UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro ISABEL CRISTINA NUNES DE SOUSA PLANEJAMENTO E CONTROLE DA EXPANSÃO TERRITORIAL URBANA NA IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO DIRETOR Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Geografia Orientador: Prof. Dr. Roberto Braga Rio Claro – SP 2023 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro ISABEL CRISTINA NUNES DE SOUSA PLANEJAMENTO E CONTROLE DA EXPANSÃO TERRITORIAL URBANA NA IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO DIRETOR Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Geografia Comissão Examinadora Prof(a). Dr(a). ROBERTO BRAGA – Orientador(a) IGCE/UNESP/Rio Claro (SP) Prof(a). Dr(a). FABRICIO GALLO IGCE/UNESP/Rio Claro (SP) Prof(a). Dr(a). CENIRA MARIA LUPINACCI IGCE/UNESP/Rio Claro (SP) Prof(a). Dr(a). EVERALDO SANTOS MELAZZO FCT/UNESP/Presidente Prudente (SP) Prof(a). Dr(a). BERNARDO ARANTES DO NASCIMENTO TEIXEIRA CCET/UFSCar/São Carlos (SP) Conceito: Aprovado Rio Claro (SP), 05 de Maio de 2023. AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo nº 158064/2021-6. RESUMO SOUSA, I. C. N. Planejamento e controle da expansão territorial urbana na implementação do plano diretor. 2023. 125 p. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2023. Considerando as externalidades negativas do acentuado crescimento físico das cidades, abordar a sustentabilidade ambiental tornou-se imperativo na avaliação do processo de urbanização e formulação de políticas públicas urbanas. Esta Tese abrange alguns dos entraves à adesão do crescimento urbano mais compacto no âmbito das cidades brasileiras de porte médio, contribuindo para a compreensão da configuração espacial das cidades como resultado das diferentes formas de produção e apropriação do espaço urbano. O intuito central era compreender como estratégias de controle da expansão territorial urbana são incorporadas na política urbana municipal, e as possíveis repercussões espaciais dessa incorporação. Para tanto, foi analisado em que medida a expansão territorial urbana de uma cidade de porte médio do interior paulista (São Carlos) se deu consoante às diretrizes de seu primeiro Plano Diretor pós-Estatuto da Cidade (Lei n. 13.691/2005), por meio da avaliação dos fatores que possam ter influenciado na implementação das diretrizes de controle da expansão urbana. As evidências encontradas na pesquisa e reunidas na Tese auxiliam na compreensão do papel do planejamento urbano e das legislações urbanísticas na regulação do crescimento espacial urbano. Ademais, o exame conjunto dos resultados dos capítulos evidencia os fatores que contribuíram para enfraquecer a concretização das intenções originais do Plano Diretor de 2005 de São Carlos – SP. Palavras-chave: Expansão urbana. Forma urbana. Sustentabilidade urbana. ABSTRACT SOUSA, I. C. N. Planning and control of urban expansion in the master plan implementation. 2023. 125 p. Thesis (Doctorate in Geography) - Institute of Geosciences and Exact Sciences, São Paulo State University, Rio Claro, 2023. Given the negative externalities of the sharp physical growth of cities, it became imperative to integrate environmental sustainability in the assessment of the urbanization process and into urban public policy formulation. This Thesis covers some obstacles to adherence to more compact urban growth within medium-sized Brazilian cities, contributing to the understanding of the spatial configuration of cities as a result of different forms of production and appropriation of urban space. The central aim was to understand how integrated the control strategies of urban expansion into municipal urban policy and its possible spatial repercussions. To this end, I analyzed to what extent the growth of a medium-sized city in the interior of São Paulo (São Carlos) took place according to the guidelines of its first Master Plan after the City Statute (Law n. 13.691/2005) through the evaluation of factors that may have influenced the implementation of urban expansion control guidelines. The evidence found in the research and gathered in the Thesis helps to understand the role of urban planning and legislation in regulating urban spatial growth. Moreover, the joint examination of the results of the chapters shows the factors that contributed to weakening the implementation of the original intentions of the 2005 Master Plan of São Carlos – SP. Keywords: Urban expansion. Urban form. Urban sustainability. Sumário INTRODUÇÃO..........................................................................................................................9 Apresentação..........................................................................................................................9 Estrutura da Tese..................................................................................................................11 CAPÍTULO 1 | ESTRATÉGIAS DE GESTÃO E CONTROLE DO CRESCIMENTO ESPACIAL DAS ÁREAS URBANAS.....................................................................................14 1.1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................14 1.2 GESTÃO DA EXPANSÃO TERRITORIAL URBANA...............................................19 1.2.1 Zoneamento de Proteção Agrícola..........................................................................19 1.2.2 Programa de Compra de Servidão..........................................................................20 1.2.3 Downzoning............................................................................................................20 1.3 GERAÇÕES DA GESTÃO DO CRESCIMENTO URBANO......................................20 1.3.1 Cinturões verdes.....................................................................................................22 1.3.2 Urban Growth Boundary (UGB)............................................................................23 1.4 POLÍTICAS DE CONTENÇÃO DO CRESCIMENTO ESPACIAL URBANO..........24 1.4.1 Taxas de impacto....................................................................................................25 1.5 CRESCIMENTO URBANO: DESEJADO E PROMOVIDO OU DESENCORAJADO E RESTRINGIDO................................................................................................................26 1.5.1 Zoneamento (Inside Game)....................................................................................26 1.5.2 Financiamento de Incremento Fiscal (Inside Game)..............................................27 1.5.3 Simultaneidade/Ordenações de Instalações Públicas Adequadas (Inside Game)...28 1.5.4 Áreas de Financiamento Prioritário (Inside Game)................................................28 1.5.6 Transferência de Direitos de Construção (Mista)...................................................29 1.5.7 Compra de Direitos de Construção (Outside Game)..............................................29 1.6 DINÂMICAS DE CRESCIMENTO ESPACIAL URBANO........................................30 1.7 DISCUSSÃO..................................................................................................................34 1.8 CONCLUSÃO................................................................................................................38 CAPÍTULO 2 | PLANEJAMENTO E REGULAÇÃO DA EXPANSÃO TERRITORIAL URBANA EM PLANOS DIRETORES: ESTUDO DE CASO EM SÃO CARLOS – SP......39 2.1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................39 2.2 MÉTODOS.....................................................................................................................41 2.2.1 Caracterização da área de estudo............................................................................41 2.2.2 Avaliação de planos diretores.................................................................................44 2.3 RESULTADOS...............................................................................................................46 2.3.1 Condicionamento do crescimento horizontal da cidade.........................................54 PD 2005 – Ampliação do perímetro urbano...............................................................54 PD 2016 – Ampliação do perímetro urbano...............................................................54 PD 2005 – Apreciação de propostas de alteração do perímetro urbano.....................55 PD 2016 – Apreciação de propostas de alteração do perímetro urbano.....................55 2.3.2 Combate aos vazios urbanos...................................................................................55 PD 2005 – Identificação e delimitação de vazios urbanos.........................................55 PD 2016 – Identificação e delimitação de vazios urbanos.........................................56 PD 2005 – Desestímulo à retenção especulativa........................................................56 PD 2016 – Desestímulo à retenção especulativa........................................................57 PD 2005 – ZEIS em vazios urbanos...........................................................................57 PD 2016 – ZEIS em vazios urbanos...........................................................................57 2.3.3 Adensamento adequado..........................................................................................58 PD 2005 – Ocupação de áreas ambientalmente frágeis..............................................58 PD 2016 – Ocupação de áreas ambientalmente frágeis..............................................59 PD 2005 – Uso misto do solo.....................................................................................61 PD 2016 – Uso misto do solo.....................................................................................61 PD 2005 – Incentivo/restrição ao adensamento..........................................................61 PD 2016 – Incentivo/restrição ao adensamento..........................................................63 2.4 DISCUSSÃO..................................................................................................................67 2.5 CONCLUSÃO................................................................................................................69 CAPÍTULO 3 | ÁREAS URBANIZADAS EM CIDADES DE PORTE MÉDIO: ANÁLISE COMPARATIVA DE MUNICÍPIOS PAULISTAS NO PERÍODO 2005-2015.......................71 3.1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................71 3.2 MÉTODOS.....................................................................................................................72 3.2.1 Caracterização da área de estudo............................................................................72 3.2.2 Procedimentos metodológicos................................................................................73 3.3 RESULTADOS...............................................................................................................82 3.4 DISCUSSÃO..................................................................................................................89 3.5 CONCLUSÃO................................................................................................................91 CAPÍTULO 4 | CRESCIMENTO ESPACIAL URBANO E IMPLEMENTAÇÃO DE PLANOS DIRETORES: ESTUDO DE CASO EM SÃO CARLOS – SP...............................92 4.1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................92 4.2 MÉTODOS.....................................................................................................................94 4.2.1 Caracterização da área de estudo............................................................................94 4.2.2 Avaliação de conformidade e legislação urbanística..............................................96 4.3 RESULTADOS.............................................................................................................100 4.3.1 