Instrumento Instrumento: R. Est. Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 2, jul./dez. 2011 FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES NA PERSPECTIVA CRÍTICA: CONTRIBUIÇÕES À PRÁTICA DOCENTE Andréa Vassallo Fagundes* Luciana Maria Lunardi Campos** Resumo A formação de professores se apresenta, nos dias atuais, como um dos desafios postos à educação. Este artigo procura analisar a formação continuada de professores, tendo como pressuposto a perspectiva ref lexiva crítica com vistas à autonomia e emancipação da prática docente. A compreensão de uma educação que visa à formação de cidadãos críticos e a ênfase na constante qualificação docente, tendo a escola como lócus privilegiado de formação e a ref lexão crítica como princípio são temas a serem abordados neste trabalho. Palavras-chave: Formação continuada de professores. Refl exão crítica. Autonomia e emancipação. 1 O PROFESSOR E A DEMOCRATIZAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA Este artigo apresenta elementos sobre a prática docente ref lexiva crítica e suas relações com a formação continuada de professores. Para ref letir sobre essas temáticas, faz-se necessário, inicialmente, ref letir sobre o papel do professor no contexto atual de democratização e universalização da escola pública. A democratização da escola é compreendida, enquanto luta social, como um direito que se estabeleceu na história, fruto de conjunturas históricas de formações sociais concretamente dadas (FERNANDES, 1991; BOBBIO, 2002). Uma década atrás, Saviani (2001) considerou que o desafio que se impunha ao Brasil no século XXI era a organização e a instalação de um sistema educacional capaz de universalizar o ensino público. É fato que, nos últimos anos, ocorreu uma grande expansão das oportunidades de acesso à escola pública, possibilitando a entrada de uma grande parcela da população que foi historicamente excluída. Pode-se dizer, assim, que houve uma democratização da escola pública, procurando substituir um modelo seletivo e excludente (DI GIORGI, 2004). * Mestre em Educação. Doutoranda do  Programa de Pós-Graduação em Educação para Ciência - Faculdade de Ciências, UNESP- Bauru. Professora do Colégio de Aplicação João XXIII/UFJF. . ** Doutora. Departamento de Educação - Instituto de Biociências / UNESP- Botucatu - Programa de Pós Graduação em Educação para Ciência - Faculdade de Ciências UNESP- Bauru. . Formação continuada de professores na perspectiva crítica: contribuições à prática docente Instrumento: R. Est. Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 2, jul./dez. 2011 64 Todavia, como indicado em diversos estudos (Esteban, 2007; Rossi, 2001; Carvalho, 2004; dentre outros), tal ampliação possibilitou o acesso à escola, mas não garantiu a qualidade do ensino, podendo-se compreender que o sistema educativo e os professores não estavam preparados para as mudanças exigidas por uma nova população que adentrava a escola (ESTEVE, 1999). O professor foi, inúmeras vezes, responsabilizado pelos fracassos e insucessos da escola, sem que as fragilidades do sistema educacional fossem consideradas, e identifi cado como “mordomo” - fi gura contida em histórias de detetive que recebe a culpa quando algo está errado -, conforme interessante analogia proposta por Krasilchik (2001). Ele não pode ser responsabilizado, de forma isolada, pelo insucesso escolar, mas também não pode ser retirado da cena, como alguém que não participa da construção histórica da escola pública brasileira. Arroyo (2001) ressalta que o professor e a escola, preocupados em realizar uma verdadeira inclusão social, devem educar a todos com qualidade, favorecendo aos alunos o desenvolvimento de uma consciência cidadã, que assegure as condições de enfrentamento dos desafi os do mundo contemporâneo. Libâneo (1998), ao refl etir sobre os rumos da escola pública nos últimos tempos, reforça que o professor necessita reconhecer o impacto das atuais transformações econômicas, políticas, sociais e culturais no ensino, levando a uma reavaliação do papel da escola e de sua atuação enquanto educador. Há, assim, uma profunda convicção do papel do professor no processo de democratização da escola, fazendo-se necessário um reconhecimento público, explícito e conseqüente da importância dos professores e professoras na promoção de uma educação e de uma escola a serviço da construção de sociedade autenticamente democrática e do acesso de todos a