unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MARIA ESTER CACCHI Transgressão e Redenção: as faces da alteridade em Alceste e em Medeia de Eurípides ARARAQUARA – S.P. 2023 2 MARIA ESTER CACCHI Transgressão e Redenção: as faces da alteridade em Alceste e em Medeia de Eurípides Dissertação de Mestrado, apresentado ao Conselho, Programa de Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica do Drama Orientador: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos ARARAQUARA – S.P. 2023 3 4 MARIA ESTER CACCHI Transgressão e Redenção: as faces da alteridade em Alceste e em Medeia de Eurípides Dissertação de Mestrado, apresentado ao Conselho, Programa de Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica do Drama Orientador: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos Data da defesa: 30/05/2023 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Professor Doutor Fernando Brandão dos Santos UNESP – Araraquara. Membro Titular: Professor Doutor Marco Aurélio Scarpino Rodrigues UNESP - Araraquara Membro Titular: Professor Doutor Rafael de Carvalho Matiello Brunhara Universidade Federal do Rio Grande do Sul Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 5 À minha querida mãe, Adélia, que nunca me permitiu desistir. Ao meu querido irmão, Fernando, que sempre me inspirou. Duas presenças doídas por suas ausências. 6 AGRADECIMENTOS A minha família, felicidade em forma de pessoas: meu querido Paulo, pelo incentivo diário, pela escuta atenta, pelas discussões sobre cada livro, cada tragédia e por ser inspiração... meus dias são sempre repletos de beleza junto a você; aos dois filhos tão amados, Natália, que é partícipe do amor pelos helenos e Gabriel, minha síntese dos arquétipos de heróis gregos. Sem vocês, não haveria nenhuma graça em viver o cotidiano; ao meu filho por afinidade, Matheus, muito obrigada pelas conversas, pelos ensinamentos sobre tecnologia, pelos cafés da tarde em família. Como sou feliz com vocês. Ao meu orientador querido, Fernando. A gratidão que eu sinto não cabe neste espaço. Com você aprendi o que é ter autonomia, sem deixar de estar sempre presente. Entendi o que é pesquisar e amar a dor de se reconhecer tão ignorante. Compreendi que escrever é infinitamente mais difícil que simplesmente assistir aulas ou ler e, justamente por isso, muito mais desafiador e satisfatório. Muito obrigada por ter aceitado ser meu orientador. Maria Cristina Franciscato, minha primeira professora de literatura grega que abriu as portas desse numinoso universo em 2002, muito obrigada! Minhas irmãs, Rita e Marta, o apoio de vocês foi essencial para superar a dor da partida do Fer e manter o foco diante de alguns percalços. As mãos dadas e as conversas diárias foram bálsamo. Obrigada, minhas queridas. Brenda e Victório, pensar em vocês é sempre um alívio. Tia Luzia, mãe na ausência da minha mãe. Muito obrigada! Cada orientação serviu para que eu não desistisse. A senhora é realmente Luz! A amiga Izis, companheira na pós-graduação e pessoa presente nos meus momentos de angústia e insegurança em relação aos prazos e outros desesperos. Helô e Thaís, por serem parte desse universo que era tão estranho a mim e tornou-se menos solitário por causa da amizade de vocês. A Patrícia, da seção de pós-graduação. Sem os inúmeros e-mails, tudo teria sido mais difícil. Minha imensa gratidão aos componentes da banca. Marco Aurélio que foi essencial desde a nossa primeira conversa, quando tudo era o caos profundo em minha mente. Rafael, minha gratidão vai além dessa banca. Seu trabalho de tradução e divulgação da literatura clássica é a prova de que a internet pode democratizar conhecimento. Muito obrigada a ambos! Agradeço ainda à UNESP. Se não houvesse uma universidade pública, aberta aos anseios de pessoas como eu, o sonho não teria sido possível. A menina que vendia roupa usada para conseguir comprar livros está radiante. 7 “A esses homens sérios sirva-lhes de lição o fato de eu estar convencido de que a arte é a tarefa suprema e a atividade propriamente metafísica desta vida...” Friedrich Nietzsche, 2012, p. 23 8 RESUMO Eurípides é conhecido como o “poeta das paixões”, moderno no sentido absoluto do termo, pois era inovador nos enredos e na performance de suas tragédias se comparado aos seus contemporâneos e predecessores, ao mesmo tempo, é ligado à contemporaneidade de diversas maneiras, inclusive em relação às questões de gênero. Em suas peças, as ações das personagens femininas convencionalmente são mais polêmicas que as protagonistas de Ésquilo ou Sófocles, justamente por isso, revelam aspectos interessantes da sociedade ateniense para além da concepção de justiça divina do primeiro e da solidão presente nos heróis e nas heroínas do segundo autor. Por isso, neste trabalho, vamos analisar como a presença de duas protagonistas de Eurípides (Alceste e Medeia) é importante para a compreensão do conceito de alteridade na construção da democracia ateniense no período anterior à Guerra do Peloponeso (431-404 a.C). Para identificar quem é o “cidadão” e caracterizá-lo como tal, é necessário também estabelecer os limites dessa cidadania, definindo o “outro” em relação a esse status quo: nascido em Atenas/estrangeiro; homem/mulher; livre/escravizado. Seja por meio da piedade de Alceste, que aceita morrer em lugar de seu marido, alcançando uma estatura de “herói trágico”, seja por meio da estrangeira transgressora, que clama por justiça por ter sido ferida em seu thymós, a visão acerca do feminino nos permite entender muito mais profundamente a composição da identidade masculina no contexto também. Palavras – chave: feminino; transgressão; redenção; alteridade; Eurípides. 9 RÉSUMÉ Euripide est connu comme le "poète des passions", moderne dans le sens absolu du terme, car il était innovant dans les intrigues et la performance de ses tragédies par rapport à ses contemporains et prédécesseurs. En même temps, il est lié à la contemporanéité de diverses manières, y compris en ce qui concerne les questions de genre. Dans ses pièces, les actions des personnages féminins sont conventionnellement plus controversées que les protagonistes d'Eschyle ou Sophocle, révélant ainsi des aspects intéressants de la société athénienne au-delà de la conception de la justice divine du premier et de la solitude présente chez les héros et héroïnes du deuxième auteur. C'est pourquoi, dans cette étude, nous analyserons comment la présence de deux protagonistes d'Euripide (Alceste et Médée) est importante pour la compréhension du concept d'altérité dans la construction de la démocratie athénienne avant la guerre du Péloponnèse (431-404 avant J.-C.). Pour identifier qui est le "citoyen" et le caractériser comme tel, il est également nécessaire d'établir les limites de cette citoyenneté, en définissant “l'autre" par rapport à ce statu quo : né à Athènes / étranger ; homme / femme ; libre / esclave. Que ce soit par la pitié d'Alceste, qui accepte de mourir à la place de son mari, atteignant une stature de "héros tragique", ou par l'étrangère transgresseuse, qui réclame justice pour avoir été blessée dans son thymós, la vision du féminin nous permet de comprendre beaucoup plus profondément la composition de l'identité masculine dans le contexte également. Mots-clés: féminin; transgression; rachat; altérité; Euripide. 10 CRONOLOGIA DE ATENAS ENTRE OS ANOS DE 480 a 429 (todas as datas são a.C) 480 – Segunda Guerra Médica. Vitória de Salamina (Batalha de Salamina). 479 - Vitórias de Plateias e de Mícale. 478/7 – Fundação da “liga de Delos”. 472 – Péricles é corego de Os Persas de Ésquilo. 471 (?) – Ostracismo de Temístocles 462/1 – Reformas de Efialtes às custas do Areópago. Ostracismo de Címon. Assassinato de Efialtes. 458/7 – Construção dos muros longos em Atenas. 454 – Possível data da transferência dos tesouros da Liga de Delos para a Acrópole. 451 – Lei de Péricles sobre a Cidadania. Esparta e Atenas definem trégua de cinco anos. 450 – Expecidação e morte de Címon em Chipre; vitória de Salamina do Chipre. Implantação de clerúquias atenienses no Egeu (ca -) 449/8 – “Paz de Cálias” para proteger as cidades gregas da Ásia contra a ameaça persa. 447-438 – Construção do Partenon, apogeu da carreira do escultor Fídias. 447/6 – Derrota ateniense em Coroneia; Confederação Beócia dominada por Tebas, revolta da Eubeia. 446/5 – Paz de 30 anos entre Atenas e Esparta. 443/2 – Péricles estrateto (até 429). É encenada Antígona de Sófocles (442). 438 – Encenação de Alceste, de Eurípides. 433/2 – Ultimato ateniense, seguido do cerco de Potideia; “decreto megárico”? 431 – Encenação de Medeia, de Eurípides. 431 – 421 – Primeira fase da Guerra do Peloponeso (“guerra arquidâmica” ou guerra de dez anos”). 431 – Ataque tebano contra Plateias. 430 – Epidemia em Atenas; destituição de Péricles; queda de Potideia (inverno de 430/29). 429 – Reeleição e morte de Péricles. 11 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................... 12 2. ATENAS E AS MULHERES...................................................................... 14 2.1 Uma breve contextualização da cidade ....................................................... 2.1.1 Mulheres e cidadania: as atividades femininas e seus vínculos ............... 2.1.1.1 O casamento na esfera social, ritual, civil, econômica e política ........... 2.2 Heteras, xênias e escravas ............................................................................. 2.2.1 Escravizadas ................................................................................................. 3. A MULHER COMO O OUTRO NA ATENAS DO SÉCULO V A.C ...... 3.1 Alteridade e Drama .......................................................................................... 3.1.1 Teatro e alteridade: as máscaras de Dioniso e o espaço do teatro ................. 3.2 A alteridade e o gregos em seu próprio tempo histórico: “a invenção do bárbaro” ................................................................................................................ 3.2.1 A alteridade expressa no coro: quando mulheres e bárbaros falam ............. 4. A TRANSGRESSÃO FEMININA NO DRAMA: MEDEIA 4.1 – Medeia, apenas uma transgressora? .............................................................. 4.2 – O preço da vingança ...................................................................................... 4.3 - Medeia é uma tragédia sobre gênero? ........................................................... 4.4 - Medeia para além de Eurípides: uma deusa caída?....................................... 5. ALCESTE E A REDENÇÃO EXEMPLAR................................................. 5.1 Alceste: um kleos ambíguo ............................................................................. 5.2 Elementos cruciais de Alceste, a presença de Admeto e a influência de Ésquilo 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ REFERÊNCIAS .................................................................................................... 