Avaliação de conformidade com o Plano Diretor.................................................105 4.3.2 Legislação urbanística instituída..........................................................................109 4.4 DISCUSSÃO................................................................................................................112 4.5 CONCLUSÃO..............................................................................................................115 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................117 REFERÊNCIAS......................................................................................................................120 APÊNDICES...........................................................................................................................132 APÊNDICE A – Resultados (HTML) para 2005, das análises do vizinho mais próximo, realizadas no software QGIS..............................................................................................132 APÊNDICE B – Resultados (HTML) para 2015, das análises do vizinho mais próximo, realizadas no software QGIS..............................................................................................139 ANEXOS................................................................................................................................146 ANEXO A – Resposta da Secretaria Municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano (SMHDU) da Prefeitura de São Carlos à solicitação feita via Lei de Acesso à Informação – LAI.....................................................................................................................................146 ANEXO B – Proc.21426_2022-FLS 07.............................................................................147 ANEXO C – Decreto 199.19 – digital...............................................................................148 ANEXO D – EDUARDO ABDELNUR............................................................................149 ANEXO E – Ipê-Mirim – ABDELNUR II-sem detalhes...................................................150 ANEXO F – MAT-134379.................................................................................................151 ANEXO G – MAT-161306.................................................................................................156 INTRODUÇÃO Apresentação Embora não seja consensual, por diversas razões o crescimento urbano mais compacto é considerado mais alinhado aos preceitos da sustentabilidade urbana. É inegável, no entanto, a existência de controvérsias a respeito da pertinência e aplicabilidade de se aspirar um crescimento mais compacto em países como o Brasil. Ainda assim, trata-se de uma aspiração presente em diversas cidades brasileiras. Apesar de sua importância, o propósito desta Tese não foi, necessariamente, discutir sobre a relevância do tema no contexto brasileiro, mas sim apurar o que acontece após a incorporação de tal objetivo na política urbana municipal de uma cidade. Em outras palavras, o intuito foi investigar porque o crescimento urbano mais compacto pode não se concretizar mesmo com um planejamento voltado para seu alcance. Buscou-se com isso evidenciar, ainda que de maneira indireta, possíveis entraves à sua adesão no âmbito das cidades brasileiras de porte médio. Portanto, a Tese abrange a identificação dos mecanismos que contribuem para um crescimento urbano disperso, a partir de uma perspectiva político-institucional, com ênfase no papel dos governos locais na regulação da expansão territorial urbana (WEI; EWING, 2018). Para demonstrar esse processo, uma cidade de porte médio1 do Estado de São Paulo (São Carlos) foi escolhida como objeto de estudo, de modo a averiguar como o planejamento e a regulação da expansão urbana repercutiram em seu crescimento territorial. O município de São Carlos – SP foi escolhido como estudo de caso porque a elaboração de seu primeiro Plano Diretor pós-Estatuto da Cidade foi pautada por discussões a respeito da necessidade de um crescimento urbano mais compacto, tendo sido tal modelo posteriormente incorporado ao documento final aprovado. 1 Embora seja notório que “[a]s disparidades entre as cidades estejam em seu nível desequilibrado de desenvolvimento social e econômico e em sua competitividade intergovernamental, mais do que no tamanho de sua população” (JIA et al., 2020, p. 6, tradução própria), adotou-se a “distinção demográfica do IBGE segundo a qual municípios de porte médio têm população entre 100 mil e 500 mil habitantes” (GOULART; TERCI; OTERO, 2015, p. 127), por ser o critério de classificação que tem sido “mais utilizado para identificar as cidades médias, pelo menos como primeira aproximação” (AMORIM FILHO; SERRA, 2001, p. 3), a despeito de suas inerentes limitações e da existência de terminologias distintas, tais como cidades médias ou intermediárias, que englobam não apenas a variável populacional, como também o papel desempenhado pelas localidades na rede urbana (VERGARA; SALAZAR, 2021). 9 O intuito central era compreender como estratégias de planejamento e controle da expansão territorial urbana foram incorporadas na política urbana municipal, e se houve repercussões espaciais dessa incorporação. Para tanto, foi analisado em que medida a expansão territorial urbana de São Carlos – SP se deu consoante às diretrizes de seu primeiro Plano Diretor pós-Estatuto da Cidade (Lei nº 13.691/2005). A hipótese era de que, embora almejado na política urbana municipal, o alcance de um crescimento urbano mais compacto teria sido fragilizado pela desarticulação entre os objetivos do Plano Diretor e a posterior regulação da expansão territorial urbana. Isso estaria atrelado à “primazia institucional do Executivo no processo decisório” (GOULART; TERCI; OTERO, 2016, p. 474), aliado à priorização dos interesses do mercado imobiliário. Conjuntura que se refletiria em flexibilizações nas normas que influenciam na regulação da expansão territorial urbana (SANTORO, 2014a), visto que “a atração de investimentos depende de incentivos diversos e de abrandamento de normas urbanísticas restritivas” (GOULART; TERCI; OTERO, 2016, p. 471). Teve-se como premissa o papel determinante da implementação dos instrumentos de regulação urbana na materialização do que foi previsto no Plano Diretor, especialmente no caso brasileiro, em que tal plano frequentemente serve às necessidades ideológicas e econômicas das classes hegemônicas, “não legitimando ação concreta do Estado, mas, ao contrário, procurando ocultá-la” (VILLAÇA, 2015, p. 191). Isso ajudaria a explicar porque um crescimento urbano mais compacto não se concretizaria, mesmo com um planejamento voltado para seu alcance. O propósito, portanto, era avançar na compreensão de como são operados os mecanismos que contribuem para que isso se perpetue, identificando como a aprovação de legislações posteriores ao Plano Diretor, conduzidas sob a lógica de favorecimento do mercado imobiliário, apresentaram tendência de abandono dos preceitos de um crescimento mais compacto, possivelmente acarretando a incompatibilidade entre as áreas de expansão territorial urbana, previstas no Plano Diretor, e as efetivamente urbanizadas. Para tanto, foi analisado o crescimento urbano no período de vigência do Plano Diretor de um município que, a princípio, pautou-se em um planejamento menos permissivo à dispersão urbana. Em síntese, tendo em vista o contexto neoliberal contemporâneo, no qual o Estado é essencial ao processo de produção capitalista do espaço urbano, por viabilizar um arcabouço jurídico-político legitimador (CANETTIERI, 2017), pretendeu-se demonstrar as 10 prováveis discrepâncias entre o que foi estabelecido no principal instrumento da política de ordenamento municipal, e a posterior regulação do crescimento espacial urbano. Foram averiguados os possíveis obstáculos à regulação da expansão territorial urbana em função da modificação de legislações urbanísticas posteriores, considerando a existência de “múltiplas associações entre elites políticas locais e produtores do urbano” (MARQUES, 2016, p. 29) que, geralmente, são os que mais têm a ganhar com as decisões tomadas no âmbito do ordenamento territorial. Os resultados contribuem para aprofundar os conhecimentos sobre a realidade urbana de cidades brasileiras de porte médio, atentando-se à forma como a busca pela sustentabilidade urbana é instrumentalizada em seus planos diretores. Ademais, o estudo se insere nas discussões a respeito das pressões que as municipalidades enfrentam para reduzir a dispersão urbana, ao mesmo tempo em que buscam crescimento econômico (TØNNESEN, 2015). Em síntese, na pesquisa examinou-se a regulação da expansão territorial urbana na produção do espaço urbano, explorando as tensões entre a dimensão espacial da sustentabilidade e os processos de crescimento urbano, impulsionados pelo setor privado com anuência do poder público municipal. Foi adotada uma abordagem empírica para analisar a aplicação prática de conceitos teóricos, como o de cidade compacta (OLIVEIRA; PINHO, 2010). Estrutura da Tese A Tese está organizada em quatro capítulos independentes, cada um com seu objetivo específico, que se articulam para alcance do objetivo geral da Tese. Os capítulos podem ser lidos separadamente, sem comprometer sua compreensão. As referências bibliográficas estão concentradas no final da Tese, e não ao final de cada capítulo. Exceto pelo primeiro, os demais capítulos trazem a caracterização do estudo de caso, com contextualizações sobre o município de São Carlos – SP que se complementam. No Capítulo 1 é feita uma revisão bibliográfica sobre algumas das principais estratégias de gestão da expansão territorial urbana, bem como suas implicações socioambientais, de modo a contribuir para a compreensão mais abrangente do tema em 11 países do chamado Sul Global2, mais especificamente no caso da América Latina3, com recorte para a realidade das cidades brasileiras de porte médio, sem negligenciar, no entanto, a pertinência da transferência de princípios provenientes de experiências e contextos político-econômicos distintos (YUNDA; SLETTO, 2020). A intenção foi trazer, a partir de uma análise integrativa da literatura, um balanço histórico sobre a evolução nas formas de lidar com o crescimento espacial das cidades, de maneira a apresentar como o tema tem sido abordado e quais as aproximações que podem ser feitas com o contexto brasileiro. No Capítulo 2 é avaliado se (e como) estratégias de planejamento e controle da expansão territorial urbana foram incorporadas nos dois planos diretores de São Carlos – SP pós-Estatuto da Cidade. Para tanto, foi analisada a incorporação de tais estratégias nos planos diretores de 2005 e de 2016, via definição de três eixos de avaliação sob o prisma da compacidade urbana: Condicionamento do crescimento horizontal da cidade; Combate aos vazios urbanos; e Adensamento adequado. O intuito foi identificar se as prerrogativas de crescimento urbano mais compacto foram integradas aos mencionados planos diretores, sendo verificado se houve condicionantes que garantissem sua aplicabilidade. No Capítulo 3 é averiguado se houve um crescimento urbano mais compacto durante o período de vigência do Plano Diretor de 2005 de São Carlos – SP. Para tanto, foram feitas análises comparativas da distribuição e expansão das áreas urbanizadas de São Carlos e de 24 outros municípios paulistas, com base em três dimensões diretamente relacionadas ao crescimento urbano mais compacto: densidade urbana, dispersão e desocupação (proporção de vazios intraurbanos na área urbanizada). O propósito foi obter uma compreensão mais abrangente do processo de expansão territorial são- carlense, situando-o em relação a municípios de porte populacional semelhante. No Capítulo 4 é analisado se os instrumentos de regulação urbana visaram o controle da expansão territorial urbana em São Carlos – SP, via identificação de medidas 2 O Sul Global aqui tratado se refere à abordagem expressa no trabalho de Wallerstein (2004), quando o autor se refere à divisão mundial dos países em três zonas – centro, semiperiferia e periferia, sendo que este último incluiria países de desenvolvimento tardio, fortemente dependentes da exportação de matérias-primas, e importadores de maquinário e tecnologias avançadas dos países centrais (REN, 2021). Ainda que possa ser considerada uma ferramenta conceitual reducionista, por incorporar de forma homogênea diversos regimes sociopolíticos e territórios geográficos, a categorização em Sul Global torna-se relevante ao ser empregada em oposição ao Norte Global (DIANATI, 2021), visto as marcantes diferenças entre cidades do Sul e do Norte Global (SCHINDLER, 2017). 