele escreve sobre como se mover, fará com que os alunos estabeleçam um novo período de concentração com qualidade. Pensando nisso, podemos começar a repensar as formas de organização do espaço da sala de aula, visto que existem necessidade a serem consideradas para que ela seja proveitosa para os envolvidos. Estou aqui apontando a problemática de uma sala de aula sentada, mas não é verdade que a solução para isso seria que os estudantes ficassem, então, em pé. Há uma infinidade de possibilidades entre sentar e estar de pé, pois nessas duas ações, existem fatores que podem transformá-las completamente; se nos sentamos no chão é uma coisa, outra em uma cadeira ou banco e ainda se nos sentamos na sala de aula ou na praça, temos experiências corporais diferentes. Norval Baitello (2012, p. 18) diz que a postura sentada pretende “acalmar o animal inquieto e criativo” ,mas, apesar de nos sentarmos na escola, não precisamos apenas explorar essa forma de estar nesse ambiente. 25 O corpo está constantemente em movimento interno, e as alterações que acompanham a adolescência são bastante intensas no sentido de transformações físicas próprias do crescimento - membros crescendo, pêlos, espinhas, suor com novos cheiros e também as transformações advindas da chegada de novas emoções, até então não experienciadas, ou ao menos não com tanta consciência e complexidade, como sugere o filósofo e historiador francês George Didi-Huberman neste trecho do seu livro “Que emoção! Que Emoção?”: Chorei de desgosto, chorei de tristeza, chorei de amor, chorei de raiva (foi minha mãe quem me explicou isso, e esse foi um dia importante, quando compreendi que podemos chorar de raiva como um primeiro passo para tomar a decisão de agir, de não se deixar explorar, de se revoltar). Talvez houvesse também um prazer secreto em chorar. (Huberman, 2013, p. 9) Neste livro, Huberman irá analisar as emoções expressas nos gestos, através de fotografias e situações relatadas para explorar o caráter prático de uma emoção para além de sua subjetividade, destrinchando como elas aparecem nas nossas ações, e eu sinto que é na adolescência que começamos a compreender a complexidade dos afetos e ainda a complexidade de processar os afetos para agir. Se a natureza humana já precede um “animal inquieto”, na adolescência temos ainda um turbilhão de emoções inquietas correndo de um lado para outro com muita intensidade e acolher pessoas assim, é realmente um desafio para toda a sociedade, e aqui aponto especialmente para a responsabilidade das escolas. Até a primeira década de vida, ainda que o corpo se transforme intensamente, as coisas acontecem, sem que as enxerguemos (Bertazzo, 2021, p. 54). Quando crianças, estamos mais interessadas na prática, nas brincadeiras, no movimento sem dar muita importância para os motivos das propostas. E é na adolescência que isso começa a se transformar e surge um interesse pelo sentido das coisas, pela parte intelectual das atividades e relações. Esse apontamento de Bertazzo (2021) é primordial para pensar propostas que rompam com a imobilidade em sala de aula sem que seja algo também imposto, mas que interesse e engaje verdadeiramente os envolvidos. Acredito que a imposição e a falta de escolha seja o que gera maior insatisfação numa turma de adolescentes, por isso ressalto a necessidade de repensar a obrigatoriedade do sentar - e todas as outras ações impostas como única opção na rotina escolar desses jovens. Sentar é se dobrar em partes. Dobramos e quebramos o corpo no joelho e no quadril (Baitello, 2012, p. 69) e nessa posição, músculos importantes como coxas e glúteos entram em repouso. Esses músculos, quanto mais se assentam, mais fracos ficam. O ciclo da relação com as cadeiras é como um vício em que quanto mais se tem, mais se quer. As cadeiras, nos 26 convidam a sentar e a não utilizar ligamentos e músculos. As crianças, dispensam as cadeiras para brincar e mantém o corpo em disponibilidade para mover… geralmente brincam agachadas, de cócoras ou sentadas no chão. O chão das casas, também não são pensados para convidar os pés a estarem vividos, o chão é geralmente liso e reto, pensado apenas para as solas dos sapatos (Baitello, 2012, p. 76). Estamos aqui lidando com um entorno que não colabora para o incentivo ao movimento, uma arquitetura que não acolhe o movimento como parte de sua concepção. Trazendo a questão da saúde muscular e óssea que pode ser (e é) atingida pela ação de sentar-se durante muitas horas seguidas, diariamente, quais podem ser os danos dessa ação repetitiva para o corpo de um ser humano em fase de crescimento (adolescente)? Um corpo crescendo precisa abrir espaço e não é isso que o estar sentado proporciona. Na escola, o movimento livre está reservado para a hora do intervalo. A hora do recreio era esperada e transformava-se no festival de corridas ansiosas e apressadas para a fila da lanchonete, para a brincadeira aguardada ou simplesmente para responder uma necessidade de correr. O intervalo era o paraíso do movimento, nem as aulas de educação física conseguiam proporcionar o que ele significava. O retorno à sala de estudos refletia a volta da pélvis ao lugar de anulação. (Brito, 2019, p. 4) Assim como sugere Deise Brito na citação acima, a vida está borbulhando durante o intervalo, me lembrei de uma aula de Didática da Profª Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli4, em 2021, onde estávamos refletindo sobre problemáticas da escola e ela nos disse “Eu gostaria que as minhas aulas fossem sempre ‘o intervalo’”. Essa frase me acompanhou durante toda a graduação e acredito que ela é um pouco responsável por esse trabalho de conclusão de curso existir. Esse fato, de que é no intervalo5 que a vida pode existir mais livremente dentro da escola, dialoga diretamente com o que André Lepecki chamou de “Coreopoliciamento”, termo que sugere a ideia de que a polícia é a coreógrafa das cidades, policiando quais movimentos são permitidos ou não no espaço da cidade. Transpondo o termo para o ambiente escolar, podemos fazer a leitura de que a coreografia escolar é criada majoritariamente pelos educadores. Acho importante pensar a ideia da coreografia na escola, pois ela é um termo 5 O intervalo representa uma alternância na rotina, ele é uma espécie de pausa que gera movimento e descanso aos estudantes. Veja, não estou sugerindo 6 horas de intervalo no lugar das 6 horas de aula. O que estou tentando apontar é a importância da variação dentro da rotina para que ela seja saudável. 4 A disciplina ministrada pela Profª Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli compunha a graduação de Licenciatura em Arte-Teatro. 