15 18 20 22 26 28 31 35 40 44 49 51 60 64 66 70 73 79 83 86 12 1. INTRODUÇÃO O intenso desenvolvimento cultural que caracteriza a Grécia desde o século VIII a.C, culminando no surgimento da filosofia e, no século V a.C, do gênero trágico, impressiona pela qualidade dos textos, pela complexidade dos temas e atemporalidade dos possíveis debates. Entretanto, essa mesma Hélade tem sua força produtiva baseada na escravidão e sua estrutura social, sobretudo em Atenas, foi marcada por uma visão patriarcal e androcêntrica. Apesar disso, as tragédias com personagens femininas influenciaram a literatura, o teatro e o cinema ao longo da história. Como caracterizações de mulheres tão fortes puderam ser compostas em uma sociedade tão explicitamente centrada em cidadãos? Foi através de um sincero incômodo com estas questões que surgiu o presente projeto de pesquisa para o mestrado. A definição do corpus levou em consideração o tempo escasso para a execução da proposta e a base teórica escolhida foi uma abordagem antropológica da representação trágica que localiza as questões de gênero em um contexto dramático e cultural específico, assim como a abordagem sobre alteridade, mas teve que deixar de lado uma série questões psicológicas ou estéticas, infelizmente. A ideia ao escolher essa abordagem foi capturar qual seria a função dessa presença de estereótipos femininos tão desafiadores para uma sociedade essencialmente patriarcal e com tantas restrições ao estrangeiro, principalmente aquele considerado bárbaro. Ao pensar na transgressão e na redenção como parte de um processo em que se define a alteridade, mas também reforça-se a identidade (principalmente do cidadão) é possível estabelecer um estudo literário-antropológico, seguindo o modelo de Jean-Pierre Vernant, Levinas e Todorov. Este trabalho examina as protagonistas de Alceste e Medeia traçando paralelos com outras mulheres trágicas que tiveram destinos diferentes, como foi o caso de Clitemnestra de Ésquilo, morta pelo próprio filho, Orestes, em vingança ao assassinato de Agamêmnon. Dessa forma, foram estruturados quatro capítulos para: organizar a mulher no contexto histórico da Atenas Clássica e evitar anacronismos (capítulo 1); discutir o conceito de Alteridade no teatro grego enquanto reflexo da sociedade ateniense no século V a.C; examinar a fonte do mito da tragédia Medeia e relacioná-lo à personagem de Eurípides; vasculhar as várias nuances de Alceste e fazer um paralelo com outros mitos que tratam do anodos e da ananke. 13 As citações em língua inglesa, francesa e espanhola foram traduzidas por mim. Os erros que persistirem apesar das revisões são de minha responsabilidade. 14 2. ATENAS E AS MULHERES Na tragédia Medeia, encenada em 431 a.C., no primeiro episódio, a partir do verso 230, a personagem, que dá nome à peça, canta as desventuras de ser mulher naquele contexto: De todos os seres com vida e noção, o mais miserável somos as mulheres, que primeiro com excessivo dinheiro devem comprar marido e ter o dono do corpo; este mal ainda é o pior, e nele o combate é maior, ter mau 235 ou bom; divórcio difama as mulheres e elas não podem repudiar o marido. (TORRANO, 2022, p. 281) 1 Quais seriam, de fato, as condições femininas na Grécia do século V a.C? Todas as mulheres tinham a mesma vida, as mesmas condições? A visão de que a mulher grega, em geral, era submissa ao homem pode levar a algumas generalizações e simplificações que prejudicam a compreensão do significado da presença feminina nas tragédias, sobretudo as de Eurípides (480-406 a.C.). Justamente por isso, neste primeiro capítulo, vamos contextualizar as mulheres atenienses no século V a.C. e entender suas funções, sobretudo durante o período de apogeu de Atenas, já que as tragédias que compõem o corpus desta pesquisa são anteriores à Guerra do Peloponeso (431-404 a.C)2. Mulheres, no plural, porque havia diferenças de funções, de status quo entre as que habitantes de Atenas. A vida de uma “bem-nascida” era muito diferente de uma cativa de guerra, ou mesmo de uma estrangeira que exercesse a função de cortesã. Esses elementos todos estão relacionados à alteridade (o que é ser o “outro” a partir do cidadão ateniense), às ações transgressoras, às esposas abnegadas e como o teatro se relaciona de forma religiosa (já que é uma festa de culto a Dioniso) e política com todas essas questões, justamente durante o apogeu de Atenas, em sua fase mais imperialista. Dessa maneira, o objetivo deste capítulo não é fazer uma história das mulheres como objeto de estudo e sim entender a dinâmica histórica para que a pesquisa acerca do drama euripidiano tenha como base a literatura e também as relações de gênero, estruturados por um viés antropológico, em uma perspectiva estruturalista, lembrando que é sempre um grande desafio organizar todo este processo, já que as fontes escritas são todas masculinas e, até 1 Escolhi a tradução do prof. JAA Torrano para fazer as citações do texto de Alceste e Medeia, mas ao longo da pesquisa muitas traduções foram utilizadas para comparações, incluindo versões em inglês e francês. 2 Medeia foi encenada pouquíssimo tempo antes da guerra eclodir oficialmente. 15 mesmo as vozes femininas das tragédias aqui estudadas, foram escritas por um homem e, provavelmente, assistidas por um grupo majoritariamente masculino.3 2.1 Uma breve contextualização da cidade Como já foi dito, o primeiro ponto dessa dissertação é levar a uma compreensão do papel feminino na Atenas Clássica, e, para isso, é importante sempre nos lembrarmos que a Hélade do século V a.C não configurava uma unidade territorial, cada pólis tinha características próprias em termos de governo e sociedade, portanto, as mulheres atenienses tinham uma vida muito diferente das mulheres espartanas, por exemplo. Além disso, Atenas é sempre vista através de dois “extremos” em termos de política e sociedade: ao mesmo tempo em que é lembrada como a cidade onde se originou a democracia (sendo louvada historicamente por isso), era – também – o local em que estrangeiros, mulheres e escravos estavam à margem do processo político. Ou seja, para se estabelecer uma boa análise do período, é preciso evitar visões apaixonadas contra ou a favor do modelo democrático ateniense, assim como é preciso evitar comparações com o conceito moderno de democracia. Em termos históricos, a vitória liderada pelos atenienses sobre os persas, nas chamadas Guerras Médicas (449-448 a.C), foi decisiva para que Atenas amadurecesse seu modelo político e alcançasse uma hegemonia sobre as demais cidades-Estados da Hélade. Desde Sólon, que foi convocado para assumir como arconte em 594 a.C, houve importantes mudanças sociais e políticas, como por exemplo o fim da escravidão por dívidas e a criação do conselho probulêutico, que era uma assembleia composta por quatrocentos membros sorteados. As reformas realizadas não representaram, de imediato, grandes modificações na estrutura social, mas foram o primeiro passo para que as classes inferiores pudessem ter maior participação em momentos posteriores. Apesar do importante avanço trazido por Sólon, as agitações sociais levaram à ascensão de Pisístrato, que governou como um tirano, apoiando- se nas camadas populares. Para o teatro grego, é indiscutível a importância da tirania, pois foi o período em que as Dionisíacas floresceram como festa cívico-religiosa, tanto que a primeira representação trágica ocorreu em 534 a.C, no governo de Pisístrato (ROMILLY, 2008). 3 Consideramos aqui a perspectiva de Helene Foley que assim afirma, mas sabemos que a ausência de uma audiência feminina nas apresentações trágicas, está longe de ser algo unânime. 16 Com a morte de Pisístrato, houve uma tentativa de sucessão por parte de seus filhos Hiparco e Hípias, mas não foram bem sucedidos, sendo Hiparco assassinado (ao que tudo indica, não foram razões políticas) e Hípias foi deposto e banido de Atenas em 510 a.C. Com Clístenes, que assumiu o governo em 508 a.C, houve a continuidade das reformas de Sólon e o aumento da quantidade de participantes na assembleia, que passou a ter quinhentos membros. Esses membros eram oriundos dos demos, um território delimitado de acordo com a inscrição do domicílio do cidadão ateniense. Lembrando que apenas homens livres, nascidos em Atenas, podiam ser considerados cidadãos, como vamos explicar mais adiante. Além disso, foi no governo dele que o ostracismo se efetivou como instrumento para evitar novos períodos de tirania, de concentração de poder. Com as guerras contra os persas, iniciadas por volta de 499 a.C, Atenas conseguiu se sobressair na liderança das cidades gregas contra um inimigo comum e se estabelecer como uma grande referência cultural e militar. Este período de apogeu, que dura de 480 (ano da famosa Batalha de Salamina) a 431 a.C (início da Guerra do Peloponeso), é marcado pela hegemonia ática, em que os atenienses tinham um grande poder marítimo, cobravam tributos de outras cidades-Estados e se orgulhavam de sua cultura. A estrutura social era baseada na escravidão por guerra e na manutenção do casamento como forma de garantir a procriação dos eupátridas. Para que as rodas dessa engrenagem funcionassem bem, era preciso uma força militar bem treinada (tanto em termos de infantaria, como a marinha de guerra) e uma sociedade em que cidadãos, estrangeiros, mulheres (filhas dos eupátridas), prostitutas e cortesãs desempenhassem, cada qual, seu papel adequadamente, sem grandes tensões que levassem a problemas internos muito sérios. Sabe-se que a cidade grega tinha um centro urbano e um “território mais ou menos vasto” (MOSSÉ, 2022. p. 09), não havia divisão entre cidade e campo. A cidade era, portanto, o centro político e religioso da comunidade. Com os atenienses isso não foi diferente. Portanto, quando se fala da pólis, fala-se de toda essa estrutura. O conceito de política, inclusive, está profundamente ligado aos gregos em geral, não apenas aos atenienses. Claude Mossé afirma, em seu livro O cidadão na Grécia Antiga, que “Foram os Gregos que ‘inventaram’ a política – a palavra e a coisa.” (2022. p. 9) assim, política envolve diretamente o conceito de cidadania (não à toa, um dos termos para cidadão é polités). No entanto, no caso de Atenas, para fazer parte desse corpo cívico, era preciso atender alguns critérios: ser do sexo masculino, nascido de pai e mãe atenienses (considerando 17 aqui a lei de restrição de cidadania, de 451 a.C) unidos em casamento legítimo. Aqui vale, inclusive, um breve comentário sobre os motivos que teriam levado o governo ateniense a estabelecer que apenas filhos de pai e mãe nascidos na cidade, seriam considerados cidadãos. Era o início do governo de Péricles e essa lei reduzia muito o número de cidadãos, algo muito diferente do que seu avó, Clístenes, fez ao aumentar o corpo civil integrando ao demos estrangeiros residentes4 em Atenas. Não há consenso entre os historiadores sobre os motivos que levaram a essa tomada de decisão. Há teóricos que levantaram a hipótese “de que se trataria de uma medida circunstancial, tomada num momento de penúria” (MOSSÉ, 2008, p. 82), há outros que acreditam que era uma maneira de reduzir o número de beneficiários da mistoforia5 e há aqueles que defendem que “a medida visava, em primeiro lugar, os membros das grandes famílias aristocráticas que celebravam alianças matrimoniais com soberanos ou príncipes ‘bárbaros’. Em virtude da lei de Péricles, nem Temístocles nem Címon teriam sido cidadãos atenienses” (idem, ibdem). A vida religiosa era parte do aspecto cívico da cidade. “Cidade e religião são de fato indissociáveis”, quando François Lefèvre afirma isso em sua obra História do Mundo Grego Antigo (São Paulo, 2013. p. 173) podemos entender a importância das festas e celebrações religiosas que, em Atenas, chegavam a abranger 120 dias por ano. Tão importante que, uma das melhores formas de mergulharmos na cultura, na história grega é estudando as tragédias que eram parte das festas dedicadas à Dioniso. O Teatro Grego está longe, portanto, de ser mero entretenimento. O drama traz para a skené não apenas uma releitura do mito. Mais que o “mito em cena” (MALHADAS, 2003), a tragédia representava um espelho da sociedade em todas as dimensões. Com base nesses elementos, não seria exagero afirmar que os oitenta anos de criação trágica estavam profundamente ligados ao desenvolvimento de Atenas em todos os aspectos. Então, se apenas os homens eram cidadãos, qual era a função e a importância das mulheres? 