0 unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP Ana Paula Silva SOCIEDADE DO RISCO, NOVAS FORMAS DE VIOLÊNCIA E OS DILEMAS DA CIDADANIA: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos ARARAQUARA – SP 2016 1 ANA PAULA SILVA SOCIEDADE DO RISCO, NOVAS FORMAS DE VIOLÊNCIA E OS DILEMAS DA CIDADANIA: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento Social Orientador: Prof. Dr. Milton Lahuerta Bolsa: Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo - FAPESP - Doutorado no país processo nº 2012/17851-0 FAPESP-BEPE (Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior) processo nº 2015/01510-8 USC- University of Southern California Supervisora: Professora Dra. Nina Eliasoph ARARAQUARA – S.P. 2016 2 3 ANA PAULA SILVA SOCIEDADE DO RISCO, NOVAS FORMAS DE VIOLÊNCIA E OS DILEMAS DA CIDADANIA: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa:Cultura, Democracia e Pensamento Social Orientador: Prof. Dr. Milton Lahuerta Bolsa: FAPESP MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Milton Lahuerta, Professor Doutor Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Araraquara Membro Titular: Angela Randolpho Paiva, Professora Doutora Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Membro Titular: Maria Alice Rezende de Carvalho, Professora Doutora Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Membro Titular: Gabriel Santis Feltran, Professor Doutor Universidade Federal de São Carlos Membro Titular: Dagoberto José Fonseca, Professor Doutor Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara - DEFESA REALIZADA DIA 16/05/2016 ÀS 13H 4 RESUMO Sociedade do risco, novas formas de violência e os dilemas da cidadania: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos A noção de que novas formas de violência despontam no momento pós-fordista e que passam a ser vinculadas ao dilaceramento da cidadania e diminuição da centralidade do trabalho na vida social é fundamental para este trabalho. Tal reflexão tem dois conceitos que proporcionam uma estrutura teórica para esta pesquisa, quais sejam: o novo paradigma da violência (WIEVIORKA, 2009, 2013) e violência difusa (TAVARES DOS SANTOS, 2004). O objeto escolhido para análise são formas de violência que se originam pela impossibilidade de conviver com o "outro", ou seja, contra grupos minoritários, tais como, homossexuais, negros, moradores de rua, mas também com a inabilidade para lidar com opinião, comportamentos, estilos de vida diferentes. Mais especificamente, estão inseridas neste quadro tanto as violências de ódio (hate crimes), quanto os rampage shootings, assim como violência banal motivada por desentendimentos cotidianos, que tem aumentado no Brasil na última década. A proposta principal deste trabalho é compreender de que maneira as formas de violência abordadas estão incluídas no novo paradigma da violência, que é explicado, em grande medida, pela dificuldade de agir politicamente face às mudanças materiais e ideológicas promovidas pelo capitalismo flexível. O objetivo mais específico é evidenciar no Brasil e nos Estados Unidos de que modo os respectivos processos nacionais de construção da cidadania ajudam a compreender os impasses existentes à efetivação de uma dimensão de liberdade ancorada nas premissas do autogoverno e da ação política democrática. Esta segunda dimensão de análise faz parte do estudo comparado proposto, que se estrutura através da análise dos dados sobre as violências e a correlação defendida entre os modelos de cidadania e tipos deste fenômeno social abordado. Palavras-chave: Novas formas de violência. Crise da Política. Brasil. Estados Unidos. 5 ABSTRACT Risk Society, new shapes of violence and citizenship dilemmas: a comparison between Brazil and the United States The notion that new types of violence arise in the post-Fordist period and that they are associated to citizenship ruptures and to decreased centrality of work in social life is fundamental for this work. Such reflection include two concepts that provide a theoretical basis for this work, which are: the new violence paradigm (WIEVIORKA, 2009, 2013) and diffuse violence (TAVARES DOS SANTOS, 2004). The subjects chosen for analysis are forms of violence that emerge from the impossibility of living with "others", including the ones against minorities such as homosexuals, black people, homeless people, and also the ones related to the inability to deal with different opinions, behaviors, and lifestyles. More specifically, this framework includes hate crimes, rampage shootings, as well as violence motivated by unwise everyday misunderstandings, which has increased in Brazil in the last decade. The main goal of this work is to understand how the forms of violence addressed here are included in the new paradigm of violence, which is deeply explained by the difficulty of acting politically in face of the material and ideological changes promoted by flexible capitalism. The more specific objective is to highlight, in Brazil and the United States, in which ways the respective national processes of citizenship construction help understanding the existent impasses in regard of the effectuation of a dimension of freedom rooted in the premises of self-government and democratic political actions. This second dimension of the research is part of the comparative study that has been defined, which is strutured by the analysis of data on the types of violence and the correlation to be held between the models of citizenship and the types of this social phenomenon. Keywords: New shapes of violence. Political crisis. Brazil. United States of America. 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... p.8 CAPÍTULO I - A MODERNIDADE TARDIA E A IRRUPÇÃO DA “VIOLÊNCIA DE ÓDIO DIFUSA” Introdução.................................................................................................................... p.14 Reflexão teórica: conflito social, violência e o medo à liberdade............................... p.21 Reflexão histórica: o totalitarismo e a violência de ódio............................................. p.25 O “novo espírito do capitalismo” e a corrosão do caráter........................................... p.32 A sociedade do risco e o pluralismo "agonístico"....................................................... p.35 O capitalismo flexível e o "novo paradigma da violência"......................................... p.43 CAPÍTULO II – OS ESTADOS UNIDOS E A CRISE DE CONTROLE SOCIAL: O DILEMA DA VIOLÊNCIA METAPOLÍTICA O excepcionalismo norteamericano e o debate sobre o declínio do associativismo...............................................................................................................p.50 As pesquisas recentes sobre a transformação dos valores morais e da discriminação social nos EUA............................................................................................................ p.60 O conteúdo da cidadania norteamericana: a influência puritana e a intolerância arraigada ......................................................................................................................................p.74 O neoliberalismo, o Estado penal e as transformações na violência........................... p.85 As raízes da violência metapolítica: crise de controle social e individualismo competitivo...................................................................................................................p.91 Os estudos acadêmicos norteamericanos sobre os rampage shootings e seus referenciais teóricos....................................................................................................................... p.101 CAPÍTULO III – CIDADANIA E AUTORITARISMO NO BRASIL: UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE O CARÁTER INFRAPOLÍTICO DA “VIOLÊNCIA DE ÓDIO DIFUSA NO BRASIL” Introdução.................................................................................................................. p.118 A formação do estado nacional brasileiro: uma difícil relação entre liberalismo, modernização e cidadania.......................................................................................... p.120 Modernização capitalista e violência no Brasil......................................................... p.135 Transição democrática, autoritarismo e mudança social........................................... p.142 7 A redução da miséria e a persistência da violência como problema para a construção da cidadania contemporânea.......................................................................................... p.148 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. p.164 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... p.172 ANEXOS Anexo I Tabelas do FBI sobre crimes de ódio: de 1996 a 2011 ..............................................p.179 Anexo II Linha do tempo – rampage shootings nos EUA (1982 – 2012) ................................p.193 Anexo III Reprodução da reportagem do Huffington Post do dia 17 de setembro de 2013 sobre os rampage shootings que ocorreram no ano de 2012 e 2013 ...................................... p.196 8 INTRODUÇÃO 9 A proposta principal deste trabalho é compreender de que maneira as formas de violência aqui delimitadas estão incluídas em um novo paradigma da violência, que é explicado, em grande medida, pela dificuldade de agir politicamente face às mudanças materiais e ideológicas promovidas pelo capitalismo flexível. Uma das contribuições desta proposta é demonstrar a importância das transformações nos processos de socialização, a partir dos anos 1990, e da teoria política para os estudos da violência. A organização do debate nestes termos é algo já há muito tempo solidificado nos estudos sobre violência no Brasil, mas nos Estados Unidos, principalmente estudos sobre rampage shootings, este tipo de abordagem acadêmica não foi encontrada. Segundo o professor do Boston College, Charles Derber, "a maioria dos americanos aprendem a ver o mundo através de uma lente psicológia ou individual. Eles veem sociopatia como essencialmente psicopatia (...). Isto ficou claro na reação em 2012 ao massacre de Sandy Hook" (DERBER, 2013) 1 . Para ratificar a relevância atribuída a esta proposta, foi delimitado um tipo de violência como objeto de pesquisa, que se caracteriza por se manifestar em situações onde há pouca possibilidade de se expressar um conflito social sob o registro da ação política. O tipo de violência abordado se caracteriza, além de ser bastante atual, por ter como base ou motivação o ódio. Por ódio entende-se um sentimento forte de aniquilação do outro, no qual a pessoa - imbuída de ódio - não é capaz de produzir o repertório de valores necessários para negociar, dialogar e produzir empatia. No entanto, diferentemente de experiências limites como a do nazismo, este tipo de ódio se manifesta de maneira difusa, fragmentada, e não possui uma única narrativa 1 O massacre de Sandy Hook, ocorreu em Newtown, Connecticut, nos EUA em 14 de dezembro de 2012. Adam Lanza, após matar sua mãe, entrou na escola de Sandy Hook armado, com colete a prova de balas e roupas militares. O atirador matou oito meninas e doze meninos de 6 a 7 anos. Os adultos mortos, 6 ao todo, eram todas mulheres. 