3 Composta pelos 15 países da América do Sul e do Caribe, a América Latina é, simultaneamente, a região mais urbanizada (com a maior proporção de habitantes urbanos) e com algumas das maiores desigualdades sociais e econômicas do mundo, e abriga alguns dos ecossistemas mais ricos em biodiversidade do planeta, incluindo vários hotspots de biodiversidade (PAUCHARD; BARBOSA, 2013). 12 legislativas que tenham interferido direta ou indiretamente na regulação da expansão territorial urbana no mencionado município, de modo a determinar se ocorreram flexibilizações e adaptações legislativas. Também é verificado se houve compatibilidade entre as áreas de expansão urbana do Plano Diretor de 2005 e as efetivamente urbanizadas, por meio do cálculo de seis indicadores de configuração espacial. Tais indicadores possibilitaram diferenciar e comparar o que foi planejado (zoneamento) e o que efetivamente aconteceu (urbanização), permitindo avaliar o grau de conformidade do crescimento espacial urbano em relação ao Plano Diretor, isto é, as repercussões físico- espaciais da implementação do plano no período. Por fim, nas Considerações Finais são abordadas as implicações dos resultados e apresentadas as conclusões gerais da Tese, de forma integrada, considerando as principais constatações de cada capítulo. O Quadro 1 resume o delineamento da pesquisa conduzida. Quadro 1 – Desenho de pesquisa Premissas A implementação dos instrumentos de regulação urbana é determinante na materialização do que é previsto no Plano Diretor. A forma urbana influencia (mas não determina) a sustentabilidade das cidades. Questão de pesquisa Como o controle da expansão territorial urbana foi incorporado no Plano Diretor e quais foram suas repercussões espaciais? Objetivo geral Compreender como estratégias de planejamento e controle da expansão territorial urbana foram incorporadas no Plano Diretor de uma cidade de porte médio do interior paulista, e se houve repercussões espaciais dessa incorporação. Hipótese Embora almejado na política urbana municipal, o crescimento urbano mais compacto teria sido fragilizado pela desarticulação entre os objetivos do Plano Diretor e a posterior regulação da expansão territorial urbana. Universo São Carlos – SP: município brasileiro de porte médio, não-metropolitano e que, a princípio, pautou-se em um planejamento menos permissivo à dispersão urbana. Recorte temporal Período de vigência do primeiro Plano Diretor pós-Estatuto da Cidade (2005 a 2016). Fonte: Elaboração própria (2021). 13 CAPÍTULO 1 | ESTRATÉGIAS DE GESTÃO E CONTROLE DO CRESCIMENTO ESPACIAL DAS ÁREAS URBANAS 1.1 INTRODUÇÃO Perante os desafios prementes das mudanças climáticas globais no contexto do Antropoceno1 (FOX; GOODFELLOW, 2021), as cidades são atualmente consideradas determinantes para o aumento da sustentabilidade (SILVA; VERGARA-PERUCICH, 2021), sendo responsáveis por quase 70% das emissões mundiais de carbono e consumo de energia (FU; ZHANG, 2017). Esse papel de destaque tem sido reforçado por uma série de cúpulas globais, incluindo a Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU, realizada em Copenhague (Dinamarca) em 2009, e a Conferência de Paris (França), ocorrida em 2015, que enfatizaram a responsabilidade das cidades na redução das emissões de carbono, demandando uma ação coletiva global e coordenada (FU; ZHANG, 2017). A importância das áreas urbanas também foi reconhecida pelas Nações Unidas (ONU) em sua Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que contempla 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A urbanização2 e o crescimento urbano3 proporcionam impactos ambientais significativos na escala local, especialmente no que concerne às perturbações na paisagem natural (JACOB; DRUMMOND; BARRETO, 2021). No entanto, sob uma perspectiva mundial, tais processos são considerados relativamente menos impactantes, especialmente quando acompanhados do desenvolvimento e implementação bem- sucedidos de políticas ambientais rigorosas (PONCE DE LEON BARIDO; MARSHALL, 2014). No tocante à forma urbana resultante de ambos processos, há que se destacar seu papel na mitigação das mudanças climáticas (CONDON; CAVENS; MILLER, 2009; OECD, 2010), com influência na produtividade econômica (DUQUE et al., 2022) e na eficiência energética (ARMSTRONG; NISI; MILLARD-BALL, 2022). Nessa vertente, o uso mais eficiente do solo é um dos principais argumentos favoráveis às formas urbanas mais compactas (YAO et al., 2022), consideradas pré-condição para redução de deslocamentos por veículos motorizados individuais (HERNÁNDEZ-PALACIO, 2017), com 1 Época geológica na qual o ser humano é considerado “vetor dominante de mudanças na Terra” (FRACALANZA et al., 2022, p. 55). Embora ainda não exista um consenso na literatura sobre quando teria se iniciado essa nova época geológica, o conceito é amplamente utilizado na literatura científica (FRACALANZA et al., 2022). 2 Acréscimo na proporção da população vivendo em áreas urbanas (LI; VERBURG; VAN VLIET, 2022). 3 Pode ser compreendido tanto como urbanização (parcela demográfica urbana) quanto como expansão física das áreas urbanas (MAHTTA et al., 2022). 14 expressivos benefícios associados à expansão territorial urbana4 menos dispersa e mais adensada5. Em outras palavras, à medida que a urbanização se intensifica no mundo, a compacidade urbana desponta como uma das formas de minimizar o uso da terra, a degradação ambiental e as emissões de CO2 (HAARSTAD et al., 2022; MONKKONEN et al., 2022). Por conseguinte, “o ideal de cidade compacta tornou-se parte da ortodoxia política para lidar com as mudanças climáticas e outros desafios de sustentabilidade” (HAARSTAD et al., 2022, p. 1, tradução própria), sendo operacionalizado em um dos 17 ODS da ONU. Dentre os 231 indicadores utilizados para monitorar o progresso no alcance das metas e objetivos da Agenda 2030, o indicador 11.3.1 (Razão da taxa de consumo do solo pela taxa de crescimento da população) dá suporte à Meta 11.3 dos ODS (“Até 2030, aumentar a urbanização inclusiva e sustentável, e as capacidades para o planejamento e gestão de assentamentos humanos participativos, integrados e sustentáveis, em todos os países”). Esse indicador visa avaliar a eficiência no uso do solo pelas cidades e regiões urbanas, medindo a razão entre a taxa de consumo espacial da terra em relação à taxa de crescimento de suas populações, com o consumo de terra per capita sendo indicado pela expansão das áreas construídas em detrimento de outros tipos de uso ou cobertura do solo (ESTOQUE et al., 2021). Em outras palavras, o intuito é “atingir uma taxa de crescimento da área construída que não exceda a taxa de crescimento da população” (LI; VERBURG; VAN VLIET, 2022, p. 2, tradução própria), por meio de uma abordagem simplistas, mas escalável (SCHIAVINA et al., 2022). Isso porque o crescimento das áreas urbanizadas acontece de variadas formas globalmente, nem sempre de modo compacto, sendo comum o padrão residencial disperso e de baixa densidade (LEMOINE-RODRÍGUEZ; INOSTROZA; ZEPP, 2020), resultante da rápida e descontrolada extensão física irrestrita de manchas urbanas descontínuas, que ‘saltam’ (leapfrog) para longe de áreas urbanas previamente existentes, avançando sobre áreas rurais, gerando alta dependência dos meios de transporte motorizados e levando à fragmentação do território. Nessa conjuntura, apesar das variações temporais e regionais (ESTOQUE et al., 2021), em geral as densidades 4 Processo dinâmico de conversão de ambientes naturais ou rurais em superfícies impermeáveis (espaços artificialmente construídos) pelo crescimento físico de áreas urbanas (CHAKRABORTY et al., 2022). 5 Densidade urbana é comumente definida como a razão entre população urbana e área, ou como terrenos construídos ou unidades habitacionais por área (MAHTTA et al., 2019). Logo, adensamento urbano não significa apenas verticalização, podendo ser alcançado, por exemplo, via aumento na quantidade de habitantes por domicílio (PEREIRA et al., 2022b). 15 populacionais globais têm diminuído nas últimas décadas, de modo que as áreas urbanizadas vêm crescendo mais rápido do que as populações urbanas (GÜNERALP et al., 2020; LI; VERBURG; VAN VLIET, 2022). Esse padrão de crescimento espacial urbano não possui uma definição única e se manifesta de diferentes formas entre as regiões globais, sendo dinâmico (SILVA; VERGARA-PERUCICH, 2021), mas geralmente caracteriza o chamado ‘espraiamento urbano’ (urban sprawl)6 - uma forma de expansão territorial urbana indesejável, do ponto de vista socioambiental (AMPONSAH et al., 2022), em que há crescimento urbano disperso e de baixa densidade (POURTAHERIAN; JAEGER, 2022), e que desde a década de 1960 tornou-se um problema irrestrito à América do Norte e à Europa Ocidental, tendo se propagando para diversas cidades de países periféricos (AHANI; DADASHPOOR, 2021). Chakraborty et al. (2022), por exemplo, em uma análise pautada na divisão regional mundial, observaram que a expansão territorial urbana de cidades do Norte Global7 tem sido majoritariamente impulsionada pela intensificação no uso e ocupação do solo, via preenchimento de espaços vazios em áreas construídas, ao contrário do que tem ocorrido no Sul Global8, onde as cidades têm se expandido horizontalmente. Os supramencionados autores ressaltam, contudo, que cidades localizadas no Norte Global tiveram, no passado, uma extensão espacial comparativamente muito maior e densidades demográficas três vezes menores, em média, do que cidades do Sul Global9, implicando uma pronunciada desigualdade historicamente estabelecida no consumo per capita de terra (CHAKRABORTY et al., 2022). Como impactos de um crescimento extensivo, tem-se a desnecessária conversão de áreas protegidas (LI et al., 2022a) e terras agrícolas, perda e diminuição da conectividade de habitats (hotspots globais de biodiversidade, por exemplo), além de aumento na fragmentação da paisagem natural do entorno, com consequente redução da integridade dos ecossistemas e da conectividade dos corredores ecológicos, além do 6 O termo 'urban sprawl' tem suas origens na literatura científica anglo-saxônica, estando associado ao processo de suburbanização norte-americana no contexto da recuperação econômica pós 2ª Guerra Mundial, impulsionada pelo uso crescente de automóveis e pela expansão do sistema de autoestradas interestaduais (SILVA; VERGARA- PERUCICH, 2021). 7 Europa, América do Norte, Austrália, Nova Zelândia e Oceania. 8 Ásia Central e Meridional, Ásia Oriental e Sudeste Asiático, América Latina e Caribe, Norte da África e Ásia Ocidental e África Subsaariana. 9 Para Cervero (2013), o fato de a posse de veículos ser menor nos países do Sul Global, é um dos motivos para que, historicamente, cidades desses países apresentassem densidades urbanas mais altas, pois isso fazia com que as pessoas tivessem que residir em locais mais próximos das atividades diárias (emprego, estudo, lazer, etc.). À medida que os rendimentos foram aumentando nesses países, no entanto, as densidades urbanas foram diminuindo, embora permaneçam mais elevadas do que no Norte Global. 