27 artístico e pressupõe criação, ou seja, ela pode ser re-criada, atualizada, reconcebida, pelos educadores e estudantes ali presentes. Em diálogo com as questões levantadas até aqui, a seguir apresentarei um relato de uma situação que vivi que poderá exemplificar o caráter formativo civilizatório que emerge do que estou chamando de “coreografia escolar”. Recentemente eu estava no ônibus, indo trabalhar, e um senhor puxou assunto comigo. Ele me perguntou com o que eu trabalhava e eu contei que era professora. Curioso, ele me perguntou onde eu trabalhava e minha resposta foi: “Trabalho em vários lugares, sou professora de arte”. A réplica surpresa que recebi foi: - Ah!! Professora de arte? Você não é professora de aluno não? Esse breve diálogo ficou se repetindo na minha cabeça porque ele tem camadas de interpretação que fui absorvendo. Gosto de ler poeticamente que os estudante são Arte e não A-lunos6, professora de Arte e não de A-luno. No entanto, vejo que há algo escondido nessa frase e que dialoga com o que Baitello (2012) traz no trecho destacado abaixo. As escolas têm um conteúdo que perpassa todo e qualquer currículo e toda e qualquer necessidade particular de cada turma de estudantes: ensinar a ser aluno da forma correta. Nossas escolas se tornam ao longo dos séculos, instituições mestras em domesticar a inquietude natural de nossas crianças. Anos e anos são gastos para uma lição magna: ensinar a sentar e permanecer sentado, preferencialmente com as mãos também em repouso. Esse passa a ser o pressuposto maior de qualquer outro conteúdo de aprendizagem. (Baitello, 2012, p. 138) Ao longo do processo de “tornar-se aluno” da forma correta, o animal inquieto (Baitello, 2012) conquista a docilidade da disciplina, e um dos pontos essenciais para a disciplina é a distribuição dos corpos no espaço. Essa característica faz bastante sentido quando pensamos nas escolas. Carteiras, na maioria das vezes, distribuídas em fileiras e com lugar marcado a partir de um “mapa de sala”. Sobre essa distribuição dos corpos pelo espaço, Foucault traz a ideia da “cerca” - a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo. (Foucault, 2007, p.138) Assim são as salas de aula - fechadas em si mesmas na grande maioria das vezes. Seriam ainda as carteiras, as novas cercas? Cercas num ambiente já cercado. Esse conjunto de comportamentos e combinados colaboram sempre com um grande objetivo: a ordem, a disciplina. A criação de um “mapa de sala” (anexo I)7, por exemplo, levará em 7 “Mapa de sala” é uma nomenclatura dada a um esquema, geralmente feito pelos professores, para distribuir os estudantes nas carteiras escolares de forma fixa. Criar um mapeamento da sala de aula para determinar onde cada estudante se sentará todos os dias. O Anexo I é um exemplo de mapa de sala. 6 A-luno; Ser sem luz. 28 consideração o quanto o estudante interage, fala e/ou desobedece quando se senta perto de determinada pessoa - sendo assim, o mapa cuidará de separar os grupos de “bagunça”. A bagunça realmente atrapalha o andamento dos encontros, mas, novamente: A quem interessa a docilidade dos estudantes na escola? Como convidar todos ao grupo, à atenção, sem necessariamente controlar à força? “Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. [...] Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar.” (Foucault, 2007, p. 144). Ao determinar o tempo para cada coisa, a disciplina escolar se realiza ao treinar aquele indivíduo a lidar com o tempo que tem, otimizando-o. A lógica da da produtividade e da eficiência se realiza através dos detalhes de condicionamento. O estudante que é submetido a sinais, apitos e comandos tem imposto ao seu corpo, ao mesmo tempo, a aceleração do processo de aprendizagem e a apreensão da rapidez como virtude. O corpo, tornando-se alvo dos novos mecanismos do poder, oferece-se a novas formas de saber. Corpo do exercício mais que da física especulativa; corpo manipulado pela autoridade mais que atravessado pelos espíritos animais; corpo de treinamento útil e não da mecânica racional, mas no qual por essa mesma razão se anunciará um certo número de exigências de natureza e de limitações funcionais (Foucault, 2007, p. 152) Organizada na lógica da reprodução, a escola precisa tornar-se funcional para que os estudantes produzam “o que é esperado”, custe o que custar - na maioria das vezes, custa o respeito e a liberdade dos alunos e a exaustão dos professores. Há um grande coreógrafo invisível criando a coreopolítica (Lepecki, 2011) da Escola digo invisível porque a coreografia da escola foi criada há muito tempo e é constantemente repassada pelos educadores. Os bailarinos (estudantes na escola) estão exaustos, não compreendem o porquê de ser assim mas se acostumaram que seja. Ensaiam diariamente para que acertem cada vez mais como devem comportar-se em cada momento dos combinados escolares. A lógica disciplinar imposta pela escola, que fragmenta o tempo e condiciona os corpos a responder a comandos, não apenas esgota os estudantes e professores, mas também limita a possibilidade de experiências criativas e transformadoras. Esse controle rígido se manifesta como uma coreografia, onde os corpos se movem de maneira automatizada, repetindo padrões esperados (Lepecki, 2011). No entanto, é justamente nesse contexto que a arte – especialmente a dança – pode funcionar como um ato político. Ao perturbar hábitos e gestos formatados, a dança revela novas formas de estar e se movimentar no mundo, 29 ampliando a imaginação e a capacidade de agir. Assim, o incentivo à criatividade não apenas libera os corpos do condicionamento imposto, mas também oferece uma oportunidade de questionar e transformar a normatividade presente na rotina escolar. O adolescente que não amplia sua imaginação, que não exercita seu lado criativo, torna-se um adulto de limitada capacidade de atuação. A boa notícia é que esse quadro pode ser rapidamente revertido. E as medidas tomadas para estimular sua criatividade acabam atuando com particular eficiência na eliminação ou no abrandamento da influência dos clichês, tabus e estigmas conservadores que a coletividade impõe a mentes menos independentes. (Bertazzo, 2021, p. 62) Os autores André Lepecki e Ivaldo Bertazzo estão propondo uma relação entre arte e política ao dizer sobre a importância de tomar consciência sobre os hábitos e gestos formatados e impostos na sociedade (e eu enfatizo o recorte do espaço escolar). Podemos iluminar o termo arte-política e estabelecer relação entre dança, coreografia e política, pois se a política é organizada a partir da formatação (cega) dos gestos, a dança é um ato político de organização corporal dos envolvidos. (Lepecki, 2011, p. 44). Nesse sentido, a coreografia escolar não precisa ser um mecanismo de controle, mas pode ser um espaço criativo e colaborativo, onde não haja separação entre o que diz respeito ao corpo e o que diz respeito ao intelecto. Com um pensamento sustentado pelas artes, pretendendo transformar padrões e questionar normas, a escola também pode ser um espaço de invenção, em que professores e estudantes reescrevam juntos novas maneiras de estar e se mover no mundo. 30 3 OUTRAS FORMAS DE USAR A CADEIRA 3.1 Na Dança | Obras de dança com cadeiras Neste trecho do trabalho, organizei um compilado de obras de dança que têm a cadeira como objeto de cena presente e significativo. A escolha por reunir estes espetáculos pretende evidenciar saberes oriundos da dança, de artistas da dança em seus processos de criação, e que evidenciam que o sentar-se é apenas uma ação e que esta ação, por si só, não é boa ou ruim. O potencial ou a problemática da ação está em como ela é utilizada, e nas obras abaixo, diferente da sua presença na arquitetura escolar, as cadeiras não simbolizam a sedação nem o descanso, mas são suporte para que a dança aconteça. Ao meu ver, cada uma das obras aqui citadas, guarda um ou mais saber sobre essa relação com as cadeiras. Pensando nisso, utilizei negrito no que estou chamando de saberes conforme foram apresentados os trabalhos em dança abaixo. 