uma cidadania plena (CANDAU, 2008, p. 9-10). Esta escola democratizada, democrática e democratizante precisa, assim como discutiu Libâneo (1998, p.2): assegurar a formação cultural e científi ca para a vida pessoal, profi ssional e cidadã, possibilitando uma relação autônoma, crítica e construtiva com a cultura em suas várias manifestações: a cultura provida pela ciência, pela técnica, pela estética, pela ética, bem como pela cultura paralela (meios de comunicação de massa) e pela cultura cotidiana. Para formar cidadãos participantes em todas as instâncias da vida social contemporânea, o que implica articular os objetivos convencionais da escola - transmissão- assimilação ativa dos conteúdos escolares, desenvolvimento do pensamento autônomo, crítico e criativo, formação de qualidades morais, atitudes, convicções - às exigências postas pela sociedade comunicacional, informática e globalizada: maior competência refl exiva, interação crítica com as mídias e multimídias, conjunção da escola com outros universos culturais, conhecimento e uso da informática, formação continuada (aprender a aprender), capacidade de diálogo e comunicação com os outros, reconhecimento das diferenças, solidariedade, qualidade de vida, preservação ambiental. Trata-se de conceber a escola de hoje como espaço de integração. No entanto, Nóvoa (2003) alerta para a difi culdade da sociedade se posicionar com clareza e coerência sobre quais devem ser os objetivos da escola, o que traz implicações ao trabalho profi ssional do professor. 2 REFLEXÃO CRÍTICA NA PRÁTICA DOCENTE Diante desse cenário, faz-se necessário que o professor perceba a importância de se adaptar aos desafi os e às novas atribuições da escola (Di Giorgi, 2004), refl ita sobre eles e se posicione. É preciso que haja o deslocamento da visão do professor como mero transmissor de conhecimentos para um organizador de aprendizagens nas suas diversas dimensões, capaz de articular as novas demandas tecnológicas e sociais que a atualidade impõe (NÓVOA, 1992). Instrumento Instrumento: R. Est. Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 2, jul./dez. 2011 65 Ao professor cabe “respeitar as idiossincrasias de seus alunos, despertar a curiosidade, desenvolver a autonomia e estimular o rigor intelectual” (PERRENOUD, 2000, p.68) e lidar não só com alguns saberes, como era no passado, mas também com a tecnologia e com a complexidade social (NÓVOA, 2003). Ele precisa saber compreender, organizar, reelaborar e transpor o conhecimento para diferentes situações didáticas em sala de aula, o que requer capacidade de crítica e refl exão sobre o seu fazer pedagógico. (NÓVOA, 1992) O professor que refl ete sobre a sua prática, que pensa, analisa, critica e (re) elabora adquire uma postura crítica refl exiva em seu contexto educativo. No entanto, como afi rma Alarcão (1996), para que o professor possa “ser-se refl exivo” é necessário desejar e se sentir atraído pela vontade de mudar, de inovar, de buscar a autonomia e a não dependência: “Educar para a autonomia implica fazer um ensino refl exivo que, por sua vez, se baseia numa postura refl exiva do próprio professor” (ALARCÃO, 1996, p.172). A concepção de prática refl exiva ganhou relevância nas últimas décadas, a partir das contribuições de Schön (1987), que procurou compreender a forma pela qual os profi ssionais enfrentam situações que não se resolvem por meio de repertórios técnicos e aquelas que, como o ensino, são singulares e nas quais há confl itos de valor. Para esse autor, a refl exão é concebida como um modo de conexão entre o conhecimento e ação nos contextos práticos, e para o profi ssional refl exivo é necessário discernir os fi ns e a sua realização. Contreras (1997) questiona essa concepção, indicando que ela transmite a ideia de que os profi ssionais só se envolvem em práticas refl exivas individualizadas, confi gurando-se um enfoque reducionista e que: A prática refl exiva competente pressupõe uma situação institucional que conduz a uma orientação refl exiva e a uma defi nição de papel que valorize a refl exão e a ação coletivas orientadas a alterar não só as intenções na sala de aula e na escola, mas também entre a escola e a comunidade imediata e entre a escola e as estruturas sociais mais amplas (CONTRERAS, 1997, p. 103). Para Contreras (1997), o uso generalizado do termo refl exivo é um “modismo”, que pode dar falsa ilusão de autonomia na ação pedagógica e desviar a atenção dos