16 agravamento dos efeitos de borda (LI et al., 2022a), ocasionando mudanças significativas na migração, abundância e composição de espécies, bem como em declínios de biodiversidade (LI et al., 2022a; SIMKIN et al., 2022). Complementarmente, como parte expressiva da expansão urbana ocorre sobre pastagens e florestas (REN et al., 2022), tem-se o deslocamento do uso da terra (particularmente de terras agrícolas) como efeito indireto, que pode levar à perda de habitat em outras regiões, agravando os declínios de biodiversidade (LI et al., 2022a), comprometendo a qualidade dos ambientes naturais, e podendo contribuir para a extinção de espécies (REN et al., 2022). Tais efeitos adversos levaram muitos países a adotarem estratégias de contenção | gestão (Sprawl containment | Urban growth management) do crescimento espacial urbano (AMPONSAH et al., 2022; HORN, 2015). O próprio conceito de compacidade urbana “emergiu do discurso de contenção da expansão urbana” (AMPONSAH et al., 2022, p. 2, tradução própria). No Norte Global, as políticas de contenção urbana foram aplicadas durante décadas para impedir a urbanização de grandes extensões de terra, já no Sul Global, sua inserção a partir de meados da década de 1980 objetivou conter o avanço da ocupação urbana sobre áreas ambientalmente relevantes (HORN, 2020a). Logo, quando adotadas no Norte Global, tais medidas visaram o racionamento de terras, tendo auxiliado diversas cidades destes países a alcançarem uma expansão territorial urbana menos dispersa (CHAKRABORTY et al., 2022), sendo escassas, no entanto, abordagens sobre as implicações da adoção de tais estratégias em países do Sul Global (AMPONSAH et al., 2022; HORN, 2015). Essa carência se justifica pelas marcantes discrepâncias nas dinâmicas de expansão territorial urbana entre as duas regiões, o que demanda “o desenvolvimento e o uso de estratégias de gestão da expansão localmente apropriadas, além da adaptação das medidas existentes aos contextos locais” (AMPONSAH et al., 2022, p. 2, tradução própria). Neste texto são abordadas algumas das estratégias existentes de gestão da expansão territorial urbana, bem como possíveis limitações e implicações socioambientais da implementação de tais estratégias em países do Sul Global, onde a sustentabilidade urbana, na maioria dos casos, é subserviente à sobrevivência básica (HORN, 2020a), especificamente no contexto da América Latina, em que o crescimento espacial urbano é constantemente acompanhado pela segregação socioespacial (SILVA; VERGARA- PERUCICH, 2021), e há uma “desigualdade sistêmica na distribuição dos benefícios da urbanização” (FIX; ARANTES, 2022, p. 894, tradução própria). 17 O intuito é contribuir para compreensão mais abrangente do tema a partir de uma perspectiva com recorte para a realidade e as multifacetadas dinâmicas das cidades brasileiras de porte médio10. Isso porque cidades pequenas e médias têm se mostrado mais dinâmicas, apresentando um intenso processo de expansão territorial urbana em curso (LEMOINE-RODRÍGUEZ; INOSTROZA; ZEPP, 2020). Especificamente no caso das cidades brasileiras de porte médio (entre 100 mil e 500 mil habitantes), a partir dos anos 1990 estas passaram a ter um crescimento populacional mais acelerado em relação aos centros urbanos consolidados do país (PEREIRA et al., 2022b), levando a uma redução na tendência à concentração nos grandes centros urbanos. Ademais, embora tenham se tornado mais densas11 no período entre 1990 e 2014, as cidades brasileiras de porte médio apresentaram uma tendência geral de aumento da fragmentação de suas áreas urbanas e diminuição da compacidade (aumento do espraiamento), crescendo de modo mais irregular, com formação de vazios urbanos (PEREIRA et al., 2022b). As questões levantadas abarcam discussões sobre “soluções padronizadas de planejamento incapazes de articular as singularidades culturais, históricas, socioeconômicas, políticas e geográficas” (SILVA; VERGARA-PERUCICH, 2021, p. 4), englobando a pertinência da inserção de princípios de planejamento urbano advindos de experiências e contextos socioculturais e político-econômicos substancialmente distintos (YUNDA; SLETTO, 2020; DIANATI, 2021), sem menosprezar, no entanto, a aplicabilidade e a importância da transferência de políticas entre países (AMPONSAH et al., 2022). O texto deste capítulo estrutura-se em oito partes, contando com essa seção introdutória. Na segunda seção são descritas algumas das estratégias iniciais adotadas para gestão da expansão territorial urbana, com destaque para o papel das mesmas na preservação de áreas rurais voltadas à produção agrícola. Na terceira seção são apresentadas diversas abordagens existentes de gestão do crescimento urbano, classificando-as temporalmente em diferentes gerações. A quarta seção engloba as políticas de contenção do crescimento urbano sob a perspectiva de intervenções de planejamento e de intervenções financeiras. Na quinta seção, uma outra categorização emerge, de maneira que a gestão do crescimento para contenção da expansão territorial urbana é agrupada em dois componentes, com o crescimento urbano sendo promovido 10 Cidades de porte médio seriam aquelas definidas pelo tamanho de suas populações. “Comumente no Brasil identificam-se os municípios com esse perfil dentre aqueles situados no intervalo demográfico entre 100 mil e 500 mil habitantes, ainda que não exista um consenso absoluto em torno dessa faixa” (OTERO, 2017, p. 5–6). 11 “[…] um aumento de densidade urbana tende a aumentar a compacidade e contiguidade das cidades quando ocorre em áreas consolidadas, mas também pode contribuir para fragmentação e espraiamento quando ocorre em áreas mais afastadas” (PEREIRA et al., 2022b, p. 43). 18 ou restringido conforme cada componente. Na sexta seção, composta pelos determinantes contextuais da expansão territorial urbana, são exploradas características estruturais, econômicas e políticas que restringem o controle da expansão territorial urbana no Sul Global, especialmente no âmbito da América Latina e do Brasil mais especificamente. A sétima seção reúne os principais impasses e desafios aos mecanismos de gestão e controle do crescimento espacial urbano, sendo discutidos condicionantes do Sul Global, especificamente no âmbito da América Latina e do Brasil particularmente. A oitava e última seção é constituída pelas considerações finais. 1.2 GESTÃO DA EXPANSÃO TERRITORIAL URBANA A gestão do crescimento espacial se tornou instrumental para promoção do aumento da compacidade urbana – com ênfase em densidades populacionais mais elevadas, diversidade de usos do solo, ruas mais interconectadas, e favorecimento do transporte ativo via destinos mais acessíveis e próximos. No entanto, seu propósito original era a preservação de terras agrícolas (EWING et al., 2022). O Zoneamento de Proteção Agrícola tem papel destacado nessa vertente, por visar proteger, na esfera local, determinados territórios contra usos incompatíveis à atividade agrícola (EWING et al., 2022), assim como o chamado Programa de Compra de Servidão (Easement Purchase Programme), que permite a proteção de terras agrícolas pela compra de servidões de conservação agrícola de proprietários de terras (AMPONSAH et al., 2022). Uma estratégia complementar de gestão do crescimento urbano, sob tal perspectiva, seria o chamado Downzoning, definido como o processo de redefinição do zoneamento para usos menos intensivos, como comercial e residencial (AMPONSAH et al., 2022). 1.2.1 Zoneamento de Proteção Agrícola Trata-se de uma classificação de zoneamento primário que permite a manutenção de espaços abertos, como pastagens, produção agrícola e pecuária, bem como agricultura de pequeno porte (EWING et al., 2022). Ademais, tal classificação de zoneamento também pode ser aplicada a porções do território destinadas para agricultura urbana, conforme designado no plano diretor municipal, bem como outros usos compatíveis e de natureza aberta, como cemitérios, parques e usos recreativos em terrenos com condições ambientais favoráveis (EWING et al., 2022). 19 O zoneamento agrícola pode ser classificado como exclusivo, em que se restringe completamente qualquer atividade não agrícola, ou não exclusivo, em que a construção de unidades habitacionais não agrícolas é permitida, mas com restrições ao adensamento, a exemplo da estipulação de tamanhos maiores de lote (EWING et al., 2022). 1.2.2 Programa de Compra de Servidão O chamado Programa de Compra de Servidão (Easement Purchase Programme) impede que empreendedores privados comprem terras agrícolas e as convertam em usos não agrícolas, limitando o uso de determinadas glebas rurais a atividades compatíveis com o uso agrícola, mas mantendo a terra sob controle do proprietário que se dispuser, voluntariamente, a participar do programa (AMPONSAH et al., 2022). 1.2.3 Downzoning Embora não seja tradicionalmente destinado a conter a expansão territorial urbana, pois permite uma urbanização de baixa densidade, o Downzoning tem sido utilizado consoante às políticas de contenção, de modo a reduzir a taxa de urbanização e ocupação do solo em áreas ambientalmente sensíveis, como planícies inundáveis, mantendo espaços abertos e reservando terras agrícolas (AMPONSAH et al., 2022). Quando utilizado como medida de contenção, o Downzoning envolve, principalmente, a redefinição do zoneamento em terras passíveis de urbanização ou já urbanizadas, redefinindo-as para usos agrícolas ou espaços livres de construção (AMPONSAH et al., 2022). 1.3 GERAÇÕES DA GESTÃO DO CRESCIMENTO URBANO Horn (2015) destaca que as diferentes abordagens existentes de gestão do crescimento urbano têm sido categorizadas em várias “gerações”, sugerindo três momentos discerníveis. A primeira geração, iniciada após a II Guerra Mundial, objetivava controlar o crescimento das cidades que se industrializavam, mantendo espaços abertos (não construídos), sendo que a ferramenta mais popular para tal objetivo, na época, eram os chamados cinturões verdes (greenbelts)12. Os cinturões verdes possuem distintas 12 Inspirados nas “Cidades Jardim” de Ebenezer Howard, os primeiros cinturões verdes foram estabelecidos no Reino Unido no final do século XIX – o primeiro deles foi demarcado em Londres na década de 1930 (HORN, 2015; POURTAHERIAN; JAEGER, 2022). 