4 Claude Mossé inclui a possibilidade de até escravizados poderem se tornar cidadãos (2008, p. 82) 5 A mistoforia era um valor pago para compensar o tempo e o dinheiro gastos pelos cidadãos na participação da vida política da cidade. Essa prática fazia parte do sistema de democracia direta ateniense, que permitia que todos os cidadãos participassem das decisões políticas. 18 2.1.1 Mulheres e cidadania: as atividades femininas e seus vínculos No período em que as duas tragédias, que aqui analisamos, foram encenadas (438 e 431a.C respectivamente), a mulher tinha um papel importante na transmissão da cidadania, pois era preciso ser filho de pai e mãe atenienses, como já foi dito. Porém, a mulher, ainda que fosse uma “bem-nascida”, não tinha voz para participar das decisões políticas, não partilhava do conceito política da cidadania, que era restrita aos homens livres. Ou seja, a participação das filhas dos eupátridas é de ordem cívica e não política. Dessa forma, é durante as festas cívico-religiosas que ocorre uma importante participação feminina, principalmente das “bem-nascidas”. Sobre essa questão, Fábio de Souza Lessa defende “a hipótese de que essas festas cívicas permitiam a organização, o convívio, a confiança, a percepção de si, o estabelecimento de tipos de saberes e de práxis sociais que criaram lugares sociais reconhecidos como das mulheres/esposas.” (LESSA, 2004. P. 97) As mulheres estabeleciam importantes laços sociais dentro de suas casas por meio dessas festividades, promovendo a solidariedade entre diferentes grupos sociais. Ao se conectarem com o sagrado, essas celebrações tinham impacto no âmbito social. Isso era particularmente verdadeiro em Atenas, onde o calendário religioso servia como um meio de construir ordem cósmica e política na cidade. Não obstante, apesar da participação feminina nessa dinâmica civil, quando se pensa no status jurídico da mulher ateniense a melhor definição é “menor”. O que significa isso? Trata-se de indicar que a mulher sempre precisava de um representante para falar por ela, apesar de ser a responsável pela administração do óikos, a gyné não dispunha daquilo que entenderíamos hoje, como uma “maioridade legal”. A mulher sempre deveria ter um kyrios: primeiro o pai, depois o marido. Caso ficasse viúva, o filho, ou um parente próximo, deveria exercer esta função. Entre as bem-nascidas, ser solteira e independente, era algo inconcebível. O casamento era uma instituição muito importante, tanto para o homem, quanto para a mulher (que vivia em condições muito criticadas por Medeia, conforme observamos na abertura deste capítulo), era a base para manutenção da cidadania. Aqui entra o conceito de alteridade que trabalharemos no capítulo 2 desta dissertação: a cidadania masculina é assim definida em relação ao “outro”, em relação aos não-cidadãos, o que inclui a mulher, que não dispõe de uma autonomia jurídica ou de uma isegoria pública, assim como o meteco. 19 Durante o período que compreende o recorte histórico do corpus desta pesquisa, é importante que se compreenda a força da ideologia do conceito de cidadania presente na ideia de isonomia, isegoria e comunidade. Diferente do século IV a.C, em que as mudanças trazidas com a derrota de Atenas na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C) afetam profundamente todo o aspecto político e ideológico de Atenas, durante a pentekontaetía três fatores definem a democracia, segundo Jean Pierre-Vernant: a importância da palavra; as questões públicas que eram o centro dos debates políticos, superando (em tese) as questões individuais e a própria isonomia. Todos esses elementos giravam em torno do andres, do homem cidadão. Ora, se esta cidadania era exercida em relação ao “outro” e a mulher era parte desse “outro”, ela ocupava uma função civil e social e isso é sempre muito importante de destacar. Assim, a alteridade é essencial para fundamentar a identidade masculina e seu papel, em relação à mulher e ao estrangeiro, quando se analisa a história social de Atenas e sua literatura, e está presente em vários momentos no Teatro Grego. O grande desafio é evitar que se olhe para essa estrutura social a partir de um conceito de cidadania típico dos séculos XX e XXI, em que a mulher busca ocupar uma posição de isonomia em todos os níveis sociais, incluindo o de participação política. Compreender a dinâmica dos vínculos e laços estabelecidos na sociedade é outro aspecto fundamental para entendermos o papel que desempenharam em várias obras literárias. Por exemplo, entender a empatia das mulheres coríntias por Medeia, na peça de Eurípides, ou os lamentos dos servos e servas diante da morte de Alceste, requer uma compreensão da importância dessas relações sociais. Em termos históricos, fala-se muito da philia masculina, desenvolvida até mesmo por causa do militarismo das sociedades gregas. O hoplita passava longos períodos fora de casa, em campanhas militares e isso fortalecia os vínculos entre os homens. No entanto, apesar de ser pouco estudada e discutida na historiografia, as mulheres também desenvolviam uma amizade (philia) em suas relações. A convivência dentro do óikos, a organização do ambiente doméstico, a preparação para as festas cívicas, estreitavam os laços entre as gynaikés e isso criava um “lugar” de mulheres na pólis. Ou seja, elas conviviam entre si e não eram totalmente isoladas do mundo. Inclusive, uma das formas de integração feminina ocorria através de uma organização que se dava pelo desenvolvimento de um tipo de sophía específica às esposas. Através do estudo das tarefas realizadas pelas esposas na pólis, estaremos buscando apreender este saber feminino. Por tarefas femininas é necessário que entendamos as atividades atribuídas às mulheres sob a base de uma diferenciação sexual – erga gunakêia – 20 geralmente compreendida como a gerência do patrimônio da família, a fiação a tecelagem, a confecção de vestimentas, a transformação dos cereais e a preparação dos alimentos, atividades exclusivamente manuais. (LESSA, 2004. p. 34) Essa sophia específica das esposas era parte da instituição matrimonial, por isso, neste trabalho analisaremos as relações entre casamento e a téchne do ofício de tecer. 2.1.1 O casamento na esfera social, ritual, civil, econômica e política “Na verdade, o casamento consiste nisso: quem gera filhos, introduz os filhos homens entre os membros da fratria e do demo e dá as filhas em casamento aos homens, como se elas fossem suas próprias. Com efeito, as hetera nós as temos para o prazer, as concubinas para o cuidado diário do corpo, mas as esposas para que tenham filhos legítimos e mantenham a guarda files da casa.” Apolodoro, Contra Neera, 122. Tradução Glória Onelley. No século V a.C em Atenas, o casamento era uma instituição que não tinha como principal objetivo o amor, como se concebe atualmente. Naquela época, a união matrimonial era vista como um elemento crucial para a organização da pólis, sustentando os princípios da cidadania e da propriedade. O papel do eros era consolidar a instituição matrimonial, unindo os corpos dos cônjuges e gerando filhos. Embora a deusa Afrodite fosse importante na consumação do casamento, a união como instituição estava ligada a outros aspectos divinos, como a deusa Hera, que representava as uniões legítimas. Dessa forma, o eros excessivo não era visto como positivo em nenhum aspecto da vida, nem mesmo no casamento e isso é colocado em vários momentos da peça Medeia, inclusive pelo coro nos versos 629-635: Amores excessivos não dão bom nome aos varões, nem valor. Se suficiente 630 Cípris, não outra Deusa tão boa graça! Ó rainha, não me dispares do áureo arco a inevitável seta untada de anseio. 635 (TORRANO, 2022, p. 309) 21 Casar-se era preciso para gerar filhos, isso é evidente. E qual era a finalidade de se ter filhos legítimos? Segundo Mossé (MOSSÉ, 1993, p.56), os filhos legítimos estavam destinados a receber a herança paterna, ou seja, através da engye (contrato firmado entre duas casas para união) havia uma relação entre a posse de bens e sua transmissão segura. O dote dado pelo pai da esposa era uma reserva destinada à mulher, caso ela fosse repudiada (desde que não tivesse cometido adultério), e que pertenceria aos filhos do casal, se a esposa morresse antes do marido. Não cabe aqui discutir as provas da existência da obrigatoriedade do dote e da má utilização do recurso por alguns maridos, o que nos importa é a relação entre união e manutenção de bens e propriedades dentro do genos. Havia a possibilidade de ruptura do casamento, tanto por parte da mulher, como pelo homem (algo também retratado em Medeia, mas ali trazendo a situação de uma xênia que não tem nem dote, nem para onde voltar, ao ser repudiada pelo esposo que quer contrair novas núpcias). Apesar de ser permitido às mulheres pedir o fim do compromisso conjugal, a maioria dos pedidos, segundo as fontes disponíveis, vinha dos maridos, geralmente interessados em casar novamente (MOSSÉ, 1993, p.57). A partir do momento em que se casavam, as mulheres estavam sob a responsabilidade legal de seus esposos e desempenhavam uma função importante no óikos, inclusive por conta de seu “trabalho”, lembrando que, segundo Jean-Pierre Vernant, não havia uma palavra exata para designar trabalho nos mesmos termos que a concepção moderna. Fábio Lessa, inclusive, utiliza exatamente os dois vocabulários pesquisados por Vernant na documentação antiga para analisar os tipos de atividades desenvolvidas pelas esposas em Atenas: “O primeiro é o de téchne, que remete a um tipo de saber especializado, de aprendizagem, de processos secretos de êxito (VERNANT & NAQUET, 1989. p. 16); ou ainda, implica um conhecimento especializado ligado à prática de um ofício (LÉVY, 1991. pp. 7-18). Particularmente, defendemos a ideia de que as esposas, nos seus respectivos grupos de atividades, desenvolviam um tipo de sophia, de saber, que era decodificado pelos demais grupos femininos, isto é, as esposas pela aprendizagem, pelo convívio em grupo, pela rotina das atividades executadas e pela tradição passada das mães às filhas alcançavam um conhecimento especializado. A tecelagem, a fiação, a culinária, a própria administração interna do óikos pressupunham a existência de um saber feminino específico – téchne. (...) O segundo conceito é o de