10 que o sustente. Assim, pode-se dizer que a forma de violência abordada é típica deste momento pós-fordista e pode ser enquadrada como difusa porque se dissemina por toda a sociedade e adquire uma multiplicidade de manifestações, todas elas vinculadas ao dilaceramento da cidadania (SANTOS, 2004). Segundo José Vicente Tavares dos Santos: Os fenômenos da violência difusa adquirem novos contornos, passando a disseminar-se por toda a sociedade. Essa multiplicidade das formas de violência presentes nas sociedades contemporâneas – violência ecológica, exclusão social, violência entre os gêneros, racismos, violência na escola – configura-se como um processo de dilaceramento da cidadania” (SANTOS, 2004, p.5). Sobre esta delimitação elaborada pelo José Tavares dos Santos, duas características merecem destaque: o caráter múltiplo destes fenômenos e o fato de estarem associados ao dilaceramento da cidadania. Assim, sobre o primeiro aspecto, é importante dizer que este tipo de violência é de difícil conceituação devido à multiplicidade de formas através das quais ele se manifesta. Por não ter uma definição conceitual precisa, não há um estudo que demonstre sua evolução a partir de uma série histórica abrangente. Neste sentido, objetiva-se delimitar um marco teórico e reflexivo que permita fazer convergir a análise sobre a violência difusa para um foco preciso, centrado em formas de violência caracterizadas tanto pela impossibilidade de conviver com o “outro”, expressa na ação contra grupos minoritários, tais como, homossexuais, negros, moradores de rua, quanto pela inabilidade de lidar com opiniões, comportamentos e estilos de vida diferentes. Assim, o conceito de violência de ódio difusa foi estabelecido para delimitar o objeto deste trabalho. O capítulo I tem como foco explicar as transformações que levam à intensificação deste tipo de violência e, em consequência, explicam suas particularidades. 11 Assim, o segundo ponto de destaque do argumento de Tavares dos Santos, que é o dilaceramento da cidadania, se constitui como uma das bases explicativas das formas de violência delimitadas. No texto do capítulo que se segue, associa-se este dilema atual da cidadania com a ideologia do “novo espírito do capitalismo”, que é extremamente privatista e instrumental e, portanto, gera impasses para a construção de conflitos sociais que possam ser institucionalizados ou negociados através de uma “ação política concertada”. Este viés de análise se combina com outro aspecto enfatizado por José Tavares dos Santos, que afirma que “a violência difusa [...] é, em larga medida, legitimada pela consciência coletiva, instituindo-se como norma social, ainda que controversa e polêmica” (idem, p.3). Esta abordagem se distingue da de Durkheim sobre o crime, que o identifica como uma ruptura com a consciência coletiva. O objetivo mais específico será evidenciar, em cada um dos países pesquisados, de que modo os respectivos processos nacionais de construção da cidadania ajudam a compreender os impasses existentes à efetivação de uma dimensão de liberdade ancorada nas premissas do autogoverno e da ação política democrática. Esta segunda dimensão de análise faz parte do estudo comparado proposto, que foi elaborado através da correlação construída entre os modelos de cidadania e os tipos deste fenômeno social abordado, ou seja, as diferentes formas de violência encontradas. Os dados empíricos relativos a estas formas são trazidos para ilustrar e sintetizar as características da violência cotidiana infra e metapolítica, e, posteriormente, tendo como aporte o conjunto teórico estudado, compreendê-las como expressão mais ampla de um problema da política nas sociedades contemporâneas. O capítulo II, dedicado aos Estados Unidos, busca organizar uma reflexão que associa a formação política deste país com as características de alguns tipos de violência 12 que persistem ao longo de sua história. Mais importante, no entanto, é ressaltar as transformações contemporâneas estruturais do capitalismo e na política norte-americana que produzem peculiaridades na sociabilidade e nos valores deste país e, consequentemente, na violência. Anexadas a esta tese estão algumas tabelas coligidas a partir de relatórios do FBI sobre crimes de ódio, bem como uma linha do tempo, que cobre o período de 1982 a 2012, dos rampage shootings. Ao longo do capítulo II estes dados são utilizados e analizados à luz da reflexão proposta sobre a formação política, o associativismo e excepcionalismo americanos. Ao fim do capítulo é também feita uma análise sobre os estudos norte-americanos a respeito dos rampage shootings. O capítulo III se inicia com a análise do conteúdo da cidadania no Brasil e, posteriormente, examina o processo de transformações nos últimos vinte anos combinando-o com os dados coletados neste ano a respeito da violência de ódio difusa. 13 CAPÍTULO I A MODERNIDADE TARDIA E A IRRUPÇÃO DA “VIOLÊNCIA DE ÓDIO DIFUSA” 14 INTRODUÇÃO Através do pressuposto de que os tipos de violência aqui tratados constituem-se como um problema da política, o recorte traçado se dá, resumidamente, através da noção de que a disseminação do neoliberalismo como cultura provoca "a crise da política", que é, por sua vez, uma das razões centrais para a intensificação de formas específicas de violência atreladas a problemas na socialização e identidade e que têm como base o ódio. Este capítulo é dedicado a elucidar este processo social. Deste modo, a relação entre violência e política não é explicada aqui como um problema de institution building, ou seja, "que envolve as agências da ordem, suas relações com a sociedade civil e a formulação de políticas democráticas de segurança pública" (MACHADO DA SILVA, 1999, p.117). É sabido que estudos de violência que apontam falhas no sistema repressivo são muito relevantes para o aperfeiçoamento das polícias, das prisões, das medidas sócio-educativas e das políticas públicas de segurança pública, no entanto, a ênfase dada aqui à afirmação de que a violência constitui-se predominantemente como um problema da política leva a um caminho teórico distinto. Ou seja, o conceito de política aqui tratado não se refere à engenharia institucional, mas à capacidade de transformar paixões em demandas, projetos, e, em conseqüência, em conflitos sociais, produzindo, assim, uma esfera pública plural que se distancia da lógica da ruptura. Deste modo, têm-se como pressuposto que a política deveria ser constitutiva das identidades individuais e coletivas para que as diferenças possam ser trabalhadas de forma democrática, para que opositores estabeleçam uma luta "agonística" e não se 15 constituam como inimigos. Levando em consideração esta noção de política, compreende-se que a violência é resultado da incapacidade de perceber e lidar com a alteridade e, portanto, resultado de uma socialização precária e/ou autoritária. Portanto, o estabelecimento de uma oposição de ordem-desvio não fornece substância para se compreender as raízes sociais que podem construir um convívio mais propenso a determinados tipos de violência. Para tanto, é preciso identificar o processo de socialização que gera na sociedade civil estes dilemas na cidadania ou, em outros termos, esta crise da política. Através do uso de um arcabouço teórico e histórico busca-se demonstrar que a violência de ódio difusa se constitui como um fenômeno típico da modernidade tardia, como um resultado da ideologia do “novo espírito do capitalismo” que dá sustentação a um modelo neoliberal de sociedade. Assim, tem-se como base um processo amplo de transformação social que dá fundamento para compreender que a violência se complexifica na medida em que a sociedade também passa por um processo de mudanças convulsivas. Neste sentido, Michel Wieviorka (2009) defende que para pensar a violência atualmente é necessário um novo paradigma, ou seja, é fundamental uma abordagem original que dê um papel central para a subjetividade dos atores e para os processos de perda de sentido ou de produção exagerada de sentido. Além da reflexão do autor supracitado, há uma diversidade de teorias (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009; SENNETT, 2010; BECK, 2010; WACQUANT, 2001; MOUFFE, 2003, 2009) que, embora não abordem o tema da violência, buscam compreender as transformações do capitalismo, as mudanças na subjetividade e na socialização e que, por isto, ajudam a compreender as especificidades da violência no momento contemporâneo. Este processo de transformação pode ser sintetizado no fato de que a 16 transição da acumulação fordista para a flexível trouxe a reboque mudanças no trabalho e diminuição de políticas de bem-estar social, ambas acompanhadas por uma transformação generalizada na ideologia e na socialização. Assim, o objeto específico desta pesquisa, a violência de ódio difusa, está inserido neste processo histórico mais amplo, no qual o conflito social típico do capitalismo industrial, vinculado às relações contraditórias entre capital e trabalho, já não possui mais centralidade (OFFE, 1989), sendo substituído por um conjunto outro de dilemas relacionados a uma ideologia privatista e instrumental, chamada de “novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2009). Para compreender os nexos que foram construídos para se chegar a esta suposição e depreender quais as suas implicações, é necessário deixar claro, em primeiro lugar, o que se entende por violência de ódio difusa e, posteriormente, indicar o caminho escolhido para desenvolver esta problemática. Compreende-se por violência de ódio aquela que é motivada por preconceito em relação à raça, nacionalidade, etnia, religião, orientação sexual, entre outros. O adjetivo “difusa” foi incluído para evidenciar que não há um grande discurso, nem uma prática idêntica que una todos os agressores em um grande grupo. Além disto, a noção de difusão tem a ver com sua extensão territorial, ou seja, elas se difundem tanto em regiões periféricas, centros urbanos ou áreas gentrificadas, assim como em diferentes territórios e países. Cabe destacar este termo abrange a noção de que ódio é múltiplo também no sentido de que não se expressa, em uma sociedade cosmopolita, somente contra grupos socialmente marginalizados, mas pode se constituir contra uma diversidade de comportamentos, opiniões e estilos de vida. 17 É possível sintetizar e adiantar que, em relação ao processo de transformações do capitalismo contemporâneo, estas formas de violência ocorrem em decorrência de um mecanismo de fuga à liberdade moderna, que se sustenta diante da inabilidade dos sujeitos de lidarem com o cosmopolitismo inerente à modernidade radicalizada. Tendo este ponto de partida para compreender as violências de ódio contemporâneas, se faz necessário acrescentar também outro tipo de violência que possui a mesma origem: os rampage shootings. Estes massacres são, na sua grande maioria, executados por jovens em escolas 2 , shopping centers, cinemas, templos e comunidades religiosas. Estes ataques são premeditados e não há um único alvo estabelecido para o ataque, sendo que, em geral, o atirador acaba se suicidando. Busca-se sustentar que, sobretudo no contexto norte-americano, há a formação de sujeitos vulneráveis e isolados que sofrem preconceito e que não se vinculam a grupos consolidados, relacionados às noções de gênero, raça/etnia, nacionalidade, religião, etc. E, devido também a isto, possuem dificuldades de se articular e agir politicamente. O caráter inegociável dos rampage shootings e sua nítida referência a problemas na socialização contribuem para o entendimento de que esta violência é típica da modernidade tardia e está associada à dificuldade de agir politicamente no mundo contemporâneo. Assim, a criminalidade comum, a violência instrumental ou o conjunto de crimes comumente compreendidos como "violência urbana" não se constituem como o objeto de pesquisa delimitado. Isto não significa que a violência comum não tenha também se 2 Conhecidos como school shootings, estes massacres aumentam principalmente a partir dos anos 1990, nos quais os atiradores, na sua maioria, são alunos que atiram sem alvo estabelecido e, depois, atiram contra si mesmos. Há uma infinidade de reportagens, principalmente nos Estados Unidos, país onde mais acontece este tipo de massacre, que buscam compreender as causas deste fenômeno. Em geral, seja na mídia