RELATÓRIO FINAL DO ESTÁGIO CURRICULAR OBRIGATÓRIO DO CURSO DE MEDICINA VETERINÁRIA, REALIZADO JUNTO À MYPETS CLÍNICA VETERINÁRIA, JABOTICABAL – SP E BOSQUE E ZOOLÓGICO MUNICIPAL “DR. FÁBIO DE SÁ BARRETO”, RIBEIRÃO PRETO – SP Caso de interesse: Tratamento para ferida em paciente canino com sepse resultante de mordida de cão Caroline Pavoni Cerantola UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS E VETERINÁRIAS CÂMPUS DE JABOTICABAL RELATÓRIO FINAL DO ESTÁGIO CURRICULAR OBRIGATÓRIO DO CURSO DE MEDICINA VETERINÁRIA, REALIZADO JUNTO À MYPETS CLÍNICA VETERINÁRIA, JABOTICABAL – SP E BOSQUE E ZOOLÓGICO MUNICIPAL “DR. FÁBIO DE SÁ BARRETO”, RIBEIRÃO PRETO – SP Caso de interesse: Tratamento para ferida em paciente canino com sepse resultante de mordida de cão Caroline Pavoni Cerantola Orientador(es): Prof. Dr. José Maurício Barbanti Duarte Supervisor(es): M.V. Giovanna Gibertoni e M.V. César Henrique Branco JABOTICABAL – S.P. 1° SEMESTRE DE 2022 Agradecimentos Agradeço a todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram com minha formação, em especial: À minha família, principalmente aos meus pais, Wagner e Luciana, pelos ensinamentos sobre o valor dos estudos e do trabalho incansável, dedicação à minha educação e pelo dom do amor pelos animais. Ao meu companheiro Pedro, pela dedicação aos animais, e por todo amor e força compartilhados. Aos amigos que conheci na graduação e que estão comigo em todos os momentos bons e ruins, tornando essa caminhada mais fácil: Ana Carolina Curtolo, Angélica Titotto, Gabriel Ramos, Leticia Mariano, Thaylane Financi e Wagner Lemos. Sinto muito orgulho do sucesso de vocês e sinto muitas saudades da nossa rotina. Ao meu orientador Prof. Dr. José Maurício Barbanti Duarte por despertar em seus alunos a paixão pela conservação dos animais silvestres e senso crítico sobre temas sensíveis. E pela oportunidade de ter feito parte da equipe do NUPECCE, que me proporcionou aprendizado profissional e emocional, e onde consegui atingir meus objetivos dentro da área de animais silvestres na graduação. Expresso também meu carinho e admiração por tudo o que o Prof. Barbanti é e representa. À Profa. Dra. Karin Werther por lecionar as melhores aulas de clínica da graduação, por sua preocupação com o aprendizado de seus alunos e empenho em coordenar o GEAS Jaboticabal, do qual fiz parte e que amo tanto. À M.Sc. Cláudia Maria Herédias-Ribas, minha co-orientadora de iniciação científica, amiga, conselheira de vida e pesquisadora que tanto admiro, e à M.Sc. Adrielly Dissenha por todos os ensinamentos e disponibilidade para participarem da banca examinadora deste trabalho. À toda equipe do Zoológico de Ribeirão Preto (corpo técnico, tratadores, estagiários e demais funcionários), em especial ao M.V. César Branco, Pedro Angeloti e Silvio Bizaia. E à toda equipe da MyPets Clínica Veterinária, em especial à M.V. Giovanna Gibertoni, M.Sc. Adrielly Dissenha, Taís Rodrigues, Mayara Ruaro e sua filha Alice, Letícia Tura e João Domingos. Muito obrigada por me acolherem, pela amizade e por todos os ensinamentos compartilhados. Por fim, a todos os profissionais (professores e funcionários) que contribuíram para minha formação e crescimento pessoal. ÍNDICE I RELATÓRIO DE ESTÁGIO.....................................................................9 1 Introdução ..............................................................................................9 2 Descrição dos locais de estágio ........................................................ 10 2.1 MyPets Clínica Veterinária ............................................................... 10 2.2 Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto” ............. 12 3 Descrição das atividades desenvolvidas .......................................... 16 3.1 MyPets Clínica Veterinária ............................................................... 16 3.2 Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto .............. 18 3.2.1 Setor de Medicina Veterinária ....................................................... 18 3.2.2 Centro de Triagem de Animais Silvestres: Programa Uma Nova Chance .................................................................................................... 20 3.2.3 Setor de Necrópsia ...................................................................... 24 3.2.4 Setor de Quarentena, Setor de Zootecnia, Aquário, Terrário e Biotério .................................................................................................... 25 3.2.5 Setor de bem-estar animal e enriquecimento ambiental ............. 28 3.2.6 Condicionamento operante com reforço positivo ....................... 30 3.2.7 Falcoaria ......................................................................................... 34 4 Discussão das atividades desenvolvidas ......................................... 36 4.1 MyPets Clínica Veterinária ............................................................... 36 4.2 Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto” ............. 41 5 Conclusão ........................................................................................... 52 II RELATO DE CASO ............................................................................. 53 1 Introdução ........................................................................................... 53 2 Revisão de literatura .......................................................................... 54 2.1 Fisiologia da cicatrização de ferida ................................................. 54 2.2 Fisiopatologia da SRIS/sepse .......................................................... 57 2.3 Cicatrização de feridas em quadro de sepse .................................. 59 2.4 Sinais clínicos e diagnóstico da SRIS/sepse .................................. 60 2.5 Tratamento ........................................................................................ 61 2.6 Princípios do manejo de feridas ...................................................... 63 3 Relato de caso .................................................................................... 66 4 Discussão ........................................................................................... 74 5 Conclusão ......................................................................................... 75 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 76 8 I Relatório de estágio 1 Introdução Este relatório tem como finalidade descrever as atividades que foram desenvolvidas no estágio supervisionado de graduação em Medicina Veterinária pela Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias, FCAV, Unesp, câmpus de Jaboticabal, SP, durante a realização da disciplina de Estágio Curricular Obrigatório para conclusão do curso nas áreas de clínica médica e cirúrgica de pequenos animais e clínica e manejo de animais silvestres. O estágio ofereceu oportunidade de vivenciar e aplicar conhecimentos obtidos referente à área de maior interesse – animais silvestres –, além de experienciar a rotina de um zoológico e receber tutoria de profissionais da área. Houve oportunidade para aprender novas tecnologias que, com as devidas adaptações, poderão ser aplicadas no tratamento de animais silvestres. Inclusive, o tema abordado no caso de interesse sobre manejo de ferida em paciente com sepse está intimamente relacionado com a maioria das urgências e emergências de animais silvestres vítimas de traumas de diversas origens. Com as devidas adaptações para as espécies e recursos disponíveis, o conhecimento obtido através deste caso e da revisão de literatura pode ser aplicado na rotina de animais silvestres. As atividades do estágio obrigatório foram realizadas no período de 08 de fevereiro a 02 de julho de 2021 sob orientação do Prof. Dr. José Maurício Barbanti Duarte do Departamento de Zootecnia da FCAV, Unesp, câmpus de Jaboticabal, SP. Na primeira etapa do estágio, as atividades foram desenvolvidas na MyPets Clínica Veterinária, com práticas na área de clínica médica e cirúrgica, anestesia, internação, urgência, emergência e especialidades de cães e gatos, durante o período de 08 de fevereiro a 09 de abril de 2021, totalizando 352 horas. O local selecionado possui renome no município em que está instalado, tanto pela elevada qualificação de seus profissionais quanto pela boa infraestrutura referente às instalações e equipamentos. A segunda etapa foi realizada no período de 03 de maio a 02 de julho de 2021 - totalizando 360 horas - no Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto”, referência na área de animais silvestres no município de Ribeirão Preto 9 e região, SP, funcionando como Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (CETRAS) por meio do programa intitulado “Uma Nova Chance”. No Bosque, foi possível participar ativamente nas práticas ambulatoriais de internação, cirurgia, anestesia, necrópsia, nutrição, manejo, enriquecimento ambiental e condicionamento operante tanto de animais resgatados, como do próprio plantel. O estágio curricular obrigatório teve como objetivo aprimorar os conhecimentos aprendidos durante o período de graduação a respeito de ética, profissionalismo, responsabilidade, resolução de problemas eminentes e premeditados, trabalho com equipe multiprofissional, raciocínio clínico e protocolos terapêuticos tanto em ambiente particular de uma clínica veterinária quanto na esfera pública, como no zoológico. Além disso, foi aprimorado o pensamento crítico frente a desafios e gargalos enfrentados na medicina veterinária de animais silvestres do setor público. Em adição, o estágio demonstrou com clareza o papel dos zoológicos brasileiros em relação a conservação de animais silvestres. 2 Descrição dos locais de estágio 2.1 MyPets Clínica Veterinária A primeira etapa do estágio curricular foi realizada na MyPets Clínica Veterinária (Figura 1), sob supervisão da M.V. Giovanna Gibertoni. A clínica veterinária está localizada na cidade de Jaboticabal, SP, na Avenida Clotilde Verri, número 31, e possui cerca de 2 anos de existência. 10 Figura 1 – Fachada da MyPets Clínica Veterinária. Fonte: arquivo pessoal, Jaboticabal, SP, 2021. A clínica funciona 24 horas, pois conta com uma equipe de médicos veterinários plantonistas. Possui grande fluxo de pacientes mesmo com apenas dois anos de funcionamento. A estruturação da clínica é completa para atendimento, cirurgia, urgência e emergência de cães e gatos. A clínica conta com aparelho de ultrassonografia e a M.V. Giovanna Gibertoni é responsável pela realização dos exames e seus laudos. Outros exames de diagnóstico por imagem, como a radiografia, são realizados e laudados pela CEDIMVET, empresa de equipamentos móveis que são transportados até a MyPets Clínica Veterinária. Já exames complementares, como exames bioquímicos e coproparasitológicos são realizados no laboratório de patologia clínica veterinária Hematovet em Jaboticabal, SP, e exames citopatológicos e histopatológicos são realizados pelo NOVOLABVET em Ribeirão Preto, SP. A equipe médica veterinária volante conta com os profissionais das seguintes especialidades: cirurgiã-ortopedista e de tecidos moles, neuro- ortopedista, anestesista, cardiologista, oftalmologista, nutricionista, fisioterapeuta, neurologista e oncologista. A infraestrutura é composta por recepção, onde os dados dos animais e de seus proprietários são informados, consultório (Figura 2.A), sala de espera, cozinha, estoque de materiais e medicamentos, lavanderia, sala de esterilização, 11 ambiente externo, centro cirúrgico (Figura 2.B) e salas de internação de doenças infecciosas (Figura 2.C) e não infecciosas (Figura 2.D). Ainda, os gatos que estão internados na internação de doenças infecciosas são separados de acordo com sorologia de FIV (em português, Vírus da Imunodeficiência Felina) e/ ou FelV (em português, Vírus da Leucemia Felina) bem como os cães são separados de acordo com teste positivo ou suspeita diagnóstica em cinomose e/ ou parvovirose. A clínica veterinária contribuiu positivamente na vivência acerca do aprendizado sobre clínica, cirurgia, anestesia, urgência, emergência e de exames complementares de pequenos animais, onde foi possível acompanhar e raciocinar de forma integrativa a rotina dos atendimentos ambulatoriais e seus procedimentos das mais diversas casuísticas. Figura 2 – Estruturas da MyPets Clínica Veterinária. A. Consultório. B. Centro cirúrgico. C. Sala de internação de doenças infecciosas. D. Sala de internação comum. Fonte: arquivo pessoal, Jaboticabal, SP, 2021. 