chreía, de necessidade, utilidade. As tarefas femininas, exercidas tanto no espaço interno quanto no externo se constituem em atividades essenciais à harmonia do grupo doméstico e da pólis. (LESSA, 2004. pp. 35-36) 22 O trabalho realizado pelas mulheres era, portanto, economicamente produtivo, sobretudo na área têxtil. Preparar a lã era algo feito pelas mulheres no interior da propriedade. Dessa forma, a preparação da lã e a tecelagem eram atividades feitas em grupo, que fortaleciam os laços entre mulheres e, ao mesmo tempo, contribuíam para a economia do óikos, lembrando que, no caso das famílias dos cidadãos de primeira ordem, ter serviçais significava maior tempo livre para que as esposas se dedicassem às atividades cívicas (festas religiosas). A mulher casada é, portanto, tecelã. Ou seja, a lã era uma matéria inseparável da condição feminina. Não à toa, em diversos relatos míticos são feitas referências à tecelagem, seja através do mito de Aracne, seja através da fidelíssima Penélope e seu ardil tecido (literalmente) para ganhar tempo com os seus pretendentes na Odisseia, na qualidade de artesã presente na deusa Atena ou, até mesmo, na expressão referente à Afrodite, dolóploke (δολὀπλοκε), presente no v. 2 do fragmento 1 dο Hino a Afrodite, da poetiza Safo, traduzido por Giuliana Ragusa como “tecelã de ardis” (2021, p. 73-74). Tecer era uma atividade feminina na qual as esposas tinham como companheiras escravas, vizinhas e outros membros femininos da família. No caso das camadas mais populares, segundo Aristóteles, não havia serviçais, o que fazia com que mulheres e filhos fossem envolvidos nas atividades e, provavelmente, (tomando como base Aristófanes na comédia As Tesmoforiantes) quando essas mulheres ficavam viúvas, tinham que exercer algum tipo de atividade econômica para prover a família. 2.2 Heteras, xênias e escravas Já escrevemos que o casamento que tinha como objetivo gerar cidadãos e manter as questões ligadas à política e à manutenção da propriedade, está ligado à “bem-nascida”. Porém, Atenas contava uma diversidade muito grande de mulheres, com diversos status, não eram apenas as filhas dos Eupátridas que habitam a cidade: havia as mulheres sem posses, camponesas, estrangeiras (entre elas, as heteras) e as escravizadas. Sobre ser estrangeiro em Atenas é interessante lembrar uma afirmação de Nicole Loraux que faz todo sentido: “A pólis do cidadão não pode existir sem o estrangeiro” (LORAUX, 1993, p.16) – novamente a questão da alteridade. O estrangeiro ou estrangeira tinha sua condição protegida como tal, desde que estivesse inscrito como meteco, pagando o 23 imposto que lhe era devido, tendo consciência de que não poderia apelar na justiça; deveria ter um kyrios ateniense, não poderia adquirir terras, nem teria direitos políticos. Além disso, assassinatos de metecos eram considerados “homicídios voluntários” (LORAUX, 1993, p.16). Em relação às mulheres estrangeiras, sabe-se muito pouco. Pagavam o imposto que era obrigatório aos estrangeiros, no valor de seis dracmas (para homens, o valor era de doze dracmas) ao ano e, ao que tudo indica, vinham junto com seus maridos comerciantes que as inscreviam no demo quando recebiam o estatuto de meteco. Algumas atenienses de nascimento casavam-se com comerciantes estrangeiros. De forma geral, as mulheres estrangeiras casadas com comerciantes ricos tinham uma vida muito parecida com as bem- nascidas, muito ligadas ao âmbito familiar e com aparições públicas bem específicas. Entretanto, havia também as mulheres que chegavam à Atenas sozinhas, que vinham por livre e espontânea vontade, sem estarem acompanhadas de um “marido”. Geralmente, essas mulheres sobreviviam da prostituição. As mais pobres eram chamadas de pornai (no singular porné) e trabalhavam na região do Pireu ou em estalagens, podiam ser livres ou escravizadas, sendo obrigadas a se prostituírem, neste último caso. Além das pornai, havia, como já foi dito, as heteras que eram mulheres muito bem instruídas e que podiam sair livremente, além de tomarem parte em simpósios e outros eventos. Essas mulheres ofereciam companhia e prazer. Muitas eram mantidas por homens ricos e poderosos. Aspásia, nascida em Mileto, companheira de Péricles, é lembrada com uma hetaíra muito inteligente, com grandes dotes políticos e que foi amiga de Sócrates também. Há algo de irônico na história da relação do estadista ateniense e a milenense: como já foi mencionado aqui, em 451 a.C., foi lançada a lei de restrição de cidadania, que instituía que apenas os filhos de pai e mãe atenienses poderiam ser cidadãos. O estratego divorciou-se para ficar com a jovem hetaíra por volta de 445 a.C. e eles chegaram a ter um filho que não foi considerado cidadão ateniense. Posteriormente, essa lei caiu, mas é interessante pensar que a xenia de Aspásia não era bem vista, sobretudo quando eclodiu a Guerra do Peloponeso (431a.C) e a peste que veio em seguida dizimou muitas vidas (incluindo os filhos legítimos do estratego ateniense). Aspásia e Péricles tiveram inimigos políticos que utilizavam sua condição de estrangeira livre para atacar a ambos politicamente. Durante o período estudado aqui, as heteras não podiam gerar “filhos legítimos” e ignorar este aspecto da cidadania ateniense era motivo de punição. No artigo O estatuto social da cortesã no Contra Neera, Glória Braga Onelley faz considerações interessantes sobre a 24 questão jurídica dessas mulheres que tinham uma vida pública muito diferente das bem- nascidas. Aqui vamos nos ater às questões que serão importantes para depois analisarmos o aspecto da transgressão da xênia Medeia e a redenção presente em Alceste. Κατὰ Νεαίρας (Contra Neera) é um discurso de ordem jurídica que integra o Corpus Demosthenicum e é abrituído pela maioria da crítica contemporânea ao orador Apolodoro, retrata o passado da célebre hetaíra Neera e representa não só uma rica fonte para o conhecimento do submundo feminino da Atenas da primeira metade do século IV a.C, mas também um testemunho de aspectos dos sistemas institucionais e processuais da pólis ateniense, mormente a dos século V e IV a.C. (ONELLEY, 2012. pp. 1-2) Apesar de ser datado no século IV a.C, as questões relacionadas ao lugar das heteras em oposição às esposas legítimas são muito próximas do período aqui analisado. Quem era Neera? Segundo o discurso jurídico, esta mulher era uma estrangeira, uma hetaíra que se uniu a um homem de nome Estéfano e foi indevidamente nomeada de esposa legítima ateniense e, pior, teve seus filhos circunscritos como filhos “legítimos”, sendo que a filha mais velha foi dada em casamento a dois atenienses (o primeiro a devolveu) como sendo filha de Estéfano. Diferente das peças que compõem o corpus dessa pesquisa, Contra Neera não é ficção, não é poesia, nem drama. É um discurso jurídico, de mais ou menos 343-339 a.C., que tem uma função histórica enquanto documento e que nos serve de parâmetro para analisarmos como as questões envolvendo o status feminino eram importantes na Atenas Clássica. Sabe- se que, apesar da acusação ser contra a hetaíra, o objetivo era atingir Estéfano, que, politicamente, era de uma facção opositora a Teomnesto e seu cunhado e sogro Apolodoro.6 Então, qual o crime de Neera e como isso se liga às questões aqui tratadas? Neera foi acusada de “ter almejado a condição de esposa legítima” (ONELLEY, 2012, p. 3), além de ter tentado “usurpar para si e para seus filhos a condição de cidadãos atenienses” – grifo meu - (ONELLEY, 2012, p.3). Apolodoro foi escolhido como orador porque, além de ser excelente em sua oratória, também tinha sofrido injustiças políticas por parte de Estéfano. Percebemos aqui que a situação da acusada só se tornou pública por causa das questões políticas. Reiteramos isso para que fique muito claro o quanto matrimônio e procriação estavam no âmbito político em Atenas. Neera era uma transgressora, não por ser estrangeira ou cortesã, mas por ter tentado se passar por ateniense, pois como Nicole Loraux analisa, havia 6 Lembrando que, em Atenas, era permitida a endogamia. 25 grandes benefícios na autoctonia, “não se brinca com a cidadania ateniense” (1993, p. 15). Ao tentar passar a si e aos seus filhos como autóctones, Estéfano desconsiderou elementos essenciais da organização ateniense. Por isso, esse pretenso marido (e cúmplice) também é um transgressor. Toda a situação aqui narrada é bem posterior à tragédia de Eurípides (Medeia), mas dá para entendermos (pela gravidade da situação), o que era ser uma estrangeira casada com um ateniense e como o tragediógrafo traz para a cena elementos do cotidiano, da própria política e da alteridade entre os gregos, como vamos analisar no próximo capítulo. Dessa forma, em relação às cortesãs, fica evidente que há um lugar reservado para essas mulheres na sociedade e isso era comumente aceito, desde que não se infligisse o status das atenienses bem-nascidas. Inclusive, muitas se tornam pallakés, concubinas, que também tinham seu status reconhecido. O que não se aconselhava era manter uma concubina (escravizada ou liberta) dentro do ambiente doméstico, a dividir espaço com a esposa legítima. Eurípides (mais uma vez) traz essa situação para a skené na tragédia Andrômaca, encenada durante a Guerra do Peloponeso, provavelmente entre as décadas de 430 e 420 a.C. Nesta tragédia, o foco de tensão paira entre uma esposa legítima infértil (Hermíone, filha de Helena e Menelau – espartana, portanto) e a escravizada (e feita conbubina) Andrômaca, viúva troiana de Heitor e destinada a Neoptólemo, filho de Aquiles. Segundo Fábio Lessa, em seu artigo O Poder Feminino em Andrômaca de Eurípides, “(...) Eurípides nos propicia uma reflexão sobre as relações de poder estabelecidas entre mulheres – Adrômaca versus Hermíone – entre homens – Peleu versus Menelau – entre mulheres e homens – Andrômaca versus Menelau – e entre gregos e não gregos/gregos e bárbaros.” (LESSA, 2021, p. 2). As questões de gênero e etnocidade permeiam este trabalho de estudos literários justamente por serem aspectos ligados ao político, mas também presentes na literatura grega, seja com Andrômaca, seja com Alceste (a esposa exemplar), seja com Medeia, transgressora em seu grau máximo. Além disso, “o teatro é um espaço privilegiado para a discussão das imagens que a cidade produz de si mesma” (ANDRADE, 2001, p. 13), ou seja, muitos aspectos das funções de mulheres e homens são percebidos em cada detalhe no teatro. Froma Zeitlen (1992), inclusive, fala de um mapeamento dos espaços da peça que reflete muito as questões sociais pertinentes ao século V a.C, em vários âmbitos, inclusive sobre a questão dos estrangeiros. Em relação ao barbarismo, tão presente nas tragédias, Edith Hall dedicou um livro todo para explicar os motivos que levaram os gregos a dedicar tantas histórias envolvendo outros 26 povos muitas vezes considerados inferiores e aqui vale a pena alguns elementos para entendermos o universo retratado por Eurípides, em peças como Medeia. Logo no começo do livro, Hall avalia que a escrita grega sobre bárbaros é geralmente um exercício de autodefinição, pois o bárbaro é frequentemente retratado como o oposto do grego ideal. Isso vale para os homens e para as mulheres também. Não à toa, é uma bárbara que pratica o filicídio na