ou no campo acadêmico americano, as causas deste fenômeno são explicadas pela influência de jogos, filmes e músicas violentos; pela facilidade de comprar armas; por transtornos psicológicos, entre outros. Como exemplo, é possível fornecer duas referências disponíveis na internet: http://www.schoolshooters.info/PL/Articles_files/Rampage%20School%20Shooters- %20A%20Typology.pdf http://www.cmpa.com/files/media_monitor/99julaug.pdf http://www.schoolshooters.info/PL/Articles_files/Rampage%20School%20Shooters-%20A%20Typology.pdf http://www.schoolshooters.info/PL/Articles_files/Rampage%20School%20Shooters-%20A%20Typology.pdf http://www.schoolshooters.info/PL/Articles_files/Rampage%20School%20Shooters-%20A%20Typology.pdf 18 transformado, assimilando discursos de ódio, tal como o crime organizado do PCC, por exemplo, contra policiais e contra os chamados "playboys". Vários exemplos poderiam ser levados em conta para se demonstrar que o "novo paradigma da violência" está inserido nas transformações também do crime comum, no entanto, a violência de ódio difusa como objeto de pesquisa se justifica para se ressaltar a importância das transformações no processo socializador contemporâneo para a compreensão das motivações da violência. A importância deste processo socializador hegemônico fica mais evidente quando se aborda a violência que não parte de sujeitos marginalizados e estimatizados, tal como se constitui o "sujeito bandido". Segundo Michel Misse (2010), o conceito de "sujeito bandido" refere-se a uma representação social que tem as seguintes dimensões: A primeira dimensão é a que seleciona um agente a partir de sua trajetória criminável, diferenciando-o dos demais agentes sociais, através de expectativas de que haverá, em algum momento, demanda de sua incriminação. A segunda dimensão é a que espera que esse agente tenha uma “experiência social” específica, obtida em suas relações com outros bandidos e/ou com a experiência penitenciária. A terceira dimensão diz respeito à sua subjetividade e a uma dupla expectativa a respeito de sua autoidentidade: a crença de que o agente não poderá justificar sensatamente seu curso de ação ou, ao contrário, a crença em uma justificação que se espera que esse agente dê (ou que possa ser dada legitimamente a ele) para explicar por que segue reiteradamente nesse curso de ação criminável (MISSE, 2010, p.24) Assim, o "sujeito bandido" não é simplesmente um sujeito incriminado, mas que possui simultaneamente uma trajetória marcada por uma proximidade com o crime, de marginalização e estigmatização social. Segundo Misse, o sujeito bandido é, por assim dizer, “especial”, aquele cuja morte ou desaparecimento podem ser amplamente desejados" (MISSE, 2010, p.17). Neste sentido, é possível traçar um paralelo com a obra de Judith Butler Marcos de Guerra: las vidas lloradas (2010), que aborda como a 19 vida comum nos EUA está submetida a algumas estruturas de pensamento elaboradas a partir da guerra e isto inclui uma série de precauções, cuidados e visões de mundo. Estes marcos de guerra estabelecem aquelas vidas que merecem ser vividas e, quando perdidas, lamentadas e, por outro lado, aquelas que não merecem ser lembradas ou choradas, tais como os presos de Guantánamo. Assim, mesmo que seja de fundamental importância avaliar como a marginalidade social e estigmatização podem gerar uma propensão maior de os "sujeitos bandidos" cometerem crimes, o que se quer ressaltar aqui são as conseqüências também violentas do outro lado do pensamento hegemônico que sustentam esta marginalização. Em outros termos, a constituição do "sujeito bandido" e de toda a representatividade social que o envolve é uma das evidências de como está sendo moldada a sensibilidade social e a política no Brasil contemporâneo. Para sustentar estas afirmações este trabalho se delineia a partir de duas dimensões de análise: uma teórica e outra histórica. A primeira envolve a concepção, bastante arraigada na filosofia política de Hannah Arendt, de que a violência é o oposto do poder, compreendendo este como ação política concertada. Esta concepção contribui para o entendimento de que este tipo de violência aqui delimitado pode ser caracterizado pela construção de um autoritarismo destrutivo que é motivado, na experiência moderna, pelo medo à liberdade (FROMM, 1964). Além disto, este axioma arendtiano é reforçado posteriormente por Michel Wieviorka (2013) na diferenciação metodológica que estabelece entre conflito social e violência, ainda que o autor não faça uso da teoria de Arendt. Esta reflexão teórica permite construir a ponte entre as transformações históricas do capitalismo e a violência de ódio difusa. A perspectiva histórica é também importante porque atualiza o debate iniciado com Arendt e Fromm, que têm como 20 referência as barbáries do nazismo, praticadas em um momento de excessiva concentração dos poderes político, econômico e ideológico nas mãos do Estado. Assim, sustenta-se que o caráter múltiplo e difuso da violência está relacionado à fragmentação do novo capitalismo, em que o Estado não tem mais a força que teve, nos momentos de consolidação dos Estados-nação, de tornar homogêneo um discurso e uma identidade nacional. Assim, há a construção de uma trajetória histórica típico-ideal que parte das análises do nazismo para traçar um fio condutor que identifique as características em comum entre este regime e as expressões contemporâneas de intolerância, assim como as transformações históricas que as distanciam 3 . Quanto às dimensões atinentes ao processo histórico contemporâneo, é possível resumi-las em três aspectos: o primeiro diz respeito às transformações pessoais do capitalismo flexível, tais como o risco e a insegurança ontológica, que dão base para a reprodução de uma ideologia extremamente privatista e instrumental e, tal como expõe Richard Sennett (2010), para a corrosão do caráter; concomitante a este novo modo de acumulação surgiu e se disseminou a política neoliberal, que, ao mesmo tempo, reduziu drasticamente as políticas de bem-estar social e intensificou os mecanismos de punição através do aumento de prisões, o que gerou, associado às altas taxas de desemprego, a marginalidade avançada (WACQUANT, 2001); é possível dizer que a intensificação da marginalização, somada a uma ideologia privatista e instrumental, pode gerar um ambiente social potencialmente violento que se origina em diversos contextos, não estando necessariamente vinculado às condições de vulnerabilidade econômica. 3 O uso de uma trajetória típico-ideal também se mostra importante porque serve como um guia para buscar nas sociedades delimitadas, Brasil e Estados Unidos, um eixo de análise que conduza a uma síntese que conecte as formas de construção de cidadania peculiares e as expressões de violência também específicas em casa país. 21 Além disto, é importante acrescentar que no capitalismo as mudanças no modo de produção e nos sistemas de vigilância constituem-se como dimensões da modernidade e estas, por sua vez, são fundamentais para se compreender que um novo tipo de modernidade surge no momento contemporâneo. Ainda, esta compreensão permite identificar aquilo que se apresenta como uma condição: a sociedade do risco, que, atrelada à crise da política, impõe a necessidade de se refletir sobre os possíveis modos de reinvenção da política. Ainda que Ulrich Beck traga esta problemática, Chantal Mouffe aponta algumas lacunas em sua proposta e sugere o modelo de democracia plural e agonística, que tem como referência o pressuposto fundamental que guia esta pesquisa: a contraposição entre conflito social e violência. Assim, depois de tratar de toda a dimensão histórica que envolve a irrupção de um "novo paradigma da violência", o texto a seguir volta à discussão teórica para fundamentar o argumento de que estes aspectos associados explicam as novas formas de violência, com novos sentidos e motivações mais associados à identidade, socialização e busca de produção de sentido. REFLEXÃO TEÓRICA: CONFLITO SOCIAL, VIOLÊNCIA E O MEDO À LIBERDADE O suposto, defendido por Hannah Arendt (2000), de que a violência é o oposto do poder, compreendendo-o como ação política concertada, é a principal ideia na qual se baseia este trabalho e a relevância deste axioma se reitera em trabalhos mais contemporâneos como os de Michel Wieviorka (2013) e Chantal Mouffe (2009) 4 . A despeito da distância histórica que separa as análises dos últimos autores em relação à 4 Embora o objeto de estudo da autora não seja a violência, sua obra contribui para compreender a importância da institucionalização do conflito social em registro político. 22 reflexão fundadora de Hannah Arendt, existe um fio condutor que os une, expresso na importância em comum atribuída à esfera da ação política, o que os torna complementares para a análise aqui delimitada. Para Arendt, a “severa frustração da faculdade de agir [politicamente] no mundo contemporâneo” (LAFER, 2000, p. 9) gera diversas formas de violência. Há, em seu pensamento, uma contraposição entre violência e poder, compreendendo este último como “a habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto” (ARENDT, 2000, p. 36). Vale ressaltar que, para esta autora, a política se constitui no cotidiano como uma ação potencialmente conflituosa, competitiva e agonística, marcada, portanto, por confrontos, os quais ocasionalmente podem gerar violência. Assim como Max Weber, Arendt examina que a violência é a última ratio dos governantes, mas discorda da tese segundo a qual o exercício do poder, compreendido como imposição da vontade de um agente sobre os demais, está intrinsecamente conectado aos meios de violência (DUARTE, 2009, p. 21). Diferentemente da tradição do pensamento político ocidental, Arendt não associa conceitualmente poder com coerção, dominação e violência; ao contrário, diferencia noções como força, vigor, poder e violência para dar ênfase ao fenômeno da geração de poder por meio da ação coletiva concertada. Cabe, neste sentido, reter que se o poder, no sentido arendtiano, é construído de forma comunicativa e intersubjetiva, o isolamento toma uma dimensão profunda ao impossibilitar a construção do poder e gerar, portanto, um contexto anti- social de possível anomia, barbárie e tirania. Tendo como pano de fundo a contraposição entre poder e violência, Michel Wieviorka (2013) retoma algumas teorias clássicas para enfatizar a importância de se compreender o conceito de conflito, seja para sociologia em geral, seja para a sociologia 23 da violência. Mais especificamente, o autor contrapõe este conceito às noções de ruptura e violência. Isto porque o conflito pressupõe ação, comunicação e geração de poder através de antagonismos. Wieviorka elabora esta reflexão se distanciando de duas abordagens radicais e opostas nas Ciências Sociais que, segundo ele, minimizam o conhecimento sobre o conflito: uma que reduz a vida social à busca pela harmonia, tal como textos influenciados pelo Confucionismo, e outra que tem como base o Darwinismo social e defende a noção de que a luta entre raças ou classes pode resultar em um mundo mais civilizado. Na tradição sociológica, no entanto, é possível localizar um diversificado conjuntos de teorias, de Maquiavel a Hobbes e de Marx a Weber, que fornece um espaço considerável ao conceito de conflito. Apenas para enfatizar a recorrência deste tema na obra dos autores supracitados, é possível dizer que Maquiavel e Hobbes se focam nas lutas por poder, enquanto Marx elabora uma “teoria do conflito da estratificação” (conflict theory of stratification, no original) e Max Weber enfatiza as divisões de classe social e se foca no controle dos meios materiais de violência (COLLINS, 1975 apud WIEVIORKA, 2013, p.697). Em George Simmel, outro autor que é uma referência na sociologia