2.2 Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto” A segunda etapa – e última – do estágio foi realizada no Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto” (Figura 3) sob supervisão do M.V. César Henrique Branco. A D B B C 12 Inaugurado em 1942, o Bosque é localizado no Parque Municipal Morro do São Bento (composto pelo Zoológico de Ribeirão Preto, Complexo Esportivo e Complexo Cultural), na rua Liberdade, s/n, Campos Elíseos, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. O horário de funcionamento é de quarta-feira a domingo, das 9h às 16h30, com entrada franca. Contudo, no período de pandemia do COVID-19 o Zoológico permaneceu fechado ao público. Figura 3 – Fachada do Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto”. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. O símbolo do Bosque (Figura 4.A) representa a cutia (Dasyprocta azarae) (Figura 4.B), uma espécie frequentemente encontrada percorrendo a área do Bosque e facilmente avistada pelos visitantes Figura 4 – A. Logotipo atual do Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto”. B. Dois exemplares do plantel de cutia (Dasyprocta azarae). Fonte: A. Página oficial do Facebook do Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto”, Ribeirão Preto, SP, 2021. B. Arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. A B 13 A partir de 2016, com a construção do Hospital Veterinário promovido pelo Conselho Municipal de Defesa do Meio ambiente (COMDEMA) de Ribeirão Preto, SP, o setor de Medicina Veterinária ficou responsável pelo CETRAS (Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres) denominado como Programa Uma Nova Chance. O CETRAS recebe tanto animais do plantel que adoecem ou que precisam realizar algum procedimento, quanto os exemplares de vida livre, que são entregues pelos munícipes, Polícia Militar Ambiental, Corpo de Bombeiros ou por outras instituições de resgate e preservação da fauna. O setor de Medicina Veterinária é composto pelo ambulatório (que alberga o berçário e a internação dos animais), o Hospital Veterinário, sala de administração, sala de necropsia, sala de bem-estar, materiais de transporte, contenção e manejo dos animais. O Hospital Veterinário possui centro cirúrgico, sala de paramentação, de radiografia, esterilização, estoque de materiais e insumos, e sala de internação para o pós-cirúrgico. O ambulatório é equipado com gaiolas individuais – que possibilitam observação mais criteriosa do animal – e coletivas. É equipada também, assim como o Hospital Veterinário, de materiais para procedimentos de urgência e emergência. Os médicos veterinários César Henrique Branco e Márcio Junio Lima Siconelli são os responsáveis pelo setor, pelos estagiários, pela organização do Bosque, suas atividades e a tomada de decisões juntamente com o zootecnista Alexandre Gouvêa, que é chefe da Seção Parque Municipal Morro de São Bento e o Alexandre Henrique Felcar, chefe da Divisão de Unidades de Conservação na Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Ribeirão Preto, SP. Atualmente, o Zoológico abriga cerca de 689 animais de 180 espécies diferentes, sendo nativas e exóticas, distribuídas em 76 recintos pertencentes aos setores: Recanto das Aves, Praça dos Primatas, Grandes Felinos, Passarela, Pequenos Mamíferos, Araras, Urso, Elefante e Praça das Aves. Algumas espécies estão ameaçadas de extinção segundo o Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção (ICMBIO, 2018), como mutum-do-sudeste (Crax blumenbachii), avaliado como espécie Criticamente em Perigo (CR); mutum-do-nordeste (Pauxi mitu), como Extinta na Natureza (EW); tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), Vulnerável (VU); mico-leão-de- cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas), Em Perigo (EN); bugio-ruivo 14 (Alouatta guariba clamitans), Criticamente em Perigo (CR) (Figura 5.A); anta (Tapirus terrestris), Vulnerável (VU) (Figura 5.B); ararajuba (Guaruba guarouba), Vulnerável (VU) (Figura 5.C); queixada (Tayassu pecari), Vulnerável (VU); e papagaio-de-peito-roxo (Amazona vinacea), Vulnerável (VU) (Figura 5.D). Figura 5 – Exemplares de espécies mantidas pelo Bosque. A. Bugio-ruivo (Alouatta guariba clamitans). B. Anta (Tapirus terrestris). C. Ararajuba (Guaruba gouarouba). D. Papagaio-de- peito-roxo (Amazona vinacea). Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. Além do setor de Medicina Veterinária, o Bosque conta com aquário, biotério, setor Extra e Quarentena. Possui também uma cozinha pertencente ao Setor de Zootecnia para o preparo da alimentação de todo o plantel, refeitórios, banheiros e vestiários destinados aos funcionários, oficina de manutenção, Jardim Japonês, Mirante, trilhas, setor de Administração, Meliponário, Casa da Ciência e Educação Ambiental. O estágio no Bosque possibilitou o complemento dos ensinamentos teóricos e práticos adquiridos durante a graduação na área de clínica, cirurgia, emergência, urgência, manejo nutricional e ambiental de animais silvestres, além A B C D 15 dos mais diversos procedimentos ambulatoriais, cirurgias e necropsia que puderam ser acompanhados. Foi possível participar de todas as atividades do Zoológico, exceto as atividades dos setores de zootecnia e educação ambiental. A maior parte do tempo foi dedicada aos setores de manejo, bem-estar, enriquecimento ambiental e condicionamento operante com reforço positivo, além do setor de medicina veterinária. 2 Descrição das atividades desenvolvidas 2.1 MyPets Clínica Veterinária No consultório, foi possível acompanhar as consultas, separar o material utilizado para exame físico, para colheita de material biológico de exames complementares, administração de medicamentos e para vacinas. Além disso, era realizada a contenção física do animal; anotação de materiais consumíveis utilizados (medicamentos, seringas, agulhas) para posteriormente alimentar o sistema com dados e integrar no valor final da consulta; e realizar cálculos de dose de medicamentos para deixá-los preparados para pronta administração. Logo após, o caso clínico era discutido e todas as dúvidas eram respondidas pela M.V. Giovanna. No ambiente de internação, era possível acompanhar os plantonistas repassando as informações do horário de plantão para a médica veterinária. Além disso, eram realizados a limpeza e organização das salas e reposição de materiais e insumos. Os prontuários (ficha de internação) dos animais eram sempre verificados a fim de seguir os protocolos terapêuticos e de monitoramento do animal: administrar medicamentos, aferir parâmetros fisiológicos, monitorar fluidoterapia e realizar curativos. Além disso, era necessário que as gaiolas fossem limpas; animais, higienizados e material biológico colhido para exames complementares. O prontuário (Figura 6) era o guia para todos os procedimentos, pois continha todas as informações necessárias para controle diário do animal internado, como os dados do animal e proprietário, suspeita diagnóstica, condutas e medicamentos a serem realizados em seus respectivos horários e datas, e demais anotações importantes, como parâmetros fisiológicos aferidos. 16 Figura 6 – Exemplo de prontuário da MyPets Clínica Veterinária. Fonte: arquivo pessoal, Jaboticabal, SP, 2021. No centro cirúrgico, foi possível auxiliar nas cirurgias como instrumentador cirúrgico. Uma vez ao mês, toda equipe realizava contagem de materiais da clínica para controle do estoque e pedido de mais produtos. Quando não era possível auxiliar nas cirurgias, era de responsabilidade o auxílio na administração de medicação pré-anestésica e intubamento; anotação de materiais e medicamentos consumidos durante a cirurgia para alimentar o sistema e integrar no valor final da cirurgia ou procedimento ambulatorial; pela limpeza da sala, do instrumental e internação do animal no pós-cirúrgico. 2.2 Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto” As atividades foram realizadas de forma com que a cada semana pudessem ser acompanhadas as atividades de cada setor, sendo a escala dos setores determinada pelo supervisor M.V. César Branco. As atividades eram realizadas juntamente com os tratadores dos respectivos setores e os estagiários, que são de origem de diversas instituições de ensino superior dos cursos de Ciências Biológicas e Medicina Veterinária. Foram priorizados os setores de manejo e comportamento por serem mais desenvolvidos e bem trabalhados pelos tratadores e estagiários, portanto serão descritas e enfatizadas aqui as atividades desenvolvidas em todos os setores do Bosque e não somente a casuística do ambulatório. 17 2.2.1 Setor de Medicina Veterinária No ambulatório (Figura 7), pelo período da manhã, a responsabilidade era de limpar a sala de internação e gaiolas, organizar o setor e realizar a higienização dos animais. Os animais internados para tratamento eram pesados diariamente e todas as refeições eram preparadas de acordo com a necessidade nutricional do animal com frutas, legumes, verduras, ovo, grãos, rações e complemento alimentar (probiótico, vitaminas e minerais) por indicação do Zootecnista Alexandre Gouvêa. A entrada e saída do peso da refeição oferecida para cada animal eram anotadas em cada ficha de internação (prontuário). Ainda, na água de bebida era adicionado suplemento (Hemolitan Gold®️ em gotas). Foi possível também realizar curativos, aferir parâmetros fisiológicos, fazer inspeção das gaiolas e do animal a distância (atividade, comportamento e postura), exames físicos, sendo qualquer alteração relatada aos médicos veterinários. Figura 7 – A e B mostram as instalações do ambulatório do Bosque. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. No período da tarde, a responsabilidade era a de administração de medicamentos dos animais do ambulatório, quarentena e hospital (Figura 8.A e B), além de fazer outros procedimentos ambulatoriais, como limpeza de feridas e realização de curativos (Figura 8.C e D). Ainda, os estagiários eram escalados para fazer plantão de final de semana. A B 18 Figura 8 – Demonstração de algumas atividades realizadas na rotina do ambulatório. A. Administração via intramuscular em cágado-de-barbicha (Phrynops geoffroanus). B. Administração de medicamentos via subcutânea em gambá-de-orelha-branca (Didelphis albiventris). C. Curativo em periquito-rei (Eupsittula aurea). D. Curativos em lobo-guará (Chrysocyon brachyurus). Fonte: fotos cedidas pelo tratador e Biólogo Pedro Angeloti, Ribeirão Preto, SP, 2021. No centro cirúrgico (Figura 9), a responsabilidade era de auxiliar na medicação pré-anestésica, organizar os materiais para realização do procedimento cirúrgico e manter o centro cirúrgico limpo e organizado. Figura 9 – Centro Cirúrgico. A. e B. mostram procedimentos ambulatoriais realizados em mandril (Mandrillus sphinx) sob anestesia geral após o período do estágio obrigatório. Fonte: fotos cedidas pelo tratador e Biólogo Pedro Angeloti, Ribeirão Preto, SP, 2021. B A C D A B 19 Foram acompanhadas também sessões de eletroacupuntura e laserterapia em gambá (Didelphis albiventris), lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), periquito-de-encontro-amarelo (Brotogeris chiriri) e periquitão- maracanã (Psittacara leucophtalmus). 