problemas estruturais como desigualdade social, econômica e política. O autor, assim, destaca: O raciocínio técnico se apresenta como pensamento ref lexivo e com esta nova linguagem se reconstroem os procedimentos técnicos lineares de solução de problemas. Isto permite que se reconheçam, de fato, habilidades nos docentes, porém sem que eles tenham conquistado uma maior capacidade de decisão e intervenção (CONTRERAS, 1997, p. 107). No entanto, a prática refl exiva pode ser considerada a partir de outro conceito (CONTRERAS, 1997), no qual a refl exão é compreendida como uma maneira de encarar e resolver os problemas, numa perspectiva de reconstrução social, que acentua a refl exão sobre o contexto social e político da escolaridade e a avaliação das ações na sala de aula quanto às suas contribuições para uma maior igualdade e para uma sociedade mais justa (ZEICHNER, 1993, p. 24- 26). A prática refl exiva crítica, requer, assim, a consideração da contextualização do social e da problematização ideológica, e que o professor reconheça que está imerso numa constante reconstrução social, sendo capaz de refl etir criticamente sobre a sua prática, objetivá-la, partilhá-la e melhorá-la e de interpretar as situações que envolvem a escola e o que ensinam no contexto da sala de aula. É preciso, ainda, a consciência dos saberes tácitos, muitas vezes não expressos, pois assim, segundo Zeichner (1993), será possível “recriá- los, examiná-los, melhorá-los” e “transmiti-los aos Formação continuada de professores na perspectiva crítica: contribuições à prática docente Instrumento: R. Est. Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 2, jul./dez. 2011 66 professores mais inexperientes, de modo que estes possam começar a dominar os aspectos mais sutis e complicados do ensino” (ZEICHNER, 1993, p. 21). Para desenvolver uma perspectiva crítica, o professor necessita se perguntar o que deveria ser um ensino valioso, não se limitando às perguntas sobre como fazer, ou seja, refl etir sobre o sentido do que faz e construir seu próprio conhecimento crítico, emancipando-se de tutelas externas (SMYTH, 1987). Ele deve desenvolver uma apreciação crítica da situação na qual se encontra (GIROUX, 1997, p 90) e é a partir da conduta crítica que ele poderá construir um ensino direcionado à formação de cidadãos críticos e ativos. A refl exão, então, não pode ser pensada como um ato isolado, puramente interno e interior àquele que realiza a ação, buscando uma contribuição maior e melhor. Ela deve ser crítica e recuperar e examinar as circunstâncias históricas e de desenvolvimento que deram forma as nossas idéias, instituições e modos de ação como fundamento para formular novas ideias mais racionais, instituições mais justas e formas de ação mais satisfatórias (KEMMIS, 1998, p. 99). Um processo de refl exão crítica sobre a prática, com vistas à autonomia docente, pressupõe o desenvolvimento de determinadas orientações do trabalho do professor e se este processo for limitado, somente, ao momento da vida da sala de aula, sem análise crítica das perspectivas vigentes e isolado do resto dos colegas, difi cilmente transcenderá sua refl exão dos valores e práticas que a escola legitima (CONTRERAS, 1997). O professor, por meio de um processo emancipatório, deve reconhecer-se como autor e artífi ce de suas práticas (MIZUKAMI, 2002). A articulação entre a prática refl exiva e o compromisso crítico deve considerar os seguintes elementos, segundo Kemmis (1985, p.149): • relação entre pensamento e ação nas situações reais históricas; • as relações sociais; • a expressão e o atendimento a interesses particulares humanos, sociais, culturais e políticos; • a reprodução ou transformação das práticas ideológicas que estão na base da ordem social; • a expressão do poder para reconstruir a vida social pela forma de participação por meio da convivência, da tomada de decisões ou da ação social. Nessas condições, a refl exão do professor não pode acontecer seguindo o seu próprio curso, restringindo- se aos seus próprios limites. Ele deve se envolver numa perspectiva de intelectualização, adquirindo a postura de questionar criticamente sua concepção de sociedade, de escola e de ensino e desenvolvendo um conhecimento sobre o ensino, no qual é capaz de analisar as possibilidades transformadoras implícitas no contexto social de suas aulas. A prática pedagógica crítica refl exiva se caracteriza pela indissolubilidade entre