clássica, o tema do conflito aparece como central e é nele que Michel Wieviorka mais se debruça para diferenciá-lo de violência. O conflito social é, para Simmel, o centro da vida social, que fornece uma fonte fundamental que une a sociedade, porque contribui para a socialização dos indivíduos e para a regularização da vida coletiva. A ideia de conflito pode ser associada à de poder e, em última instância, com a de coerção. É diferente da ideia de sociabilidade; na verdade, significa que os homens são sociáveis, mas também são capazes de se opor e lutar um com o outro. Deste ponto de vista, o conflito acontece quando os interesses dos indivíduos e dos grupos são antagônicos e eles ficam em 24 conflito por status ou poder. Segundo Wieviorka o conflito não é necessariamente violento, mas as relações entre conflito e violência precisam ser esclarecidas: em certas fases, um conflito pode incluir aspectos de violência, mas se a violência permanece e há a perda da capacidade de ser principalmente racional e de haver controle e limites, nestas circunstâncias o conflito fica completamente erodido e imperam outras racionalidades, de pura ruptura, guerra e terrorismo. O autor estabelece que ruptura e conflito são dois conceitos opostos: Rupturas ocorrem quando dois indivíduos ou grupos se separam e, na melhor das hipóteses, constroem o abismo que os isola, ignorando-se uns aos outros ou, na pior das hipóteses, buscam a destruição do outro lado. Pela perspectiva adotada aqui, conflito não significa guerra, ou, pelo menos, não um tipo de guerra que, em vez de continuar a política por outros meios (para usar a máxima famosa de Clausewitz), prefere aniquilar um inimigo [tradução livre] (WIEVIORKA, 2013, p.699). Assim, Wieviorka resume que, para ser conflito, é necessário que se tenha três elementos: uma esfera de ação ou um conjunto de questões que são as mesmas para todos os atores; uma relação de oposição; e um princípio de identidade, que significa que os atores se identificam em uma posição na sociedade, como o trabalhador e o patrão, ou, em outros termos, como o proletariado e o capitalista. O autor deixa claro, portanto, que o conflito social pressupõe atores cientes do seu lugar no mundo, de sua identidade social, daquilo que os oprime e, a partir disto, da criação de demandas e de causas a serem defendidas. Neste sentido, o momento do capitalismo fordista se diferencia muito do mundo social construído no capitalismo flexível, pois o primeiro pode ser identificado como um capitalismo organizado, enquanto que no segundo o que predomina é a incerteza e a insegurança. Para se compreender as diferenças no potencial de construção de conflitos 25 em cada momento é fundamental aliar esta noção da natureza conflituosa da sociedade a uma abordagem histórica. REFLEXÃO HISTÓRICA: O TOTALITARISMO E A VIOLÊNCIA DE ÓDIO A contraposição entre poder e violência gera algumas questões fundamentais tais como: o que leva o indivíduo a abrir mão de sua autonomia e liberdade? Ou, quais condições sociais levam os indivíduos a recusarem os conflitos sociais de maneira agonística e optarem pela ruptura? Tendo como base a reflexão de Bauman (1999), é lícito dizer que esta é uma problemática que se solidifica com a modernidade e se mantém até o momento contemporâneo. Na verdade, como bem sintetiza o autor, a “modernidade diz respeito à produção da ordem, então a ambivalência é o refugo da modernidade” (BAUMAN, 1999, p.23). Ou, em outras palavras, a modernidade se constitui como uma luta constante contra a ambivalência. Um resultado desta luta contra a ambivalência bastante relevante foi o Holocausto, o que significa dizer que este não se constitui como um problema unicamente alemão, ou derivado simplesmente de uma judeofobia que existia desde a era pré-moderna e muito menos foi um episódio histórico único e isolado. Os primeiros a diagnosticarem o Holocausto como consequência de uma autodestruição do esclarecimento foram Adorno e Horkheimer no livro Dialética do Esclarecimento. Nas palavras dos autores, [...] O esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. (...) Contudo, a credulidade, a aversão à dúvida, a temeridade no responder, o vangloriar-se com o saber, a timidez no contradizer, o agir por interesse, a preguiça nas investigações 26 pessoais, o fetichismo verbal, o deter-se em conhecimentos parciais: isto e outras coisas semelhantes impediram um casamento feliz do entendimento humano com a natureza das coisas e acasalaram, em vez disso, a conceitos vãos e experimentos erráticos (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.19). Erich Fromm, outro integrante da Escola de Frankfurt, parte do mesmo pressuposto que Adorno e Horkheimer, ou seja, revela os fracassos do ideal Iluminista e, de certa forma, antecipa a constatação de que, para compreender profundamente a violência, é necessária a análise das subjetividades, viés mais consolidado nos estudos contemporâneos. Segundo o autor, no debate científico sobre o nazismo há dois campos opostos de análise: um que desconsidera totalmente a psicologia e considera o nazismo um fenômeno essencialmente político e econômico e outro que defende que o nazismo é um problema inteiramente psicológico. Ao elaborar seu livro O medo à Liberdade, Fromm se distancia destes dois polos e defende que “o nazismo é um problema econômico e político, porém o fascínio por ele exercido sobre um povo inteiro tem de ser interpretado em bases psicológicas” (FROMM, 1964, p. 175). Assim, ele leva em consideração a estrutura do caráter daqueles que foram atraídos por este regime e busca compreender as características psicológicas desta ideologia. Para chegar a esta compreensão, ele parte do pressuposto de que, no mundo moderno, ou seja, em um mundo em que são rompidos os vínculos primários que dão segurança ao indivíduo, há dois possíveis caminhos para superar o estado de impotência e solidão: a liberdade positiva e os mecanismos de fuga. De maneira sintética, o autor define que a liberdade positiva “consiste na atividade espontânea da personalidade integrada em sua totalidade” (idem, p. 214). Os dois mecanismos de fuga, o autoritarismo e o conformismo de autômatos, são utilizados para explicar o comportamento diante do nazismo entre diferentes classes na Alemanha. 27 O caráter autoritário, segundo ele, se constitui através de características masoquistas e sádicas, sendo que as primeiras se definem pela necessidade de encontrar um senhor, uma autoridade fora da própria pessoa que a poupe da necessidade de tomar decisões e da responsabilidade pelo seu destino. O sofrimento sentido, consequência desta característica, se institui como um meio para o esquecimento do próprio eu. De outra parte, os impulsos sádicos se caracterizam pela necessidade de exercer o domínio completo sobre outra pessoa. Segundo o autor, as pessoas autoritárias não são somente masoquistas ou sádicas, elas “ficam oscilando constantemente entre o lado ativo e o passivo do complexo simbiótico” (FROMM, 1964, p. 136). Podem, no entanto, desenvolver a destrutividade, em que a busca para dominar o outro se transforma na busca para destruí-lo. Implicado na vida social, este tipo de caráter dissolve o conceito de igualdade, já que, para ele, o mundo é divido entre pessoas que possuem poder e pessoas destituídas do mesmo. Erich Fromm identifica este autoritarismo e a defesa apaixonada ao nazismo na classe média inferior, a mais abalada pelas consequências deixadas pela Primeira Guerra Mundial. A vida desta classe no momento anterior à guerra era estável. Segundo o autor, A autoridade da monarquia era indiscutível, de modo que nela se apoiando e com ela se identificando o membro da classe média inferior adquiria um sentimento de segurança e de orgulho narcisista. Igualmente, a autoridade da religião e da moralidade tradicional possuía raízes firmes. A família ainda não fora abalada e era um refúgio seguro em um mundo adverso. O indivíduo sentia que pertencia a um sistema social e cultural estável em que tinha lugar marcado (FROMM, 1964, p. 179) O pós-guerra abalou profundamente a segurança ontológica principalmente desta classe social, que foi prejudicada pela inflação, que se intensificou em 1923 e, 28 principalmente, depois da depressão de 1929, a derrota da guerra e, consequentemente, da monarquia. Este cenário provocou também um abalo drástico da autoridade proveniente da família sem o amparo de sentido que tinha a monarquia, o Estado e a poupança conquistada durante muitos anos. Segundo Fromm, esta decadência sofrida, aliada ao caráter social da classe média, que pode ser resumido “ao amor aos fortes e ódio aos fracos, hostilidade, mesquinharia e parcimônia no que tocava aos sentimentos tanto quanto ao dinheiro, e essencialmente seu ascetismo” (FROMM, 1964, p.177) fez com o nazismo tivesse um apelo emocional tremendo e cativasse profundamente esta parcela da população. Além desta parcela da população que estava fanaticamente apegada ao nazismo havia outro grupo que não expressou grande resistência (exceto uma pequena minoria que lutou contra o nazismo) nem muita admiração, apenas se resignou ao regime nazista. Este grupo consistia, sobretudo, na classe operária e na burguesia liberal e católica. Para Fromm, este grupo reproduzia um mecanismo de fuga que se encontra em maior quantidade na sociedade moderna: o conformismo de autômatos. O autor resume este mecanismo da seguinte forma: “digamos que o indivíduo cessa de ser ele mesmo; adota inteiramente o tipo de personalidade que lhe é oferecido pelos padrões culturais e, por conseguinte, torna-se exatamente como todos os demais são e como estes esperam que ele seja” (idem, p. 157). O que é importante destacar aqui é que, ainda de acordo com Fromm, após Hitler subir ao poder e abolir todos os outros partidos, seu regime passou a ser, para a população, idêntico à Alemanha, o que implicava no fato de que combater o nazismo naquele momento significava desligar-se das comunidades dos alemães. Este ponto, que retrata os motivos do conformismo, assim como o fato da classe média ter encontrado 29 no Estado um amparo de sentido para recompor seu autoritarismo, permitem compreender algo que não foi superado com o fim do nazismo e também aquilo que se transformou completamente. Para dizer mais claramente, ainda que não estejam superados estes mecanismos de fuga à liberdade, ou que a luta contra a ambivalência não tenha terminado juntamente com o nazismo, este regime apenas foi possível nestes moldes porque naquele momento o Estado se constituía na promessa de promover uma sociedade racionalmente planejada, ou, no caso específico do nazismo, de promover ou lutar por uma humanidade homogênea e superior. O que se transforma é que no momento contemporâneo não é mais o Estado que concentra a função de lutar contra ambivalência, mas o indivíduo sozinho. Segundo Bauman, Com o Estado moderno recuando de suas ambições de jardinagem e a razão filosófica optando pela interpretação em vez da legislação, a rede de especialização, ajudada e mediada pelo mercado consumidor, assume o cenário no qual os indivíduos devem enfrentar sozinhos o problema da ambivalência no curso dos seus esforços autoconstrutivos pessoais, busca da certeza documentada na aprovação social (BAUMAN, 1999, p.25). Assim, fica claro que a luta contra a ambivalência permanece, mas há profundas diferenças nos formatos desta luta, nas suas motivações e conseqüências. Em outros termos, a recuperação das origens do nazismo fornece a noção de que a intolerância obviamente não está presente somente no mundo contemporâneo, mas ela se transforma, na medida em que se modificam as formas de eliminação da ambivalência, de busca da ordem ou de negação do conflito social. Isto porque a modernidade, ao mesmo tempo em que inaugura a noção de