20 finalidades, podendo se restringir à prevenção do espraiamento urbano (urban sprawl) ou possuir propósitos adicionais, como proteção ambiental e provisão de serviços ecossistêmicos (KIRBY et al., 2023). São implementados como áreas protegidas/preservadas demarcadas por espaços livres vegetados/não construídos ao redor de cidades, além do qual o crescimento urbano adicional seria restringido ou não permitido (HORN, 2015; POURTAHERIAN; JAEGER, 2022). Podem ser designados para fins de recreação ou para proteção/preservação de áreas com restrições ambientais via instrumentos governamentais, visando conter a expansão territorial urbana (AMPONSAH et al., 2022). Em outras palavras, cinturões verdes são “zonas fechadas em torno de uma cidade ou região urbana, fortemente controladas e protegidas” para evitar que sejam urbanizadas (AHANI; DADASHPOOR, 2021, p. 7, tradução própria). A segunda geração de gestão do crescimento urbano, iniciada a partir do início da década de 1970, “introduziu o reconhecimento de que colocar um limite no crescimento precisava ser equilibrado com estratégias para acomodar ou, pelo menos, lidar com o crescimento futuro” (HORN, 2015, p. 3, tradução própria). As Bordas urbanas ou Fronteiras de Crescimento Urbano (Urban edges ou Urban Growth Boundaries – UGBs), seriam exemplos de instrumentos dessa segunda geração. Tratam-se de limites institucionais existentes em vários estados norte-americanos (Oregon, Iowa, Califórnia, Tennessee, Washington e Boston) e em outros países, como Sydney (Austrália), Copenhague (Dinamarca), e cidades do Reino Unido. Tais limites foram estabelecidos para contenção da expansão territorial urbana, redirecionando o crescimento espacial para uma forma urbana mais integrada e compacta (HORN, 2015). Diferentemente dos cinturões verdes, a UGB não é um espaço físico, mas uma linha imaginária demarcada para distinguir uma área urbana de suas áreas rurais adjacentes (AMPONSAH et al., 2022; POURTAHERIAN; JAEGER, 2022). Originada nos EUA, a terceira geração de gestão do crescimento urbano é sintetizada, segundo Horn (2015), pelo movimento que ficou conhecido como Crescimento Inteligente (Smart Growth). Assim como no caso da segunda geração, o crescimento inteligente também não almejava interromper o crescimento, nem necessariamente desacelerá-lo, mas sim gerenciar a expansão territorial urbana, “priorizando a intensificação e o desenvolvimento de usos mistos do solo, fornecendo alternativas de transporte e opções de moradia e preservando as características do patrimônio natural” (HORN, 2015, p. 6, tradução própria). O Smart Growth seria uma 21 “teoria [norte-]americana de gestão de crescimento” (HORN, 2015, p. 6, tradução própria), não sendo apontado, pela mencionada autora, nenhum instrumento ou ferramenta específicos atribuídos à tal geração. Sob uma perspectiva diferente, Ewing et al. (2022) consideram a gestão do crescimento (growth management) como sinônimo de crescimento inteligente (smart growth), com este último se apoiando em incentivos espacialmente específicos, em vez de regulamentos de uso e ocupação do solo. Apesar de terem se iniciado em épocas diferentes (décadas de 1970 e 1990, respectivamente), ambos se esforçariam para atingir um crescimento urbano mais compacto, com sobreposição de ferramentas e propósitos, sendo razoável pensar no crescimento inteligente como objetivo final e na gestão do crescimento como o meio para alcançar tal finalidade (EWING et al., 2022). 1.3.1 Cinturões verdes No início do século 20 o Reino Unido formalizou a adoção dos cinturões verdes como estratégia de contenção urbana (AMPONSAH et al., 2022; HAN; GO, 2019). Desde então, diversos outros países adotaram os cinturões para variados propósitos, em diferentes níveis de governo – desde o nacional, até o provincial/estadual e regional/local (HAN; GO, 2019), a exemplo de Londres (Inglaterra), Copenhague (Dinamarca), Amsterdã (Holanda), Seul (Coreia do Sul), São Francisco (Califórnia, EUA), Ontário (Canadá), Adelaide (Austrália), e Dunedin (Nova Zelândia), com distintos graus de sucesso na contenção do crescimento urbano (HORN, 2015). Críticos desta abordagem apontam que a implementação de cinturões verdes pode provocar, em muitos casos, o aumento dos preços da terra nas áreas urbanas preexistentes, o que consequentemente dificulta o acesso à moradia (AMPONSAH et al., 2022). Isso direcionaria o crescimento urbano para fora dos cinturões verdes (spillover effect), ampliando as distâncias para deslocamentos diários, a dependência dos automóveis e a poluição do ar (HAN; GO, 2019; HORN, 2015). Ainda assim, em um estudo com municípios norte-americanos, por exemplo, em que foi feita uma comparação entre seis municípios com cinturões verdes e 19 municípios adjacentes desprovidos de tal instrumento, foram constatadas menores mudanças de uso e ocupação do solo (conversão de terras agrícolas, florestas, pastagens, pantanais, e ambientes estéreis em áreas construídas), e maiores densidades (mais da metade das novas áreas construídas dentro dos limites de crescimento espacial estipulados), nos seis 22 municípios com cinturões verdes (HAN; DANIELS; KIM, 2022). Ademais, nestes mesmos seis municípios o armazenamento e o sequestro de carbono foram maiores do que em municípios metropolitanos vizinhos sem cinturões verdes (HAN; DANIELS; KIM, 2022). Complementarmente, em um estudo que avaliou a eficácia dos cinturões verdes na mitigação da expansão urbana pela comparação de 60 cidades da Europa de diferentes tamanhos populacionais com e sem cinturões verdes, Pourtaherian e Jaeger (2022) constataram que os cinturões têm sido consideravelmente eficazes, levando a uma diminuição da expansão urbana em 90% das cidades europeias em que foram implantados, via adensamento da área construída. A questão central na adesão e eficácia dos cinturões verdes estaria, portanto, em como as autoridades eleitas, as preferências do público e os planejadores equacionam demandas por crescimento urbano, preservação ambiental (HAN; GO, 2019), e habitação social (KIRBY et al., 2023). 1.3.2 Urban Growth Boundary (UGB) A primeira UGB foi implementada nos EUA em 1958, por meio de um acordo entre a cidade de Lexington, Kentucky e o condado vizinho de Fayette (HAN; DANIELS; KIM, 2022), estando em vigor desde então, embora alterada (EWING et al., 2022). Mais de 150 UGBs foram estabelecidas nos EUA desde então, com flexibilizações em relação à modificação das mesmas – algumas se expandindo ao longo do tempo, mas não todas (HAN; DANIELS; KIM, 2022). As UGBs não visam “impedir ou restringir o crescimento urbano, mas direcioná-lo para áreas apropriadas” (EWING et al., 2022, p. 10, tradução própria), sendo similares ao perímetro urbano brasileiro, com a diferença de que, em alguns casos, a UGB estabelece um limite para a extensão de serviços urbanos (urban services boundary | urban service area), como redes de água e esgoto (HAN; DANIELS; KIM, 2022), a partir da demarcação de uma linha imaginária, revisada periodicamente pelos governos locais, além do qual o poder público não proverá serviços e infraestruturas urbanas, visando minimizar gastos e investimentos públicos (AHANI; DADASHPOOR, 2021; POURTAHERIAN; JAEGER, 2022). Também existem situações em que um limite de serviços urbanos é estabelecido independentemente de uma UGB, nem sempre sendo proibida a urbanização para além da área estipulada. Quando a urbanização para além da área estipulada é permitida, 23 caberia aos loteadores se responsabilizarem pelos custos de implantação, incluindo provisão de infraestrutura e serviços (AHANI; DADASHPOOR, 2021). Nos casos em que se proíbe a urbanização para além dos limites da área de serviços urbanos demarcada, a provisão de infraestrutura e serviços públicos têm o potencial de funcionar como mecanismos de incentivo/desestímulo à urbanização, influenciando onde e quando a expansão urbana poderá ocorrer, em função da possível flexibilização dos limites, o que possibilita a criação de “sistemas de hierarquização” para direcionar a provisão de infraestrutura e serviços urbanos para novas áreas em uma determinada ordem (AMPONSAH et al., 2022). No entanto, a demarcação de um limite de serviços urbanos está mais voltada para a garantia de um crescimento espacial contínuo do que para a restrição de tal crescimento (EWING et al., 2022). Existem benefícios da associação entre UGBs e cinturões verdes, não sendo essencial, porém, a adoção de um instrumento para a criação de outro (HAN; DANIELS; KIM, 2022). A principal diferença entre ambos reside nos direitos de propriedade no exterior dos limites estipulados. No caso das UGBs permanece com os proprietários e, no caso dos cinturões verdes, os governos geralmente compram as terras, garantindo um maior grau de controle regulatório e possibilitando a provisão de usos recreativos, como trilhas e ciclovias no interior do cinturão verde (EWING et al., 2022). 1.4 POLÍTICAS DE CONTENÇÃO DO CRESCIMENTO ESPACIAL URBANO Os cinturões verdes e as UGBs (assim como as urban services boundary | urban service area) são também categorizados como políticas de contenção do crescimento urbano, baseadas em intervenções de planejamento, por terem sido concebidas para impor restrições à expansão territorial urbana e para proteger áreas periféricas das cidades, via fiscalização e controles específicos (AHANI; DADASHPOOR, 2021). Embora com objetivos e resultados diferentes em cada abordagem, as políticas de contenção compartilham o propósito comum de promover o adensamento em áreas já urbanizadas e limitar a expansão urbana sobre áreas rurais, preservando paisagens agrícolas e naturais (EWING et al., 2022). Outros tipos de políticas de orientação e controle de crescimento seriam as políticas de contenção do crescimento urbano, baseadas em intervenções financeiras, concebidas para impor restrições à expansão territorial urbana e para proteger áreas 24 periféricas das cidades via tributação, políticas de incentivo e outros instrumentos financeiros (AHANI; DADASHPOOR, 2021). Proponentes de intervenções financeiras argumentam que a desmedida expansão territorial urbana é um sintoma de falha de mercado, de modo que estratégias de contenção devem corrigir tais imperfeições (AMPONSAH et al., 2022). Exemplos de tais políticas incluem impostos sobre a propriedade (como o IPTU), bem como Taxas de Impacto (Impact Fees). Basicamente, o uso de impostos e taxas visa desencorajar a expansão territorial urbana e/ou incentivar uma maior compacidade via intensificação do uso do solo (AMPONSAH et al., 2022). O desencorajamento ocorreria, por exemplo, pela cobrança de impostos e taxas mais elevados sobre novos loteamentos, conforme a distância dos centros urbanos, e os incentivos pela redução de, por exemplo, impostos e taxas sobre edifícios, visando estimular renovações e melhorias, além do uso de instalações existentes, de modo a desestimular a especulação imobiliária e maximizar o uso da infraestrutura urbana (AMPONSAH et al., 2022). Em suma, as intervenções financeiras adotam uma abordagem que não impõe proibições ou requisitos para usos específicos dos recursos naturais, como o uso da terra, mas atribuem valor monetário a esses recursos naturais (como a terra) a fim de estabelecer incentivos financeiros que afetam a tomada de decisões (ACKERSCHOTT et al., 2023). 1.4.1 Taxas de impacto As taxas de impacto são cobradas uma única vez dos loteadores, sendo projetadas para compensar o aumento da demanda por infraestrutura e serviços públicos gerados por novos empreendimentos (EWING et al., 2022). Ainda que o principal objetivo seja financiar a provisão de infraestrutura e serviços públicos, as taxas de impacto podem levar, consequentemente, a um crescimento urbano mais compacto, pelo aumento do custo da terra e da habitação (EWING et al., 2022). Mais comumente aplicadas a infraestruturas de água e esgoto e à construção de novas estradas, as taxas de impacto também são cobradas para pagamento de melhorias em estradas existentes, parques recreativos, escolas públicas e outras instituições públicas, serviços médicos de emergência, polícia e instalações de combate a incêndios, por exemplo (EWING et al., 2022). Em síntese, tais taxas são uma forma de 25 compensação dos custos de ampliação de infraestruturas necessárias para a expansão territorial urbana (BURGE et al., 2013), não necessariamente uma maneira de limitar o crescimento espacial urbano (EWING et al., 2022). Ao analisar os efeitos das taxas de impacto na atividade de licenciamento residencial em Albuquerque (Novo México, EUA), Burge et al. (2013) recomendaram que programas de taxa de impacto fossem implementados em nível regional, para evitar o chamado transbordamento, que ocorre quando empreendimentos urbanos saltam para jurisdições adjacentes, com taxas mais baixas. No caso de Albuquerque especificamente, os autores constataram que tais taxas reduziram significativamente a quantidade de licenças emitidas em locais periféricos (com custos mais elevados de prestação de serviço). Por conseguinte, Burge et al. (2013) concluíram que taxas de impacto variável podem influenciar o padrão de crescimento urbano, incentivando a construção em áreas de serviços de baixo custo, dissuadindo projetos em locais de alto custo e levando a um gradual adensamento. 