tragédia euripidiana, uma das poucas personagens que cometeu o ato hediondo sem estar enlouquecida por algum deus. 2.2.1 Escravizadas A escravidão era a base da vida na Grécia Antiga, como em Roma também e, por isso é importante destacar alguns aspectos dessas relações de poder: - Os escravizados estavam envolvidos em todas as atividades na cidade, menos a política e a militar. Finley faz uma colocação interessante sobre a condição do escravizado em Atenas: “(...) não era a natureza do trabalho que distinguia o escravo do homem livre, mas a classe social do homem que executava o trabalho”. (FINLEY, 2019. p.137) - Escravos eram estrangeiros. Essa era a regra desde o governo de Sólon. Nascidos em Atenas, a menos que fossem filhos de pais (estrangeiros) escravizados, não podiam tornar- se escravos. - Proprietários de escravos poderiam libertá-los e não era incomum que isso acontecesse. - “Escravos alforriados não eram cidadãos, embora livres no sentido amplo e, portanto, sofriam todas as limitações de liberdade (...) (FINLEY, 2019. p.137). Ou seja, ser escrava era sinônimo de ser uma propriedade, uma mercadoria. Na maioria dos casos, as mulheres escravizadas serviam no ambiente doméstico e, provavelmente, não tinham família. Segundo Claude Mossé, as escravas que tinham filhos dentro do óikos, engravidavam de seus senhores. Servir como escrava era estar à disposição da vontade de seu senhor, fosse aceitando-o no leito, ou sendo entregue aos amigos do dono do óikos durante uma festa, um banquete. A condição das mulheres escravizadas não esteve presente apenas na peça Andrômaca, mas também em Hécuba, encenada em 424 a.C. Para além da perspectiva da vingança, em vários momentos a ex-rainha de Troia lamenta seu destino como cativa e mãe que viu todos os filhos serem mortos. 27 As escravizadas (prostituídas ou não) podiam ser libertas? Sim, entretanto era mais comum que isso acontecesse quando se tratava se uma hetaíra (como foi o caso de Neera, que era escrava e comprou sua liberdade de seus jovens donos)7. As pornai, que atuavam na região do Pireu, tinham maior dificuldade em conseguir sua liberdade. As escravizadas que serviam no ambiente doméstico podiam ser libertadas como forma de recompensa aos serviços prestados. De maneira geral, a situação da mulher ateniense estava muito atrelada a sua condição social, tal como acontecia com os homens. No cotidiano, mulheres “bem-nascidas” conviviam muito mais com suas escravas, no interior do óikos, do que com outras mulheres que ocupavam o mesmo estatuto. 7 O texto de Apolodoro conta que os dois jovens compraram Neera de sua antiga dona e venderam sua liberdade para a própria hetaíra quando estavam para se casar, cobrando-lhe um valor bem mais baixo que o preço que haviam pago por ela. 28 3. A MULHER COMO O OUTRO NA ATENAS DO SÉCULO V A.C Se entender a mulher na Atenas do século V a.C é importante para este trabalho, igualmente importante é analisar o conceito de alteridade e o que queremos propor a partir disso. Como a mulher é vista em relação ao homem na Atenas do século V a.C, sobretudo nos textos trágicos? De quais maneiras Alceste e Medeia podem contribuir para os estudos clássicos, como personagens míticas e trágicas, para a compreensão de como a tragédia ora reforçava estereótipos, ora tecia críticas sociais? Dessa maneira, um dos primeiros pontos que destacamos ao trazer a discussão de alteridade é o proposto por Jean-Pierre Vernant no livro A Morte nos olhos – a figura do Outro na Grécia Antiga: Alteridade é uma noção imprecisa e extremamente ampla, mas que não acredito anacrônica, na medida em que os gregos a conheciam e utilizavam. Platão, por exemplo, opõe a categoria do Mesmo a do Outro em geral (tò héteron). Evidentemente, não é possível falar de alteridade tout court. É preciso distinguir e definir em cada caso tipos específicos de alteridade: o que é outro em relação à criatura viva, ao ser humano (anthrõpos), ao ser civilizado, ao macho adulto (anér), ao grego, ao cidadão.” (2021, p. 12) Vernant reconhece que o conceito é amplo, mas não anacrônico, já que é um vocabulário presente, inclusive em Platão. A questão central para nós é entender de que maneira o teatro e suas máscaras reforçavam identidades e destacavam as diferenças que apontavam para o “outro”. Segundo a historiadora Talita Gonçalves (2017, p.9), a noção moderna de “alteridade” surge na década de 60 do século XX, por ocasião do aumento do número de estudos sobre os “excluídos” (os “outros” – mulheres, escravizados e pobres) na história, algo que ocorreu concomitante à segunda onda feminista. Esses estudos avançaram para outras áreas como a antropologia e a ciência política, permitindo que uma série de discussões sobre identidade, gênero e diferenças culturais ressignificasse elementos do próprio século XX e, através disso, buscassem uma maior compreensão de como se fundamentavam essas relações na historiografia e na literatura. No campo da história e da semiótica, no início da década de 1980, Tzvetan Todorov utilizou a conquista da América para fazer uma “pesquisa ética” como “reflexão sobre os signos (...) pois o semiótico não pode ser pensado fora da relação com o outro” (1982). Em seu livro A Conquista da América – a questão do outro, são estabelecidos três eixos nos quais 29 se situa a problemática da alteridade, em primeiro lugar a questão do valor (“um plano axiológico”): se o outro é bom ou não, se é igual ou inferior a mim; em segundo lugar, a questão da aproximação ou do distanciamento em relação ao outro (“um plano praxiológico”): identificação com o outro, adoto seus valores ou imponho-lhe minha própria imagem? E, em terceiro lugar, a questão do reconhecimento ou da ignorância da identidade do outro (“plano epistêmico”) (1982, p.183). A descoberta da América é, portanto, a possibilidade do eu descobrir o outro: “Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas, cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Este grupo, por sua vez, pode estar contido numa sociedade: as mulheres para os homens, os ricos para os pobres, os loucos para os ‘normais’. Ou pode ser exterior a ela, uma outra sociedade que, dependendo do caso, será próxima ou longínqua: seres que em tudo se aproximam de nós, no plano cultural, moral e histórico, ou desconhecidos, estrangeiros cuja língua e costumes não compreendo, tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie.” (1982, p.3) Ao escolher a descoberta da América para analisar a questão do “outro”, Todorov opta pela alteridade total, aquela em que europeus e indígenas, ao se encontrarem, reconhecem o diferente, em que ocorre a surpresa do reconhecimento e do estranhamento. É evidente, que o contexto da conquista da América é diferente da relação dos gregos com os “bárbaros” e dos homens em relação às mulheres na Atenas do século V. Ainda assim, as questões levantadas por ele são úteis para este trabalho à medida em que reconhecemos na sociedade ateniense clássica o estranhamento em relação ao estrangeiro (escravizado ou não) e às mulheres, enquanto figuras diferentes dos homens. Em relação ao conceito de alteridade na antiguidade, é indiscutível a importância de François Hartog que, em sua obra O Espelho de Heródoto (1999), faz apontamentos interessantes sobre a visão de Heródoto acerca do “outro”. Como o próprio autor escreve, o livro tem a proposta “de ver como de ver como os gregos da época clássica representaram para si os outros, os não-gregos, de fazer aparecer a maneira ou as maneiras pelas quais eles praticavam a etnologia, em resumo, de esboçar uma história da 30 alteridade, com seu ritmo, seus tempos fortes e suas rupturas, se for possível cercá-los de algum modo.” (1999, p.37) Além de Hartog, a questão “do outro” foi muito bem analisada por Paul Cartledge no livro The Greeks – A portrait of self and others. Escrito após o final da URSS, quando as questões étnicas vinham à tona nos Bálcãs devido a guerra da Bósnia-Hezergovina, este livro começa analisando o mundo contemporâneo, desde os conflitos balcânicos, passando pelas questões das minorias nos EUA, para chegar ao conceito de alteridade estabelecido por Emmanuel Levinas, um judeu de origem lituana que, junto com muitos outros intelectuais judeus europeus oprimidos, migrou para Paris entre as duas guerras mundiais. A partir da obra de Levinas, Cartledge explica que a palavra “alteridade” passou a significar a condição de diferença e exclusão sofrida por um grupo em relação ao grupo dominante. Simone de Beauvoir também utiliza o conceito de Levinas para definir a mulher como “Outro” em seu livro O segundo sexo: “A mulher determina-se e diferencia-se em relação homem, e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. A categoria do Outro é tão original quanto a própria consciência. Nas mais primitivas sociedades, nas mais antigas mitologias encontra-se sempre uma dualidade que é a do Mesmo e do Outro. (...) a alteridade é uma categoria fundamental do pensamento humano. Nenhuma coletividade nunca se define como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si (...)” (2016, p.12- 13)8 Dessa forma, é a abordagem da historiografia cultural, permeada pela antropologia estruturalista que nos dá a base teórica sobre o conceito de alteridade deste trabalho. A construção social da identidade cultural (e política) do homem, a partir da existência da mulher e suas funções sociais (e por que não dizer cívicas?) e do estrangeiro (seja ele livre ou escravizado), fundamenta os elementos que permeiam as análises acerca das personagens no drama, sobretudo Medeia, como a xênia, a não-grega e Alceste, que, mesmo não sendo ateniense, é uma mulher grega. Justamente por isso, o corpus dessa pesquisa é composto pelas tragédias Medeia e Alceste, ambas de Eurípides. ! ! 8 Simone de Beauvoir cita a obra de Levinas em uma nota de rodapé neste trecho: “A alteridade realiza-se no feminino. Termo do mesmo quilate, mas de sentido oposto à consciência.” (2016, p. 13) 31 3.1 Alteridade e Drama Helene Foley inicia o livro Female acts in Greek tragedy dizendo que a tragédia grega era escrita, encenada por homens e (talvez não exclusivamente se as mulheres estivessem presentes no teatro) eram assistidas por um grande público masculino (FOLEY, 2001, p. 3). Ou seja, mesmo quando uma mulher é protagonista em uma peça9, há o olhar masculino sobre quais seriam os comportamentos e os sentimentos femininos ali encenados. Essa mulher é definida, portanto, a partir de uma visão estabelecida pelo código social centrado no andres e apresentada, no caso das tragédias, em uma perspectiva que não é a do entretenimento, já que o concurso trágico era parte das Dionisías e tinha uma função religiosa, ainda que, em Eurípides, possamos enxergar elementos de profundas mudanças quando comparada à visão divina presente nas peças de Ésquilo.10 Entender o que representa a mulher em relação ao homem na sociedade ateniense do século V a.C é essencial para que possamos compreender a importância de Alceste e Medeia como mitos encenados (MALHADAS, 2003)11, como registro literário e como figuras femininas, tanto pela possibilidade de ser um modelo a seguir (no caso de Alceste) como uma reflexão sobre transgressão e traição (no caso de Medeia). É nesta especificidade que toda a profundidade do conceito de alteridade nos permite uma arqueologia do protótipo da figura feminina na obra euripidiana até 431 a.C. Neste sentido, os estudos de Vernant e Vidal-Naquet são importantes para estabelecermos a relação entre alteridade, teatro e os problemas de ser mulher em uma sociedade dominada por homens. Essa concepção de alteridade, que integra estranhamento e identidade, nos remete ao deus Dioniso, pois ele é o deus do teatro, das máscaras, dos limites. É com este deus duplamente nascido, estrangeiro sem deixar de ser grego - já que seu mito tem elementos “díspares, provindos de locais diversos, sobretudo da Ásia Menor (BRANDÃO, 1991, p. 286) que podemos ligar a importância social da alteridade expressa de diversas formas na própria tragédia: Com Dioniso, tudo muda de figura; trata-se, no seio mesmo da vida, nesta mesma terra, da intrusão súbita do que nos desorienta da existência 9 No caso dessa pesquisa, as duas tragédias analisada têm mulheres como protagonistas que nomeiam as peças: Alceste e Medeia, por isso olhar para esse protagonismo concedido é tão importante para o corpus. 