3.2.2 Centro de Triagem de Animais Silvestres: Programa Uma Nova Chance O Bosque é responsável por receber animais de vida livre de diversas origens e situações. Os animais são trazidos pela Polícia Ambiental, Corpo de Bombeiros, munícipes, IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e Divisão de Vigilância Ambiental em Saúde, originários de diferentes cidades e Estados pelas mais diversas causas (filhotes de aves caídos do ninho, órfãos, queimados, politraumatizados ou com alguma enfermidade). Após exame clínico realizado pelos médicos veterinários, é preenchida uma ficha de entrada (Figura 10) para internação do animal no ambulatório, estadia no berçário ou quarentena. Logo, eles instituem tratamento e condutas que serão executadas pelos estagiários com apoio do corpo técnico. 20 Figura 10 – Ficha de entrada para registro do recebimento do animal. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. Esses animais serão destinados pelo Programa Uma Nova Chance para soltura ou manutenção em cativeiro por outras instituições de mantenedouro de fauna. Após melhora clínica, os animais são acomodados no setor Quarentena, onde esperam órgãos especializados levá-los para reabilitação e soltura monitorada. Esses órgãos especializados são os Centros de Reabilitação de Animais Silvestres e Áreas de Soltura para Animais Silvestres parceiros, como a MP Fauna, situada em São Carlos, SP, com o apoio do Biólogo Fernando 21 Magnani, e Associação Mata Ciliar, Jundiaí, SP. Essas entidades possuem grandes recintos localizados em áreas de pouco contato humano. A empresa MP Fauna Ambiental é responsável por diversas Áreas de Soltura e de Monitoramento, como no município de Descalvado e em Matão, interior de SP, onde os animais passam por programas de reabilitação em recintos específicos para cada espécie. Contudo, não foi possível obter respostas elucidativas a respeito das informações sobre como esses animais são monitorados, se há retorno de informações para o Bosque sobre o monitoramento, se antes da soltura há realização de manejo sanitário, do impacto desses indivíduos sobre as populações nativas, riscos ao ecossistema da área de soltura, impacto desses indivíduos na população de sua espécie e se, de fato, há contribuição para a conservação. Animais que não podem ser reintroduzidos na natureza permanecem no plantel (Figura 11) ou aguardam destinação para outras instituições parceiras com finalidade de composição do plantel e reprodução. Figura 11 – Exemplares que receberam cuidados do CETRAS e estão no plantel. A. Periquitão- maracanã (Psittacara leucophtalmus) com parte distal dos membros pélvicos amputados. B. Atrofia após lesão ocular em jandaia-verdadeira (Aratinga jandaya). C. Bugio-preto (Alouatta caraya) com articulações rádio-cárpica e femorotibial esquerdas amputadas. Fonte: arquivo pessoal, fotos obtidas em Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto”, Ribeirão Preto, SP, 2021. Através do Programa Uma Nova Chance, animais vítimas de maus-tratos, atropelamento, queimada, caça predatória, tráfico, choque elétrico, acidente com linha de pipa e cerol, fuga de incêndio e ataque de animais domésticos são resgatados, reabilitados e reintroduzidos na natureza. A ação antrópica é uma A B C 22 das principais causas da alta demanda de animais que o Bosque recebe. A Entrevias Concessionária de Rodovias faz parceria com o Bosque para encaminhamento de animais silvestres encontrados nas rodovias sob concessão da empresa (eixo rodoviário de Bebedouro a Igarapava). O setor de Educação Ambiental do empreendimento se torna extremamente necessário para conscientizar os visitantes que aqueles animais vitimizados estão sob cuidados humanos por consequência de ação antrópica. De acordo com o M.V. César Branco, são realizados de 150 a 200 procedimentos cirúrgicos por ano, onde cerca de 15% animais que chegam vêm a óbito e parte dos animais recuperados permanecem no Zoológico por impossibilidade de serem reintroduzidos e o restante, 65% dos animais (aproximadamente 1000 por ano), são reintroduzidos. Ao longo do estágio, diversos processos de destinação de animais tratados no Setor de Medicina Veterinária puderam ser acompanhados. A Figura 12 mostra alguns exemplos de animais sob cuidados dos CETRAS. Figura 12 – Exemplares sob cuidados do CETRAS do Bosque. A. Carcará (Caracara plancus) apresentando necrose de membro pélvico direito. B. Filhote órfão de gato-mourisco (Herpailurus yagouaroundi). C. Gralha-do-campo (Cyanocorax cristatellus) apresentando prostração e sinais neurológicos. D. Filhotes órfãos de periquito-de-encontro-amarelo (Brotogeris chiriri). Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. A C B D 23 3.2.3 Setor de Necrópsia No setor de necrópsia (Figura 13.A), foi possível auxiliar o M.V. Márcio a necropsiar animais e colher material para exame histopatológico. A convite do M.V. Márcio, pôde-se auxiliar na necrópsia de um indivíduo jovem, residindo há poucos dias no plantel, da espécie Puma concolor (onça- parda) que morrera após apresentar prostração, anorexia, abaulamento abdominal e abdominalgia. A necrópsia foi realizada no Departamento de Patologia Veterinária – FCAV/UNESP pela Profa. Dra. Karin Werther juntamente com as residentes do SEPAS/ FCAV (Serviço de Patologia de Animais Selvagens). Outras necrópsias foram realizadas no Setor de Necrópsia do Bosque, como a de um indivíduo da espécie tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) (Figura 13.B), mico-leão-de-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas), macaco-prego (Sapajus spp.) (Figura 13.C), cardeal (Paroaria coronata) (Figura 13.D) e tucano-toco (Ramphastos toco). Figura 13 – Atividades do Setor de Necrópsia do Bosque. A. Instalação da sala de necrópsia. B. Realização de necrópsia de tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) pela equipe de estagiários. C. Indivíduo de macaco-prego (Sapajus spp.) a ser necropsiado. D. Identificação do indivíduo a ser necropsiado, no caso, um cardeal (Paroaria coronata). Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. A B C D 24 3.2.4 Setor de Quarentena, Setor de Zootecnia, Aquário, Terrário e Biotério A Quarentena é um setor de vigilância separado do ambulatório e Hospital Veterinário, onde os animais recebem tratamento apropriado ou apenas ficam sob observação do tratador e dos médicos veterinários. Possui três exemplares residentes de bugio-ruivo (Alouatta guariba clamitans) ameaçados de extinção segundo a Lista Vermelha da IUCN de 2018. Os animais permanecem na quarentena antes de voltar aos seus respectivos recintos – no caso de animais do plantel – ou ir para soltura pelo Programa Uma Nova Chance por órgãos especializados (Associação Mata Ciliar – Jundiaí/SP e MP Fauna – São Carlos/SP). O terrário, assim como o aquário, possui área de visitação, onde os animais são expostos ao público e a área restrita (Figura 14.A e 14.B respectivamente), onde os funcionários realizam o manejo dos animais. O manejo das serpentes peçonhentas é executado apenas pelo M.V. César, a fim de evitar acidentes ofídicos, bem como alguns manejos são estritos apenas para tratadores para evitar acidentes graves. No geral, assim como em todos os setores do Zoológico, a prioridade é o manejo adequado e bem-estar dos animais. No aquário também é realizado a Troca Parcial de Água (TPA) dos tanques e higienização de todos os filtros quinzenalmente. A limpeza dos tanques, aquários e aquaterrários é mantida através da manutenção diária pela remoção de sujidades com peneiras. Figura 14 – A. Instalação interna do Terrário. B. Instalação interna do Aquário. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. A dieta de todos os animais do Bosque é avaliada pelo Zootecnista Alexandre Gouvêa e preparada pelos funcionários da cozinha (Figura 15), na A B 25 qual os horários de alimentação, modo de oferecimento, apresentação próprios para cada espécie são respeitados, assim como preferências individuais. Quando havia enriquecimentos alimentares, o modo de oferecimento da dieta variava (Figura 16). É importante ressaltar que duas vezes por semana, a comida oferecida e suas sobras são individualmente pesadas para controle zootécnico/veterinário ou até mesmo para saber se as características dos alimentos (palatabilidade, apresentação) são bem recepcionados pelos animais. No biotério, ambulatório e berçário as pesagens são diárias. Figura 15 – Instalações da cozinha do Bosque. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. De acordo com a escala semanal, os tratadores eram acompanhados em suas tarefas diárias, que incluem contagem dos animais do setor, alimentação, limpeza dos recintos, corredores de segurança e instalações (tanques, fontes) e enriquecimentos ambientais fixos (poleiros, camas, ninhos). 26 Figura 16 – Enriquecimento alimentar. A. Frutas recheadas para antas (Tapirus terrestris). B. Variação de apresentação da dieta para jandaia-verdadeira (Aratinga jandaya): ao invés de oferecida na bandeja, é pendurada pelo recinto. C. Galhos de cajá-mirim (Spondias spp.) oferecidos para maracanã-nobre (Diopsittaca nobilis). Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. No Bosque, há dois tipos de biotério: o de vertebrados e o de invertebrados. No biotério de vertebrados, cria-se ratazanas (Rattus norvegicus) e camundongos (Mus musculus). Os pintainhos são advindos de terceiros. No de invertebrados, cria-se barata-dúbia (Blaptica dubia), cinérea (Nauphoeta cinerea), de madagascar (Gromphadorhina portentosa), tenébrio-gigante (Zophobas morio) e molitor (Tenebrio molitor). O manejo do biotério também era realizado sempre priorizando o bem-estar dos animais. A B C 27 Figura 17 – Biotério de invertebrados. A. Exemplares de barata-dúbia (Blaptica dubia) em caixa de reprodução. B. Caixas de reprodução das espécies acima citadas. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. 3.2.5 Setor de bem-estar animal e enriquecimento ambiental O manejo adequado dos animais era seguido com comprometimento por todos os funcionários e estagiários, com fornecimento de dieta balanceada confeccionada por profissional especializado e água ad libitum. Era de responsabilidade do tratador do setor estar sempre melhorando os recintos para se assemelharem cada vez mais com as características do habitat natural da espécie. No estágio, mesmo que com poucos recursos, a parte de bem-estar e enriquecimento ambiental era sempre bem trabalhada. A preocupação com a vegetação era sempre recorrente, pois as plantas criam ambientes agradáveis tanto para os visitantes quanto para os animais, possibilitando pontos de fuga dentro do recinto quando o animal não quisesse mais estar sob a vista dos visitantes. Quando alguma mudança era aplicada aos recintos, sejam enriquecimentos ambientais temporários ou fixos, eram sempre estudados os comportamentos dos indivíduos. Está em andamento a organização de um recinto com o bioma Pantanal (Figura 18), o que vincula a manutenção dos animais nesse recinto ao seu bioma de origem, tornando a exposição mais educativa e o recinto mais adequado para as espécies. A B 28 Figura 18 – Evolução do recinto do pantanal. A. Início do período do estágio. B. Dois meses após o fim do período do estágio. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. As intervenções feitas com os animais e com seus recintos eram sempre muito bem avaliadas, pois havia uma equipe de bem-estar e enriquecimento ambiental composta por um tratador e por estagiários, além dos tratadores e estagiários dos respectivos setores dos quais os enriquecimentos eram aplicados. Para tanto, um etograma para cada espécie é realizado com finalidade de compreender o repertório comportamental e se o enriquecimento instalado está sendo favorável ou colaborando para ser um fator estressante. Os métodos de amostragem utilizados eram focal, scan, por comportamento e ad libitum, sendo o focal e scan os mais utilizados. Para os registros, se utilizam o contínuo, instantâneo e um-zero, sendo este último o mais utilizado, pois é anotada a ocorrência ou não de um comportamento em cada período amostral. Após a aplicação de algum enriquecimento alimentar ou até mesmo após a realização de algum comando de treinamento em horário de visitação, era comum os visitantes ensinarem a seus filhos os hábitos alimentares dos animais e ficarem encantados com os comportamentos ali expressados. Em épocas festivas como Páscoa, São João, Dia das Bruxas e Natal, os enriquecimentos ambientais eram realizados de forma temática, sendo o bem- estar aliado ao entretenimento dos visitantes (Figura 19). A B 29 Figura 19 – Exemplares de antas (Tapirus terrestris) interagindo com o enriquecimento alimentar temático de festa junina. Foto: Naiana Kennedy/ CBN Ribeirão, veiculada por ACidadeOn, Ribeirão Preto, 2021. Como Ribeirão Preto é uma cidade de clima com altas temperaturas, eram recorrentes os episódios de enriquecimento ambiental com sorvetes feito de alimentos preferidos dos animais, como por exemplo, sorvete de melancia para a elefante Maison (Figura 20). Figura 20 – Exemplares do plantel interagindo com o enriquecimento alimentar e sensorial “sorvete”. A. Mandril (Mandrillus sphinx). B. Elefante-asiático (Elaphus maxima). C. Urso-de- óculos (Tremarctos ornatus). D. Anta (Tapirus terrestris). Fonte: fotos cedidas pelo tratador e Biólogo Pedro Angeloti, Ribeirão Preto, SP, 2021. 3.2.6 Condicionamento operante com reforço positivo Além do setor de bem-estar e enriquecimento ambiental, havia o setor de condicionamento operante com reforço positivo. Este setor era composto pelo tratador do setor dos Primatas e pela autora deste relatório no período em que A B C D 30 esta estagiou por lá, um número bem reduzido para uma equipe que é extremamente necessária para manejo em um zoológico. O condicionamento operante com reforço positivo é aplicado na tentativa de modificar o comportamento do animal, resultando em uma recompensa prazerosa. Ele permite que o treinador realize comandos para tornar exames físicos, complementares, procedimentos mais invasivos (administração de medicamentos, colheita de material biológico) e entrada em caixas de transporte mais fáceis, evitando contenções farmacológicas e situações de estresse dos animais. Nos treinamentos, todos os limites são respeitados e o animal escolhe se quer realizar ou não uma determinada ação. As sessões de treinamento eram realizadas diariamente de 15 a 20 minutos de acordo com o cronograma de treinamento semanal. Os animais em processo de treinamento eram antas (Tapirus terrestris) (Figura 21), elefante-asiático (Elaphus maxima) (Figura 22 e 23), onça-parda (Puma concolor), mandril (Mandrillus sphinx), babuíno-sagrado (Papio hamadryas), maitacas-verde (Pionus maximilliani) e arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus) (Figura 24). Figura 21 – Condicionamento operante com reforço positivo em anta (Tapirus terrestris). A. Contenção do indivíduo através de carinho. B. Comando “toque” realizado com o bisel da agulha para dessensibilização de venopunção em toda parte medial dos membros posteriores. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. Nas sessões, utilizava-se target, marcador de comportamento (clicker ou apito) e a recompensa de mais agrado do animal que não compunha sua dieta (mamão, amendoim, sementes de girassol, uva). A B 31 Figura 22 – A. Manutenção das unhas de elefante-asiático (Elaphus maxima) com auxílio do condicionamento operante. B. Manutenção das unhas pelo médico veterinário enquanto o tratador realiza condicionamento operante. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. O target era utilizado no treinamento por tornar o processo de aprendizagem mais seguro e simples, pois auxiliava na discriminação do animal para diferentes direcionamentos sem que o treinador precisasse entrar em contato direto com o animal. A exemplo, temos a discriminação de patas (direita ou esquerda) (Figura 23.A), de cabeça (Figura 23.B) e da direção de onde o tratador quer que a elefante siga. Figura 23 – Sessão de treinamento de elefante-asiático (Elaphus maxima). A. Discriminação de membro torácico esquerdo. B. Discriminação de cabeça. C. Abrir a boca para inspeção de cavidade oral e dentes. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. Utilizava-se a punição por “omissão” (time out) quando o animal não cooperava no treinamento. Esta punição consiste em ficar de costas para o animal e permanecer assim por um curto período. Isso fazia com que o animal percebesse que o comportamento que levou ao time out não é o adequado. Logo após, é dado outro comando já aprendido pelo animal, depois retornava-se ao comando inicial. Esta estratégia servia como um estímulo para incentivá-lo a A B A B C 32 desempenhar o comportamento pretendido e reduzir a frustração provocada pela falta de recompensas. Nas sessões de treinamento, o reforço secundário (ponte) era sempre utilizado. O som emitido pelo apito e clicker além de informar que o comportamento exibido está correto também fazia uma ponte entre o desempenho do comportamento e a entrega da recompensa. Essa ponte também podia ser simplesmente um elogio (“muito bem”, “parabéns”) após a execução de um comportamento e antes da entrega do reforço positivo. Com o reforço secundário, o animal passava a prestar mais atenção e se empenhava em realizar corretamente o treinamento. Foi perceptível que os animais treinados se tornaram mais curiosos e interessados nos treinadores, principalmente a elefante Maison, as maitacas- verde e a arara-azul-grande. Os comandos mais utilizados nas sessões de treinamento eram: “pata”, “cabeça” e “asa” (discriminação de membros) (Figura 24.A e 24.B), “toque” (possibilitava o toque em qualquer parte do animal a fim de inspecioná-la) (Figura 24.C) e “fica” (manter o animal estático para realizar algum procedimento depois da discriminação do membro). Figura 24 – Sessão de treinamento de arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus). A. Discriminação de membro pélvico esquerdo. B. Discriminação de membro pélvico direito. C. Comando “toque” em asa. Note a ausência da utilização de target, conferindo risco à treinadora. Neste caso, o animal ainda não estava habituado ao target. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. A B C 33 3.2.7 Falcoaria O Zoológico é responsável pela reabilitação de rapinantes. Para tanto, as técnicas de falcoaria são aplicadas tanto na preparação física de aves que retornarão à vida livre quanto na saúde e bem-estar das aves que, por algum motivo, não podem ir para soltura. O exercício físico com fiador (Figura 25.B e 25.C) ou em corredor de voo eram geralmente os exercícios realizados para capacitação física antes de realizar a soltura desses rapinantes. O fiador consiste em um cordão amarrado a um bracelete no tarsometatarso da ave (Figura 25.A) e ancorado em alguma estrutura física do ambiente (estaca, poleiro). O fio possui 30m e, conforme a ave vai progredindo no treinamento, a distância desse fio é aumentada. Durante o condicionamento operante, a ave deve se alimentar no braço do falcoeiro com um pedaço de carne (utilizava-se pescoço de frango, coração de boi, pintainho e ratos), deslocando-se em sua direção após o comando. Aves oportunistas, como o carcará (Caracara plancus) representado na Figura 25.A, podem ser condicionadas em corredor de voo ou em fiador antes de serem soltas e são normalmente as espécies que oferecem menor esforço para reabilitação desde que na área da soltura tenha oferta de comida abundante. Antes de iniciar o treinamento, a ave deve estar equipada com braceletes de couro nos pés (tarsometatarsos) como na Figura 25.A, onde se entrelaça a correia que é ancorada a um objeto. Os treinadores ficam um em cada extremo, a uma distância de 30m (que pode variar com o progresso do animal), onde revezam na hora de dar os comandos para a ave. 34 Figura 25 – A. Exemplar de carcará (Caracara plancus) que realizava treinos com fiador. B. Tratador que apoia o animal até o comando do treinador da outra ponta. C. Treinador recebendo a ave após o comando para esta se alimentar em sua mão. Fonte: arquivo pessoal, Ribeirão Preto, SP, 2021. 4 Discussão das atividades desenvolvidas 4.1 MyPets Clínica Veterinária No período de 08 de fevereiro a 09 de abril de 2021 foram atendidos 219 animais na clínica, dos quais eram 188 cães e 31 gatos, conforme mostra a Gráfico 1 de distribuição de casos entre essas duas espécies. Observou-se maior ocorrência em cães com 86% dos casos e em menor ocorrência os gatos, com 14%. Estimativas oficiais para população de cães e gatos no ano de 2009 apontam que para o município de Jaboticabal a relação ideal mínima cão:habitante era de 1:4 e gato:habitante de 1:16 (SÃO PAULO, 2008 citado por LAGES, 2009). Nos bairros de Jaboticabal que foram estudados por LAGES (2009) e NUNES (2011), a relação de cães e gatos por habitante segue essa mesma proporção. B C A 35 Gráfico 1 – Distribuição por espécies atendidas na MyPets Clínica Veterinária durante o período de estágio. Fonte: elaborado pela autora, Jaboticabal, SP, 2021. As causas de atendimentos dos animais na clínica foram agrupadas em sistemas para cada espécie, sendo estes gastrointestinal, tegumentar, endócrino, reprodutor, músculo-esquelético, respiratório, hemolinfopoiético, oftálmico, auditivo, cardiovascular, urinário, odontológico, neurológico; afecções de origem oncológica; e quadro multissistêmico, quando a afecção acometia vários sistemas orgânicos. Os diversos sistemas orgânicos acometidos dos pacientes que foram acompanhados durante as consultas na clínica estão representados no Gráfico 2. 86% 14% Consultas Cães Gatos 36 Gráfico 2 – Representação gráfica da distribuição dos casos acompanhados na MyPets Clínica Veterinária no período do estágio. Fonte: elaborado pela autora, Jaboticabal, SP, 2021. A maioria dos casos clínicos de cães acompanhados foram de origem tegumentar (40 pacientes), seguido de gastrointestinal (24) e oncológica (19). Para gatos, a maioria foram de origem gastrointestinal (8), urinário (6) e respiratório (5). A relação entre pacientes atendidos e suas afecções é apresentada na Tabela 1. Tabela 1 – Casos clínicos acompanhados durantes o período do estágio (continua). SISTEMAS E AFECÇÕES ESPÉCIES Cães Gatos Oncológicas Adenoma 1 0 Carcinoma de células espinhosas 3 1 Carcinoma misto em glândula mamária 2 0 Carcinoma urotelial de células transicionais 1 0 Linfoma 1 1 Linfoma multicêntrico 1 0 Lipoma 1 0 Mastocitoma 3 0 Neoplasia hepática 2 0 Osteossarcoma 1 0 Tricoblastoma 1 0 Demais neoplasias 2 0 0 5 10 15 20 25 30 35 40 A n im a is a te n d id o s Sistemas orgânicos acometidos e afecções Cães Gatos 37 Tabela 1 – Casos clínicos acompanhados durantes o período do estágio (continuação). SISTEMAS E AFECÇÕES ESPÉCIES Cães Gatos Gastrointestinal Ancylostoma tubaeforme 0 1 Dypilidium caninum 1 0 Estomatite 0 1 Gastrite 1 0 Gastroenterites sem causa definida 7 5 Hérnia umbilical 2 0 Ingestão de corpo estranho 2 0 Isospora spp. 1 0 Lama biliar 3 0 Lipidose hepática 1 0 Megacólon 0 1 Pancreatite 4 0 Parvovirose 1 0 Salmonelose 1 0 Tegumentar Alopecia X 1 0 Ctenocephalides canis 2 0 Dermatite 7 2 Dermatite a picada de pulga 1 0 Dermatite atópica 5 0 Dermatite úmida 1 0 Dermatofitose 4 0 Enfisema subcutâneo 1 0 Esporotricose 1 0 Ferida 7 0 Inflamação da glândula adanal 1 0 Miíase 1 0 Piodermite 2 0 Reação inflamatória (rejeição) ao fio de sutura 4 0 Sarna demodécica 1 0 Sarna otodécica 0 1 Urticária aguda 1 0 Endócrinas Diabetes 1 0 Doenças endócrinas que não foram elucidadas 2 0 38 Tabela 1 – Casos clínicos acompanhados durantes o período do estágio (continuação). SISTEMAS E AFECÇÕES ESPÉCIES Cães Gatos Reprodutor Balanopostite 1 0 Criptorquidismo 1 0 Distocia 1 0 Miíase em prepúcio 1 