1.5 CRESCIMENTO URBANO: DESEJADO E PROMOVIDO OU DESENCORAJADO E RESTRINGIDO Na categorização de Ewing et al. (2022), a gestão do crescimento para contenção da expansão territorial urbana possui dois componentes: a) The Inside Game – onde o crescimento urbano é desejado e promovido, como nas mencionadas Taxas de Impacto; e b) The Outside Game – onde o crescimento urbano é geralmente desencorajado e permitido apenas em baixa densidade, como no caso do supracitado Zoneamento de Proteção Agrícola. Algumas ferramentas não se enquadram perfeitamente em uma categoria ou outra, sendo referidas como mistas, a exemplo das supramencionadas políticas de contenção urbana (Cinturões Verdes, UGBs e Urban Services Boundaries | Urban Service Areas). A seguir são detalhadas as demais ferramentas e as respectivas categorizações definidas por Ewing et al. (2022). 1.5.1 Zoneamento (Inside Game) Por se basear nos princípios de homogeneidade, separação e exclusão, o zoneamento convencional pode ser considerado um indutor da expansão territorial urbana (EWING et al., 2022). Isso porque, ao separar os usos do solo, por exemplo, o zoneamento convencional é capaz de limitar o acesso das pessoas aos serviços públicos, pelo distanciamento entre moradias e usos não residenciais (EWING et al., 2022). 26 Ademais, certas determinações estipuladas pelo zoneamento convencional restringem a possibilidade de um crescimento urbano mais compacto, à exemplo das unidades máximas por hectare, do tamanho mínimo de lote por unidade, dos recuos frontais e da exigência de um número mínimo de vagas de garagem/estacionamento (EWING et al., 2022). A partir de tais constatações, algumas alternativas ao zoneamento convencional foram elaboradas, como o Código Baseado na Forma (Form-Based Code) e os Bônus de Densidade (Density Bonus). Um Código Baseado na Forma é um regulamento de uso e ocupação do solo que coloca maior ênfase no design físico do que no uso do solo como princípio organizador da forma urbana de uma cidade, pela regulação dos elementos do ambiente construído em relação uns aos outros (EWING et al., 2022). O resultado pretendido é a criação de ambientes mais caminháveis, densos e compactos, com multiplicidade de usos, pelo emprego de estratégias como ruas estreitas, quarteirões mais curtos e eliminação de requisitos de estacionamento (EWING et al., 2022). A adesão ao Código Baseado na Forma pode ocorrer de modo obrigatório ou voluntário. A obrigatoriedade envolve a substituição do zoneamento convencional, e o voluntariado complementa o zoneamento existente, sendo facultativo aos loteadores escolher qual regulação será aplicada a seus loteamentos, aproximando-se de um zoneamento híbrido, em que há coexistência de regulamentações convencionais e Códigos Baseados na Forma (EWING et al., 2022). Os Bônus de Densidade são concedidos aos loteadores em troca de, por exemplo, melhorias de infraestrutura, criação de espaços públicos, construção de unidades habitacionais populares e conservação ambiental (EWING et al., 2022). Esta ferramenta pode incentivar o crescimento em áreas designadas, além de auxiliar na preservação de áreas urbanas periféricas ambientalmente sensíveis (EWING et al., 2022). Nos Estados Unidos, um programa de Bônus de Densidade foi introduzido pela primeira vez em Nova York, em 1961. Essa política estipulava que, em troca de fornecer espaço público dentro da propriedade, os loteadores teriam permissão para construir alguns metros quadrados adicionais (EWING et al., 2022). 1.5.2 Financiamento de Incremento Fiscal (Inside Game) O Financiamento de Incremento Fiscal (Tax Increment Financing) abrange o imposto adicional gerado pela valorização imobiliária que determinada área urbana obtém 27 após a realização de um projeto de transformação urbanística. Em regiões designadas para financiamento de incremento fiscal, esse imposto adicional é desviado dos fundos habituais e canalizado para subsídio das intervenções urbanísticas a serem realizadas, via emissão de títulos públicos para financiamento das melhorias de infraestruturas necessárias, tais como pavimentação, adutoras, instalações de esgoto e de drenagem pluvial, parques ou compensação ambiental, por exemplo (EWING et al., 2022). Por destinar-se à concentração do desenvolvimento econômico (EWING et al., 2022), o Financiamento de Incremento Fiscal tem o potencial de limitar a expansão territorial urbana na medida em que as áreas demarcadas para financiamento se tornam prioritárias para investimento imobiliário, em função de perspectivas futuras de valorização dos imóveis na área demarcada. Evidentemente que tal objetivo de limitar a expansão só é viabilizado pela delimitação de áreas em que o objetivo seja a intensificação no uso e ocupação do solo, pelo adensamento de áreas já consolidadas, por exemplo. 1.5.3 Simultaneidade/Ordenações de Instalações Públicas Adequadas (Inside Game) A Simultaneidade/Ordenações de Instalações Públicas Adequadas (Concurrency/Adequate Public Facilities Ordinances), permite que sejam estabelecidos padrões mínimos de nível de serviço (minimum Level of Service – LOS) para rodovias, bem como outras instalações e serviços públicos em âmbito local, com a emissão de licenças de construção dependendo da conformidade demonstrada com os padrões estabelecidos (EWING et al., 2022). Em síntese, a Simultaneidade e as Ordenações de Instalações Públicas Adequadas não são destinadas a impedir o crescimento, mas sim direcioná-lo para áreas com instalações e serviços públicos apropriados, além de desacelerar o ritmo de crescimento para coincidir com as receitas públicas disponíveis (EWING et al., 2022), inibindo a expansão territorial urbana para áreas impróprias à urbanização. 1.5.4 Áreas de Financiamento Prioritário (Inside Game) Nas Áreas de Financiamento Prioritário (Priority funding areas), governos estaduais ou locais direcionam gastos com infraestrutura e incentivos de crescimento urbano para apoiar a compacidade via preenchimento (EWING et al., 2022). 28 Assim como no caso da supramencionada Simultaneidade/Ordenações de Instalações Públicas Adequadas, as Áreas de Financiamento Prioritário não restringem os usos da terra, mas incentivam e promovem o crescimento em áreas específicas, podendo ser consideradas uma forma leve de contenção urbana, baseada em incentivos em vez de regulações (EWING et al., 2022). 1.5.6 Transferência de Direitos de Construção (Mista) A Transferência de Direitos de Construção (Transfer Of Development Rights – TDR) foi inicialmente proposta nos EUA no começo de 1960, tendo se expandido, desde então, para países como França, Holanda, Alemanha e Itália (AMPONSAH et al., 2022). Seu principal objetivo era preservar espaços abertos, áreas naturais e agrícolas, além de conter o crescimento espacial urbano (AMPONSAH et al., 2022), por meio da transferência de direitos de construção para áreas mais adequadas à urbanização (AHANI; DADASHPOOR, 2021). Em síntese, tal instrumento permite que a urbanização de uma parcela de terra (área de envio) seja transferido para outra (área de recebimento). “A área de envio é preservada enquanto a área de recebimento é urbanizada com mais intensidade do que o zoneamento inicial permitiria” (AMPONSAH et al., 2022, p. 9, tradução própria). Trata-se, portanto, de uma ferramenta que possibilita afastar a ocupação urbana para longe de ativos naturais, preservando terras agrícolas, florestas, áreas rurais ou até mesmo marcos históricos ou culturais valiosos, com as potenciais áreas de recebimento podendo ser especificadas nos planos diretores (EWING et al., 2022). 1.5.7 Compra de Direitos de Construção (Outside Game) Similar à Transferência de Direitos de Construção, a Compra de Direitos de Construção (Purchase of Development Rights – PDR) é uma maneira de o governo “compensar financeiramente os proprietários de terras dispostos a não construir em suas terras” (EWING et al., 2022, p. 9, tradução própria), restringindo permanentemente a ocupação urbana da terra via servidão de conservação (EWING et al., 2022). Embora semelhantes, TDR e PDR diferem em alguns aspectos, a começar pela origem do financiamento do instrumento. Nos programas de TDR, os recursos advêm da arrecadação obtida com a urbanização extra na área receptora. Nos programas de PDR, 29 por outro lado, os recursos são públicos, de modo que os programas de TDR podem ter surgido da dificuldade de financiar programas de PDR (EWING et al., 2022). 1.6 DINÂMICAS DE CRESCIMENTO ESPACIAL URBANO De maneira geral, os determinantes da expansão territorial urbana são específicos ao contexto em que estão vinculados, podendo ser físico-geográficos, sociais e/ou baseados em políticas públicas (SILVA; VERGARA-PERUCICH, 2021). No Sul Global, segundo Horn (2020a, 2020b), duas forças impulsionadoras desse processo podem ser identificadas: em primeiro lugar a chegada de migrantes que, frequentemente incapazes de adquirir terra e moradia na cidade, acabam residindo em ocupações informais e assentamentos precários na periferia urbana; em segundo lugar, a priorização do padrão residencial orientado para as classes média e alta, fora dos centros urbanos, alavancado pela iniciativa privada. Na América Latina, especificamente, o principal motor da mudança no uso e ocupação do solo tem sido tradicionalmente a agricultura, no entanto, nas últimas décadas a expansão territorial urbana tem se tornado também um contribuinte significativo (PAUCHARD; BARBOSA, 2013). Nos países latino-americanos, de modo geral, a segregação socioespacial acompanha o processo de urbanização (HENRÍQUEZ; AZÓCAR; ROMERO, 2006), e o crescimento formal das áreas urbanizadas é majoritariamente caracterizado por um contraste entre grandes empreendimentos habitacionais periféricos para grupos de média e baixa renda, e espaços residenciais fechados que convivem com centros comerciais ao longo de rodovias (HORN, 2020b), destinados a grupos de alta renda. Nesse sentido, cada vez mais repletas de muros (BORSDORF; HIDALGO, 2010), as cidades latino-americanas contemporâneas caracterizam-se por uma “segregação social espacialmente próxima” (OTERO; FODRA, 2022, p. 12), evidenciada pela fragmentação do tecido urbano, estreitamente atrelada à desagregação e homogeneização de grupos sociais (GUEVARA, 2015). Isso se manifesta basicamente por meio de manchas urbanas periféricas, compostas por i) espaços residenciais fechados, os chamados ‘enclaves fortificados’ (CALDEIRA, 2000), que concentram grupos de renda alta e média-alta a distâncias significativas dos centros urbanos (HENRÍQUEZ; AZÓCAR; ROMERO, 2006) e utilizam “dispositivos físicos e tecnológicos para traçar uma espécie de ‘muralha’ entre os diferentes estratos sociais” (OTERO; FODRA, 2022, p. 12- 30 13); e ii) loteamentos de menor renda, formados por conjuntos habitacionais, ocupações informais e assentamentos precários, como favelas, além de bairros residenciais populares, igualmente afastados dos centros urbanos (SASS; PORSSE, 2021), localizados de modo diametralmente oposto aos loteamentos de maior renda, ainda que, com frequência, fisicamente próximos destes. Recentemente no Brasil, tal cenário se aprofundou com o advento do programa de habitação social Minha Casa Minha Vida – MCMV, aliado à melhoria do acesso ao crédito habitacional, que estimularam e reforçaram a dinâmica de expansão territorial urbana nas cidades brasileiras (SASS; PORSSE, 2021). Um dos impactos do MCMV seria a produção de conjuntos habitacionais em grande escala, com a aglomeração de vários empreendimentos contíguos via subdivisão de extensas glebas em empreendimentos isolados, de modo a adequá-los às limitações normativas referentes ao número máximo de unidades (CARDOSO, 2013). Tais conjuntos habitacionais de interesse social estão geralmente concentrados em áreas periféricas, aumentando a extensão física das cidades por meio da implantação de bairros de baixa densidade e sem infraestrutura de transporte adequada, amplificando a segregação socioespacial. Além de acentuar o isolamento de grupos sociais, este modelo disperso contrasta com estratégias mais alinhadas aos preceitos da sustentabilidade13, distanciando-se da forma urbana14 compacta, característica das cidades coloniais latino-americanas15 (BORSDORF, 2003), e deslocando-se para uma estrutura mais difusa (HENRÍQUEZ; AZÓCAR; ROMERO, 2006). Sob tais circunstâncias, graduais quedas na densidade populacional levam à desnecessária conversão de espaços com elevado valor agrícola, ecológico ou paisagístico em ambientes construídos impermeabilizados (GÜNERALP et al., 2020), impactando os gastos municipais com provisão de infraestruturas e serviços públicos (LIBERTUN DE DUREN; COMPEÁN, 2016; SASS; PORSSE, 2021). No entanto, o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV é apenas o mais recente e emblemático exemplo de uma série de fatores determinantes, baseados em políticas públicas regulatórias, que possibilitam a contínua e dispersa expansão territorial 13 Apesar do alcance de uma maior sustentabilidade urbana depender das condições locais (HASSAN; LEE, 2015), e de terem sido planejados e debatidos uma infinidade de conceitos que buscam promovê-la, aqui o enfoque remete a uma equilibrada relação entre os domínios social-ecológico-econômico (FU; ZHANG, 2017). 