10 Eurípides muitas vezes tomou Ésquilo como referência em várias tragédias e acrescentou características próprias aos temas. 11 O livro “Tragédia Grega – o mito em cena”, da prof. Daisi Malhadas (2003), tem como objetivo compreender “o papel do espetáculo em relação ao mito na dramaturgia trágica” (2003, p. 15), a partir de uma análise da Poética de Aristóteles, já que o mito é a “alma da tragédia” (50a 39) 32 cotidiana, do curso normal das coisas, de nós mesmos: o disfarce, a dissimulação, a embriaguez, a brincadeira, o teatro, o transe e, enfim, o delírio extático. Dioniso nos ensina ou obriga a nos tornarmos diversos do que somos normalmente, a experimentar nesta vida, neste mundo, a fuga para uma estranheza desconcertante. (VERNANT, 2021, p. 12-13) Assim, para Vernant, o teatro é a maneira pela qual os gregos apresentam e representam o “outro”, seja o estrangeiro, seja a mulher. E, sendo a alteridade aquilo que contrapõe o senso de identidade, no caso da sociedade ateniense, vemos a importância de se trazer a figura feminina para o centro do palco, já que esta é uma sociedade totalmente patriarcal. Como analisa Torrano, em sua introdução no volume I do Teatro Completo de Eurípides: A tragédia é o grande momento da educação pública em que a cidade atualiza a tradição e apresenta atualizados as suas referências e os seus valores aos cidadãos. A tragédia não oferece modelos de conduta, mas mostra conflitos, contradições, erros de avaliações e obstinações fatídicas, que estimulam a reflexão e põem em questão os paradigmas tradicionais. (2022, p. 14-15) Ou seja, através do teatro, as questões sobre alteridade, sobre conflitos e outras contradições, são discutidas e levam os espectadores à reflexão. Um outro aspecto interessante em relação à tragédia, à alteridade e às relações com Dioniso, é apresentado por Froma Zetilen, em seu artigo Playing the other: theatricality and the feminine in Greek Drama. Para esta helenista, a loucura sempre foi associada mais às mulheres que aos homens. As fronteiras dos corpos das mulheres são percebidas como fluidas, mais permeáveis, mais abertas ao afeto e menos racionais. Por isso as mulheres são vistas como mais frágeis que os homens e acabam sendo uma fonte de perturbação para o mundo masculino. Isso se reflete no fato de que, no mundo divino, são, em sua maioria, agentes femininos que, além de Dioniso, infligem loucura aos homens - seja Hera, Afrodite , as Erínias, ou mesmo Atena, como no Ajax de Sófocles (1990, p. 64) De acordo com MASTRONARDE (2010, p. 246), embora a presença feminina nas tragédias não fosse inédita na época de Eurípides, já que, tanto Ésquilo, quanto Sófocles haviam escrito peças em que mulheres fortes apareciam, o que torna a obra de Eurípides notável é o fato de ele ter explorado com mais frequência temas domésticos e pessoais, além de ter dado maior protagonismo às personagens femininas. Essa característica reflete o envolvimento de Eurípides com as tendências intelectuais contemporâneas de sua época, como a análise provocativa da natureza e da cultura e o questionamento das normas aceitas (idem, p. 245-246): 33 “Euripidean plays in particular (both surviving and lost) contain a greater number of major female roles, they more frequently explore domestic and personal themes, and they show a pervasive engagement with contemporary intellectual trends, among which was the provocative analysis of nature and culture and the questioning of accepted norms, including those pertaining to gender.” 12 Ao trazer para o centro da cena questões que mesclavam angústias cotidianas, típicas do homem comum, com questões míticas, Eurípides permitiu que o público se identificasse mais facilmente com os personagens e suas dificuldades, ao mesmo tempo em que explorava a complexidade das relações humanas e dos valores morais e sociais que regiam a sociedade na época. Além disso, a abordagem crítica de Eurípides em relação às normas e convenções da sociedade grega também é uma marca de sua obra, que muitas vezes subverte as expectativas do público ao apresentar personagens que desafiam as normas de gênero, classe e poder estabelecidos. Ou seja, a perspectiva da alteridade na estrangeira Medeia é muito diferente daquela trabalhada por Ésquilo na peça Os persas, em que os bárbaros estão presentes para reforçar a identidade e superioridade dos gregos, em um contexto histórico cronologicamente muito próximo daquele em que ocorreu vitória helênica sobre os persas. Dessa forma, ainda que consideremos Eurípides um herdeiro de Ésquilo em vários aspectos, o momento histórico vivido por cada um deles é diferente e isso é refletido nas peças. Há uma abordagem provocativa e questionadora por parte de Eurípides que pode ser entendida como um reflexo das tendências intelectuais e filosóficas próprias de seu tempo em que a filosofia e as questões sofísticas já estavam presentes de forma muito mais intensa que na época de Ésquilo. Não à toa, Jacqueline de Romilly, em seu livro La Modernité d’Euripide, destaca essa modernidade das obras euripidianas: "Peut-être même est-ce une des raisons principales expliquant que quinze ans de différence avec Sophocle aient pu creuser un fossé si net. Car ces quinze années font qu'à la différence de Sophocle, Euripide a pu être profondément influencié par ces id'és nouvelles. Ses biografpines antiques offrent des nome divers de philosophes et de sohistes dont il aurait été l élève; et son ouvre confirme l'existence e'échos multiples. De fai, le premier des grands sophistes, Protagoras, vint à Athènes avant 444: Sophocle avait déja cinquante ans et Euripide, lui, en avait trente-cinq - l'âge de se 12 As peças euripidianas em particular (tanto as sobreviventes quanto as perdidas) contêm um número maior de papéis femininos importantes, exploram com mais frequência temas domésticos e pessoais e mostram um envolvimento generalizado com as tendências intelectuais contemporâneas, entre as quais a análise provocativa da natureza e da cultura e o questionamento das normas aceitas, inclusive as de gênero. 34 passionner pour ces nouveautés. Socrate, qui devait être l'adversaire des sophistes, en avait vingt-cinq (...)” (ROMILLY, 1986, p. 12)13 Um outro fator que pode ter influenciado uma abordagem mais “moderna” nas peças de Eurípides foram as questões relativas à Guerra do Peloponeso (431- 404 a.C). Ainda que as duas peças que compõem o corpus desta pesquisa não sejam do período em que as consequências da guerra estivessem afetando a vida dos atenienses, as tensões entre Esparta e Atenas já eram muito perceptíveis. Na época em que Eurípides escreveu suas peças, a perspectiva em relação à alteridade era diferente do período de Ésquilo. Enquanto as guerras contra os persas ajudaram a estabelecer a identidade dos gregos como uma nação em oposição aos bárbaros invasores, a Guerra do Peloponeso confrontou os atenienses com a difícil questão de como lidar com outras cidades-estados gregas, colocando em xeque sua posição e suas ações. Nesse contexto, a ideia de quem é o inimigo se tornou mais complexa e exigiu uma reflexão mais profunda sobre as relações entre os gregos e a alteridade: “Athènes se trouve engagée dans une nouvelle guerre, mais cette fois contre des Grecs: c'est la guerre du Péloponnèse, qui durera vingt-sept ans. Athènes n'a plus l'encouragement de lutter contre des barbares. Elle n'a plus non plus celui de mener une guerre défensive: ses adversaires l'accusent de porter atteinte aux libertés des Grecs. De plus en plus, ceux qu'elle abait soumis se révoltent contre elle. Elle doit réprimer le séditions; elle voit ses ennemis se multiplier; elle sentapprocher la défait dans laquelle, em 404, elle perdra son empire, verra ses murs rasés et son indépendance même, au moin pour um temps, limitée." (ROMILLY, 1986, p. 6-7)14 Dessa forma, as discussões que as peças euripidianas levantaram causaram muita surpresa e refletiam muito do contexto vivido por ele. 13 Talvez seja até mesmo uma das principais razões que explicam como uma diferença de quinze anos em relação a Sófocles possa ter criado um abismo tão claro. Porque esses quinze anos significam que, ao contrário de Sófocles, Eurípides pode ter sido profundamente influenciado por essas novas ideias. Suas biografias antigas oferecem diversos nomes de filósofos e sofistas dos quais ele poderia ter sido aluno; e sua obra confirma a existência de múltiplos ecos. Na verdade, o primeiro dos grandes sofistas, Protágoras, chegou a Atenas antes de 444: Sófocles já tinha cinquenta anos e Eurípides, trinta e cinco - a idade para se apaixonar por essas novidades. Sócrates, que viria a ser o adversário dos sofistas, tinha vinte e cinco anos (...) 14 A Atenas encontra-se envolvida em uma nova guerra, desta vez contra gregos: é a Guerra do Peloponeso, que durará vinte e sete anos. Atenas não tem mais o incentivo de lutar contra bárbaros. Também não tem mais o de liderar uma guerra defensiva: seus adversários a acusam de violar as liberdades dos gregos. Cada vez mais, aqueles que ela havia subjugado se revoltam contra ela. Ela deve reprimir as sedições; ela vê seus inimigos se multiplicarem; ela sente se aproximar a derrota na qual, em 404 a.C., perderá seu império, verá suas muralhas destruídas e sua independência mesmo, pelo menos por um tempo, limitada. 