0 Piometra 5 0 Prostatite 1 0 Vulvovaginite 2 0 Músculo-esquelético Displasia coxofemoral 1 0 Fratura de cabeça do fêmur 1 0 Fratura de mandíbula 1 0 Laceração por trauma 2 0 Luxação de patela 3 0 Luxação glenoumeral 2 0 Mialgia 1 0 Ruptura do ligamento cruzado cranial 1 0 Ruptura tendínea 0 1 Respiratório Afogamento 1 0 Bronquite 2 0 Colapso de traqueia 4 0 Complexo respiratório felino 0 4 Estenose de narinas 1 0 Pneumonia 0 1 Prolongamento de palato mole 1 0 Traqueíte 2 0 Hemolinfopoiético Hemoparasitose 8 0 Oftálmico Ceratite ulcerativa 2 0 Ceratite ulcerativa indolente 1 0 Ceratoconjuntivite seca 1 0 Cisto dermóide 1 0 Conjuntivite 1 0 Exoftalmia 1 0 Triquíase de carúncula 2 0 Uveíte 3 0 39 Tabela 1 – Casos clínicos acompanhados durantes o período do estágio (continua). SISTEMAS E AFECÇÕES ESPÉCIES Cães Gatos Auditivo Má formação do conduto auditivo 1 0 Otite bacteriana 3 1 Otite por Malassezia spp. 2 0 Multissitêmico Politraumas por atropelamento 4 0 FIV 0 2 FelV 0 1 Alergia alimentar 2 0 Demais traumas 0 1 Má nutrição 1 0 Cardiovascular Cardiomiopatia dilatada 3 0 Endocardiose 2 0 Endocardiose mitral 2 0 Hipertensão pulmonar 1 0 Insuficiência cardíaca congestiva por endocardiose 1 0 Insuficiência valvar da tricúspide 1 0 Outras cardiomiopatias 1 0 Shunt portossitêmico 1 0 Sopro e regurgitação da mitral 2 0 Urinário Cálculo vesical 3 0 Cistite 1 1 Cisto renal 2 0 Doença renal aguda 0 1 Doença renal crônica 2 1 Insuficiência renal aguda 2 0 Obstrução uretral por cálculo 0 2 Urolitíase 0 1 Odontológico Placa bacteriana dental 2 0 40 Tabela 1 – Casos clínicos acompanhados durantes o período do estágio (conclusão). SISTEMAS E AFECÇÕES ESPÉCIES Cães Gatos Neurológico Doença do disco intervertebral 5 0 Epilepsia idiopática 0 1 Síndrome cognitiva do cão idoso 2 0 Síndrome vestibular 1 0 Fonte: elaborado pela autora, Jaboticabal, SP, 2021. Além das consultas, foram acompanhadas um total de 27 cirurgias, sendo auxiliar em uma cirurgia de ovariohisterectomia, cistotomia para excisão de cálculos vesicais e de desbridamento de ferida contaminada. Os cuidados com os animais internados eram intensos, sendo 44 internados acompanhados e diversos procedimentos ambulatoriais, atendimentos de urgência, emergência e protocolos de ressuscitação cardiopulmonar auxiliados. 4.2 Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto” A ênfase dessa instituição se baseia no manejo preventivo do plantel e bem-estar dos animais. Por conta disso, a maioria das atividades experienciadas foram de manejo ambiental, nutricional e bem-estar animal. Para tanto, há uma equipe multiprofissional para atender as necessidades das mais variadas espécies que residem lá de modo temporário ou definitivo. Durante o estágio no Bosque e Zoológico de Ribeirão Preto, no período em que foi possível acompanhar a rotina do ambulatório, 105 animais foram admitidos no CETRAS, sendo 65% aves, 28% mamíferos e 7% répteis. Ao todo, 41 foram 46 espécies diferentes. Do plantel, foram apenas 15 casos clínicos. Constata-se que a maioria desses indivíduos eram aves (65%). Gráfico 3 – Distribuição por Classe das espécies atendidas no ambulatório do Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto” no período do estágio. Fonte: elaborado pela autora, Ribeirão Preto, SP, 2021. Os diversos sistemas orgânicos acometidos dos pacientes (multissistêmico, gastrointestinal, tegumentar, reprodutor, músculo-esquelético, oftálmico e neurológico) e suas possíveis condições (filhote órfão) que foram acompanhados durante a rotina no ambulatório estão representados no Gráfico 4. Gráfico 4 – Representação gráfica da distribuição por sistemas acometidos e condições dos casos acompanhados no Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto” durante o período de estágio. Fonte: elaborado pela autora, Ribeirão Preto, SP, 2021. 0 5 10 15 20 25 Répteis Aves Mamíferos 7% 65% 28% Admissão no CETRAS Répteis Aves Mamíferos 42 Vários procedimentos ambulatoriais e alguns procedimentos cirúrgicos foram acompanhados. Contudo, poucos exames complementares foram realizados devido aos custos, pois são serviços terceirizados e mesmo quando não, a exemplo dos exames radiográficos, não podiam ser realizados devido ao alto custo de manutenção do aparelho. A grande quantidade de pacientes que chegam ao Zoológico somada aos custos de exames complementares e medicamentos prejudicam a medicina curativa do Bosque. Os motivos para entrega de animais silvestres ao Zoológico eram diversos e raramente o diagnóstico era fechado mesmo com as fortes suspeitas clínicas. Isso se deve às escassas e confusas informações obtidas durante a anamnese. Como já detalhado, todo animal era submetido a anamnese durante o preenchimento da ficha de entrada, mas pouco se sabe do histórico de um animal silvestre. E quando se sabe, por motivos de manutenção ilegal desse animal em cativeiro, essas informações são omitidas. Se na clínica de pequenos com mais informações obtidas tanto pela anamnese quanto pelos exames complementares o sucesso do tratamento pode estar comprometido, em um CETRAS esse desafio é ainda maior. Por isso, nas tabelas a seguir, os motivos pelos quais os animais chegaram ao Zoológico é quase sempre um sinal clínico inespecífico e os protocolos terapêuticos eram baseados no tratamento de suporte e mitigação desses sinais. Os exames complementares raramente eram realizados devido aos custos e alta demanda. Os diversos casos clínicos acompanhados na rotina do ambulatório são descritos na Tabela 2 (Classe Répteis), 3 (Classe Aves) e 4 (Classe Mamíferos). Para a identificação das espécies que ocorrem na região a autora utilizou o trabalho de Pollegato e Nascimento (2015). 43 Tabela 2 – Casos clínicos da Classe Répteis acompanhados durante o período do estágio. Nome popular Nome científico Sinais clínicos/ suspeitas diagnósticas e procedimentos Origem Total de indivíduos Chelonoidis carbonaria Jabuti-piranga Prolapso peniano/ penectomia total Munícipe 1 Chelonoidis carbonaria Jabuti-piranga Lacerações em pele Plantel 1 Chelonoidis carbonaria Jabuti-piranga Anorexia Plantel 1 Chelonoidis denticulata Jabuti-tinga Prolapso peniano/ penectomia total Munícipe 2 Chelydra serpentina Tartaruga-mordedora Prolapso peniano/ redução com sutura bolsa de fumo Plantel 1 Phrynops geoffroanus Cágado-de-barbicha Politrauma por atropelamento/ fixação cirúrgica de carapaça Munícipe 1 Fonte: elaborado pela autora, Ribeirão Preto, SP, 2021. 44 Tabela 3 – Casos clínicos da Classe Aves acompanhados durante o período do estágio (continua). Nome popular Nome científico Sinais clínicos/ suspeitas diagnósticas Origem Total de indivíduos Aratinga jandaya Jandaia-verdadeira Blefarite Plantel 1 Ardea alba Garça-branca-grande Prostração Munícipe 1 Asio clamator Coruja-orelhuda Prostração Munícipe 1 Athene cuniculata Coruja-buraqueira Prostração Munícipe 3 Brotogeris chiriri Periquito-de-encontro-amarelo Lesões em asas Polícia Ambiental 1 Brotogeris chiriri Periquito-de-encontro-amarelo Fratura completa de radio-úlna exposta Plantel 1 Brotogeris chiriri Periquito-de-encontro-amarelo Ataxia Plantel 1 Brotogeris chiriri Periquito-de-encontro-amarelo Cuidados com filhote órfão Polícia Ambiental 1 Caracara plancus Carcará Membro pélvico necrosado Munícipe 1 Caracara plancus Carcará Desorientação e lesão em rinoteca (provável colisão) Munícipe 1 Coragyps atratus Urubu-de-cabeça-preta Prostração Munícipe 1 Cyanocorax cristatellus Gralha-do-campo Dispneia e paresia de membros pélvicos/ intoxicação Munícipe 1 Cyanocorax cyanopogon Gralha-cancã Lesão podal Plantel 1 Eupsittula aurea Periquito-rei Fratura completa de rádio-ulna Corpo de Bombeiros 1 Eupsittula aurea Periquito-rei Fratura em articulação radiocarpal Corpo de Bombeiros 1 Eupsittula aurea Periquito-rei Cuidados com filhote órfão Corpo de Bombeiros 3 Gnorimopsar chopi Pássaro-preto Ataxia e prostração Polícia Ambiental 1 Guira guira Anu-branco Fratura exposta em tíbia (MPE)/ fixação com pino-intramedular Munícipe 1 Nyctibius griseus Urutau Fratura em rádio-ulna Munícipe 1 45 Tabela 3 – Casos clínicos da Classe Aves acompanhados durante o período do estágio (continuação). Nome popular Nome científico Sinais clínicos/ suspeitas diagnósticas Origem Total de indivíduos Paroaria coronata Cardeal Lesão em olho (por provável briga) Plantel 1 Paroaria coronata Cardeal Escoriações pelo corpo Polícia Ambiental 1 Paroaria dominicana Cardeal-do-Nordeste Fratura em articulação radiocarpal Plantel 1 Passer domesticus Pardal Fratura em rádio-ulna e laceração em asa Munícipe 1 Patagioenas picazuro Asa-branca Prostração Corpo de Bombeiros 1 Pitangus sulphuratus Bem-te-vi Cuidados com filhote órfão Munícipe 1 Porphyrio martinicus Frango-d'água azul Paraparesia de posterior/ lesão medular Munícipe 1 Psittacara leucophthalmus Periquitão-maracanã Membro pélvico mutilado Corpo de Bombeiros 8 Psittacara leucophthalmus Periquitão-maracanã Splayed legs Munícipe 2 Psittacara leucophthalmus Periquitão-maracanã Ferida em membro pélvico Munícipe 1 Psittacara leucophthalmus Periquitão-maracanã Disfunção no desenvolvimento (devido aos maus tratos) Polícia Ambiental 1 Psittacara leucophthalmus Periquitão-maracanã Membro pélvico garroteado Munícipe 1 Psittacara leucophthalmus Periquitão-maracanã Cuidados com filhote órfão Munícipe 4 Psittacara leucophthalmus Periquitão-maracanã Lesão em asa Munícipe 1 Psittacara leucophthalmus Periquitão-maracanã Membro pélvico mutilado Munícipe 1 Ramphastos dicolorus Tucano-debico-verde Ataxia, tremor Polícia Ambiental 1 46 Tabela 3 – Casos clínicos da Classe Aves acompanhados durante o período do estágio (conclusão). Nome popular Nome científico Sinais clínicos/ suspeitas diagnósticas Origem Total de indivíduos Rupornis magnirostris Gavião-carijó Fratura completa de rádio-ulna e intoxicação por óleo diesel Corpo de Bombeiros 1 Rupornis magnirostris Gavião-carijó Laceração em asa Corpo de Bombeiros 1 Sicalis flaveola Canário-da-terra Lesão em pálpebra inferior (de possível briga) Plantel 1 Sicalis flaveola Canário-da-terra Lesão em asa Plantel 1 Troglodytes musculus Curruíra Cuidados com filhote órfão Munícipe 1 Tyto furcata Suidara Cuidados com filhote órfão Munícipe 1 Zenaida auriculata Pomba-de-bando Cuidados com filhote órfão Munícipe 5 Zenaida auriculata Pomba-de-bando Fratura completa de rádio-ulna Munícipe 2 Fonte: elaborado pela autora, Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto”, SP, 2021. 47 Tabela 4 – Casos clínicos da Classe Mamíferos acompanhados durante o período do estágio (continua). Nome popular Nome científico Sinais clínicos/ suspeitas diagnósticas Origem Total de indivíduos Callithrix penicillata Sagui-de-tufo-preto Trauma decorrente de queda Plantel/ Berçário 1 Callithrix penicillata Sagui-de-tufo-preto Politrauma decorrente de atropelamento Munícipe 1 Callithrix penicillata Sagui-de-tufo-preto Politrauma decorrente de queda Munícipe 1 Callithrix penicillata Sagui-de-tufo-preto Cuidados do filhote órfão Munícipe 2 Callithrix penicillata Sagui-de-tufo-preto Eletrocussão Corpo de Bombeiros 1 Callithrix penicillata Sagui-de-tufo-preto Múltiplas escoriações Corpo de Bombeiros 1 Chrysocyon brachyurus Lobo-guará Necrose em membro pélvico (preso em forquilha) Corpo de Bombeiros 1 Chrysocyon brachyurus Lobo-guará Politrauma decorrente de atropelamento Corpo de Bombeiros 1 Coendou prehensilis Ouriço-cacheiro Politrauma decorrente de ataque de animal doméstico Polícia Ambiental 1 Coendou prehensilis Ouriço-cacheiro Queimaduras Polícia Ambiental 1 Dasypus novemcinctus Tatu-peba Múltiplas escoriações Polícia Ambiental 1 Didelphis albiventris Gambá-de-orelha- branca Politrauma decorrente de ataque de animal doméstico Munícipe 3 Didelphis albiventris Gambá-de-orelha- branca Politrauma por causa desconhecida Polícia Ambiental 1 48 Tabela 4 – Casos clínicos da Classe Mamíferos acompanhados durante o período do estágio (conclusão). Nome popular Nome científico Sinais clínicos/ suspeitas diagnósticas Origem Total de indivíduos Didelphis albiventris Gambá-de-orelha- branca Evisceração decorrente de ataque de animal doméstico Polícia Ambiental 1 Herpailurus yagouaroundi Gato-mourisco Cuidados do filhote órfão Polícia Ambiental 1 Hydrochoerus hydrochaeris Capivara Lacerações decorrente de ataque de animal doméstico Corpo Bombeiros 1 Lama glama Lhama Nascimento de filhote Plantel 1 Leopardus wiedii Gato-maracajá Prostração sem causa esclarecida Corpo de Bombeiros 1 Lepus europaeus Lebre Miopatia de captura Munícipe 1 Mazama gouazoubira Veado-catingueiro Escoriações no metacarpo Corpo de Bombeiros 1 Puma concolor Onça-parda Distensão abdominal e abdominalgia Plantel 1 Sapajus spp. Macaco-prego Prostração sem causa esclarecida Corpo de Bombeiros 1 Tapirus terrestris Anta Dermatopatia Plantel 2 Tayassu pecari Queixada Edema em região de carpo Plantel 2 Fonte: elaborado pela autora, Ribeirão Preto, SP, 2021. 