indivíduo como detentor de direitos e, portanto, livre da obrigatoriedade da tradição, também estabelece a promessa de que 30 através da razão e da ciência o homem vai ser capaz de controlar a natureza e a sociedade. É neste sentido que a Escola de Frankfurt, sobretudo Adorno e Horkheimer (1985), estabelece que o esclarecimento produziu o seu contrário, a barbárie. Este pensamento estabelece que na modernidade há um dilema, ou problema da política, que permanece no mundo contemporâneo. A partir disto, é necessário esclarecer o motivo de se atribuir "a crise da política" ao capitalismo flexível. Para isto é fundamental diferenciar a noção de modernidade clássica ou industrial da noção de modernidade tardia (ou sociedade do risco). A modernidade refere-se a um conjunto de instituições e comportamentos estabelecidos na Europa depois do feudalismo e tornadas mundiais no século XX (GIDDENS, 2002, p.21). A modernidade possui, como principais dimensões, o mundo industrializado, compreendido como "relações sociais implicadas no uso generalizado da força material e do maquinário nos processos de produção" (idem); o capitalismo, "que é um sistema de produção de mercadorias, envolve tanto mercados competitivos de produtos como a mercantilização da força de trabalho" (idem); e a vigilância, que "se refere ao controle e à supervisão de populações submissas" (idem), no intuito de possuir informações para coordenar atividades. A forma social mais importante produzida pela modernidade é o Estado-nação, que monopoliza o controle efetivo dos meios de violência e tem como elemento integrador uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2008), que significa que todos os indivíduos que dela participam possuem uma ideia ou una narrativa da comunidade na qual participam, independente da classe social. Além de imaginada, é limitada, devido às suas fronteiras, e soberana, condição, por sua vez, estabelecida pelas estruturas administrativas elaboradas a partir da modernidade. 31 Ainda que o Estado-nação seja um formato fundamental no capitalismo flexível para as relações comerciais e de política externa, ele não tem mais a força integradora que tinha no momento de modernidade industrial. Pode-se dizer que o Estado-nação foi o grande mediador de conflitos sociais na modernidade industrial, assim como, no âmbito cotidiano, foi o trabalho. Ou seja, ainda que o dilema da modernidade se impusesse (sendo o nazismo o exemplo extremo), o Estado-nação e o trabalho eram os organizadores da política no momento da sociedade industrial e, quando se irrompia uma lógica de ruptura, as formas de violência tradicionais se davam, predominantemente, através de guerra entre Estados e de formas de violência de cunho instrumental. Estas possibilidades de ruptura ainda existem enquanto outras começam a surgir como resultado de um indivíduo profundamente desencaixado, que tem como referência de controle e de organização -, muitas vezes, apenas - uma ideologia narcisista e competitiva. A crise da política se institui no capitalismo flexível devido à crise das instâncias que organizavam o campo da política e promoviam a autolimitação. Segundo Bauman: a arte da política, se for democrática, é a arte de desmontar os limites à liberdade do cidadão: a de libertar os indivíduos para capacitá-los a traçar individual e coletivamente seus próprios limites individuais e coletivos. Esta segunda característica foi praticamente perdida. Todos os limites estão fora do limites. Qualquer tentativa de autolimitação é considerada o primeiro passo no caminho que leva direto ao gulag, como se não houvesse nada além da opção entre a ditadura do mercado e a do governo sobre as nossas necessidades - como se não houvesse lugar para a cidadania fora do consumismo. (...) A aversão à autolimitação, o conformismo generalizado e a resultante insignificância da política têm, no entanto, seu preço - um preço aliás exorbitante. O preço é pago na moeda em que é pago geralmente o preço da má política - do sofrimento humano (BAUMAN, 2000, p.12-13). 32 Dito isto, a modernidade tardia precisa ser compreendida nas suas especificidades, através das de suas dimensões fundamentais, a saber: o capitalismo flexível, a ideologia do "novo espírito do capitalismo" e a condição social da sociedade do risco. Tudo isto engendra um novo tipo de socialização em que a política precisa ser reinventada. O “NOVO ESPÍRITO DO CAPITALISMO” E A CORROSÃO DO CARÁTER De maneira resumida é possível dizer que este novo tipo de acumulação, através de uma intensa inovação comercial, tecnológica e industrial, se “apoia na flexibilidade do trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo” (HARVEY, 1992, p.140). A flexibilidade do trabalho gera o aumento da subcontratação e do desemprego fazendo com que o poder sindical, que dependia do acúmulo de trabalhadores na fábrica, seja diminuído, ao passo que o trabalhador que goza de maior segurança no emprego “deve atender à expectativa de ser adaptável, flexível e, se necessário, geograficamente móvel” (idem, p.144). Para justificar e reproduzir este padrão de acumulação e de comportamento hegemônico foi construído “um conjunto de crenças compartilhadas, inscritas em instituições, implicadas em ações e, portanto, ancoradas na realidade” (BOLTASKI; CHIAPELLO, 2009, p. 33) que constitui uma ideologia, nos termos de Luis Dumont 5 , do “novo espírito do capitalismo”. Boltanski e Chiapello buscam na literatura de gestão empresarial um “suporte capaz de dar acesso mais direto às representações associadas ao espírito do capitalismo de uma época” (2009, p. 84). Esta literatura constitui um corpora, sendo objeto de estudo destes autores 5 Os autores Boltaski e Chiapello em O novo Espírito do capitalismo utilizam o conceito de ideologia de Luis Dumont. 33 textos dos anos 1960 e dos anos 1990 que, por sua vez, apresentam diferenças entre seus discursos em razão das mudanças históricas no modo de produção capitalista. Assim, nos anos 1960 a gestão empresarial passa a associar as empresas à democracia e, em consequência, à razão e à liberdade, em contraposição aos regimes totalitaristas, relacionados à paixão e à barbárie. A literatura dos anos 1990 retoma esta associação da empresa com a democracia, mas para contestá-la. Segundo os autores, a crítica nos anos 1990 consistia no argumento de que: “por se querer racionalizar cada vez mais a marcha das empresas, criaram-se máquinas desumanas. O que é “próprio do homem” mudou de natureza: a razão dos anos 60 versus sentimentos, emoção criatividade nos anos 90” (BOLTANSKI; CHIAPELLO 2009, p. 118). Desta forma, se nos anos 1960 havia uma hierarquia forte nas empresas e o objetivo dos funcionários era construir maneiras de subir nesta hierarquia, nos anos 1990, o propósito era e, ao que tudo indica, continua sendo, o desenvolvimento pessoal, a autoconstrução para se manter aberto e flexível, no intuito de se adaptar permanentemente a novas circunstâncias (ibidem, p. 122-124). Esta ideologia é classificada como “regime de projetos”, pois são eleitos constantemente os maus comportamentos e os comportamentos éticos, que proporcionaram empregabilidade e, mais do que isto, geram a possibilidade de associação sempre a projetos de sucesso. As características desta nova ideologia, que pode ser identificada como privatista e instrumental, geram, no âmbito pessoal, ansiedade e incerteza e, no campo macrossocial, a retração da esfera pública e a desvalorização da cidadania. No livro a Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo, Richard Sennett (2010) fornece alguns exemplos de situações vividas por norte-americanos no momento do capitalismo flexível para demonstrar a ansiedade 34 causada pela ausência de parâmetros e caminhos seguros juntamente com a imposição de novos controles. Para o autor, a necessidade de adaptabilidade e flexibilidade gera uma desvalorização da experiência adquirida a longo prazo, o que implica na corrosão do caráter que é construído a partir da experiência, lealdade e das metas futuras. No capítulo sobre o risco, Sennett define que a incerteza inerente ao risco o torna desnorteante e deprimente através do exemplo de uma publicitária chamada Rose, com mais de 40 anos, que arrendou seu bar em Nova York para participar de um projeto de dois anos em uma empresa do setor publicitário. Após um ano, no entanto, Rose voltou a tomar conta do bar, pois não havia gostado da experiência. Nas palavras de Sennett, o que a irritava era mais sutil: sentia-se constantemente em teste, mas nunca sabia exatamente em que posição estava. Não havia medidas objetivas que se aplicassem a fazer um bom serviço, além do zunzum e das aptidões necessárias a “não deixar nada grudar na gente”. E isso era sobretudo irritante porque Rose fazia uma experiência pessoal. Não entrara naquele mundo para vencer financeiramente, só para fazer alguma coisa interessante na vida. (...) É preciso coragem para uma mulher de meia idade como Rose arriscar uma coisa nova, mas a incerteza sobre sua posição, combinada com a negação da experiência que vivera, minou sua coragem. “Mudança”, “oportunidade”, “novo”: tudo soava vazio quando ela decidiu retornar ao Trout [Bar]. Embora sua disposição de arriscar fosse incomum, embora o ramo da mídia seja incomumente fluido e superficial, seu fracasso ilustra algumas confusões mais gerais sobre a orientação da pessoa num mundo flexível (SENNETT, 2010, p. 92-93). O grande dilema que se coloca aqui é que o capitalismo flexível gera uma sociedade profundamente atomizada, que gera grandes desafios para se sustentar um processo político que valorize a construção permanente da cidadania e dos direitos. Esta inabilidade social se torna ainda mais dramática diante dos desafios inerentes à sociedade do risco, quais sejam, as incertezas, problemas ecológicos, o cosmopolitismo. 35 A SOCIEDADE DO RISCO E O PLURALISMO "AGONÍSTICO" A hegemonia da ideologia do "novo espírito do capitalismo" e sua evidente incapacidade de transformar demandas e antagonismos em uma ação política concertada gera a crise da política, que abre lacunas na vida social e uma propensão a que se originem novas formas de violência. Sabe-se, no entanto, que as ideologias, os sistemas econômicos, a política e a violência se transformam, mas há algo a mais que é preciso considerar e que se constitui como uma condição: a sociedade do risco. Esta condição social está relacionada à crise do Welfare State, às transformações na tecnologia e na informação, e à conseqüente integração do mundo, que se consolida principalmente com o término da Guerra Fria. Através do resgate histórico do processo de transição da sociedade industrial para a sociedade do risco, Ulrich Beck demonstra como os modos de vida e a política se transformaram – com o surgimento do que ele denomina por subpolítica –, através do desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da economia. Para explicar esta mudança sistêmica na política, Ulrich Beck destaca quatro dimensões deste processo. A primeira diz respeito à noção de cidadão dividido entre um sistema político- administrativo e outro técnico-econômico. Ou melhor, a partir da sociedade industrial a esfera da política se constituiu como aquela em que os cidadãos usufruem de seus direitos e consentem que o poder e a dominação devam ser exercidos pelos seus eleitos. Por outro lado, a esfera da economia se torna a dos interesses privados no campo do trabalho e das inovações tecnológicas que aumentam o bem-estar coletivo e individual. A conseqüência desta separação, segundo Beck, é que: 36 Apenas uma parte das competências decisórias socialmente definidoras é inserida no sistema político e submetida aos princípios da democracia parlamentar. Uma outra parte escapa às regras do controle público e justificação, e é delegada à liberdade de investimento das empresas e à liberdade de pesquisa (...). Com o estabelecimento da sociedade industrial, dois processos opostos de organização da transformação social interpenetram-se - a produção da democracia político-parlamentar e a produção de uma transformação social apolítica e não democrática, sob as regras de legitimação do "progresso" e da "racionalização" (BECK, 2010, p.276-277). Como segunda dimensão deste processo, Beck destaca que esta fronteira perdeu parte de sua sustentação nos países ocidentais industriais devido aos efeitos sociais causados (ameaças à saúde, destruição da natureza, injustiças sociais), o que gerou um impulso político para a construção do Estado Social. No entanto, este modelo não superou esta fronteira estabelecida na sociedade industrial, além de ter entrado em crise 6 . Segundo Beck esta fronteira ao mesmo tempo em que mutilou o político também fez surgir uma faceta política no sistema técnico-econômico devido à "mudança sistêmica do trabalho, fragilização da ordem estamental de gênero, destradicionalização das classes, intensificação das desigualdades sociais e novas tecnologias" (idem, p.278). Neste sentido, a terceira dimensão a ser considerada é a constituição de uma nova cultura política, que está relacionada ao que Beck denomina de subpolítica. Assim, com a tecnologia de reatores, microeletrônica, genética humana, novos riscos tornam-se evidentes e questões empresariais, científico-tecnológica e da esfera íntima adquirem uma feição política ou subpolítica, nomenclatura que expressa seu status híbrido. 