3.1.1 CHAIR PILLOW (1969), de Yvonne Rainer Figura 2 - Yvonne Rainer coreografando Chair Pillow em São Paulo Fonte: Marília Coelho, 2009 Chair Pillow é uma obra de dança criada pela bailarina, coreógrafa e cineasta norte-americana Yvonne Rainer com a música River Deep, Mountain High - Ike e Tina Turner. Sentar na cadeira, levantar da cadeira, jogar o travesseiro no chão, abraçar o 31 travesseiro, sentar no travesseiro, levantar o travesseiro com os braços. De forma repetitiva, os performers repetem as ações sem a intenção de dar qualquer sentido que não seja o literal para o que fazem. Performar sem intenção de performar é o que acontece em “Chair Pillow”. Rainer estava interessada em diminuir a distância entre bailarinos e não-bailarinos. Em 1965, 4 anos antes de “Chair Pillow”, Yvonne Rainer criou o “No Manifest”, um manifesto que localizava qual o tipo de dança a interessava, indo contra os modos de criar que vigoravam na época, já apontando claramente seu interesse pelo que há de ordinário. Não ao espetáculo. Não à virtuosidade. Não às transformações, à mágica e ao faz-de-conta. Não ao glamour e à transcendência da imagem da estrela. Não ao heroico. Não ao anti-heroico. Não à estética do lixo. Não ao envolvimento do performer ou do espectador. Não ao estilo. Não ao camp8. Não à sedução do espectador pelas artimanhas do performer. Não à excentricidade. Não ao ato de emocionar ou ser emocionado. (No Manifest, Rainer, 1965) O manifesto, além de apontar os interesses de Rainer no cotidiano, declara seu não-interesse em colaborar com a ideia de espetáculo em dança, nega a relação com o glamour e assume o descompromisso em surpreender o espectador. Aqui, ela defende a dança como experiência e não cria com intenção de causar algo específico em que assiste, assume uma postura radical diante do público ao romper com o compromisso de atender às suas expectativas. A obra criada em 1969 destaca o ordinário como possibilidade criativa, caracterizando o modo de criar que acompanha a trajetória de Rainer destacando o minimalismo e experimentalismo de suas criações. Em “Chair Pillow” não identificamos 8 CAMP é um estilo que está relacionado com a teatralização e o excesso de estética. Pode estar ligado, muitas vezes, ao movimento Kitsch — que significa brega, cafona e está relacionado ao consumo da massa. 32 movimentos atléticos que afastem o bailarino de uma pessoa comum, pelo contrário, nessa obra as ações são cotidianas e estão atreladas a função dos objetos enquanto os performers estão cumprindo objetivos de movimento muito concretos. Entendo que esse seja um fator para tornar a obra tão reproduzida e reproduzível; ao contrário dos padrões desumanos geradores de depressão na sociedade do desempenho (Han, 2015), aqui o comum tem valor artístico e está no palco. Em minhas buscas, encontrei registros da recriação dela em São Paulo, no ano de 2009, em um workshop ministrado por Yvonne Rainer e as bailarinas de sua companhia Pat Catterson, Emily Coates e Patricia Hoffbauer no Sesc Pinheiros. A recriação em São Paulo teve como bailarinos convidados: Alex Ratton, Alexandre Magno, Anderson Gouveia, Andréia Guilhermina, Andreia Yonashiro, Beth Bastos, Carolina Callegaro, Clara Gouvêa, Clarice Lima, Cristian Duarte, Gicia Amorin, Joana Ferraz, Julia Giannetti, Juliana França, Laila Padovan, Letícia Sekito, Margo Assis, Marilia Coelho, Marta Soares, Natália Mendonça, Patrícia Bergantin, Renata Fernandes, Sandra Corradini, Thelma Bonavita, Thembi Rosa. Figura 3 - Chair Pillow de Yvonne Rainer em São Paulo Fonte: Marília Coelho, 2009 33 3.1.2 CAFÉ MULLER (1978) - Pina Bausch Figura 4 - Café Muller de Pina Bausch Fonte: Ulli Weiss, 1978 Café Muller é uma obra coreográfica de Pina Bausch, uma coreógrafa, dançarina e diretora alemã que criou o termo “Tanztheater” (dança-teatro) ao fundir elementos de dança, performance e teatro em suas criações. Em Café Muller, o cenário é uma cafeteria que remete a um Café que o pai de Pina tinha quando ela era criança. Os bailarinos que participaram da obra são Malou Airaudo, Pina Bausch, Dominique Mercy, Jan Minařík, Nazareth Panadero e Jean Laurent Sasportes. A peça estreou em 20 de maio de 1978 no Opernhaus Wuppertal e desde então se tornou uma das obras mais emblemáticas de Bausch. No palco, cadeiras e mesas estão espalhadas pelo salão com luz baixa, criando um ambiente intimista onde os performers se movem de forma a indicar certa desordem mental. Diferente da obra acima, de Yvonne Rainer, Pina tem interesse em despertar sentimentos nos espectadores, especialmente suas memórias. Isso pode ser percebido em Café Muller, pois a obra cria um ambiente melancólico que paira por toda sua duração, envolvendo o espectador emocionalmente no que assiste embora Pina também explore o cotidiano para suas criações. 34 Figura 5 - Pina em Café Muller Fonte: Ulli Weiss, 1978 Em “Café Muller” as cadeiras junto às mesas criam, ao meu ver, um ambiente claustrofóbico e desorganizado onde esses corpos dançam perdidamente, sem saída, aparentemente. A coreografia tem característica circular, as sequências se repetem e os corpos se exaurem dentro do ambiente - contrapondo o modo de operar regente do pensamento, a linearidade. O ambiente de um café é pensado para que as pessoas possam sentar e consumir o que desejam, e geralmente, a mobília do espaço irá determinar a relação que os corpos ali irão estabelecer com o lugar e como irão se comportar - como sugere André Lepecki (2011) já citado anteriormente nesta monografia, mas, no café criado em Café Muller, os corpos se movem de maneira não convencional e inesperada pelo espaço e para9 o espaço. Estes objetos (cadeiras e mesas) e/ou elementos potencializam o aspecto experiencial da cena na relação que os dançarinos estabelecem com a cenografia proposta. A possibilidade de integração da cenografia e do espaço com o corpo foi sempre uma preocupação marcante na obra da artista. Então, por um lado é possível ressaltar a junção do corpo com o espaço e objetos. Por outro lado, a utilização da cenografia pode ser vista tanto como signo como um importante lugar para a criação da coreografia. (Spezzatto, 2019, p.125) Cadeiras são arrastadas, performers correm, se abraçam, derrubam cadeiras, se lançam contra a parede mas não se sentam à mesa em momento nenhum. Nesta obra, o movimento dos corpos está para além da espacialidade usual e tal característica - não se mover conforme 9 “Para o espaço” pois, em diálogo com o que André Lepecki chamou de coreopoliciamento, nesta monografia estou considerando que todo ambiente possui certos acordos coreográficos. 