35 3.1.1 Teatro e alteridade: as máscaras de Dioniso e o espaço do teatro Em relação ao uso de máscaras no teatro, é importante lembrar que elas serviam para amplificar as emoções representadas pelos atores e tinham também uma perspectiva religiosa. Para Vernant, três forças divinas estão ligadas às máscaras na Grécia Antiga: a Gorgó, personagem feminina monstruosa, sendo Medusa a única mortal, cujo mito tem sido ressignificado nas últimas décadas; Ártemis, deusa que representa os limites entre as fronteiras do selvagem e o civilizado (em uma dialética em que a alteridade radical se faz presente)15, e Dioniso, que representa o “outro” por ser o deus das fronteiras, dos limites, que traz para a vida humana uma alteridade tão completa que pode arrastar seus inimigos para o caos e para a morte, como a Górgona, ou dar aos seus fiéis o êxtase da comunhão numinosa (VERNANT, 2021). É na figura de Dioniso e suas máscaras (e a propensão à alteridade) que vamos nos centrar, sobretudo por causa das Dionisías, momento em que as tragédias eram encenadas. A tragédia grega entra na vida dos atenienses, segundo Jacqueline de Romilly, devido a uma decisão judicial, durante o governo de Pisístrato, entre 536 a.C. e 533 a.C., inserindo- se em uma política de expansão popular e, por isso, está profundamente associada à atividade cívico-religiosa (ROMILLY, 2008, p. 16). Sabemos que toda festa religiosa é uma festa cívica em Atenas, mas no caso das Dionísias, onde aconteciam os concursos trágicos, há dois elementos que nos chamam a atenção: o público, ao que tudo indica, majoritariamente masculino e a presença das máscaras no rosto dos atores (hipokrités). As máscaras teatrais são diferentes das máscaras rituais, como explicam Jean-Pierre Vernant e Vidal-Naquet: “À primeira vista, essa distinção pode surpreender, já que em Atenas, assim como nas outras cidades antigas, os concursos dramáticos não se dissociam do cerimonial religioso em honra de Dioniso. Eles se desenrolam por ocasião das festas do deus, por ocasião das Grandes Dionísias urbanas, e conservam, até o fim da Antiguidade, um caráter sagrado. De resto. O próprio edifício do teatro reserva um lugar para o templo de Dioniso; no centro da orkhestra ergue-se um altar de pedra para o deus, a thyméle, e, na arquibancada, no lugar de honra, o assento mais belo é reservado ao sacerdote de Dioniso.” (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2014, p. 163) 15 Entende-se como alteridade radical a oposição cidade e terras humanizadas e o selvagem, em que o Outro se manifesta no contato regular em que selvagem e civilizado se opõem, mas também se interpenetram. (VERNANT, 2021, p. 17) 36 A máscara cênica é, portanto, um acessório que tem a função de possibilitar uma maior expressividade (incluindo a encenação de papeis femininos por homens), diferente da máscara ritual que tem objetivos religiosos. Além dessas, há também “a máscara do próprio Deus, que, por sua face única com olhos estranhos, traduz alguns aspectos próprios de Dioniso, essa forma divina cuja presença parece inelutavelmente marcada pela ausência” (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2014, p. 163). Assim, é através da máscara, no teatro, no culto a Dioniso, que o cidadão - perfeitamente integrado à vida política e social de Atenas - pensa o lugar do Outro e, de forma cênica, consegue vivê-lo, seja como hipokrités, seja como espectador. É no teatro que o homem vivencia a “alteridade radical” (VERNANT. VIDAL-NAQUET, 2014, p. 177) que permite confundir as categorias e desintegrar os quadros sociais, refletindo sobre eles, ao mesmo tempo que o drama e sua performance espelham também um pouco dos aspectos presentes em Atenas, ainda que indiretamente. Tornar-se outro, oscilando no olhar do deus, ou assemelhar-se a ele por contágio mimético, esse é o objetivo do dionisismo, que coloca o homem em contato imediato com a alteridade do divino. É um fenômeno paralelo que ocorre no teatro, quando, no século V, os gregos instauram um espaço cênico onde apresentam personagens e ações cuja presença, ao invés de inscrevê-los no real, lança-os nesse mundo diferente que é o da ficção. (VERNANT. VIDAL-NAQUET, 2014, p.178) A fonte de inspiração dos tragediógrafos foi a Epopeia, que é a grande responsável pela tragédia ser um gênero literário. “A epopeia contava: a tragédia mostrou” (ROMILLY, 2008, p. 22). Justamente porque ela “mostrava em vez de contar e, pelas próprias condições em que mostrava, a tragédia podia assim retirar dos factos épicos um efeito mais imediato e uma lição mais solene” (idem). E assim, em cada um dos autores trágicos que chegaram até nós, é possível vislumbrar algumas características: se o teatro de Ésquilo é essencialmente religioso, Sófocles debate as incertezas do herói solitário, Eurípides inventa a noção de intriga e faz das paixões o instrumento que reflete muitos dos problemas, das ideias trazidas pelos sofistas e pelos problemas vividos por Atenas. Jacqueline de Romilly analisa que “os problemas políticos estão, em Eurípides, inextricavelmente misturados a todos os dramas do sentimento”. (ROMILLY, 2008. p.125). As personagens de Eurípides escancaram as fraquezas humanas, tanto aqueles que obedecem as suas paixões (e esta influência da paixão é descrita com realismo), tanto aqueles 37 que cedem aos interesses oportunistas e são medíocres (como é o caso de Jasão, ou até mesmo de Admeto). O ator veste a máscara e o espectador se vê nas falas, nas reflexões do mito em cena. Froma Zeitlin, no artigo Playin the other: Theater, theatricality and the Feminine in Greek Drama, corrobora com essa visão, pois analisa que o que a tragédia faz de melhor é traçar um caminho da ignorância ao conhecimento, do engano à revelação, do mal-entendido ao reconhecimento. Ou seja, os personagens representam e vivem as consequências de terem se apegado a uma visão parcial e única do mundo e de si mesmos. Nos conflitos e tensões que marcam as relações entre os personagens opostos, todos passam a vivenciar, de alguma forma, as complexidades do mundo – suas múltiplas dimensões, suas decepções e ilusões (ZEITLIN, 1985, p. 65) Além da máscara, no caso das tragédias Alceste e Medeia, a casa onde se passa cada uma dessas peças também é importante, pois a ideia de “dentro” e “fora” do lar faz referência direta à ação dramática, sendo representação do “eu trágico” a parte de dentro, e a “fachada” representando o “mundo exterior” (ZEITLIN, 1985, p. 65). Neste sentido, há uma ambiguidade interessante em relação à casa, pois, ao mesmo tempo que ela representa um locus de poder masculino, em que a solidez de sua estrutura arquitetônica simbolicamente garante a estabilidade da ordem social, o óikos é domínio próprio da mulher. E o elemento feminino representa uma constante ameaça subversiva à autoridade masculina. Ameaça que deve ser controlada e contida, como Jasão tencionava fazer com Medeia quando tenta explicar (sem sucesso, como sabemos) suas intenções ao abandonar o tálamo e unir-se à princesa coríntia inominada. No caso de Admeto, é a própria Alceste que se contém diante dos servos, no primeiro episódio, e só chora quando chega em seus aposentos, segundo a narrativa de sua serva: “Quando ela soube que chegou o dia de morrer, com água do rio banhou a alva pele e nos aposentos de cedro. 160 vestiu-se com vestes e adorno distintos e de pé diante de Héstia fez esta prece: ‘Senhora, eu parto para sob a terra, e por último, prostrada, te pedirei que crie meus órfãos e case-o com 165 boa esposa e a ela com bom marido. E não morram precoces os filhos como pereço mãe, mas com bons Numes tenham boa vida na pátria.’ Todos os altares da casa de Admeto 170 ela visitou e pôs coroas e fez prece 38 cortando a fronde dos ramos de mirto sem lágrimas nem pranto. O iminente mal não mudava a cor da pele formosa. E depois caída no tálamo desse modo 175 pranteou o leito e disse estas palavras: ‘Ó leito, onde soltei virgínea donzelice por este marido, antes de quem morro, salve! Não te odeio, só me destruíste, pois por temer trair-te a ti e ao esposo, 180 morro. Outra mulher tomará tua posse, não mais casta e talvez com boa sorte.’ (TORRANO, 2021, p. 153) Este trecho é interessante por demonstrar o quanto Alceste tinha consciência de seu papel como rainha e também explicita como o centro do óikos era feminino, ainda que estivesse claro a superioridade masculina. James Redfield destaca a importância do leito nupcial: “No centro simbólico dos aposentos femininos estava o leito nupcial: pertencia ao marido e destinava-se à sua mulher. Na cerimônia nupcial, o marido pegava na mulher pelo pulso e acompanhava-a à sua casa e ao seu leito. (1994, p. 165) Percebemos assim que toda as questões relativas às funções sociais, à identidade e à alteridade, estão presentes na máscara e em outros signos da estrutura dramática, até mesmo na figura de Dioniso. Froma Zeitlin inclusive analisa a feminilização de Dioniso: Still further, if we also consider that in order to direct the proccedings of the drama, to manipulate its theatrical effects, contive its plors, set its stage, and control its mimetic play of illusion and reality, Dionysus, the god of the theater, mus also take on womanish traits, then perhaps we may venture yet further: can there be some instrinsic connections linking the phenomenon of Athenian tragedy, invented and developed in a historical context as civic art form, and what the society culturally defines as feminine in its sex/gender system? There is nothing new in stressing the associations of Dionysus and the feminine for the emotional aspects of life are associated in the culture more with women than with men. The boundaries of women's bodies are perceived as more fluid, more permeable, more open to affect and entry from the outside, less easily controlled by intellectual and rational means. This perceived physical and cultural instability renders them weaker than men; it is also all the more a source of disturbing power over them, as reflected in the fact that in the divine world it is feminine agents, for the most part, who, in addition to 39 Dionysus, inflict men with madness - whether Hera, Aphrodite, the Erinyes, or even Athena as in Sophocles' Ajax. (1985, p. 64-65)16 Dioniso é o deus que celebra o embaralhamento das fronteiras e traz à tona a alteridade, possibilitando personagens femininas de têmpera viril, como Medeia e Agave (nas obras de Eurípides) e Clitemnestra (na peça Agamêmnon de Ésquilo). No caso do homem “afeminado”, o próprio Bakkhos é ambíguo, inclusive em sua aparência17. Entretanto, há casos em que a ausência de uma masculinidade mais explícita não depende das vestimentas: é o caso de Admeto e seu pai, Feres, em Alceste pois como explica Donald Mastronarde (2010, p. 261) homens adultos que se esforçam demais para se manterem vivos são vistos como menos másculos, não à toa, quando pai e filho se encontram no funeral da protagonista da peça, há uma troca de farpas sobre a falta de virtude, Feres é acusado pelo filho por não ter aceitado morrer em seu lugar e Admeto por permitir que a jovem esposa morresse em seu lugar, uma total inversão de papeis, pois é esperado do homem que ele se sacrifique pela família. Seu dever é proteger inclusive a esposa. As máscaras, o enredo e o espaço do teatro marcam uma constante tensão e ambiguidade que mostra o quanto na perspectiva trágica, “o homem e a ação se delineiam, não como realidades que se poderiam definir ou descrever, mas como problemas. Eles se apresentam como enigmas cujo duplo sentido não pode nunca ser fixado ou esgotado.” (VERNANT. VIDAL-NAQUET, 2014, p.16) Ou seja, a ideia de que o homem e a ação são enigmas cujo duplo sentido nunca pode ser fixado ou esgotado, também pode ser vista como uma reflexão sobre a dificuldade de se compreender a alteridade. A perspectiva trágica mostra que a diferença entre as pessoas e as 16 Se considerarmos que, para dirigir o desenvolvimento do drama, para manipular seus efeitos teatrais, inventar seus enredos, montar seu palco e controlar seu jogo mimético de ilusão e realidade, Dioniso, o deus do teatro, deve também assumir traços femininos, então talvez possamos nos aventurar ainda mais: pode existir algumas conexões intrínsecas ligando o fenômeno da tragédia ateniense, inventada e desenvolvida em um contexto histórico como uma forma de arte cívica, e o que a sociedade definia culturalmente como feminino em seu sistema de sexo e gênero? Não há nada de novo em enfatizar as associações de Dioniso e o feminino, pois os aspectos emocionais da vida são associados na cultura mais às mulheres do que aos homens. As fronteiras dos corpos das mulheres são percebidas como mais fluidas, mais permeáveis, mais abertas ao afeto e à entrada do exterior, menos facilmente controladas por meios intelectuais e racionais. Essa percepção de instabilidade física e cultural as torna mais fracas que os homens; é também ainda mais uma fonte de poder perturbador sobre eles, como se reflete no fato de que no mundo divino são os agentes femininos, em sua maioria, que, além de Dioniso, infligem a loucura aos homens - Hera, Afrodite, as Erínias, ou mesmo Atena como no Ajax de Sófocles. 