6 A crise do Welfare State compreende três aspectos distintos e interligados: em primeiro lugar, foi uma crise da lucratividade do sistema capitalista, decorrente do declínio do padrão tecnológico- científico de produção fordista; em segundo lugar, foi uma crise das instituições políticas e da estrutura de governança do Estado capitalista democrático, erguidos em um contexto de estabilidade macro- econômica obtida por meio de um equilíbrio de poder de classe; e por fim, foi uma crise da capacidade de intervenção do Estado no econômico e no social face às transformações aceleradas da economia. Esta crise se desencadeia no fim dos anos 1960 e de acordo com David Harvey, o período de 1965 a 1973 revelou a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as contradições do capitalismo. (HARVEY, D. 1992.p. 134-162). 37 A quarta dimensão, por sua vez, é a revolução da malha da normalidade através da incorporação de um "sistema subpolítico da modernização científico-técnico- econômica" (idem, p.279). A subpolítica se constitui através de uma nova forma de individualização que passa a ter que administrar os riscos e o caráter cosmopolita da sociedade do risco. Assim esta individualização da modernização reflexiva se reflete principalmente no fato de que “hoje as pessoas não estão sendo ‘libertadas’ das certezas feudais e religiosas-transcendentais para o mundo da sociedade industrial, mas sim da sociedade industrial para a turbulência da sociedade do risco” (BECK, 1997, p.61). Ou seja, a individualização, nos termos de Ulrich Beck, é uma desincorporação e reincorporação dos modos de vida da sociedade industrial por outros modos, os quais surgem, se adaptam diante das condições gerais do Welfare State, que considera os indivíduos como atores de sua própria biografia, de sua identidade, de suas convicções. Ou seja, este processo se materializa através da transformação da esfera privada, que, nas palavras de Beck: não é o que parece ser: uma esfera delimitada em oposição ao mundo à sua volta. Ela é uma exterioridade internalizada e tornada privada, uma exterioridade de circunstâncias e decisões definidas alhures (...) em patente desconsideração pelas consequências biográfico-privadas (BECK, 2010, p. 197). Esta exterioridade se transforma sobretudo diante do conhecimento científico e do avanço da tecnologia, dando forma à sociedade do risco que é marcada profundamente pela impossibilidade de estabelecer apenas alguns lugares de perigo ou sujeitar somente algumas pessoas ao risco. Em outras palavras, a produção de riqueza, na sociedade do risco, é acompanhada pela produção disseminada dos riscos e pelo aumento da percepção dos mesmos. Estão incluídos nestes riscos ameaças nucleares, 38 terroristas, ecológicas, climáticas, alimentares, pandemias, entre outras. Se os riscos evidentemente aumentam com a integração mundial, eles também se tornam mais percebidos devido ao avanço da informação. A consciência do risco gera uma "era especulativa da percepção e do pensamento cotidiano" (idem, p.89), o que pode produzir não somente a consciência da ameaça, mas também o seu inverso "a negação movida pelo medo" (idem, p.91). Segundo Ulrich Beck: A sociedade do risco envolve assim, justamente com a ampliação dos perigos a simultânea inércia política, uma tendência imanente à sociedade do "bode expiatório" (...). É justamente a inabarcabilidade e o desamparo diante das ameaças que, com sua ampliação, favorecem reações e correntes políticas radicais e fanáticas, que transformam os estereótipos sociais e os grupos por eles atingidos em verdadeiros "pára-raios" para ameaças que se mantêm invisíveis, inacessíveis à ação (BECK, 2010, p.93). Ainda que não seja o foco de Ulrich Beck aprofundar os estudos sobre as formas de intolerância geradas na sociedade do risco em situações de crise da política, ele revela os diferentes caminhos que um processo social pode ter a partir das transformações da modernização. Os pressupostos de Beck são semelhantes aos de Erich Fromm (1964), quando este destaca que os homens podem escolher, na modernidade, entre o caminho da liberdade ou, devido à incerteza inerente à perda de sentido da tradição, a recusa à liberdade, que leva inevitavelmente ao autoritarismo ou à anulação da personalidade. Entretanto, as formas de expressão desta recusa são elaboradas de maneiras distintas, pois incluídas nas transformações da ciência e da tecnologia estão também a ampliação dos fluxos migratórios e a intensificação de políticas públicas para minorias, o que impõe um novo tipo de socialização mais plural e cosmopolita. 39 Como expõe Ulrich Beck, estas mudanças estabelecem “o fim dos outros”, ou melhor, “o fim de todas as nossas bem cultivadas possibilidades de distanciamento” (2010, p.7). Segundo o autor, até então, toda a miséria e toda a violência que os seres humanos infligiram a outros seres humanos estava reservada à categoria dos “outros” – judeus, negros, mulheres, refugiados, dissidentes, comunistas, etc. De um lado, havia cercas, campos, distritos, blocos militares e, de outro, as próprias quatro paredes – fronteiras reais e simbólicas, atrás das quais aqueles que aparentemente não eram afetados podiam se recolher. Isto tudo continua a existir e, ao mesmo tempo, desde Chernobyl deixou de existir. (...) E aí reside sua força cultural e política. Sua violência é a violência do perigo, que suprime todas as zonas de proteção e todas as diferenciações da modernidade (BECK, 2010, p. 7). Este contexto transformado pode também ser traduzido como o momento cosmopolita da sociedade do risco, que, nas palavras de Ulrich Beck, significa “a conditio humana da irreversível não-exclusão do estrangeiro distante” (BECK, 2008), que coloca a necessidade de reconhecer a pluralidade do mundo no cotidiano. O autor tem como base a história da Alemanha, mas o diagnóstico feito por ele refere-se às mudanças ocasionadas pelo capitalismo flexível na esfera tanto da produção como da vida cotidiana. Desta forma, a flexibilização da jornada de trabalho trouxe formas inovadoras, flexíveis e plurais de subocupação e, em consequência, trouxe situações e padrões de desenvolvimento biográfico inéditos. Como dito anteriormente, este panorama efetua uma mudança na essência da política, verificável na transição da modernidade simples para a modernidade reflexiva: a primeira concentrando a esfera pública como o seu lugar característico e a segunda evidenciando a “privacidade como a menor unidade concebível dentro do político – contém dentro de si a sociedade mundial” (BECK, 1997, p. 61). Este processo fornece sentido ao conceito de subpolítica (sub-politics) cunhado por Ulrich Beck, que significa, 40 resumidamente, “moldar a sociedade de baixo para cima” (idem, p.35); que à primeira vista (de cima) pode significar perda do poder de implementação, mas, por outro lado, cria a possibilidade permanente de haver arranjos sociais que produzam voz para grupos até então subalternizados. Assim, o indivíduo que emerge na sociedade do risco passa a viver uma dualidade que o coloca, a um só tempo, como responsável pelo próprio sucesso ou fracasso – e, portanto, sob a condição de uma rotina marcada pela pressão e ansiedade – e como possível reformador do mundo, perspectiva que inaugura um novo potencial da política. Segundo Beck esta é uma condição irreversível seja no âmbito da administração dos riscos, na transformação da individualização e nos processos políticos. Este último processo diz respeito ao fato de que os campos da subpolítica, tais como economia, ciência, vida privada, estão alterando as condições da vida social e fazendo política através de seus próprios meios. Para o autor, "a política não é mais a única e nem mesmo a mais importante instância em que se decide sobre a configuração do futuro social" (BECK, 2010, p.338). Há necessidade, no entanto, de controle destas instâncias através de tribunais fortes e independentes que deveriam ser complementadas por possibilidades de autocrítica. Esta é, resumidamente, a proposta política de Beck para a assimilação das condições que se impõem na sociedade do risco. O diagnóstico das transformações da sociedade industrial para a sociedade do risco e sua irreversibilidade é bastante convincente, no entanto, Chantal Mouffe identifica lacunas em sua proposta política. Estabelecendo sua problemática no campo da política e em consonância com as abordagens teóricas sobre a natureza conflitiva da estrutura social, Chantall Mouffe elabora uma reflexão bastante relevante para o tema aqui delimitado. A autora critica o 41 que chama de "zeitgeist pós-político" contido nas teorias dos defensores da democracia liberal contemporânea. Segundo a perspectiva da autora, os teóricos liberais da democracia 7 formam parte de uma visão comum antipolítica que se nega a reconhecer a dimensão antagônica constitutiva do fenômeno político (MOUFFE, 2009, p.10). Para ela, Ulrich Beck é um universalista que busca um "pacifismo legal" através de um estabelecimento de uma democracia cosmopolita, que parte do pressuposto de que a interpretação ocidental dos valores democráticos é a única racional e legítima. Mesmo que bem intencionada, Mouffe aponta que esta concepção está muito perto de justificar a hegemonia do Ocidente e a imposição de seus valores particulares (MOUFFE, 2003). Mouffe demonstra em grandes linhas que o pensamento democrático liberal distancia a política do conflito social ao partir do pressuposto de que, através de procedimentos supostamente imparciais, é possível desenhar instituições que estimulem a criação de um consenso racional universal que reconcilie todos os interesses e valores sociais em conflito. Ao invés disso, diz a autora, a tarefa dos teóricos e políticos democráticos deveria consistir em promover uma esfera pública vibrante, de luta agonística, onde possam se confrontar diferentes projetos políticos hegemônicos (MOUFFE, 2009, p.11). Com este viés, a autora defende o projeto de democracia radical plural, no qual se compreende que: as relações de poder são constitutivas do social, então a questão principal da política democrática não é como eliminar o poder, mas como constituir formas de poder compatíveis com valores democráticos (MOUFFE, 2003, p.14). 