35 o esperado para o ambiente - traz aos performers certa instabilidade mental, criando uma camada de leitura de que se tratam de personagens que não estão sãos. Em Café Muller, a subversão do espaço acontece através da movimentação das cadeiras e dos corpos dos intérpretes, gerando tensão e dramaturgia para as cenas e também estados emocionais em quem assiste. Cadeiras caídas, inclinadas, invertidas, lançadas longe e sobretudo cadeiras não estáticas; aqui elas são objetos ativos na ação cênica. 3.1.3 ROSAS DANST ROSAS (1983), de Anne Teresa de Keersmaeker Figura 6 - Rosas Danst Rosas de Anne Teresa Keersmaeker Fonte: Rosas Danst Rosas, 1997 Rosas Danst Rosas é um trabalho criado sob o olhar da coreógrafa belga Anne Teresa De Keersmaeker que estreou em 6 de maio de 1983 durante o Kaaitheater Festival, no Théâtre de la Balsamine, em Bruxelas. Originalmente a obra foi dançada por Adriana Borriello, Fumiyo Ikeda, Michèle Anne De Mey e Anne Teresa de Keersmaeker que combinam gestos cotidianos com gestos formalmente abstratos de diferentes complexidades. A obra tem como característica a repetição e o minimalismo e nisso, ela dialoga com as duas obras já apresentadas anteriormente, Chair Pillow e Café Muller. Organizadas em ordem cronológica, é possível perceber uma nova forma de pensar-fazer dança se estabelecendo e sendo investigada por coreografias ao redor do mundo. A criação de Rosas Danst Rosas tornou a companhia “Rosas” de Anne Teresa Keersmaeker conhecida internacionalmente. A coreografia de Rosas Danst Rosas teve grande 36 repercussão e foi reproduzida por muitas pessoas e companhias ao redor do mundo, envolvendo-se até mesmo em uma situação de possível plágio por parte da cantora Beyoncé no clipe da sua música “Countdown”. Tal repercussão levou Keersmaeker a revelar o processo criativo da obra, um processo bastante matemático onde a coreógrafa estrutura a composição com dinâmicas expressivas bastante precisas em tempo, intensidade, acentos e variações, gerando gestos refinados que revelam essas qualidades. Os gestos elaborados são combinados de diferentes formas, gerando repetições variadas de pequenas células. A primeira parte é nomeada “Nodding” ou “Aceno” e começa com as bailarinas olhando juntas para a direita, depois olham para a esquerda, retornam para o centro, olham uma para a outra e concordam em dançar juntas; retornam ao centro, olham para outra pessoa e se reconhecem também, aceitando dançar juntas. Isso tudo é organizado dentro de uma contagem específica de duração para cada gesto com a cabeça. Figura 7 - Rosas Danst Rosas (Estrutura) Fonte: Rosas VZW, 2013 A segunda parte é nomeada “Positions in a fan” ou “Posições em um leque” que combina cinco células de movimentos nomeadas “A”, “B”, “C”, “D” e “E”. A estrutura coreográfica é bastante complexa e não caberá nesta breve análise. Nomearei a seguir as quatro partes faltantes do esquema coreográfico criado por Anne Teresa Keersmaeker a fim de mapear a coreografia e registrar aqui neste trabalho a complexidade dela. As partes que se seguem são nomeadas “Chipotage”, em seguida, “Phrase in unisono” ou “Frase em uníssono”; “Big fan” ou “Grande leque” e por fim “Phrase in reverse order” ou “Frase em ordem https://www.youtube.com/watch?v=W24oOKW2RkY 37 reversa”. As células de movimento são simples, por isso a obra foi bastante reproduzida. A complexidade e genialidade da criação está na variação das combinações. Este é um trabalho bastante precioso ao meu ver, pois seus desdobramentos atingiram muitas pessoas, alcançando idades diferentes, países diferentes, estilos diferentes e além de tudo, revelando como os gestos se transformam em cada corpo. Com a revelação do processo criativo, Keersmaeker tornou sua obra acessível para ser reproduzida. Atualmente a coreografia ainda é feita por bailarinas rotativas da companhia “Rosas”. 3.1.4 CORPO SENTADO (2005), de Jussara Müller Figura 8 - Corpo Sentado - 10 anos Fonte: Leo Lin, 2015 A obra “Corpo Sentado”, de Jussara Miller, inaugura a presença brasileira nesse compilado de dança com cadeiras. A responsável por “Corpo Sentado” é Jussara Miller, coreógrafa, bailarina e educadora somática brasileira. Jussara é formada pela UNICAMP com pesquisa aprofundada na Técnica Klauss Vianna. A artista criou o “Salão do Movimento” em Barão Geraldo, Campinas - São Paulo, um espaço de educação somática, criação e pesquisa em dança. A obra "Corpo Sentado" de Jussara Miller teve sua primeira versão como parte de sua pesquisa de mestrado no Instituto de Artes da Unicamp, sendo desenvolvida originalmente como um experimento prático que se desenvolveu ao longo dos anos até o ano de sua comemoração de 10 anos, em 2015 com a estreia de “Corpo Sentado - 10 anos”. A https://www.youtube.com/watch?v=winhUJUgSMg https://www.youtube.com/watch?v=xKJ7fP2xmzw https://www.youtube.com/watch?v=oEX-cfwzhzA 38 obra de Jussara dialoga de forma direta com as questões levantadas nessa pesquisa, pois a coreógrafa traz para o palco as relações entre o sedentarismo, a imobilidade e a presença das telas exacerbadas no dia-a-dia. Aqui, Miller está realmente interessada em repensar a função e os usos da cadeira através de imagens provocativas de relação entre bailarina e objeto e a mim, isso revela um verdadeiro interesse no que eu nomearia como “des-função” da cadeira. Jussara não nos entrega respostas prontas, mas desperta ao espectador diversos questionamentos ao ver como ela se relaciona com as imagens e a cadeira em cena. A obra não é uma resposta a nada, é uma grande reflexão a ser feita coletivamente cobre os caminhos que estamos criando como sociedade. O solo CORPO SENTADO é um diálogo entre dança e fotografia que parte da escuta das potencialidades perceptivas do corpo, abordando questões sobre o corpo sedentário que a nossa sociedade constroi com todas as estratégias de não movimento: um corpo fixado, abandonado, acomodado, normatizado, tratado como objeto do pensar e produzir. O espetáculo tem o intuito de aprofundar no cerne da contemporaneidade, reconhecendo que o sentar de hoje é vertiginosamente habitado e capturado pelas imagens tecnológicas das telas diárias de computadores, celulares, TVs e tantas outras janelas que capturam o nosso olhar enquadrado no paradoxo das imagens virtuais que fazem presente algo que está ausente, como um modo cotidiano de existir. (Salão do Movimento, 2016 ) A bailarina busca reinventar a cadeira e para além disso, a presença da cadeira em cena, visto que ora ela se relaciona com o objeto, ora não. 39 3.1.5 QUANDO QUEBRA QUEIMA (2016), da ColetivA Ocupação Figura 9 - Quando Quebra Queima Fonte: Gary Gananian, 2019 Quando Quebra Queima surgiu em 2015 durante as ocupações das Escolas Estaduais por parte de estudantes do Movimento Secundarista. Mobilizados contra a proposta do governo que propunha uma reorganização do ensino, pretendendo fechar 92 escolas e transferir mais de 300 mil alunos da rede pública. Os jovens secundaristas ocuparam mais de 200 escolas estaduais e ocuparam também as ruas em atos políticos organizados entre eles. As ocupações se popularizaram e chegaram em mais estados do país, levando secundaristas de outras regiões a ocuparem suas escolas para reivindicar o