14 Considera-se que a forma urbana “retrata o tamanho, o formato e o arranjo espacial das cidades” (HAO; WANG, 2022, p. 2, tradução própria). 15 A maioria das cidades latino-americanas reflete seu legado histórico de desenho urbano, seguindo as tradições de planejamento de seus respectivos colonizadores, especialmente os espanhóis e portugueses. Isso se evidencia pelo fato de que cidades que foram colônias ibéricas (espanholas e portuguesas), por exemplo, têm traçados urbanos mais regulares e redes viárias mais densas (DUQUE et al., 2019). 31 urbana no Brasil. Um outro aspecto que merece ser destacado é o caso do próprio limite físico-espacial das cidades, delimitado pelos perímetros urbanos, que estabelece a divisão entre áreas urbanas e rurais. A estipulação de um limite urbano busca restringir urbanizações além do limite especificado, protegendo áreas rurais e com fragilidades ambientais. No entanto, por serem menos valorizadas, as áreas rurais acabam sendo visadas para ocupação urbana, pelo aumento da rentabilidade com empreendimentos imobiliários, acarretando a sucessiva ampliação do perímetro para incorporação de novas áreas urbanizadas. Ademais, como efeito colateral indesejável, famílias de baixa renda são constantemente atraídas para áreas de transição rural-urbana, ou ocupam áreas ambientalmente vulneráveis como única alternativa de moradia. A constatação de tais efeitos paradoxais não tem como intuito sugerir a eliminação de um limite urbano, mas sim demonstrar as problemáticas que emergem das tentativas de controlar a expansão territorial urbana, via instrumentos regulatórios de planejamento do uso do solo, quando se ignora a economia política que impulsiona a periurbanização (HORN, 2020a). Até porque, uma anulação do limite urbano tem grandes chances de repetir, em território brasileiro, o que ocorreu no Chile em 1979, quando o limite urbano foi extinto para permitir uma irrestrita urbanização (SILVA; VERGARA-PERUCICH, 2021). A partir de tal medida, a especulação imobiliária se propagou, visto a retenção especulativa sem precedentes, praticada por proprietários que não venderam ou ocuparam suas terras e as mantiveram à espera de valorização futura (SILVA; VERGARA-PERUCICH, 2021). Como consequência, em Santiago, por exemplo, anéis de terras inacessíveis ao redor da cidade foram criados, e as famílias de baixa renda localizavam-se em áreas rurais remotas, sem acesso a meios de transporte, emprego e serviços (SILVA; VERGARA- PERUCICH, 2021). Ainda assim, somente em 1994 o limite urbano foi reestabelecido (SILVA; VERGARA-PERUCICH, 2021). A repetição de tais fenômenos no Brasil não seria improvável justamente em função das semelhanças entre ambas realidades. Assim como no caso chileno, a implementação de limites urbanos nos municípios brasileiros dificilmente é acompanhada pela regulação sobre o mercado fundiário (SILVA; VERGARA-PERUCICH, 2021), em razão da “dificuldade do Estado em limitar os ganhos especulativos fundiários na sociedade patrimonialista brasileira” (DENALDI et al., 2017, p. 174), o que possibilita a manutenção de numerosos vazios urbanos e desencadeia a ocupação de terras rurais adjacentes à área urbana. Deste modo, a ausência de uma delimitação igualmente teria o 32 potencial de criar distorções de mercado que contribuiriam sobremaneira para a expansão territorial urbana no Brasil. Esse cenário hipotético remete a dois outros determinantes importantes para a continuidade da expansão territorial urbana nas cidades brasileiras: não taxação de vazios urbanos e, especialmente no interior paulista, disseminação de zonas de chácaras, sítios de recreio ou ranchos. No caso dos vazios urbanos, a ausência de taxação prejudica o adensamento intraurbano por não inibir a retenção especulativa, além de levar à procura por terrenos periféricos para habitação social, contribuindo para o crescimento urbano disperso. Nesse sentido, cabe destacar o papel do Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios (PEUC)16 como um dos principais instrumentos previstos na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e no Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) para cumprimento da função social da propriedade urbana no Brasil. A conjunção do PEUC com o IPTU Progressivo no Tempo17 seria uma forma de taxação dos vazios urbanos e inibição da retenção especulativa, visto se tratarem de “sanções sucessivas para os proprietários de imóveis urbanos ociosos” (DENALDI et al., 2017, p. 174). Contudo, “ainda é tímida nas cidades brasileiras a aplicação dos mecanismos de efetivação [da função social da propriedade urbana]” (CAVALCANTE; LEÔNCIO, 2019, p. 7). Quanto às zonas de chácaras, sítios de recreio ou ranchos, estes não se destinam à produção agrícola, possuindo como finalidade o lazer. Embora se localizem em áreas rurais, seus lotes são menores do que os rurais, incidindo parâmetros urbanos e reduzida exigência de infraestruturas básicas (SANTORO, 2014a). Basicamente tratam-se de ocupações dispersas que, em algumas situações, ocorrem em áreas ambientalmente protegidas, “culminando em casos de adensamento urbano sobre áreas com infraestrutura rural” (SANTORO, 2014a, p. 10). Como resultado, há a formação de loteamentos isolados, com características urbanas, mas rodeados por ambiente rural, muitas vezes não dotados de infraestrutura urbana básica e de acesso aos meios de transporte público, ocasionando em uso intenso de meios de transporte individuais motorizados. 16 A obrigação compulsória de parcelar, edificar ou utilizar imóveis ociosos em um determinado prazo de tempo, estabelecida pelo Poder Público Municipal, via PEUC, aos proprietários de imóveis urbanos, “sustenta-se em uma concepção de função social segundo a qual o direito de propriedade não pode ser exercido exclusivamente para atender ao interesse individual do proprietário, desconsiderando o interesse da coletividade” (DENALDI et al., 2017, p. 173). 17 Segundo Cavalcante e Leôncio (2019, p. 7), “ao fazer uso da função extrafiscal do IPTU, o custo da retenção da terra ociosa aumenta, reduzindo o retorno econômico da especulação imobiliária e, consequentemente, liberando a terra para ser devidamente ocupada”. 33 1.7 DISCUSSÃO De acordo com Horn (2020a, p. 7, tradução própria), embora nas últimas três décadas o discurso de gestão do crescimento territorial tenha integrado as práticas de planejamento urbano no Sul Global, existe “uma série de razões, tanto estruturais quanto políticas, que contribuíram para seu sucesso limitado”. Para a autora, é cada vez mais consensual que o planejamento urbano em tais países é informalizado, não sendo realizado necessariamente pelo Estado, agravando-se com o “crescente papel da agenda neoliberal e a proeminência das forças de mercado na tomada de decisões”, que “fazem com que os processos econômicos e políticos se tornem mais abertos à negociação e à informalização” (HORN, 2020b, p. 8). Silva e Vergara-Perucich (2021, p. 202) vão além, afirmando que a expansão territorial urbana “é um fenômeno complexo que não pode ser gerenciado por meio de restrições de crescimento”. Especificamente no contexto da América Latina, há que se considerar, também, o fato de as cidades já serem mais densas e compactas do que nos países do Norte Global, especialmente na Europa e na América do Norte (DUQUE et al., 2019). Nesse sentido, a almejada intensificação no uso e ocupação do solo, advinda da adoção de estratégias de contenção/gestão do crescimento urbano, pode ocasionar efeitos adversos, caso prossiga desacompanhada da provisão de infraestruturas, especialmente de transporte e saneamento básico (LI; VERBURG; VAN VLIET, 2022). Isso não justifica, entretanto, uma permissividade irrestrita com relação à regulação do crescimento espacial urbano (como a própria experiência do Chile demonstrou), mas reforça a necessidade de sua vinculação com a questão fundiária na região. Ademais, diversas implicações socioambientais são associadas à incorporação de estratégias de gestão e controle da expansão territorial urbana. O transbordamento do crescimento urbano, isto é, a urbanização de áreas para além das estipuladas para tal fim, por exemplo, é apontado como consequência indesejável de estratégias de contenção (AHANI; DADASHPOOR, 2021; HORN, 2020b) como cinturões verdes e UGBs. Um outro desafio aos mecanismos de gestão e controle do crescimento espacial urbano tem sido a tendência de aumento da especulação imobiliária devido à tais regulamentações, levando à expulsão dos mais pobres para fora dos limites estipulados (HORN, 2020b). Algo atrelado à valorização da terra e das habitações nas áreas localizadas no interior dos limites de crescimento espacial delimitados, e à desvalorização 34 das áreas externas (AHANI; DADASHPOOR, 2021). Isso porque, além de as políticas de contenção do crescimento espacial urbano influenciarem os preços da terra, os loteadores nem sempre respondem aos preços mais elevados aumentando a densidade construtiva, fazendo com que o lado da demanda do mercado imobiliário possa ser um determinante mais forte nos preços do que a orientação de crescimento local e as políticas de controle da expansão territorial urbana (AHANI; DADASHPOOR, 2021). Outro obstáculo apontado tem sido uma falha dos políticos locais em apoiar e implementar instrumentos apropriados de gestão e controle do crescimento espacial urbano (HORN, 2020b). Nesse sentido, Horn (2020b, p. 462, tradução própria) destaca o grande “poder de barganha política que o setor privado detém sobre a tomada de decisões políticas” atualmente, especialmente no Sul Global. Nessa vertente, há que se destacar o caráter político do processo de conciliação de interesses incapazes de serem igualmente satisfeitos, como é o caso da gestão e do planejamento urbano (HORN, 2020a). Em outras palavras, não há como desprezar as preocupações de curto prazo das gestões municipais, geralmente relutantes em arcar com os custos políticos de estratégicas de longo prazo, além das inerentes coalizões de interesses e agentes, formadas por meio de redes informais de influência e conexões sociais entre elites dominantes e políticos locais, que garantem acesso à máquina oficial de tomada de decisões (HORN, 2020a). Dentre os desafios práticos que dificultam a adesão de tais estratégias, destaca-se a “necessidade de uma mudança nas políticas de planejamento e governança para políticas colaborativas, de modo a reduzir fragmentações político-administrativas” (AHANI; DADASHPOOR, 2021, p. 19, tradução