49 A maioria dos animais entregues ao Zoológico nesse período foram as aves (65%), seguida por mamíferos (28%) e répteis (7%). Esses dados corroboram com estudo recente de Angeloti e Faria (2021, dados não publicados), que demonstraram que a avifauna foi a Classe com maior admissão no CETRAS do Bosque e Zoológico Municipal “Dr. Fábio de Sá Barreto” entre os anos de 2014 e 2019. Estudos demonstraram que, por exemplo, uma alta porcentagem da avifauna brasileira (cerca de 28%) foram registradas em apenas 22 cidades (FRANCHIN, 2009). Dentre as aves descritas neste relatório, foi observada a maior ocorrência da família Psittacidae (42,6% dos 68 casos de aves atendidas). Periquitos-de-encontro-amarelo (Brotogeris chiriri) possuem alta capacidade de adaptação alimentar e plasticidade (MARQUES et al., 2014). Em relação a comportamentos reprodutivos, a cópula pode ocorrer em área urbana e o ninho pode ser feito em cavidades de árvores, telhas de edificações e casas de joão-de-barro abandonadas, amplamente disponíveis em ambientes urbanos (LOPES et al., 2013). A espécie periquitão-maracanã (Psittacara leucophtalmus) é encontrada frequentemente nidificando em habitações urbanas, usando diversas espécies arbóreas urbanas como dormitório. Dependendo da época do ano podem permanecer ou não por mais tempo nas cidades durante o período diurno (OLIVEIRA, 2014). Por isso, é frequente que sejam recebidos em centros de triagens e reabilitação de animais selvagens e clínicas veterinárias (BRITO, 2017). Foi expressiva a quantidade de indivíduos recebidos de avoante (Zenaida auriculata) por possuírem uma presença marcante em áreas urbanizadas (BONANÇA; BEIG, 2010). Um estudo recente demonstrou que sua reprodução pode ocorrer durante o ano inteiro, pois além dos fatores ambientais, a reprodução está relacionada também a sua variada dieta, ninhos simples e indivíduos que apresentam atividade gonadal com fotoperíodo curto (MALDONADO et al., 2020). Mesmo que o atropelamento de animais silvestres, principalmente terrestres, seja uma importante ameaça para a fauna (MESQUITA; MORAES, 2018; ROSA; MAUHS, 2004), os motivos da admissão dos animais no CETRAS foram os mais diversos, inclusive politraumatismo por ataque de animais 50 domésticos, que também constitui um grande fator de risco para a fauna. Os cães podem matar, perseguir, perturbar e causar deslocamento de animais nativos. A perseguição dos animais silvestres resulta em estresse que pode matá-los. Os animais domésticos também podem atuar como competidores de vários predadores nativos (HUGHES; MACDONALD, 2013). Dos mamíferos, as espécies Callithrix penicillata (sagui-de-tufo-preto) e Didelphis albiventris (gambá-de-orelha-branca) foram as mais admitidas no CETRAS. O gambá-de-orelha-branca (Didelphis albiventris) possui hábitos sinantrópicos, sendo capturados com frequência nos peridomicílios e domicílios, tanto nos meios rurais quanto urbanos (MOTTA, 1988). É comum encontrar espécies exóticas de Callithrix spp. introduzidas em áreas verdes em meio às cidades (CUNHA et al., 2006; DO VALE; NETO; PREZOTO, 2020). Os saguis-de-tufo-preto (Callithrix penicillata) são muito abundantes no estado de São Paulo (CULOT et al., 2019), possuem alto potencial de ocupação dos habitats e flexibilidade ecológica, fazendo com que estejam cada vez mais presentes em ambientes urbanos (NEGRÃO; VALLADARES-PÁDUA, 2006) e sua distribuição se estende ao município de Ribeirão Preto e região (MALUKIEWICZ et al., 2020). Dos répteis, apenas a ordem Testudines foi atendida no ambulatório, sendo grande parte vinda do plantel e em sua maioria com desordens no sistema reprodutivo. 5 Conclusão Durante a realização do estágio curricular obrigatório, foi possível crescimento pessoal e desenvolvimento do raciocínio frente a desafios, principalmente no que diz respeito ao setor público. E que para o sucesso no tratamento ou na efetivação de algum projeto necessita-se dispêndio de dinheiro e tecnologias disponíveis, além de uma equipe multiprofissional. O estágio possibilitou enriquecimento e consolidação do conhecimento teórico em medicina veterinária de pequenos animais e animais selvagens. Além disso, foi possível aprender novas técnicas e metodologias de procedimentos clínicos, cirúrgicos, diagnósticos e terapêuticos da medicina de pequenos 51 animais que com adaptações podem ser aplicadas na medicina de animais silvestres. Ambos os locais de estágio contam com uma equipe multiprofissional essencial e de extrema capacitação que fazem com que as atividades sejam executadas corretamente. 52 II Caso de interesse 1 Introdução Mesmo que a incidência seja desconhecida, feridas causadas por mordidas de cães e gatos são frequentes na clínica de pequenos animais e resultam em fundamental parte dos casos atendidos na emergência da medicina veterinária (ARIAS et al., 2008; HOLT; THAWLEY, 2015). Pavletic e Trout (2006) descobriram que as feridas decorrentes de mordidas de animais domésticos equivalem de 10 a 15% dos traumas na medicina de pequenos animais. Muitas vezes a mordida pode causar infecção que leva à resposta inflamatória sistêmica e até mesmo a morte do animal (HOLT; THAWLEY, 2015). Um importante efeito sistêmico causado por mordida de cão é a Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica (SIRS, sigla em inglês para Systemic Inflammatory Response Syndrome) resultante do dano tecidual grave, na qual várias cascatas são ativadas. As cascatas geralmente ativadas são as inflamatórias, imunológicas, de coagulação e fibrinolíticas (GEBHARDT et al., 2009; HOLT; THAWLEY, 2015). Na infecção, se houver grande quantidade de bactérias, mecanismos inibitórios da inflamação podem ser impedidos de serem executados (ARIAS et al., 2008). A SRIS é a manifestação clínica da resposta inflamatória que ocorre em decorrência de uma lesão de origem infecciosa ou não. Em estudo realizado por Ateca, Dombrowski e Silverstein (2015), a SRIS ocorreu em 54% dos pacientes caninos que foram mordidos por outros cães. A SRIS é uma ativação exagerada e generalizada da inflamação, já a sepse é descrita como SRIS com forte suspeita de infecção ou infecção confirmada. Politrauma, pancreatite, queimadura e doenças imunomediadas são exemplos de injúrias de origem não infecciosa que podem resultar em SRIS (GEBHARDT et al., 2009; THEOBALDO, 2012). Qualquer microrganismo pode ser agente causador da sepse, como bactérias – as mais comuns de serem associadas –, fungos, vírus e parasitas (O’BRIEN JR et al., 2007). Conforme a resposta à infecção se agrava, o quadro clínico evolui para sepse grave, descrita quando há hipoperfusão e hipotensão responsiva a adequada reposição volêmica. A evolução para choque séptico ocorre quando há comprometimento 53 hemodinâmico, hipotensão arterial irresponsiva à adequada reposição volêmica (BONE et al., 1992; THEOBALDO, 2012; HOLT; THAWLEY, 2015) e disfunção de órgãos, que pode progredir para falência múltipla dos órgãos (CASTELLHEIM et al., 2009). A Síndrome da Disfunção Múltipla dos Órgãos (SDMO ou MODS, sigla em inglês para Multiple Organ Dysfunction Syndrome) ocorre quando há falha em pelo menos dois sistemas de órgãos (SILVERSTEIN, 2015). O diagnóstico e tratamento realizados precocemente são essenciais para controle da resposta inflamatória e infecção, além de suas possíveis consequências como as disfunções orgânicas e progressão para choque séptico (HOLT; THAWLEY, 2015). Ao se examinar uma ferida resultante de mordida, é necessário cautela porque o aspecto inicial da lesão não condiz com a realidade. A maioria dos danos teciduais ocorrem em outros locais que não a pele, podendo haver fraturas, perfurações das cavidades torácica e abdominal, divulsionamento do subcutâneo e musculatura (HOLT; THAWLEY, 2015). Além disso, as bactérias da pele do paciente, da cavidade oral do animal agressor e as sujidades do ambiente são inoculadas diretamente no subcutâneo (PAVLETIC; TROUT, 2006; HOLT; THAWLEY, 2015). Fatores relacionados ao microrganismo (tipo, virulência, quantidade) e fatores relacionados ao animal (imunocompetência, comorbidades, idade e estado nutricional) vão direcionar o cuidado das feridas e no uso de antibióticos (ARIAS et al., 2008; SALOMÃO et al., 2012). 2 Revisão de literatura As afecções mais comuns que predispõem a ocorrência de sepse em cães incluem peritonite, pneumonia, pancreatite, piometra, prostatite e infecções de feridas (DE LAFORCADE et al., 2003). A cicatrização de feridas é um processo complexo mediado pela liberação de citocinas e fatores de crescimento. É dividida em fases para facilitar sua compreensão (PAVLETIC, 2018). 54 2.1 Fisiologia da cicatrização de feridas O início da cicatrização começa com a fase inflamatória imediatamente após a lesão com duração de aproximadamente 5 dias. Na inflamação localizada, primeiramente, ocorre quimiotaxia de células inflamatórias, vasoconstrição, ativação das plaquetas e cascatas de coagulação que formam coágulos, cessando a hemorragia e impedindo a disseminação de agentes patogênicos. Em seguida, para que as células, enzimas, anticorpos e fluidos migrem para o local da ferida, há vasodilatação e aumento da permeabilidade vascular. Essa fase é definida pela infiltração neutrofílica e subsequente substituição pelos macrófagos e linfócitos que foram atraídos pelas citocinas e migraram para a ferida/ local da inflamação via diapedese (HOSGOOD, 2006; ABBAS, 2007; FOSSUM, 2014; HOLT; THAWLEY, 2015). Os neutrófilos possuem o papel de fagocitar o material necrótico da ferida, degradar os materiais extracelulares (colágeno, elastina, proteoglicanos, fibrina e fibronectina), matar bactérias pela produção de superóxidos, produzir citocinas que estimulam a resposta inflamatória e ativam as fibras locais e queratinócitos. Já os macrófagos fagocitam bactérias e detritos extracelulares, liberam fator de necrose tumoral-α (TNF-α), interleucina-1 (IL-1), fator de crescimento transformador-β (TGF-β) e fator de crescimento semelhante à insulina-1 (IGF-1) que são importantes na fibroplasia, formação do tecido de granulação e epitelização durante a fase proliferativa da cicatrização (EFRON; BARBUL, 2001; ABBAS, 2007; ACKERMANN, 2012; HAN; CEILLEY, 2017). Na fase inflamatória, também há agregação de plaquetas, fibrina e outros componentes do plasma que vão formar uma matriz extracelular provisória onde as células podem migrar (HOSGOOD, 2006; FOSSUM, 2014). As células que foram lesionadas, plaquetas que são degranuladas e os sistemas de coagulação e complemento vão produzir mais citocinas e fatores de crescimento, iniciando assim a fase proliferativa. Os neutrófilos e macrófagos desbridam a ferida por mecanismo autolítico através da fagocitose e degradação da matriz extracelular provisória (HOSGOOD, 2006; ABBAS, 2007; FOSSUM, 2014; HOLT; THAWLEY, 2015). A fase proliferativa, também chamada de fase de reparo, ocorre no final da