que era necessário em seu território. Parte da proposta de reorganização do ensino apresentada no governo de Geraldo Alckmin, pretendia a realocação de estudantes em escolas fora de seus territórios, fazendo com que o vínculo fosse prejudicado. Durante as ocupações, artistas-educadores se aproximaram do movimento para criar junto a esses jovens cheios de desejo por transformação. Nesse contexto de levante político contra o desmonte, surge a ColetivA Ocupação e o espetáculo “Quando Quebra Queima” com um elenco formado por Abraão Kimberley, Akinn, Alicia Esteves, Alvim Silva, Ariane Aparecida, Benedito Beatriz, DJ Shaolin, Icá Iuori, Lara Júlia, Letícia Karen, Lilith Cristina, 40 Marcela Jesus, Marcéu Maria Fernandes, Mel Oliveira, Matheus Maciel e PH Veríssimo, sob direção de Martha Kiss Perrone. As muitas vozes desse grupo, formam a ColetivA Ocupação. Figura 10: Cadeira-Barricada Fonte: ColetivA Ocupação, 2018 “Quando Quebra Queima” é uma dança-luta sobre o que viveram estes estudantes durante as ocupações. A peça se encontra no limiar entre performance e teatro e traz à cena a história dos secundaristas do elenco, trazendo o real para a cena, transformado pela estética. A peça está construindo vida longa, tendo já passado por uma temporada na Europa, apresentações na Casa do Povo em São Paulo, Teatro Oficina, Centro Cultural São Paulo e outros espaços, levando o levante adiante a partir da arte. A peça em questão nos apresenta um belo exemplo da organização de um coletivo e da demonstração de uma coletividade real. Por vezes o teatro ainda é pensado como a arte do coletivo, mas nos últimos tempos temos visto o crescente número de solos autobiográficos ou até mesmo de companhias inteiras em que cada artista pesquisa sua história pessoal e a traz como única potencialidade comunicativa para com a audiência. [...] Não há o papel principal, há um coro; não há monólogos, há partes da mesma história sendo contadas de diferentes pontos de vista, entre outros detalhes que nos aparecem e se modificam de acordo com o espaço em que a peça é apresentada. (Bushatsky, 2018, p. 6) A presença dos corpos de quem viveu na pele as histórias que conta, amplia a relação com os afetos tanto dos intérpretes para com as cenas, quanto para quem assiste sabendo se tratar de uma criação autobiográfica enquanto ColetivA. Diante de violência policial, esses 41 adolescentes escolheram transformar tudo em arte. Além disso, a presença das cadeiras características das escolas públicas de São Paulo em cena colaboram para a ambientação deste espetáculo. Nesta obra, as cadeiras foram símbolo das manifestações realizadas por estes estudantes e estão presentes na peça em diversos momentos, tornando-se um objeto que se transforma em outros e que conta a história do lugar de onde saíram: escolas públicas. Cadeira-identidade | Cadeira-escudo | Cadeira-cama Cadeira-escultura| Cadeira-barricada | Cadeira-colo Por surgir no contexto das ocupações, as cadeiras foram a mobília da casa desses estudantes durante os dias que ficaram nas escolas. O objeto ganhou significados diferentes durante o convívio intensivo e isso pode ser percebido na criação de Quando Quebra Queima. A Cadeira vira escudo contra a polícia10, a cadeira fecha a Marginal Tietê11, vira cama e a cadeira simboliza parte da identidade do movimento das ocupações de 2015. Figura 11: Cadeira-armadura Fonte: Marina Rossi, 2015 11 A Marginal Tietê é uma via bastante importante e movimentada da Cidade de São Paulo e durante as manifestações dos estudantes secundaristas em 2015, ela foi paralisada por cadeiras escolares. Os estudantes carregaram as cadeiras até a via para fechá-la com uma barricada de cadeiras. 10 Imagens desses momentos que descrevo podem ser encontradas na internet através de uma busca simples por “Ocupação das Escolas 2015” 42 3.1.6 TRABALHO NORMAL (2018), de Claudia Muller Figura 12 - Trabalho Normal, 2018 Fonte: Haroldo Saboia, 2018 Trabalho normal é um trabalho de dança contemporânea concebido em 2018 por Claudia Miller, artista e pesquisadora brasileira que tem a intersecção entre as linguagens da dança contemporânea, performance e artes visuais como característica de seus trabalhos. A obra “Trabalho Normal” surge como resposta a um curador que, ao ver um dos projetos de Claudia, questionou a artista se ela não teria nenhum “trabalho normal” para oferecer a ele, querendo se referir a um trabalho de dança mais tradicional onde a relação entre palco e plateia esteja claramente definida, o que não era o caso do projeto apresentado. Essa informação sobre o curador, ouvi diretamente de Claudia, durante a disciplina “Pedagogias da Dança”, quando a artista aceitou conversar com a turma da Licenciatura em Arte-Teatro a convite da Profª Ma. Renata Fernandes dos Santos, então responsável pela disciplina citada e co-orientadora desta monografia. Fomos assistir ao “Trabalho Normal” no SESC Pompeia e, na semana seguinte, conversamos com a artista virtualmente. A obra se trata de um ciclo de cinco dias de trabalho, onde a cada dia, Claudia se propõe a ficar sentada por 8h - um jornada comercial de trabalho - realizando uma ação repetitiva diferente a cada 43 um dos dias da semana, questionando a ideia de utilidade em arte, visto que as ações propostas por Claudia não geram nenhum resultado aparente. Durante a conversa, perguntamos para Claudia como ela se preparou para essa jornada performativa de cinco dias numa posição tão desafiadora e ela nos contou que iniciou com jornadas menores em casa, para se acostumar com o tempo e se preparar para estar em cena com a jornada completa. A artista revelou também a necessidade de calcular as quantidades de gelo e açúcar, por exemplo, para que durassem oito horas de trabalho, completando a jornada de quarenta horas semanais. Claudia nomeia a obra como “Trabalho Normal” e se inspira na estética de uma secretária para o figurino e também para o local de trabalho; uma mesa e uma cadeira. A artista fica ali, como que disfarçada de funcionária do local onde se apresenta, realizando algum tipo de ação considerada inútil, são elas: secar gelo, assoprar açúcar, contar os segundos, chorar e ficar em silêncio - todas com duração de 8h, com pausas para almoço e uso do banheiro. Essas ações são inspiradas em obras de artistas que discutem o paradoxo da inutilidade em arte, são eles: Francis Alÿs, Marta Soares, Los Torreznos, Brígida Baltar, Bas Jan Ader e Tehching Hsieh. Figura 13: Claudia Muller contando os segundos Fonte: Theo Dubeux, 2018 44 Esse trabalho é simbólico pois atualmente, a maioria das profissões estão se assentando diante de computadores ou outras máquinas, submetidas ao estado de imobilidade gerado pela cadeira. A artista cria com sua obra uma discussão importantíssima sobre utilidade e trabalho, pensamentos tão importantes no momento em que vivemos. O que é útil? O que é trabalho? Quais trabalhos são úteis? Para quem o meu trabalho é útil? Todo trabalho é sentado? Em tempos onde “tempo é dinheiro”, um trabalho de dança e arte em geral tem sua “utilidade” cada vez mais questionada. 