própria). Nesse sentido, a exemplo dos EUA (HAN; GO, 2019), a elevada autonomia de que dispõem os entes subnacionais no modelo federativo brasileiro inviabiliza a cooperação e a coordenação das políticas urbanas necessárias para criação de estratégias de contenção regionais (ou intermunicipais), especialmente quando se considera a perspectiva da descentralização fiscal, em que prevalece a competição entre cidades para atração de investimentos e consequente aumento na arrecadação tributária. Isso porque, inexistindo cooperação entre dois municípios adjacentes, regulamentações rígidas em um município podem levar os incorporadores a buscar oportunidades em municípios vizinhos, com regulamentações mais permissivas (TAN et al., 2022). O êxito na contenção da expansão territorial urbana via cinturões verdes, por exemplo, requer estratégias regionais em escala, “juntamente 35 com zoneamento rigoroso e até mesmo programas de preservação da terra no campo fora dos cinturões verdes” (HAN; DANIELS; KIM, 2022). Tal qual os cinturões verdes, as UGBs são igualmente criticadas por seu potencial de aumentar o valor da terra e dificultar o acesso à moradia (AMPONSAH et al., 2022; HAN; DANIELS; KIM, 2022; HORN, 2015), além de igualmente requererem ações coordenadas entre municípios vizinhos, via promulgação de políticas públicas consistentes, que se adéquem às estratégias regionais de contenção da expansão urbana (HORN, 2015), de modo a evitar minar os efeitos positivos nas cidades vizinhas (POURTAHERIAN; JAEGER, 2022). Isso porque “quando comunidades individuais adotam UGBs isoladamente de seus vizinhos e concorrentes, o novo crescimento [e novas receitas] é simplesmente acomodado em comunidades vizinhas com políticas espaciais menos rigorosas” (HORN, 2015, p. 5). Sobre as UGBs, especificamente, um aspecto que as assemelha ao perímetro urbano brasileiro seria o fato deste último também distinguir áreas urbanas de rurais, com maiores densidades sendo designadas para áreas urbanizadas no interior do perímetro, enquanto áreas para além do perímetro são caracterizadas por moradias com características rurais e de baixa densidade (AHANI; DADASHPOOR, 2021; AMPONSAH et al., 2022). Entretanto, uma discrepância importante com o caso brasileiro pode ser identificada no exemplo de Oregon (EUA). Nesse estado norte-americano, a urbanização foi proibida para além da UGB regional estipulada, mesmo nos casos em que o loteador se prontificasse a arcar com os custos de infraestrutura necessários (AMPONSAH et al., 2022). Embora não se trate de uma regra, isto é, não são todas as UGBs que possuem tal determinação, esse exemplo é ilustrativo, pois o nível de restrição ao crescimento espacial urbano externo a uma UGB é considerado crucial para seu sucesso (HORN, 2015). No Brasil, além de não haver a adoção de limites institucionais que restrinjam o crescimento espacial urbano a nível regional (ou intermunicipal), mesmo a nível municipal tal proibição de urbanização para além dos limites estabelecidos é frequentemente descumprida, não sendo incomum a ocorrência de loteamentos externos aos perímetros urbanos, muitas vezes clandestinos e não necessariamente com características rurais (chácaras de recreio, por exemplo), ou até mesmo a constante ampliação dos limites dos perímetros urbanos antes mesmo de ocorrer a revisão dos planos diretores municipais. A questão da pertinência de um ordenamento regional torna-se especialmente relevante quando se considera que grande parte da futura expansão urbana ocorrerá em 36 escala regional, de modo que “a governança colaborativa e abrangente entre regiões e países pode[ria] ajudar a mitigar as perturbações da expansão urbana sobre habitats naturais e a biodiversidade” (LI et al., 2022b, p. 9, tradução própria). Quanto aos cinturões verdes, similar ao que foi apontado para o caso de Gana, na África (AMPONSAH et al., 2022), estes poderiam funcionar melhor no Brasil em cidades pequenas e médias que possuam grandes e subdesenvolvidas glebas periféricas. Ainda assim, a compra prévia e a destinação para uso público de terras para delimitação dos cinturões verdes são empecilhos. No caso norte-americano, a viabilização dos cinturões verdes depende da aquisição, pelo poder público local, de direitos de urbanização de terras agrícolas (HAN; GO, 2019) e da transferência do direito de construir, fornecendo “aos proprietários de terras uma compensação financeira por concordarem em manter suas terras destinadas para uso agrícola, florestal ou espaço aberto” (HAN; DANIELS; KIM, 2022, p. 2, tradução própria). No caso dos municípios brasileiros, onde há grande interesse do mercado imobiliário pela obtenção de glebas periféricas, é possível recorrer à transferência do direito de construir, instrumento urbanístico previsto no Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), que “permite a transferência ou a alienação do potencial construtivo de um imóvel munido de interesse público” (SOUZA; PERETTO; SEO, 2021, p. 1). Além da transferência do direito de construir, existem similaridades entre algumas das estratégias elencadas e outros instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, à exemplo da Contribuição de Melhoria com o Financiamento de Incremento Fiscal; da Outorga Onerosa do Direito de Construir com o Bônus de Densidade; da Transferência do Direito de Construir com a Transferência de Direitos de Construção e a Compra de Direitos de Construção; das Operações Urbanas Consorciadas com as Áreas de Financiamento Prioritário; e da Contribuição de Melhoria | Outorga Onerosa de Alteração de Uso com a Taxa de Impacto. No que concerne ao Downzoning, seus entraves são universais, mas mais pronunciados perante a realidade brasileira, por tratar-se de uma política de difícil implementação, “especialmente em jurisdições com reduzida capacidade de aplicação da lei e incapacidade de pagar compensação financeira aos proprietários de terras afetados” (AMPONSAH et al., 2022, p. 9, tradução própria). Ademais, embora sejam previstas áreas com restrições ambientais no zoneamento das cidades brasileiras, de modo a impedir a urbanização ou prever uma ocupação urbana de menor densidade, frequentemente tais 37 áreas são ocupadas por populações de baixa renda, devido à ausência de opções de moradia, não sendo incomum, também, a construção de conjuntos habitacionais destinados à habitação de interesse social em áreas protegidas e/ou ambientalmente impróprias à urbanização (RUFINO, 2015). 1.8 CONCLUSÃO A relevância de um levantamento sobre estratégias de gestão da expansão territorial urbana se evidencia pelo efeito que o crescimento físico-espacial das cidades tem sobre a sustentabilidade urbana. Como contribuição deste estudo, foram pontuados alguns entraves à implementação de tais estratégias no âmbito dos países do Sul Global, mais especificamente na América Latina, com recorte para a realidade e as multifacetadas dinâmicas das cidades brasileiras de porte médio. Dentre as diversas constatações, destacam-se as semelhanças entre algumas das estratégias descritas e os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, bem como a importância da cooperação regional (intermunicipal) para o alcance de um processo de expansão territorial urbana mais alinhado aos preceitos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Por fim, é notório que particularidades impossibilitam a automática transferência de políticas de planejamento influentes entre países do Norte Global, dadas as inerentes divergências entre centro-periferia. Portanto, estudos futuros poderiam se dedicar às implicações advindas de trocas de experiências entre países do Sul Global, de maneira a não apenas sanar uma das limitações deste trabalho, como também estreitar o escopo de análise para adversidades que possam emergir da aproximação de vivências análogas, mas, ainda assim, díspares. 38 CAPÍTULO 2 | PLANEJAMENTO E REGULAÇÃO DA EXPANSÃO TERRITORIAL URBANA EM PLANOS DIRETORES: ESTUDO DE CASO EM SÃO CARLOS – SP 2.1 INTRODUÇÃO As cidades desempenham um papel fundamental no bem-estar humano e na segurança climática. Sua importância é reconhecida no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS 11: Cidades e comunidades sustentáveis, da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como no Acordo de Paris e na Nova Agenda Urbana (COLENBRANDER; BARAU, 2019). No entanto, ainda não há consenso sobre o que caracterizaria uma urbanização mais sustentável, nem como mensurá-la (PEREIRA et al., 2019). A busca por cidades mais compactas, entretanto, é considerada uma ação para mitigação das mudanças climáticas globais, pois contribui para a redução das emissões de gases de efeito estufa (LEIBOWICZ, 2017). Esse modelo de crescimento urbano estimula a redução das distâncias pelo aproveitamento de áreas urbanas subutilizadas, o que pode diminuir a dependência do uso de automóveis. Além disso, favorece a viabilidade econômica do transporte coletivo e incentiva o uso de modos ativos de transporte (NEWMAN; KENWORTHY, 2002; BANISTER, 2008; BIBRI et al., 2020), representando uma forma mais sustentável de ocupação humana em termos ambientais. No entanto, é necessário ter cautela ao utilizar modelos provenientes de realidades diferentes. A origem eurocêntrica do conceito de cidades mais compactas inviabiliza sua implementação irrestrita em países do Sul Global (ZAPATA-CAMPOS et al., 2021). A adaptação desse conceito à realidade brasileira é possível, no entanto, quando inserida na problemática da expansão horizontal das cidades, que muitas vezes atende mais às demandas do mercado imobiliário do que às necessidades reais de crescimento espacial. No Brasil, a regulação da expansão territorial urbana é de responsabilidade dos municípios, mas o Estatuto da Cidade não aborda detalhadamente essa questão. Isso tem contribuído para a permissividade da expansão, devido à arbitrariedade e discricionariedade dos municípios, que podem alterar o perímetro urbano1 em leis 1 A delimitação do perímetro urbano é um instrumento legal que estabelece limites claros entre as áreas urbanas e rurais, com o objetivo de regular o uso e a ocupação de acordo com suas respectivas características. Um fator importante a ser considerado é o valor da terra urbana, que geralmente é mais elevado em comparação com a rural. Portanto, “a expansão do perímetro urbano provoca o aumento do valor dos terrenos incorporados à zona urbana, o que, consequentemente, pode acarretar retenção de terras para fins especulativos” (ALBIERI; SILVA, 2023, p. 3). 39 separadas do Plano Diretor, resultando em um processo sujeito a disputas e interesses particulares, muitas vezes com pouca participação popular (OLIVEIRA; MOCCI; LEONELLI, 2019). Nesse contexto, o capital imobiliário exerce uma influência constante nas políticas urbanas e nas legislações urbanísticas, buscando valorização associada diretamente à cidade (MARQUES, 2016). Esses interesses frequentemente resultam em crescimento urbano disperso, devido a alterações nas normas que regulam a expansão urbana (SANTORO, 2014a; BERNARDINI, 2017; 2018; COLSAET; LAURANS; LEVREL, 2018; LEONELLI; CAMPOS, 2018). Neste estudo foi analisado se estratégias de planejamento e controle da expansão territorial urbana foram incorporadas nos planos diretores de uma cidade de porte médio2 do interior paulista. O estudo teve como pressuposto que as estratégias de regulação da expansão urbana podem ser viabilizadas pela implementação dos instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade, quando previstos nos planos diretores. Essa abordagem é considerada um primeiro passo para garantir o exercício da função social da propriedade e alcance dos direitos constitucionais à cidade (LACERDA et al., 2005). É importante ressaltar que os planos diretores devem ser revisados a cada dez anos, com o objetivo de avaliar seus resultados e tr