primeira semana da cicatrização sob condições ideais (feridas limpas). É caracterizada pela epitelização, angiogênese e fibroplasia (produção da matriz 55 extracelular pelos fibroblastos). A matriz extracelular é composta por fibras de colágeno tipo III, glicosaminoglicanos, fibronectina e ácido hialurônico (HOSGOOD, 2006; PAVLETIC, 2009; FOSSUM, 2014). Em feridas não contaminadas, os macrófagos são predominantes, produzem muitas citocinas e fatores de crescimento que são responsáveis pela diferenciação, mobilização e proliferação de fibroblastos, regulação da angiogênese e epitelização (PAVLETIC, 2009). Horas após a lesão ocorrer, a mitose das células do stratum basale aumenta. Inicialmente na epitelização, as células basais da epiderme começam a migrar para as bordas da ferida, formando o tecido de granulação liso que facilitará todo o processo de epitelização. As células epiteliais amadurecem com o passar dos dias e uma nova membrana basal é formada (HOSGOOD, 2006; FONDER et al., 2008). A baixa tensão de oxigênio, acúmulo de ácido lático, fatores de crescimento e fatores angiogênicos estimulam a angiogênese com formação das arteríolas e vênulas. A fibroplasia e a angiogênese produzem o tecido de granulação, caracterizado por ser vermelho e brilhante, e indica que a ferida está cicatrizando de maneira saudável. Este tecido, com o passar dos dias, começa a ficar mais pálido pela regressão dos capilares e deposição de colágeno pelos fibroblastos que deixam a ferida mais resistente à tração. O tecido de granulação é extremamente importante na cicatrização, pois é resistente à infecção, fornece uma superfície para epitelização, desempenha um papel na contração e fornece colágeno para fortalecer a ferida (BALBINO; PEREIRA; CURI, 2005; HOSGOOD, 2006; FOSSUM, 2014; HOLT; THAWLEY, 2015). Durante a fase proliferativa, o objetivo do cuidado da ferida é protegê-la, mantê-la livre de infecções, fornecer equilíbrio ideal de umidade e temperatura para que a epitelização e formação de tecido de granulação se inicie, além de auxiliar os neutrófilos e macrófagos no desbridamento do tecido desvitalizado e diminuição da carga bacteriana (PAVLETIC, 2018). À medida que o tecido de granulação amadurece na fase proliferativa, alguns dos fibroblastos assumem um fenótipo de miofibroblasto – com filamentos de actina –, adquirindo capacidade contrátil. Os miofibroblastos se fixam uns aos outros, à matriz extracelular e nas bordas da ferida, iniciando sua contração (das 56 margens em direção ao centro) (BALBINO; PEREIRA; CURI, 2005; HOSGOOD, 2006; FOSSUM, 2014; HOLT; THAWLEY, 2015; PAVLETIC, 2018). A última fase do processo de cicatrização de feridas diz respeito à fase de maturação e remodelação que continuará por meses ou até anos (FOSSUM, 2014). Fibras de colágeno que são orientadas ao longo das linhas de tensão se entrelaçam e se fortalecem. O colágeno tipo III é substituído pelo colágeno tipo I, conferindo mais resistência (HOSGOOD, 2006). O objetivo do tratamento da ferida durante essa fase é proteger o epitélio (HOLT; THAWLEY, 2015). É importante comentar que nem todas as espécies de mamíferos possuem cicatrizações idênticas. Os cães apresentam mais perfusão cutânea, melhor produção de tecido de granulação e suas feridas ganham força mais rápido quando comparados com gatos (HOLT; THAWLEY, 2015). Muitos dos mesmos conceitos de manejo de feridas podem ser aplicados em todas as espécies. No entanto, uma compreensão da anatomia normal da pele e progressão da cicatrização de feridas em uma determinada espécie, por exemplo, permite avaliação mais precisa da ferida e sua resposta à terapia (GRUNKEMEYER, 2011). 2.2 Fisiopatologia da SRIS/sepse Muitos processos fisiopatológicos estão envolvidos na SRIS/sepse em decorrência da interação dos patógenos e do hospedeiro suscetível (HOTCHKISS; KARL, 2003). O início da resposta imune do hospedeiro durante a lesão tecidual ou na SIRS/sepse envolve a estimulação de receptores localizados na membrana celular de células do sistema imune chamados de Receptores de Reconhecimento de Padrões (PRRs, sigla em inglês para Pattern Recognition Receptor). Os componentes ou moléculas originadas de microrganismos que entram em contato com o hospedeiro capazes de ativar o sistema imune inato são denominados de Padrões Moleculares Associados a Patógeno (PAMPs, sigla em inglês para Pathogen-associated Molecular Pattern), reconhecidos pelos PRRs, desencadeando a cascata inflamatória (CINEL; OPAL, 2009). Os receptores da classe Toll-like (TLRs, sigla em inglês para Toll-like Receptors) são PRRs padrões em células do sistema imune inato que respondem à presença de um antígeno (PAMPs) e regulam a resposta imune 57 adaptativa. No contexto da sepse, esses receptores possuem envolvimento na indução de mediadores NF-κβ (fator de transcrição nuclear kappa beta) que fazem parte do aumento da expressão das citocinas pró-inflamatórias (como por exemplo, IL-1β e TNF-α). Sendo assim, NF-κβ é importante na transcrição gênica da resposta inflamatória e patogenicidade da sepse (THEOBALDO, 2012). Na SIRS/sepse, há uma resposta imune aguda com ativação excessiva de citocinas pró-inflamatórias. Essas citocinas, denominadas fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) e interleucina-1 (IL-1), ativam células-alvo, induzindo a produção de mais mediadores pró-inflamatórios (outras citocinas, quimiocinas, espécies reativas de oxigênio e nitrogênio, eicosanoides e enzimas proteolíticas) (SALOMÃO et al., 2014). As citocinas pró-inflamatórias são liberadas pelas plaquetas, neutrófilos, monócitos e células endoteliais, causam ativação generalizada das cininas, dos sistemas complemento, de coagulação e secundários (prostaglandinas, leucotrienos, óxido nítrico e radicais livres de oxigênio) que causam vasodilatação periférica, aumento da permeabilidade vascular, extravasamento de fluidos, trombose de pequenos vasos e liberação de enzimas que levam à falta de perfusão tecidual, consequentemente resultando em metabolismo anaeróbio do tecido e morte celular (OLIVEIRA et al., 2002; ABBAS, 2007). Falta de perfusão tecidual nos tecidos causam danos a vários órgãos do corpo, o que é denominado como Síndrome da Disfunção Múltipla dos Órgãos (SDMO) (THEOBALDO, 2012; SALOMÃO et al., 2014). Durante a sepse, há duas fases concomitantes: a síndrome da resposta inflamatória sistêmica e a síndrome da resposta anti-inflamatória compensatória (CARS, sigla em inglês para Compensatory Anti-inflammatory Response Syndrome). A CARS é a resposta para regulação da SIRS, na qual há liberação de citocinas anti-inflamatórias (IL-10, IL-4, TGF-β), que podem causar imunodepressão e, consequentemente, deixando o hospedeiro susceptível à infecção secundária (REDDY; STANDIFORD, 2010). A infecção na sepse é o fator desencadeador do aumento da produção de espécies reativas de oxigênio (EROs) e de espécies reativas ao nitrogênio (ERNs) concomitantemente ao declínio das defesas antioxidantes, resultando em dano celular, danos ao tônus vasomotor, disfunção miocárdica, injúria renal 58 aguda e lesões em outros órgãos que culminarão em choque e posterior SDMO (GALLEY, 2011). 2.3 Cicatrização de feridas durante quadro de sepse O processo de cicatrização de feridas requer uma rede bem orquestrada de inflamação, proliferação celular, migração e síntese de proteínas que pode ser perturbada por surtos inflamatórios (SANTORO; GAUDINO, 2005; FLORIN et al., 2006). A cicatrização é um processo de reparação tecidual, portanto é anabólica e requer um suprimento adequado de nutrientes. O estado nutricional em que o animal com hiporexia/ anorexia se encontra prejudica significativamente a resposta imunológica, que por si só está intimamente ligada à cascata de cicatrização de feridas (HEDLUND, 2007; FOSSUM, 2014; PAVLETIC, 2018). A sepse induz um estado extremamente catabólico. Além disso, as citocinas pró- inflamatórias (como TNF-α; e IL-1β) levam ao aumento da colagenólise e diminuição da síntese de colágeno (ABRAHAM; SINGER, 2007). Na sepse, a infiltração de leucócitos no local da ferida diminui e o processo de cicatrização de feridas requer inflamação, proliferação celular, migração e síntese de proteínas de modo controlado, que é perturbada em surtos inflamatórios. O atraso observado na restauração da barreira epidérmica na sepse pode estar relacionado ao aumento da inflamação da ferida (pelo óxido nítrico que é aumentado) e à supressão da função dos macrófagos (DÖCKE et al., 1997). Em um estudo de Koskela e colaboradores (2009) sobre cicatrização de ferida epidérmica na sepse grave e choque séptico em humanos, observou-se que a restauração da função da barreira epidérmica é prejudicada e o fluxo sanguíneo das feridas é aumentado em pacientes com sepse grave, o que sugere que a sepse agrava a indução de inflamação. Além disso, em modelos animais, foi demonstrado que a infiltração de leucócitos no local da ferida diminuiu na sepse. 2.4 Sinais clínicos e diagnóstico da SRIS/sepse Para cães, dois dos quatro sinais clínicos são necessários para diagnóstico de SRIS: frequência cardíaca maior que 140 bpm, frequência 59 respiratória acima de 30 mrpm, temperatura corporal acima de 39,2°C ou abaixo de 37,2 ºC e leucocitose (acima de 16.000 mm3), leucopenia (6.000 mm3) ou contagem de leucócitos normal com presença de mais de 3% de formas imaturas, como neutrófilos bastonetes (OTTO, 2007; RABELO, 2012; SILVERSTEIN, 2015). O diagnóstico é de sepse quando houver suspeita de infecção ou infecção confirmada por cultura, citologia, histopatologia (OTTO, 2007; RABELO, 2012). O clínico deve realizar hemograma, perfil bioquímico sérico, urinálise e teste de coagulação em pacientes com SRIS e sepse. Em cães com sepse, as alterações hematológicas mais relatadas são anemia, leucocitose e trombocitopenia. Em inflamação ativa, ocorre leucocitose com porcentagem maior de bastonetes (desvio à esquerda) e neutrófilos tóxicos. Coagulação intravascular disseminada (CID), sequestro de plaquetas pelo sistema linforreticular e vasculite resultam em trombocitopenia. A anemia pode estar relacionada com perdas de sangue, hemólise e diminuição da produção de glóbulos vermelhos (BOLLER; OTTO, 2009). Devido ao estresse fisiológico, a hiperglicemia na fase inicial é uma ocorrência comum em pacientes graves. Com o decorrer do tempo, a hipoglicemia é observada, pois há aumento de captação de glicose pelos tecidos e o animal encontra-se em hiporexia/anorexia (RAGHAVAN; MARIK, 2006b). Na sepse ocorre aumento dos valores de lactato por conta da acidose metabólica (aumento da glicólise em condições de anaerobiose ou em caso de perfusão sanguínea reduzida). A hipoalbuminemia é provavelmente devido a perda de albumina através do trato gastrointestinal e de feridas, baixa ingestão de alimento, aumento da permeabilidade vascular e por disfunção hepática (SILVERSTEIN, 2015). Dentre as alterações fisiológicas proporcionadas pela SRIS/sepse encontram-se alterações em nível de consciência e em enzimas hepáticas e renais (THEOBALDO, 2012). Resultados negativos para bactérias em culturas de sangue não exclui a presença de infecção sistêmica (O’BRIEN JR et al., 2007). 