3.1.7 CORPOS VELHOS, PARA QUE SERVEM? (2023), de Luis Arrieta Figura 14 - Corpos Velhos, Para Que Servem? Fonte: Silvia Machado, 2023 Onde estão os corpos velhos da dança? Esse é o questionamento que leva o bailarino e coreógrafo Luis Arrieta a reunir nomes pioneiros da dança do Brasil para encontrar qual é a dança possível para esses corpos hoje, velhos. Em cena, os intérpretes Décio Otero e Marika Gidali, ambos fundadores do Ballet Stagium, além de Iracity Cardoso, Lumena Macedo, Mônica Mion, Célia Gouvêa e as bailarinas do Balé IV Centenário, primeiro grupo profissional de dança de São Paulo, Neyde Rossi e Yoko Okada passeiam entre estar sentados e levantar, criando 45 poesia e beleza aos movimentos possíveis para seus corpos. A obra estreou na Bienal Sesc de Dança e passou por temporadas curtas no Sesc Consolação e no Theatro Municipal de São Paulo com boa receptividade do público, destacando a importância da temática abordada e da influência dos veteranos na cena cultural atual. Estar diante de corpos velhos me coloca, sempre, em um estado de nostalgia sem que eu perceba. Olhar uma pessoa velha me faz imaginar o tanto de experiências vividas e não vividas, é como estar diante do tempo. E foi assim que me senti ao assistir “Corpos Velhos, Para que Servem?”. Nessa obra, os intérpretes estão sentados em cadeiras, mas as cadeiras não são imobilizadoras, e sim o meio para que os bailarinos veteranos tenham suporte para investigar e expor suas danças, gerando diálogos silenciosos entre esses corpos que carregam histórias longas e que me guiaram como espectadora a um lugar de muita conexão e empatia. Figura 15 - Décio Otero e Marika Gidali Fonte: Silvia Machado, 2023 “Esse espetáculo não se encaixa em nada, não há nada assim. Ele não responde às possíveis expectativas do que poderia ser a dança hoje, e isso é ótimo. Ele não está amarrado a qualquer perspectiva. É único porque essas pessoas são únicas” (Arrieta, 2023, n.p.). Reunindo artistas com trajetórias distintas e ao menos meio século de dança no Brasil, a obra tem uma estrutura improvisacional que dá liberdade para que esses bailarinos possam performar a sua maneira, trazendo suas experiências heterogêneas para o palco. O elenco evidencia a grandiosidade dos pequenos gestos quando realizados com presença, nos lembrando que 46 pequeno não significa menor A cada movimento, eu comemorei internamente, quase como se eu colocasse minha energia para que mais movimentos fossem realizados. A obra me colocou diante de pessoas cheias de vida, com desejo pulsante. Pessoas que dançam a dança possível, sem permitir a imobilidade e a falta de dança. Aqui, estar sentado é a possibilidade de dançar. 3.1.8 HISTÓRIA DE GESTOS (2023), de Elisabete Finger Figura 16 - História de Gestos: Sentar Fonte: Elisabete Finger, 2023 Essa obra é uma série documental de cinco episódios; Ficar em pé, Cair, Sentar, Saltar e Girar. O documentário ilumina gestos comuns que não damos importância, expondo a quantidade de significados que eles carregam. Histórias de Gestos estreou em 2023, na Bienal SESC de Dança, e contou com cinco performers para cada um dos episódios, performers para pesquisar como esses movimentos podem ser ressignificados na dança e no cotidiano, são eles: Estela Lapponi, Silvana de Jesus, David Xavinho, Luis Ferron e Eduardo Fukushima. A obra se insere em uma discussão sobre a pluralidade de corpos e a diversidade 47 de experiências que os gestos evocam. Os episódios propõem discussões sobre as perspectivas políticas e sociais que acompanham os corpos em gestos bastante conhecidos mas pouco questionados. Para este trabalho, assisti ao episódio que trata sobre o gesto de Sentar. A obra dialoga muitíssimo com o caminho percorrido por este estudo, pois a coreógrafa e performer brasileira, Elisabete Finger, expõe reflexões acerca deste gesto comum que é pouco investigado. Em termos de dança, ela evidencia que, em obras coreográficas, geralmente quem está sentado é quem não dança: a plateia. Isso se dá pela crença da dicotomia entre ação e repouso, onde estar sentado está relacionado ao repouso. Ao identificar isso, a artista também reúne imagens de diversas obras de dança onde a cadeira é um objeto reinventado, comentando que “artistas fazem de tudo com elas e expõe um catálogo de todas as maneiras de não se sentar”. Sobre o gesto de sentar-se, Finger cria relação com a escola ao dizer que aprendemos a nos sentar nas primeiras etapas do desenvolvimento motor e aperfeiçoamos esse gesto nos ambientes educacionais, já que se popularizou que precisamos nos sentar para aprender. Elisabete Finger provoca uma discussão sobre a normalização de um gesto que nos faz mal quando em excesso e que é um gesto cada vez mais presente, uma vez que: Com nossos corpos emoldurados por cadeiras, vamos aos poucos perdendo flexibilidade, resistência, energia e até motivação para nos movimentar pelo mundo. E afinal, acabamos inventando formas de que o mundo venha até nossas cadeiras nas telas de computadores e celulares. Podemos agora viajar longe sem sair do lugar, ser nômades e sedentários ao mesmo tempo.(Finger, 2023, n.p.) Estar sentado nos remete imediatamente a cadeira, objeto que surge inicialmente como símbolo de nobreza, se popularizando apenas com a Revolução Industrial, para que os operários nas fábricas pudessem ter seus corpos sustentados para que as jornadas de trabalho durassem mais. A artista evidencia a relação que se cria entre assentar-se e uma certa decadência do corpo, a preguiça em oposição ao vigor; mas é importante lembrar que para as pessoas com mobilidade reduzida, os “cadeirantes”, isso não se aplica, visto que é essa condição que os possibilita o movimento. O foco aqui é sobre estar sentado em uma proporção não saudável e sem reflexão sobre o ato; “ocupada, entretida, doente, exausta. A tal sociedade do cansaço cansa e descansa sentada sobre uma cadeira.” (Finger, 2023, n.p.) https://www.youtube.com/watch?v=4dBDzx2kQXI 48 Como dançam as cadeiras Oito obras diferentes e formas diferentes de usar um objeto com uso funcional tão definido na sociedade contemporânea. Em “Chair Pillow” e “Rosas Danst Rosas” as cadeiras são suporte para uma repetição que exacerba ações do cotidiano; já em “Corpos Velhos Para que Servem?” e “História dos Gestos”, a cadeira cria reflexões sobre o corpo - na primeira obra sobre o que um corpo fragilizado pelo tempo ainda consegue realizar e na segunda, os impactos da ação “sentar” nos corpos. As obras “Quando Quebra Queima” e “Café Muller” são criações em que a movimentação das cadeiras colabora na subversão do movimento esperado para cada um dos ambientes - uma escola e um café. Em “Trabalho Normal” e “Corpo Sentado”, a presença da cadeira cria questionamento sobre a ação de sentar-se - uma sobre a cultura do trabalho sentado e a quantidade prejudicial de horas sentadas por dia e a outra questiona especificamente a função do objeto cadeira, trazendo novas possibilidades de movimento com ela. As obras aqui reunidas, apresentam a cadeira como um objeto que está para além da sua funcionalidade, podendo servir de inspiração para repensar a presença deste objeto tão normalizado no cotidiano de todas as pessoas atualmente, sem que haja uma reflexão sobre o ato de sentar-se. A partir das provocações que as obras sugerem, elaborei ações pedagógicas que recriem as possibilidades de movimento da cadeira nas salas de aula, reunidas no tópico “3.2” deste capítulo. 