teoria e prática; tem um caráter inquieto, criador e acentuado grau de consciência, e tem como preocupação produzir mudanças qualitativas, procurando munir-se de um conhecimento crítico e aprofundado da realidade (FLEURI, 1992). A refl exão crítica articula-se à ideia do professor como intelectual (GIROUX, 1997), ao reconhecer o trabalho do professor como “tarefa intelectual”. Assim, investir em processos de refl exão crítica docente é permitir o avanço de transformação da prática pedagógica, mediante a própria transformação do professor como intelectual crítico, pressupondo um nível de questionamento do que já estava certo ou estabilizado, transformando-o em problemático e instigante. É este o sentido que Paulo Freire (1996) atribui à conscientização como elemento base de uma atitude de questionamento e autorreconhecimento do potencial transformador do professor, que leva ao confronto com a sua práxis, à interpretação dos princípios que lhes subjazem e, consequentemente, à sua reconstrução. Instrumento Instrumento: R. Est. Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 2, jul./dez. 2011 67 3 FORMAÇÃO CONTINUADA: AUTONOMIA E EMANCIPAÇÃO DOCENTE A partir da ênfase na prática refl exiva crítica e no professor como intelectual, a formação de professores assume importância crucial. Segundo Candau (2008), a busca da construção da qualidade de ensino da escola pública, comprometida com a formação para a cidadania, requer repensar a formação de professores, tanto no que se refere à formação inicial, quanto à continuada, compreendendo que a formação não pode ser, por si só, responsabilizada pela precariedade da qualidade do ensino oferecido. Estudos como de Nóvoa (1992), comprovam que existem inúmeras restrições na formação do professor, principalmente no que se refere à formação inicial, pois os professores não recebem o preparo suficiente para enfrentar uma realidade educacional complexa, nem tampouco para assumir as novas atribuições que lhes são impostas. Lüdke (2008) reforça, em sua pesquisa sobre “Formação inicial e construção da identidade profi ssional”, a fragilidade desse processo que prepara os futuros profi ssionais docentes: [...] a formação inicial, simplesmente, como o nome diz, enquanto preparação apenas inicial não deveria ser sobrecarregada como uma carga que não lhe é compatível e para a qual não está aparelhada[...] Se fosse reconhecido claramente o caráter introdutório, de uma preparação, que não pretende ser total, nem visualizar toda a carreira do professor, talvez ela pudesse se tornar mais efetiva, assumindo a especificidade desse caráter inicial. (LIBÂNEIO, 2008, p. 118) Apesar de reconhecer a necessidade e a urgência de se refl etir e de propor alternativas de mudanças para a formação inicial dos professores, o foco de análise será o processo de formação continuada, uma vez que a compreensão sobre a qualifi cação dos professores já formados adquire especial relevância e destaque. A formação de professores é um processo que deve ser compreendido e desenvolvido pela vida toda e não mais considerado como momentos formais, concentrados na chamada formação inicial ou básica, cujo modelo, historicamente, foi compreendido como acúmulo de conhecimentos, ditos teóricos, para posterior domínio da prática. Deve, sim, ser compreendido como um processo contínuo, que ocorre durante toda a trajetória profi ssional do docente. A formação continuada pode ser compreendida como [...] a formação recebida por formandos já profi ssionalizados e com uma vida ativa, tendo por base a adaptação contínua a mudanças dos conhecimentos, das técnicas e das convicções de trabalho, o melhoramento das suas qualifi cações profi ssional e social (PIRES, 1991, p. 143) . Ou ainda, como: [...] atividades sistemáticas de formação a que se dedicam os professores e os chefes de estabelecimentos de ensino após a sua titularização profi ssional inicial, com vista a melhorar os seus conhecimentos, as suas competências e as suas atitudes profi ssionais, de modo a assegurar, com efi cácia, a formação dos alunos (CRUZ, 1991, p. 155). Para Candau (2008), que vem se dedicando aos estudos e à análise crítica da formação docente, a formação continuada é : [...] qualquer atividade de formação do professor que está atuando nos estabelecimentos de ensino, posterior à sua formação inicial, incluindo-se aí os diversos cursos de especialização e extensão oferecidos pelas instituições de ensino superior e todas as atividades de formação propostas pelos diferentes sistemas de ensino. (CANDAU, 2008, p. 70) A formação continuada de professores no Brasil teve como característica marcante uma perspectiva clássica, que enfatizava a reciclagem e a atualização desses profi ssionais Formação continuada de professores na perspectiva crítica: contribuições à prática docente Instrumento: R. Est. Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 2, jul./dez. 2011 68 (KRAMER, 1989), pautando-se numa concepção dicotômica entre teoria e prática, com “ações voltadas mais para os interesses do sistema que para a valorização pessoal e social dos professores” (CANDAU, 2008 p.78). Uma série de pesquisas como as de Perrenoud (2002), Tardif (2003), Alarcão (2003), Pimenta (2005), Rios (2008), dentre outros, busca uma nova concepção contrária à clássica, enfatizando a importância da formação profi ssional articulada à valorização docente. Segundo Candau (2008), alguns eixos básicos devem ser considerados num processo de formação continuada: a) a escola se constituindo como lócus privilegiado de formação; b) o saber docente sendo reconhecido e valorizado em todo processo de formação; c) o reconhecimento das diferentes etapas do exercício profi ssional para um adequado desenvolvimento da formação continuada. Assim, o espaço escolar, o saber docente e a experiência profi ssional são três aspectos que devem ser considerados num processo de formação continuada. A escola pode se tornar um lócus privilegiado de formação continuada, desde que as práticas ali desenvolvidas sejam refl exivas, identifi cando os problemas e procurando formas de resolvê-los coletivamente. É o que afi rma Nóvoa (1991, p.30): A formação continuada deve ser articulada com o desenvolvimento profi ssional dos professores, tornando as escolas como lugares de referência. Trata-se de um objetivo que só adquire credibilidade se os programas de formação se estruturarem em torno de problemas e de projetos de ação e não em torno de conteúdos acadêmicos. Reconhecer e utilizar a instituição escolar como espaço privilegiado para desenvolver práticas de formação continuada é possibilitar o favorecimento da intervenção pedagógica concreta, partindo das reais necessidades dos professores e dos problemas de seu dia a dia, sem que ele se desloque para outros espaços menos signifi cativos. Segundo Nóvoa (2002), é nas escolas que os professores podem decidir quais são os melhores meios, os melhores métodos e as melhores formas de assegurar essa formação continuada. O saber docente, de modo especial os saberes da experiência, precisam ser valorizados, tendo como perspectiva a possibilidade de o professor dialogar com as disciplinas e com os saberes curriculares de forma mais signifi cativa. Tardif, Lessard e Lahaye (1991) reconhecem o saber docente como plural (resultado de um conjunto de saberes) e estratégico (devido à posição que ocupa nos saberes sociais), mas também como desvalorizado (pela falta de reconhecimento face aos saberes que possui e transmite). Por fi m, o último aspecto a ser considerado é o ciclo de vida profi ssional de professores, uma vez que seus problemas, suas buscas e suas necessidades não são as mesmas nos diferentes momentos de seu exercício profi ssional: entrada na carreira, fase de estabilização, fase de diversifi cação, fase de pôr-se em questão, fase de serenidade e distanciamento afetivo, fase de conservadorismo e lamentações e fase do desinvestimento, conforme descrito por Huberman (1992). Partindo dessa compreensão, há necessidade de se romper com modelos padronizados de formação continuada, criando sistemas diferenciados que atendam os diferentes momentos em que se encontra o profi ssional, tendo-o sempre como foco. A prática profi ssional deve se constituir como um espaço autônomo e original de formação, investida de uma realidade própria, em que o professor vai construindo e reconstruindo seu saber fazer num esforço de retomada e revisão da prática concretizada e que, por sua vez, se tornará mais rica se for exercida de forma compartilhada (CONTRERAS, 1997). Desta forma, a refl exão crítica, como resultado de um processo coletivo que estimula a autonomia do professor, considerando as relações de seu pensamento e ação em contextos históricos reais e concretos (KEMMIS, Instrumento Instrumento: R. Est. Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 2, jul./dez. 2011 69 1998) deve ser ao mesmo tempo ponto de partida e de chegada para o processo de formação continuada. Percebe-se, assim, com base em Zeichner e Kemmis, a necessidade de um programa de formação de professores que tenha por base a refl exão na prática e conduza à reconstrução social, visando à busca de um ensino que possibilite mais justiça, igualdade e emancipação social. Segundo Kemmis (1987), refl etir criticamente sobre a prática signifi ca colocar-se no contexto de uma ação, na história da situação, ou seja, “explorar a natureza social e histórica, tanto de nossa relação como atores nas práticas institucionalizadas da educação, quanto da relação entre nosso pensamento e ação educativos”. (KEMMIS, 1987 apud CONTRERAS, 1997). A partir dessa perspectiva, uma proposta de formação de professores deve considerar: a) a aquisição, por parte do professor, de uma bagagem cultural de clara orientação política e social; b) o desenvolvimento de capacidades de refl exão crítica sobre a prática; c) o aprimoramento de atitudes que requerem o compromisso político do professor como intelectual transformador na aula, na escola e no contexto social (CONTRERAS, 1997). A formação continuada do professor, na perspectiva critica, tem como princípio o entendimento de que o professor necessita adquirir uma postura voltada à problematização dos discursos e valores que legitimam as práticas sociais e acadêmicas a partir do conhecimento crítico de que são portadores e que ele deve buscar, através da refl exão na prática, se posicionar como sujeito político e comprometido com o seu tempo, considerando o conceito de “autoridade emancipatória” (GIROUX, 1997). A concepção de autoridade emancipatória é compreendida nos estudos de Giroux como sinônimo de liberdade, igualdade e democracia. O professor, nesse enfoque, assume o papel de “intelectual transformador”, uma vez que seu compromisso não é somente com a transmissão de um saber crítico, mas com a própria transformação social, por meio da capacitação para pensar e agir criticamente. O autor assim se expressa: O ensino para a transformação social signifi ca educar os estudantes para assumir riscos e para lutar no interior das contínuas relações de poder, tornando-os capazes de alterar as bases sobre as quais se vive a vida. Atuar como intelectuais transformadores signifi ca ajudar os estudantes a adquirir um conhecimento crítico sobre as estruturas sociais básicas, tais como: o Estado, o mundo do trabalho e a cultura de massas, de modo que estas instituições possam se abrir a um potencial de transformação. Uma transformação, neste caso, dirigida à progressiva humanização da ordem social” (GIROUX, 1997, p. 90) Adquirir uma postura de intelectual transformador requer, por sua vez, que os professores reconheçam os referenciais políticos e morais sobre os quais constituem sua autoridade no ensino. A formação continuada deve, então, favorecer a emancipação do professor como intelectual crítico e transformador, constituindo-se em oportunidade “tanto para abordar criticamente suas perspectivas, quanto para elaborar uma pedagogia de vida democrática, em que reconheça a validade de se lutar” (GIROUX, 1997, p.91). Ela precisa favorecer a constituição de processos de colaboração entre os professores, visando a refl exão crítica e permitindo a análise e o questionamento das estruturas institucionais em que se encontram, incluindo os efeitos que essas estruturas exercem sobre a forma pela qual os professores analisam e pensam a própria prática, bem como o sentido social e político aos quais obedecem (SMYTH, 1986; KEMMIS, 1987). Nesse processo, o professor analisa além das intenções e atuações pessoais, analisando problemas que têm origem social e histórica (KEMMIS, 1987), ou seja, o professor refl ete criticamente, explorando a natureza social e histórica, tanto da sua relação enquanto ator nas práticas institucionalizadas da educação, quanto da relação entre seu pensamento e as ações educativas. O processo de formação continuada deve possibilitar que a capacidade de questionamento do professor siga uma Formação continuada de professores na perspectiva crítica: contribuições à prática docente Instrumento: R. Est. Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 2, jul./dez. 2011 70 lógica de conscientização progressiva, ou seja, deve ajudá-lo a descobrir as interpretações que possui sobre a dinâmica social do contexto de atuação e como este se constituiu historicamente (SMYTH, 1986). Para tanto, é necessário, conforme afi rma Smyth (1986, p.23) : [...] primeiramente favorecer um diálogo mediante o qual os professores sejam capazes de reconhecer e analisar os fatores que limitam sua atuação e, em seguida, dar-lhes a oportunidade de verem a si mesmos como agentes potencialmente ativos e comprometidos a alterar as situações opressivas que os reduzem a meros técnicos realizando ideias alheias. Faz-se necessário, assim, em processos de formação continuada, problematizar a refl exão, dotando-a de um compromisso político claro, de capacidade de uma crítica sócio-histórica dos professores e das escolas. Como diz Demo (1993, p.21): “[...] é dialogar com a realidade inserindo-se nela como sujeito criativo para formar o sujeito histórico capaz de defi nir o seu destino e nele participar ativamente”. Pelas considerações apresentadas, propomos que sejam desenvolvidos, no contexto escolar, processos críticos e refl exivos de formação continuada, que oportunizem a reconstrução da origem das práticas dos professores, bem como sua natureza ideológica, o que, por conseguinte, os instrumentalizarão a adquirir uma postura de “intelectual transformador” (GIROUX, 1997). No entanto, para que estes processos ocorram, e possam gerar mudanças qualitativas, é preciso que a escola reconheça e invista nessas transformações, ajudando a consolidar inúmeros avanços. Na compreensão de formação continuada crítica com vistas à emancipação do professor, deve-se considerar o papel que este desempenha dentro do contexto escolar, pois ao se engajar em uma instituição educativa, o professor é introduzido em toda uma cultura com a qual aprende a conviver, ou seja, procura formas de se relacionar a partir de suas perspectivas e expectativas, assim como a partir do que a instituição almeja em relação a ele. Desta forma, o professor infl uencia e é infl uenciado no contexto escolar, pois o desenvolvimento organizacional da escola está conectado ao processo de formação deste profi ssional, ou seja, mudanças no professor não deixam imune a escola, já que estas infl uenciarão nas transformações das organizações escolares e no seu desenvolvimento. Um processo de formação continuada, numa perspectiva crítica e emancipatória, pode favorecer mudanças inovadoras e transformadoras na vida e na profi ssão do professor, e também na escola. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do exposto, podemos apontar que um processo de formação continuada, tendo como perspectiva a refl exão crítica, deve considerar: • a escola como espaço privilegiado para o desenvolvimento de práticas de formação que visam a refl etir e propor alternativas sobre os problemas existentes nesse contexto; • o papel que o professor ocupa na escola, reconhecendo-o como aquele que organiza a aprendizagem e procura articular às novas demandas que a sociedade exige; • a refl exão como reconstrução social, resultado de um processo coletivo que estimula a autonomia docente; • a capacidade de crítica do professor sobre a prática docente, bem como sobre o contexto no qual está inserido; • o reconhecimento da indissolubilidade entre teoria e prática, capaz de produzir mudanças qualitativas na atividade docente; • o ciclo de vida profi ssional dos professores, rompendo com modelos padronizados de formação, de modo a atender os diferentes momentos em que o docente se encontra; Instrumento Instrumento: R. Est. Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 2, jul./dez. 2011 71 • o professor como intelectual crítico e transformador, capaz de se posicionar como sujeito político e histórico com vistas à sua emancipação. TEACHERS’ CONTINUING FORMATION IN A CRITICAL PERSPECTIVE: CONTRIBUTIONS TO TEACHERS’ PRACTICE Abstract Teachers’ formation presents itself, nowadays, as one of the challenges to Education. Th is article looks forward to analyze the teachers’ continuing formation, taking as basis the refl exive critical perspective with a view to autonomy and emancipation of the teachers’ practice. Th e comprehension of the education that aims the critical citizen formation and the emphasis on the constant teachers’ qualifi cation, having the school as privileged locus for formation and critical refl ection as a principle, are themes to be approached in this paper. Keywords: Continuing teachers’ formation. Critical refl ection. REFERÊNCIAS ALARCÃO, I. (Org.). 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