7 Chantall Mouffe classifica o pensamento liberal contemporâneo em dois grandes paradigmas, que, a despeito das diferenças, compartem da mesma visão antipolítica: o paradigma agregativo, presente nos pressupostos da teoria da escolha pública (e também na teoria da escolha racional); e o paradigma deliberativo, presente nos pressupostos do pragmatismo norte-americano e da ação comunicativa de Jürgen Habermas (MOUFFE, 2009, p.20). 42 Nesta abordagem a relação entre democracia e poder deve ser constitutiva das identidades sociais, tendo o pressuposto de que os valores democráticos devem conduzir relações que são antagônicas em um processo "agonístico". De fundamental importância para Mouffe são as consequências da negação do conflito para a política democrática. Isto porque o enfoque consensual, ao invés de criar condições que permitam o florescer de uma sociedade reconciliada, conduz à emergência de antagonismos que uma perspectiva agonística poderia evitar, uma vez que capaz de proporcionar a estes conflitos uma forma legítima de expressão (idem, p.12). O divórcio entre a política e o conflito social, expresso na política democrática contemporânea, leva a que indivíduos e grupos sociais politicamente marginalizados constituam suas identidades em um registro moral. Ao invés de serem definidas mediante categorias políticas, as identidades surgem como consequência de uma polarização radical que, em situações- limite, adquire feições de uma luta entre bem e mal, em que não existem adversários políticos, mas inimigos a serem aniquilados. A perspectiva de Chantal Mouffe se aproxima com a de Hannah Arendt e de Michel Wieviorka na medida em que identifica que a ausência de conflito e, portanto, da incorporação da política nas diversas relações sociais abre um caminho propício para a intolerância e violência. Para Mouffe, o colapso do comunismo, longe de ter "conduzido a uma suave transição para a democracia pluralista, abriu caminho para uma explosão de conflitos étnicos, religiosos e nacionalistas que muitos liberais não podem compreender" (MOUFFE, 2003, p.12). O uso do termo "político" é intensamente abordado nas teorias democráticas liberais - que possuem como base principal o individualismo, o racionalismo e universalismo -, mas é esvaziado pelo entendimento de que os atores agem apenas orientados pelos seus interesses racionais. Como 43 conseqüência, as paixões são apagadas do jogo político o que empobrece a compreensão da elaboração de identidades políticas diante das grandes transformações da globalização. Mouffe aponta uma lacuna na teoria de Beck que é preciso ser considerada nesta pesquisa, pois a abordagem da violência consiste no entendimento de que o conflito social é fundamental para a constituição de uma sociedade mais democrática e plural. Este pressuposto é o que une as principais referência deste trabalho, quais sejam: Arendt (2000), Wieviorka (2009) e Mouffe. Ulrich Beck se afasta deste pressuposto e propõe uma "nova política" que ele expressa como universal. No entanto, mesmo que a sociedade do risco se constitua, de maneira inequívoca, como uma condição social, as formas de incorporação social são múltiplas e estão relacionadas ao conteúdo acumulado de experiência social de cada sociedade. Isto é verificável na comparação de uma sociedade de modernidade periférica radicalizada, como o Brasil, e outra de modernidade radicalizada de um país de capitalismo central, como os Estados Unidos. O CAPITALISMO FLEXÍVEL E O "NOVO PARADIGMA DA VIOLÊNCIA" Segundo Wieviorka, o capitalismo do pós-guerra ou o capitalismo fordista se caracterizava pela rigidez, padronização, vigilância e disciplina impostas no mundo do trabalho e que inevitavelmente conduziam a resultados nas visões de mundo e impulsionavam um conjunto de conflitos sociais. Notavelmente a exploração era principalmente o que sintetizava a vida dos trabalhadores deste momento e motivava os conflitos sociais expressados, sobretudo, pelos movimentos sindicais. Apesar disto, este momento do capitalismo possuía duas características que foram perdidas no capitalismo 44 flexível: a segurança ontológica e uma sensação de utilidade no mundo. Mais especificamente, o autor reflete sobre a dissolução do conflito capital/trabalho e o surgimento de uma ideologia, principalmente entre os jovens, que segundo ele se resume à oposição perdedor/vencedor. Segundo o autor, esta dissolução do conflito separa o indivíduo da sociedade e o coloca em uma rotina onde é necessário provar constantemente que é possuidor de características que expressam “um vencedor” (WIEVIORKA, 2009, p. 14). Assim, os problemas de dominação social passam a ser vistos como problemas pessoais e de fragilidade pessoal. Neste sentido Wieviorka cita um problema francês percebido através de um estudo sobre os jovens: Uma das grandes lições a serem apreendidas a partir de estudos sobre os jovens nas áreas de classe trabalhadora na França, que têm se envolvido em várias formas de violência, especialmente na escola, é que este comportamento é uma expressão do ressentimento, do sentimento de não reconhecimento e, talvez, em um nível mais profundo da própria inabilidade de dar sentido à vida, agora que não há nenhuma relação social que permita com que eles se definam em uma relação com um adversário, ou um opressor, ou com explorador [tradução livre]. (WIEVIORKA, 2009, p.14). Esta relação entre ausência de sentido e violência tem como base a dicotomia reiterada aqui entre poder e violência, devido à ausência de repertório e condições sociais que permitam, principalmente ao jovem, compreender que a insegurança ontológica é resultado de um problema social do capitalismo flexível e não um problema de fragilidade pessoal ou causado por alguma minoria social – no caso de violência que tem como motivação o preconceito a alguma minoria. As características do capitalismo flexível tratadas aqui condensam-se na demonstração de que a precarização do trabalho, a marginalidade avançada e a ideologia do “novo espírito do 45 capitalismo” geram um ambiente desfavorável para os sujeitos de assimilem uma conduta social baseada em premissas de convivência cidadã. Esta ideologia de perdedor/vencedor que expõe Wieviorka está associada ao neoliberalismo, tanto enquanto discurso e modo de pensamento como enquanto práticas político-econômicas. Isto porque, além da incerteza e ausência de uma vida coletiva dotada de sentido, há a redução dos recursos dedicados ao bem-estar social - em áreas como assistência à saúde, ensino público e assistência social -, o que passa a gerar parcelas da população que ficam cada vez mais vulneráveis ao empobrecimento, à estigmatização e à exclusão social. Esta redução e a consequente estigmatização se baseiam na ideia de que os fracassos pessoais são consequência de falhas individuais (HARVEY, 2008). Este contexto, no qual o trabalho deixa de trazer segurança, como no capitalismo fordista, e passa a ser parte do problema da fragmentação e da precariedade, enquanto as cidades passam a ter territórios bem demarcados e cada vez mais isolados, produz a marginalidade avançada, para usar uma expressão de Loïc Wacquant (2001). A palavra avançada significa que este tipo de marginalidade não pôde ser visto no passado, mas a partir da cidade pós-fordista, “como resultado não do atraso, mas das transformações desiguais e desarticuladas dos setores mais avançados das sociedades e economias ocidentais” (WACQUANT, 2001, p. 169). Neste sentido, o autor expõe que é necessário encontrar um entendimento sociológico adequado para a cidadania, pois é ela, e não a classe, a renda, o status do emprego ou a raça que está se tornando o pivô central para a exclusão de bens e serviços (idem, p. 178). Nesta mesma linha de compreensão, Teresa Pires do Rio Caldeira estuda a segregação social, a cidadania e o crime na cidade de São Paulo e demonstra que, nas duas últimas décadas, houve uma 46 reconfiguração da segregação social que fez o medo se proliferar e reforçar preconceitos. Segundo a autora, Em geral, grupos que se sentem ameaçados com a ordem social que toma corpo nessas cidades constroem enclaves fortificados para a sua residência, trabalho, lazer e consumo. Os discursos sobre medo que simultaneamente legitimam esta retirada e ajudam a reproduzir o medo encontram diferentes referências. Com frequência, dizem respeito ao crime e especialmente ao crime violento. Mas eles também incorporam preocupações raciais e étnicas, preconceitos de classe e referências negativas aos pobres e marginalizados (CALDEIRA, 2000, p.9). A marginalidade avançada e este modelo de cidade pós-fordista evidenciam uma condição de isolamento de todos os membros da sociedade, pois, se por um lado, os sujeitos da periferia possuem trabalho precário e estão em sua maioria excluídos de serviços básicos, por outro, a população abastada, em função do medo e da reprodução de preconceitos, não convive e não dialoga com a diferença, além de sofrer com as pressões e incertezas inerentes ao capitalismo flexível. Esta situação revela uma sociedade atomizada como um todo, em que a violência, se compreendida como o oposto do poder, tal como expõe Hannah Arendt (2000), pode surgir tanto da periferia como de regiões com uma estrutura urbana favorável. Em síntese, a violência de ódio difusa coincide com a aceleração da mundialização da economia, com a intensificação do individualismo, com o fim da guerra fria e com a diminuição de movimento de violência politizada, seja de contestação, seja de estratégias para tomada de poder Estatal, tal como afirma Michel Wieviorka (1997, 2003), professor da EHESS 8 . Assim sendo, este tipo de violência aqui 8 Michel Wieviorka é professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales. O texto o “novo paradigma da violência”, publicado no Brasil em 1997, é um capítulo do livro “Globalization, the State and violence” organizado por Jonathan Friedman em 2003 – o que demonstra que a relevância desta pesquisa para o campo de estudos sobre violência. Além disto, o autor publicou em 2003 um livro sobre terrorismo e tem trabalhado temas como racismo, diferença e reconhecimento. 