49 3.2 Na Escola | Proposições Pedagógicas A relação com o corpo ao longo da história se transformou com a supervalorização do intelecto. O corpo foi sendo deixado de lado, como se ele não fosse útil e/ou necessário na preservação da vida (Bertazzo, 2021, p. 30). Essas transformações acerca da importância dada ao movimento físico em relação ao movimento intelectual pode ser percebida dentro da escola através da quantidade de aulas diretamente ligadas às linguagens corporais com relação às demais. Foucault diz que existem alguns passos para criar um soldado (aluno) (Foucault, 2007 p. 133) e algumas características que tornam esse sujeito identificável. O autor relaciona essa fabricação à descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. A história das relações com o corpo evidencia uma progressiva separação entre corpo e intelecto, refletindo valores culturais e sociais distintos em cada época. Essa fragmentação é reproduzida nas escolas, onde a arquitetura e as práticas pedagógicas privilegiam a imobilidade aparente e o disciplinamento corporal, formando corpos obedientes e padronizados, como apontado por Foucault. No entanto, a necessidade de integrar corpo e mente, sugere uma revisão desses padrões mecânicos e dicotômicos, propondo novas possibilidades pedagógicas que acolham o movimento consciente. A partir do momento em que se considera a unidade corpo-mente, é necessário reconfigurar a ação/discurso para que haja coerência, com atenção para escutar criticamente conceitos antigos e enraizados no território de dança e deixar de reproduzir discursos/ações mecanicistas e dicotômicos. (Laszlo, 2018, p. 16) Nesse trecho, Cora Laszlo evidencia a necessidade de rever, reavaliar, repensar padrões antigos. Sobre a escola, a mesma coisa precisa acontecer quando o problema aqui identificado trata-se de um problema estrutural. O questionamento trazido por mim é sobre a ausência de movimento consciente na escola e o quanto a imobilidade que a arquitetura provoca e evidencia a necessidade de recriação das coreografias escolares. Como é possível uma fase tão cheia de transformações e movimentos, instabilidades, incertezas, mudanças e descobertas caber em uma sala de aula onde o tempo de estada é constantemente igual: sentados? Esse questionamento, corrobora a importância do movimento consciente nessa (e em toda) fase da vida. Os autores Bruna Rabello de Moraes e Amadeo de Oliveira Weinmann (2020), psicanalistas, trazem em um breve artigo nomeado “Notas sobre a história da adolescência”, uma reflexão ao redor do termo, expondo a complexidade de se definir a adolescência e apontando para a necessidade de considerarmos os fatores culturais ao olharmos para essa 50 fase da vida que se inscreve diferente em cada cultura. Além disso, Moraes e Weinmann (2020) dizem que para muitos autores, a adolescência é uma operação psíquica, enquanto a juventude é uma classe social. É comum que se trate a adolescência como uma fase de transição, mas, ela é um momento da vida com características próprias que devem ser respeitadas (Moraes, Weinmann, 2020, p. 294). As discussões trazidas por Moraes e Weinmann (2020) apontam para uma complexidade em compreender o surgimento do termo adolescência, pois o entendimento sobre essa fase da vida se transformou muito ao longo da história. Essa instabilidade gera negligência ao pensar propostas específicas para essa faixa etária. Cora Laszlo trabalha com a Técnica Klauss Vianna (TKV), uma técnica de dança brasileira com abordagem somática com práticas específicas abordadas pela autora ao longo da escrita, como por exemplo considerar que estamos (para sempre) em constante transformação, em processo constante de aprendizado (Laszlo, 2018, p. 17). Considerar as transformações é essencial para trabalhar com pessoas nessa fase da vida em específico. Talvez por isso tenha sido tão significativo o meu contato com as práticas somáticas na adolescência. Também me deparei com uma série de palavras que compõem o que é adolescência em nossa cultura: crise, questionamento, mudanças, transformações, instabilidades, incerteza, descoberta do corpo, busca por liberdade, desejo de autonomia, entre tantas outras coisas que designam esse momento em ebulição. Essas palavras várias vezes, comportavam um sentido temporário, implicando algo a ser superado para se adentrar na almejada vida adulta, com sua promessa de estabilidade. Como se a adolescência fosse o único momento em que são aceitáveis o caótico, o excesso, a ebulição, a insegurança, a incerteza, o sentir, a intensidade, a crise. (Laszlo, 2018, p. 16) A adolescência, com suas mudanças intensas e imprevisíveis como sugere a autora ao reunir essas palavras, exige uma abordagem pedagógica sensível e aberta às transformações constantes. Laszlo inicia o seu livro relatando a velocidade das transformações da adolescência colocando luz nas mudanças, drásticas e sutis, que são características desta fase: de repente você pode entrar em um filme antes censurado para sua idade e também de repente você deseja coisas que não desejava ontem (Laszlo, 2018, p. 13). Durante esse turbilhão, as cobranças crescem. Enquanto o corpo está uma montanha-russa por dentro, espera-se equilíbrio, bom comportamento e calmaria, sendo esse momento da vida, muito desafiador. É importante pontuar que, quando Cora Laszlo aborda sobre sua experiência com adolescentes, traz um contexto de aulas de dança fora da escola, em um espaço de dança privado chamado “Salão do Movimento”, de sua mãe também dançarina e professora, Jussara 51 Miller, situado em Barão Geraldo, Campinas-SP, e isso é um dado importantíssimo da escrita dela. No entanto, suas descobertas sobre essa faixa etária são interessantes para a reflexão que proponho. Cora expõe seu processo de trabalhar com adolescentes e TKV de forma detalhada. Em certo momento, ela percebeu que os estudantes preferiam quando tinha uma coreografia ao invés de momentos para pesquisa própria de movimento. Aos poucos, entendendo as demandas dos estudantes e seus objetivos como educadora, ela conseguiu criar procedimentos para suas aulas. Ou seja, ela não disse não para as demandas das alunas e nem disse não para seus desejos como educadora. Acredito que esse seja o maior desafio ao trabalhar com educação e em específico com a adolescência. Em seu artigo “Pequeno ensaio para mover ou Se a sala de aula fosse movida pela Pélvis?”, Deise Brito (2019) relata a relação com o rebolado e o pagode na sua vida escolar. A autora relembra que dançar pagode era algo comum na vida dos estudantes da sua época, no entanto, essa prática não era incentivada pelos educadores, ficando reservada apenas para o momento do intervalo entre as aulas da escola. Podemos comparar essa questão apontada por Brito (2019) com as “dancinhas” de TikTok12 muitas vezes proibidas e des-incentivadas nas escolas atualmente. Percebo