2.5 Tratamento Para pacientes em estado de emergência, é preciso que primeiramente haja estabilização pelo protocolo do “ABCDE do trauma” (Airway, Breathing/ 60 Bleeding, Circulation/ Consciousness, Disability/ Drugs, Examination/ Exposure), abordagem que consiste em avaliar a viabilidade das vias aéreas, padrão respiratório (eficácia da ventilação), circulação sanguínea, hemorragia, grau de consciência, estado neurológico, administração imediata de analgesia adequada, exame físico completo e extensão das lesões (FÉLIX, 2010). Além disso, é importante que sujidades, bactérias, debris celulares, corpos estranhos e exsudato sejam imediatamente removidos da ferida com o animal devidamente sedado e/ou sob analgesia (DERNELL, 2006). Quando o animal é mordido no tórax ou abdômen, a possibilidade de penetração dessas cavidades é grande, então faz-se sempre necessário a realização de exames de imagem e até mesmo exploração cirúrgica para avaliar a real extensão dos danos (DERNELL, 2006; HOLT; THAWLEY, 2015). As feridas por mordedura podem apresentar danos maiores do que aqueles que são visualizados em um primeiro momento, denominado “efeito iceberg” (DERNELL, 2006; PAVLETIC, 2018). Uma ferida contendo tecido desvitalizado e infectado é um estímulo contínuo para SRIS/sepse, então o tratamento só será bem-sucedido se este envolver lesionados princípios do manejo de feridas. Como os leucócitos diminuem sua capacidade de matar bactérias em tecidos com baixa tensão de oxigênio, é necessário que todo o tecido necrosado seja excisado na cirurgia. A excisão cirúrgica dos tecidos desvitalizados remove a lesão como fonte de infecção, diminui o estado hipermetabólico do organismo, alivia a dor do paciente e permite o retorno precoce dos tecidos à sua função (FOSSUM, 2014; HOLT; THAWLEY, 2015). O desbridamento dos tecidos é feito da camada mais superficial para a mais profunda e da periferia em direção ao centro da ferida até que um leito viável de derme ou gordura subcutânea seja alcançado, sem lesionar nervos, vasos e tendões (DERNELL, 2006). A eficácia da lavagem de feridas e cavidades corporais está associada ao volume e à pressão da solução exercida nos tecidos para retirar sujidades, matéria orgânica e bactérias da ferida. Contudo, não deverá ser exercida uma pressão muito grande, pois há risco de bactérias penetrarem na ferida e lesão dos tecidos mais profundos. Utiliza-se uma solução isotônica balanceada, como o Ringer com lactato, pois é menos prejudicial aos fibroblastos (FOSSUM, 2014; 61 PAVLETIC, 2018). Tecidos mais profundos devem ser submetidos a cultura e antibiograma após a lavagem (ARIAS et al., 2008). Em feridas profundas, o fechamento primário retardado e a cicatrização por segunda intenção são preferíveis (HOLT; THAWLEY, 2015). O tratamento da sepse é limitado aos cuidados de suporte (OTTO, 2007) e a terapia precoce com antibióticos é priorizada com fármacos bactericidas de amplo espectro por via intravenosa. Na medicina veterinária é comumente utilizado enrofloxacina (5 a 10mg/kg) com ampicilina (20 a 40mg/kg) (principalmente porque as bactérias da pele são Gram-positivas), ou o uso de cefalosporinas de primeira, segunda, ou terceira geração (eficácia com cocos Gram-positivos e bacilos Gam-negativos), como cefalotina 30mg/kg (RABELO, 2012). Para ampliar o espectro para bactérias anaeróbias pode ser adicionado clindamicina ou metronidazol 10mg/kg (DERNELL, 2006; RAGHAVAN; MARIK, 2006a). É importante ter em mente que os antibióticos nunca devem substituir os princípios do cuidado das feridas. É impossível recomendar um único antibiótico contra todas as espécies de patógenos encontradas em uma ferida (ARIAS et al., 2010; MOURO et al., 2010). As alterações laboratoriais encontradas nos pacientes com sepse são leucopenia ou leucocitose, trombocitopenia, anemia e coagulopatias (SILVERSTEIN, 2015), tornando a terapia transfusional parte importante do tratamento de animais com sepse. Recomenda-se fortemente que os pacientes com sepse que tenham anemia sejam transfundidos com concentrado de hemácias para aumento do hematócrito (ROZANSKI; DE LAFORCADE, 2004; RABELO, 2012). A utilização de plasma fresco congelado (PFC) é indicada para repor os fatores procoagulantes, a antitrombina e a albumina perdidos (CALLAN et al., 1996, DUTRA, 2019). A suplementação de ferro parenteral associado ao tratamento com eritropoetina pode resultar em aumento do hematócrito (THRALL et al., 2012). Deve ser administrada analgesia sistêmica multimodal para diminuir ou modular a resposta inflamatória exagerada que resulta em hipercoagulabilidade, disfunção de múltiplos órgãos e resposta inflamatória sistêmica. Os fármacos utilizados para tanto são atuantes em diferentes mecanismos de ação, nas várias etapas da condução da dor para melhor controle da dor (MATHEWS, 2005). Na dor intensa, utiliza-se opioides potentes associados aos antiinflamatórios não 62 esteroidais (AINEs). A metadona é um agente agonista opioide de escolha para o tratamento da dor moderada e intensa em pacientes ambulatoriais (WAGNER, 2009). 2.5.1 Princípios do manejo de feridas Existem quatro princípios do cuidado de ferida que são repetidos enquanto a ferida estiver em fase inflamatória. Inicialmente, os princípios são realizados sob anestesia geral ou sedação até que a ferida atinja a fase proliferativa onde menos sedação será necessária. O primeiro princípio diz respeito a limpeza da ferida. A pele ao seu redor deve ser tricotomizada e em seguida higienizada com clorexidina e álcool. A ferida então é higienizada com solução de diacetato de clorexidina 0,05% (FOSSUM, 2014; HOLT; THAWLEY, 2015). No segundo princípio é realizado o desbridamento cirúrgico, que é a ressecção dos tecidos desvitalizados da ferida e retirada de corpos estranhos. Existem outros tipos de desbridamento, como o mecânico, autolítico e enzimático, mas o mais eficaz é o desbridamento cirúrgico, pois é o mais rápido e preciso (DERNELL, 2006; FOSSUM, 2014). O autolítico é quando o ambiente permanece úmido favorecendo a atuação de enzimas endógenas, removendo apenas o tecido desvitalizado, causando menos dor (DERNELL, 2006; FAHIE; SHETTKO, 2007). O terceiro princípio corresponde à lavagem abundante com solução morna após o desbridamento cirúrgico, que serve para diminuir ainda mais a contaminação bacteriana e fornecer um desbridamento adicional. O quarto princípio do cuidado de feridas é a realização do curativo. É de extrema importância que estes atendam às seguintes exigências: desbridar o tecido necrótico; absorver exsudato; proteger a ferida da dessecação e também maceração; mantê-la aquecida para facilitar a distribuição de oxigênio; favorecer a cicatrização; ser úmida para estimular células viáveis a liberarem fatores de crescimento e estimular a angiogênese; exercer pressão para redução do espaço morto; imobilizar a região; deixar o animal o mais confortável possível; minimizar a dor nas trocas; possuir mínima toxicidade; e, por fim, permitir trocas gasosas com o meio externo (DERNELL, 2006; FAHIE; SHETTKO, 2007; SWAIM; RENBERG; SHIKE, 2010; FOSSUM, 2014; PAVLETIC, 2018). 63 Geralmente, o curativo para fase inflamatória é composto por três camadas (primária, secundária/ intermediária e terciária/ externa) e possui como objetivo desbridar e remover o exsudato. A camada de contato (primária) do curativo tem capacidade de modular a cicatrização, desbridar e absorver exsudato. A camada intermediária (secundária) é volumosa para absorção do exsudato, para proteção e acolchoamento. A camada externa (terciária) mantém as outras camadas no lugar e fornece proteção extra (DERNELL, 2006; SWAIM; RENBERG; SHIKE, 2010; OLIVEIRA, 2012; FOSSUM, 2014; PAVLETIC, 2018). O curativo úmido-seco, também denominado como não aderente, são confeccionados com materiais que fazem com que a primeira camada não seja aderida à ferida, mas que absorve o excesso de exsudato e mantêm as células neoformadas (DERNELL, 2006; FOWLER; SCOTT-WILLIAMS, 2008; SWAIM; RENBERG; SHIKE, 2010). Juntamente ao desbridamento cirúrgico, são utilizados para formar um leito saudável para a cicatrização. Esses curativos são compostos por três camadas. A primeira camada é a de contato, podendo ser uma gaze úmida que irá cobrir toda a extensão da ferida. A segunda camada pode ser outra gaze úmida ou seca, algodão hidrofílico ou compressas, que vão proteger o local e promover conforto. Já a terceira camada será para manter o curativo no lugar e para evitar que haja contaminação externa. Para tanto, pode- se utilizar ataduras de crepom, esparadrapos ou bandagens elásticas (VetWrap®, Coban®) (HARARI, 1993; FOWLER; SCOTT-WILLIAMS, 2008; SWAIM; RENBERG; SHIKE, 2010; CORNELL, 2012; HOLT; THAWLEY, 2015). São exemplos de coberturas utilizadas na primeira camada dos curativos úmido-seco que mantém os fatores de crescimento que estimulam a fibroplasia e epitelização: alginato de cálcio e hidrofibra, que absorvem o excesso de exsudato; hidrocoloide e poliuretano que mantêm o nível de umidade do tecido; e hidrogel que aumenta a umidade do tecido lesionado (CAMPBELL, 2006). Uma vez que a ferida está na fase proliferativa e o tecido começa a granular, o exsudado da ferida diminui bastante. Agora, o curativo precisa manter a ferida hidratada para permitir a angiogênese e epitelização (FOSSUM, 2014; PAVLETIC, 2018). A membrana de hidrocoloide é composta por pectina, gelatina e carboximetilcelulose revestidos por filme adesivo, que, além de proteger a ferida de contaminação externa, estimula a síntese de colágeno, promove 64 desbridamento autolítico, estimula a angiogênese na fase de reparação e reduz a perda de fluidos pelo tecido lesado, pois se transforma em gel quando em contato com a ferida, promovendo um ambiente úmido ideal para a cicatrização (CAMPBELL, 2006; ABRAMO et al., 2008). A cobertura de hidrocoloide possui um período de troca maior, variando de 2 a 7 dias, tornando seu uso economicamente vantajoso. O aspecto do hidrocoloide quando na troca de curativo é semelhante a uma infecção (odor fétido e de cor amarronzada) (CAMPBELL, 2006; FOSSUM, 2014; PAVLETIC, 2018). Em estudo realizado por Abramo e colaboradores (2008), comprovou-se por análises histopatológicas que houve melhor organização de fibroblastos e células inflamatórias, além de menor área de lesão nas feridas de cães que foram tratadas com coberturas de hidrocoloide quando comparada à área da ferida onde não foi aplicada a cobertura de hidrocoloide. Agentes como colagenase (pomada Kollagenase™), papaína e fibrolisina podem ser utilizados nas feridas com o intuito de promover o desbridamento enzimático (DERNELL, 2006). Os antibióticos tópicos podem ser utilizados e devem possuir ação bactericida de amplo espectro e baixo risco de toxicidade ao tecido, sem prejudicar o processo de cicatrização, como sulfadiazina de prata 1% e nitrofurazona. Antibióticos como penicilina, ampicilina, tetraciclina e cefalosporinas podem ser acrescentadas em solução na lavagem da ferida (KRAHWINKEL; BOOTHE, 2006; HEDLUND, 2007; FOSSUM, 2014; PAVLETIC, 2018). Tanto o açúcar como o mel podem ser utilizados para limpeza da ferida, pois eliminam e previnem a infecção e aumentam a formação do tecido de granulação e epitelização. O tratamento com açúcar é interrompido quando se forma um leito de tecido de granulação saudável (O’CONNELL; WARDLAW, 2011; LIMA et al., 2012). Uma terapia alternativa utilizada na medicina veterinária para o tratamento de feridas é a ozonioterapia. O método terapêutico do ozônio medicinal se dá devido às suas propriedades fungicidas e bactericidas, ação oxidante, facilitador no processo de granulação, produção de fibroblastos e organização de colágeno. Atua também como analgésico e anti-inflamatório. São utilizados na forma de soro fisiológico ozonizado como solução de lavagem, óleo de girassol 65 ozonizado e aplicação de gás ozônio em sistema fechado (bag) (MARQUES, 2017). 3 Relato de caso Chegou no plantão da clínica veterinária MyPets, em Jaboticabal, SP, um cão sem raça definida, fêmea, 13 anos, pesando 15kg, na madrugada do dia 18 de fevereiro de 2021. Animal veio encaminhado de outra médica veterinária do município para ficar sob observação na clínica, pois estava prostrado e não conseguia se manter em estação após uma semana do ocorrido de um acidente com outro cão. Na anamnese, obteve-se o histórico do animal, que havia sido mordido por um cão da raça Boiadeiro Bernês há uma semana. Há 3 dias, estava sendo aplicado no local da lesão, pelos tratadores do animal, um composto do inseticida de amplo espectro fenitrotion, cloridrato de clorexidin