47 recortada é uma das expressões de um novo paradigma da violência, pois esta noção fornece fundamento para compreender uma violência que não é política, mas antes, infra ou metapolítica. Nas palavras do autor: Sobretudo, ela parece – ao menos provisoriamente – não estar numa correspondência tão estreita com a política e com o Estado quanto a que sugere Max Weber, para quem a essência do político, e mais ainda, do Estado, está no meio específico, que lhe é próprio, que constitui a violência física e seu uso mais ou menos regrado. No fundo ela parece por vezes constituir bem mais o avesso do político enfraquecido, a marca da pane de Estado, que a essência de um ou de outro. O planeta encontra-se numa era de mutação, em que a violência política continua tendo um lugar considerável, e segundo modalidades relativamente clássicas, mas em que também se desenvolvem violências infra e metapolíticas que constituem as expressões mais significativas, mas talvez provisórias, dessa mutação. Essas violências, bem mais do que a violência política, por definição fria, calculada, instrumental, traz a marca do individualismo moderno, que faz com que cada pessoa, mesmo muito jovem, seja suscetível de querer existir enquanto indivíduo-consumidor e como sujeito (WIEVIORKA, 1997, p.36). Segundo Wieviorka há um aumento da violência infra e metapolítica a partir dos anos 1990, no entanto, não há uma definição específica de ambos os conceitos, eles aparecem em sua obra relacionados a um processo histórico e, geralmente, ilustrados por exemplos. No intuito de estabelecer a definição clara do que consiste cada conceito, vale recuperar resumidamente os pressupostos de Wieviorka. Assim, a violência instrumental (roubos, laticínios, etc.), o narcotráfico, a privatização da violência estariam incluídas na violência infrapolítica. Segundo ele, em alguns casos a violência infrapolítica pode se revelar como pré-política, podendo assumir posteriormente feições políticas. Neste caso, o conceito de político para Wieviorka se constitui como estrutura organizacional do Estado. Tendo como base sua abordagem sobre o neoliberalismo e sua compreensão da importância do conflito social, compreende-se que a violência infrapolítica pode ser 48 descrita como aquela que evidencia uma lacuna assimilação de pressupostos básicos da cidadania. Em conseqüência, ela está mais propensa a acontecer onde não há uma tradição histórica de construção desta estrutura de valores democráticos. Encaixa-se, portanto, neste tipo de violência, todo o conjunto de expressões que relevam uma inaptidão a convivência com a alteridade. No segundo caso, a violência metapolítica, Wieviorka, traz como exemplo principal o terrorismo, mas também podem ser incluídos os rampage shootings. A violência tem um sentido absoluto, inegociável e geralmente sem alvos específicos, porque ela se destina a toda uma estrutura social na qual o indivíduo não conseguiu reconhecimento e não possui repertório para se expressar através de um sentido político ou achar categorias e formas de lutar por reconhecimento. Este tipo de violência tem uma propensão maior a acontecer em sociedades saturadas de sentido político, geralmente em resposta ao processo de transformação da modernidade que foi estruturado nos países de capitalismo central. Pode ser interpretado também como consequência de uma insegurança ontológica própria da crise da modernidade. 49 CAPÍTULO II OS ESTADOS UNIDOS E A CRISE DE CONTROLE SOCIAL: O DILEMA DA VIOLÊNCIA METAPOLÍTICA 50 O EXCEPCIONALISMO NORTEAMERICANO E O DEBATE SOBRE O DECLÍNIO DO ASSOCIATIVISMO Nos Estados Unidos as mudanças sociais foram quase sempre moleculares, sendo o tema da igualdade de condições instalado desde a Independência do país. Assim também, tanto a questão racial quanto questões de gênero foram expostas, em divernos momentos na história, de forma radical, seja na Guerra de Secessão e no Apartheid, no primeiro caso, seja em movimentos contraculturais, no caso do segundo. Sem dúvida que estes processos históricos mencionados revelam aspectos distintos da sociedade norte-americana, pois expressam tanto a marca profunda da intolerância quanto o ativismo político da sociedade civil desde a Independência. Sobre este segundo aspecto, deve-se dizer que nos Estados Unidos a unidade nacional e a cidadania foram forjadas, desde a origem, pelo ascetismo puritano, que, como demonstra Angela Randolpho Paiva (2003), foi se transformando e se adequando à esfera pública através da noção de que o fiel deveria ter o princípio moral de se dedicar às coisas mundanas. A marca que o protestantismo deixou na cidadania norte-americana, além da participação, foi a noção de excepcionalismo de sua cultura. A despeito das possíveis dualidades que podem ser geradas por esta visão de mundo estadunidense, cabe enfatizar que a visão excepcionalista que os norte- americanos têm sobre si mesmos e seu país é reiterada ao longo de toda a história como Estado-Nação e atualmente é reforçada tanto no meio político quanto no acadêmico, com justificativas que podem ser seculares ou religiosas. A noção de que os Estados Unidos são um país excepcional foi construída a partir dos colonos puritanos que interpretaram a colonização, para o novo continente, como fuga do caos e como 51 oportunidade de “purificar” a sua Igreja, como a fundação do Reino de Deus na nova “Terra Prometida”. A percepção dos puritanos deu base para um conjunto de mitos “fundacionais” que são reinterpretados ao longo da história deste país, constituindo a identidade nacional norte-americana. Atualmente, a crença de que os norte-americanos são “o povo escolhido por Deus” é sustentada através do que Bellah, sociólogo comunitarista e professor da Universidade da Califórnia, nomeia de “religião civil”. Também desenvolvendo a noção de “religião civil”, Samuel Huntington, economista conservador estadunidense, argumenta que esta concepção “permite aos norte- americanos associar secularismo político e religiosidade social, juntar Deus e pátria, de maneira a “conferir santidade religiosa ao patriotismo e legitimidade nacionalista às crenças religiosas e, dessa forma, transformar lealdades porventura em conflito em uma lealdade única a um país religiosamente favorecido” (HUNTINGTON, 2004, p. 68 apud FONSECA, 2007, p. 155). Tanto para Bellah (1988) como para Huntington (2004), apesar das diferenças profundas na abordagem teórica de ambos os autores, esta religião civil é um aspecto positivo da cultura norte-americana. Lipset (2000, p. 381) avalia o excepcionalismo como uma característica que apresenta dois lados distintos: pode impulsionar uma ordem social que combina liberdade com igualdade de oportunidades e autogoverno, mas que, associada à diminuição do associativismo e do compromisso cívico, acaba por gerar, segundo o autor, uma decadência moral. O autor tem como uma das principais referências a obra de Tocqueville acerca da democracia norte-americana, o qual também evidencia, assim como Lipset em relação ao excepcionalismo, uma constante tensão ou dualidade a respeito das virtualidades da participação na democracia moderna. Isto se torna claro, em Tocqueville, através da admiração com a participação na vida pública dos norte- 52 americanos, que é relacionada à participação política na Antiguidade Clássica e, ao mesmo tempo, um receio com a crescente igualdade de condições que foi fornecendo sustentação para o individualismo, que, por sua vez, acaba distanciando os homens do interesse pela coisa pública. Fazendo uso de uma quantidade relevante de dados, Robert Putnam revela, no seu clássico livro Bowling alone: the collapse and the revival of American Community, que a sociedade americana contemporânea tem cada vez mais disconectado seus indivíduos das estruturas sociais, tais como família, igreja ou partidos políricos. Em outras palavras, ele detectou que o capital social, que foi forte nos anos de 1960, está se tornando fraco. O autor destaca que as décadas de 50 e 60 muito dificilmente podem ser chamadas de "anos dourados", especialmente para aqueles que foram marginalizados por causa da raça, gênero, classe social or orientação sexual. No entanto, seu foco é que o engajamento nas comunidades e o senso de compartilhamento e reciprocidade nunca foram tão intensos - como foi neste periodo supracitado - na história moderna dos Estados Unidos. Ele entende que o conceito de capital social se refere "às conexões entre individuos - redes/grupos sociais e normas de reciprocidade e confiança que surgem deles. Neste sentido, capital social está diretamente relacionada ao que pode ser chamado de 'virtude cívica' [tradução livre] (PUTNAM, 2000, p.19)". No entanto, ele reconhece que esta noção possui uma certa ambivalência, pois o capital social "pode acabar se tornando malevolente, com propósitos antisociais, assim como qualquer outra forma de capital [tradução livre] (idem, p. 22)". Estas manifestações negativas podem se expressar como sectarianismo, etnocentrismo e corrupção. Mesmo que o foco de Putnam não seja demosntrar as ambivalências do capital social, esta análise é relevante para se identificar exatamente o que capital social significa. E, em grande medida, pode 53 se argumentar que, mesmo com valores muito díspares, tanto movimentos sociais em busca de ampliação dos direitos civis, como grupos de supremacia branca eram fortes nestas décadas devido, entre outras razões, a uma constituição social favorável ao engagamento cívico e a construção de redes e normas de reciprocidade. Diante disto, é possível entender, em primeiro lugar, que o capital social não constitui um valor específico (mesmo que Putnam pareça usar um conceito de família e política que é tradicional e forte até o momento de capitalismo fordista) mas um mecanismo, uma maneira de se associar que está relacionada às tradições americanas. Na verdade, Putnam esclarece que "'capital social' é, em grande medida, apenas uma nova linguagem para um antigo debate nos círculos intelectuais. O conceito de comunidade sempre se opôs incessantemente ao individualismo visando à primazia em nossa hagiologia política [tradução livre] (idem, p.24)". Este tema é profundamente relevante para as tradições americanas e foi muito bem desenvolvido teoricamente por Tocqueville que identificou as associações como a força da democracia americana. Ele opôs a condição das pessoas que vivem em uma sociedade aristocrática com os cidadãos em uma democracia. No primeiro caso, existe um grande número de indíviduos policamente frágeis que dificilmente conseguem estabelecer uma ação política em conjunto e alguns poucos cidadãos muito ricos e poderosos que conseguem facilmente implementar grandes empreendimentos. Em uma democracia, Tocqueville examina que todos os cidadãos são independentes e fracos e, portanto, eles precisam do desejo de se unir para construir associações e, com isso, garantir que suas demandas sejam conquistadas (TOCQUEVILLE, 2014, p.132). Quando Tocqueville analizou a democracia nos Estados Unidos ele tinha como um dos objetivos pensar a respeito do equilíbro entre igualdade e democracia. Em seu 54 juízo, a igualdade (especialmente política e cultural) é garantida pelas instituições da democracia, mas a liberdade precisa ser adquirida constantemente pelo engajamento cívico. Este tipo de busca é necessátio, na sua opinião, porque em uma democracia dois fatos são mais propensos a prejudicar a liberdade: primeiro é a tirania da maioria, que é quando a maioria aumenta seu poder e faz com que as minorias se subordinem a eles; em segundo é o individualismo que pode ser prejudicial quando os indivíduos estão confortáveis com a igualdade e apenas se preocupam com as suas próprias vidas e deixam as questões políticas para que apenas o governo tome conta. Preocupado principalmente com o segundo ponto problematizado por Tocqueville, Putnam demonstra como os americanos, ao diminuírem seu vínculo nas comunidades, deram força para individualismo e para o desengajamento cívico. Seguindo uma oposição entre liberdade e individualismo ou comunidades e individualismo, Putnam mostra algumas entrevistas que foram feitas no final do século XX e que destacam que os americanos compartilham um sendo de desengajamento cívico. Em suas palavras: Entre os baby boomers entrevistados em 1987, 53% pensavam que a geração de seus pais era melhor em termos de 'ser um cidadão consciente, envolvido em ajudar os outros na comunidade', enquanto apenas 21% pensavam que a própria geração era melhor. Ao todo, 77% disseram que a nação estava piorando devido ao 'menor involvimento em atividades da comunidade'. Em 1992 três quartos da força de trabalho americana disseram que 'o colapso da comunidade' e o 'egoísmo' eram problemas 'sérios' ou 'extremamente sérios' na América. Em 1996 apenas 8% de todos os americanos disseram que 'a honestidade e a integridade do americano médio' estava melhorando, enquanto que 50% pensaram que nós estávamos nos tornando menos confiáveis. Aqueles que disseram que as pessoas se tornaram menos engajadas civicamente aumentaram muito nos dez anos seguintes em relacação aqueles que pensavam que as pessoas se tornatam mais engajadas, sendo 80% e 12%, respectivamente. Em várias pesquisas de opinião de 1999 dois terços de americanos disseram que a vida cívica americana se enfraqueceu nos últimos anos, que os valores sociais e 55 morais eram mais fortes quando eles estavam crescendo, e que nossa sociedade estava focada m