que existe, de forma geral, uma negação forte dessa rede social em específico porque ela tem a reprodução como forte elemento de sua constituição, já que dentro da plataforma, a maioria das pessoas participam de “trends”. As ‘trends' consistem na reprodução de uma mesma ideia de vídeo por diferentes pessoas e percebo que essa lógica da “cópia” incomoda bastante aos indivíduos que são críticos da plataforma. As professoras dos Colégios de Aplicação da UFRGS e UFPE, Larissa Bonfim e Débora Allemand, criaram em 2020 um projeto de investigação pedagógica da plataforma TikTok para criar diálogos nas aulas de dança com adolescentes de 12 a 17 anos e durante o processo se depararam com a lógica da autoria e da originalidade dentro do TikTok; Ao que tudo indica, as ideias de cópia e criação ganham novos contornos com a experiência do TikTok, assim como a ideia de autoria. O aplicativo, como uma plataforma de compartilhamento de vídeos criativos, opera em uma lógica de cópia e recriação constante. Um(a) TikToker, em geral, deseja que sua nova criação viralize e que, então, seja copiada pela maior quantidade de usuários(as), ou seja, a cada transmissão, mais distante fica o sentido de autoria, pois cada autor(a) de réplica aparenta ser o(a) criador(a) do conteúdo, ainda que não possua o selo verificador.14 Cada vídeo copiado tem habitualmente como proposta a recriação da referência. A criatividade 12 TikTok é uma rede social de publicação de vídeos que se popularizou entre os jovens. A rede social é bastante conhecida pela reprodução de pequenas coreografias de músicas que se tornam populares entre a juventude, criando as “trends”, que consistem na reprodução de uma mesma ideia de vídeo por diferentes pessoas. A rede social funciona de modo que muitas pessoas postam exatamente as mesmas coisas. 52 manifesta-se exatamente nesse refazer, nas modificações e inserções de novas ideias dentro daquilo já postado. Essa invenção ocorre tanto pela dificuldade de apreensão completa do movimento através de um dispositivo de mídia como pela necessidade de “fazer do seu jeito”. (Bonfim e Allemand, 2021, p. 129) Compreendendo que estamos em um momento no qual o TikTok é uma rede social muito presente e que tem as chamadas “dancinhas” como sua principal característica, as professoras resolveram, a partir da imersão nesse universo, descobrir quais movimentos fazem parte do repertório desses estudantes, que tipo de movimento essa plataforma permite/incentiva e assim puderam pensar propostas pedagógicas em dança com intenção de “educar corpos participantes e expressivos” (Bonfim e Allemand, 2021, p. 128) em contraponto a cópia mecânica que a plataforma sugere. Como educadora, sinto que é possível partir do desejo do estudante para abordar diversas questões e ao invés de dizer não ao tiktok, assim como compreendeu Cora, no Salão do Movimento, que suas alunas preferiam coreografias à pesquisa de movimento e aos poucos ela conseguiu encontrar o equilíbrio para suas propostas. Nesse caso, o caminho poderia ser o de esmiuçar junto aos estudantes quais questões estão intrínsecas ao gravar um simples vídeo de uma “dancinha”, assim como sugerem Bonfim e Allemand (2021), como por exemplo, dialogar com eles sobre os impactos de uma combinação poderosíssima para a sedação dos corpos que acontece diariamente na vida de todas as pessoas: a combinação de cadeiras e máquinas de imagem. Essa relação com as telas se inicia cada vez mais cedo e os impactos da exposição a telas para crianças e adolescentes ainda não pôde ser dimensionado. Essa combinação é uma dupla sedação, enquanto a cadeira imobiliza, as imagens distraem a mente (Baitello, 2012, p. 80). A relação preocupante com as telas merece atenção pois ela, atualmente, está gerando um modo de comportamento social, organizando a forma com que nos relacionamos. Jonathan Haidt (2024) apresenta uma mudança significativa na experiência de infância nos últimos anos. A partir da década de 2010, segundo ele, iniciou-se a Grande Reconfiguração - passamos de uma infância baseada no brincar para uma infância baseada no celular (Haidt, 2024, p. 138). O autor elenca quatro principais impactos do excesso de contato com as redes sociais na vida de crianças e adolescentes, são eles: privação social, privação de sono, atenção fragmentada e vício. Os avanços tecnológicos relacionados à internet, em especial aos aparelhos celulares, foram muito rápidos desde a criação do primeiro Iphone em 2007 (Heidt, 2024, p. 139). A grande transformação da relação com as redes sociais acontece com a chegada dos muitos aplicativos e com o advento da publicidade dentro deles. As crianças e adolescentes são os 53 mais vulneráveis nesse ambiente, visto que seu córtex pré-frontal13 não está formado, ou seja, não há uma maturidade cerebral para filtrar e escolher determinadas coisas. Mas o que a relação com as redes sociais tem a ver com o tema deste trabalho? A experiência nas redes sociais, com a tela de modo geral, tira a atenção de tudo o que está acontecendo no plano real pela desatenção que causa ao corpo e também pela quantidade de falsas possibilidades na palma da mão. Os usuários têm a impressão de poderem acessar e realizar tudo o que quiserem com um celular em mãos, mas ao mesmo tempo, cada vez mais cedo perdem o tempo livre para convivência com amigos e familiares (Haidt, 2024, p. 145). O mundo virtual torna-se muito mais interessante do que o real visto que proporciona a sensação de liberdade para escolher o que fazer na hora que desejar, sem muito conflitos, diferente da experiência no mundo material. A convivência faz bem para a saúde e é necessária, devendo ser considerada insubstituível. A escola acaba sendo um espaço para que essa convivência ocorra, mas ela não pode operar na mesma lógica das redes sociais, precisa repensar os hábitos que colaboram para esse estado de sedação, parecido com a sedação causada pela vida dentro das telas. Pensando nisso, é evidente que os estudantes precisam ser provocados para se relacionarem entre si fora do ambiente virtual, e eu estou aqui sugerindo, que sejam também incentivados ao movimento, pensando que essa é uma necessidade que está se perdendo com a exacerbação das imagens; “Humanos são corporificados, a vida baseada no celular não é. Telas nos fazem esquecer que o corpo físico importa” (Haidt, 2024, p. 238). A escola que não se atenta à importância do movimento em tempos de sedação através das imagens, colabora com o que Baitello (2012) chamou de dupla sedação causada pela combinação de cadeiras e telas. A presença das cadeiras como organização padrão das salas de aula, reduzem a imprevisibilidade e isso pode ser ótimo num contexto escolar repleto de demandas para professores sobrecarregados como é a realidade da realidade no Brasil. No entanto, ainda que haja intensidade de demandas, silenciar os corpos é o único caminho para uma escola organizada, criativa, produtiva e funcional? Assim, viver sentado é uma mudança radical da vida, uma negação da inquietude do saltador e do incansável caminhante. Significa assentar e 13O córtex pré-frontal (PFC) é o córtex cere