17 Inclusive, nas Bacantes, Dioniso é ridicularizado constantemente por Penteu devido às suas vestimentas, porém, quem termina (a vida inclusive) travestido de mulher é o próprio rei de Tebas. 40 ações que elas tomam não podem ser reduzidas a uma única intepretação ou explicação, exigindo uma abertura para a complexidade e a ambiguidade da alteridade. 3.2 A alteridade e o gregos em seu próprio tempo histórico: “a invenção do bárbaro”18 Segundo Paulo Cartledge, em seu livro The Greeks - A Portrait of Self and Others, nenhuma preocupação, talvez, tenha sido mais básica do que a da identidade, seja coletiva ou individual, étnica, tribal, política ou qualquer outra. Começando no mais alto nível de generalidade, os gregos clássicos dividiram toda a humanidade em duas categorias mutuamente exclusivas e antitéticas: nós e eles, ou, como eles dizem, gregos e bárbaros. De fato, a antítese “gregos versus bárbaros” é uma dicotomia estritamente polarizada, sendo, não apenas contraditória, mas também exclusiva. Gregos e bárbaros compõem toda a humanidade. Não que os gregos sejam os únicos a se distinguirem dos outros: atualmente se utiliza a expressão europeus e orientais, em vários momentos da história recente, minorias foram perseguidas por pertencerem a outras etnias. Mas, para os gregos clássicos a polaridade greco- bárbara era apenas um exemplo do hábito ideológico de polarização que era uma marca registrada de sua mentalidade e cultura. Além disso, eles levaram a polarização a seus “limites ideológicos” (CARTLEDGE, 2002, p.12). Assim, enquanto os gregos eram idealmente vistos como não-bárbaros, os bárbaros eram igualmente vistos como sendo exatamente o que os gregos não eram. A qualidade ideológica dessa polarização dos gregos fica evidente em como eles representavam a diferença de gênero. Enquanto o sexo se refere à biologia ou anatomia, o gênero se trata da construção ideológica do masculino, motivada e fundamentada de várias maneiras pelos gregos. Eles viam a natureza masculina como não apenas diferente, mas oposta (e hierarquicamente superior) à natureza feminina. Isso se reflete na palavra "bárbaro", que era usada para diminuir o status quo da categoria oposta. No entanto, a dicotomia homem- mulher não precisaria ser interpretada de maneira hierárquica e depreciativa, pois metade dos bárbaros eram do sexo masculino, então a masculinidade não era algo pelo qual os gregos do sexo masculino poderiam reivindicar ser especialmente ou exclusivamente privilegiados. 18 Referência ao livro da Edith Hall, Inventing the Barbarian: Greek Self-Definition Through Tragedy (1991). 41 Além disso, metade dos gregos eram mulheres, então não havia razão lógica para que os gregos masculinos definissem as mulheres como inferiores. Ainda assim, eles consideravam o "feminino" como categoricamente inferior ao "masculino" e viam os bárbaros masculinos como naturalmente efeminados. Para Edith Hall, a invenção do “bárbaro” tal como entendemos hoje, tem o século V a.C como o ponto fulcral para sua determinação, inclusive por causa do gênero trágico. Logo na introdução há uma colocação muito interessante: The Athenian theatre of the fifth century BC saw the production of at least a thousand tragedies. Something is known about just under three hundred of them, whether from a complete text, fragments, a title, or from passages which have turned up on papyrus. I Nearly half of these portrayed barbarian characters, or were set in a non-Greek land, or both: almost all the extant plays at least refer to barbarian customs or inferiority. These strikingly high proportions are usually explained by pointing to the popularity of themes from the tale of the Trojan war, but this can account neither for the great difference between the portrayal of the Trojans of epic and those of tragedy, nor for the frequent introduction of invented barbarian characters and choruses into plays where Greeks could have satisfied the demands of the plot. There was no requirement, for example, for the slave who reports the assault on Helen in Orestes to be Phrygian, nor for the libation-bearers in Choephoroe to be Asiatic. The visual and musical possibilities created by introducing foreigners into plays no doubt contributed to their popularity, but this leaves unexplained the pervasiveness of the rhetorical polarization of Greek and barbarian in plays with an exclusively Greek cast. Supernumerary foreign characters or choruses, and the ubiquity of allusions to the other, inferior, world beyond Hellas, therefore provide evidence that barbarians were a particular preoccupation of the Greek tragedians. (1991, p. 1)19 19 O teatro ateniense do século V a.C. viu a produção de pelo menos mil tragédias. Sabe-se algo sobre menos de trezentas delas, seja de um texto completo, fragmentos, título ou de passagens encontradas em papiros. Quase metade dessas tragédias retratava personagens bárbaros ou se passava em uma terra não-grega, ou ambos: quase todas as peças existentes ao menos faziam referência a costumes ou inferioridade bárbaros. Essas proporções notavelmente altas são geralmente explicadas apontando para a popularidade dos temas da história da Guerra de Troia, mas isso não pode explicar nem a grande diferença entre a representação dos troianos na epopeia e na tragédia, nem a frequente introdução de personagens e coros bárbaros inventados em peças onde gregos poderiam ter satisfeito as exigências da trama. Não havia necessidade, por exemplo, de que o escravo que relata o ataque a Helena em Orestes fosse frígio, nem de que as portadoras de libações em Coéforas fossem asiáticas. As possibilidades visuais e musicais criadas pela introdução de estrangeiros nas peças sem dúvida contribuíram para sua popularidade, mas isso deixa sem explicação a abrangência da polarização retórica entre gregos e bárbaros em peças com elenco exclusivamente grego. Personagens ou coros estrangeiros supernumerários e a ubiquidade de alusões ao outro, mundo inferior, além da Hélade, portanto, fornecem evidências de que os bárbaros eram uma preocupação particular dos trágicos gregos. 42 A autora ainda analisa que, mais que uma questão relacionada aos aspectos culturais, a questão do bárbaro está profundamente atrelada à questão política: By far the most important area in which Greek and barbarian are polarized in classical Greek rhetoric is political. In the works of the tragedians, historians, and orators, the democratic Athenian ideal is insistently defined and applauded by comparison with the tyranny thought to characterize most barbarian societies. (1991, p.13)20 Assim, é possível percebermos o quanto os concursos trágicos ampliam a discussão sobre o que é “ser grego” versus o “não-grego” e Ésquilo faz isso com maestria na peça Os Persas. Portanto, o bárbaro enquanto representante do “outro”, do “não grego” nas tragédias, está ligado ao fim das guerras entre gregos e persas e a ascensão de Atenas como um Estado imperialista. A polarização entre gregos e bárbaros em torno da noção de diferença política deve ser vista não apenas como um reflexo do orgulho na ação militar coletiva dos trinta e um estados gregos que puderam inscrever seus nomes no monumento da vitória em Delfos, mas como uma legitimação da liderança ateniense da Liga de Delos, que fomentou um novo senso de identidade coletiva entre os estados aliados. Os membros da liga, no meio do século, redefinidos como o império ateniense, foram incentivados a pensar em si mesmos não apenas como habitantes de uma ilha ou estado específicos, mas como helenos, democratas e apoiadores de Atenas. A invenção do bárbaro nos primeiros anos do século V foi uma resposta à necessidade de uma aliança contra o expansionismo persa e a imposição de tiranos pró- persas: mas a tenacidade da ideologia polarizadora após as guerras só pode ser totalmente compreendida no contexto de todo o sistema conceitual que sustentava a supremacia ateniense. E podemos ir além e analisarmos o quanto as questões relacionadas à rivalidade Atenas x Esparta estão presentes (ainda que não explicitamente) nas tragédias que foram encenadas durante a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C) e que chegaram até nós. A questão política fica evidente sobretudo no elogio à democracia, pois a tirania bárbara tornou-se um tópico retórico no repertório dos poetas trágicos, e é frequentemente discutida em termos gerais: os reis bárbaros geralmente são retratados como “turannos” (HALL, 199, p. 154), representando sempre características despóticas ou refletem o desprezo dos atenienses a alguma casas reais, como por exemplo o que ocorre com Reso analisado como um monarca insignificante estabelecido em seu trono, sendo um vassalo do império persa, 20 De longe, a área mais importante em que gregos e bárbaros são polarizados na retórica grega clássica é a política. Nas obras dos trágicos, historiadores e oradores, o ideal democrático ateniense é insistentemente definido e aplaudido em comparação com a tirania pensada para caracterizar a maioria das sociedades bárbaras. 43 devido à intervenção militar de seus poderosos aliados frígios (TORRANO, 2013, v. 406-11, p.16). Assim, como Polimestor, ele reflete a baixa opinião ateniense sobre a casa real trácia. The tragedians had run up against a problem in choosing to celebrate democratic ideology through myths in which the principal characters were almost exclusively members of royal families. Only Aeschylus dared to portray a mythical Athens without a king in his Eumenides. The rulers in Greek tragedy range from the wise and benevolent king, equipped with democratic virtues, to the truly decadent despot.182 The ambivalent status of the tragic king is reflected in the range of terms used almost interchangeably to designate him, and in the ambiguity of their implications/83 It must be conceded, therefore, that turannos and its cognates can in tragedy be used of an almost benign rule, as can anax and basileus, but they frequently bear pejorative overtones. The implications must be judged in each case according to context. Where a barbarian leader is called basileus in contrast with Greek 'generals' it can hardly be coincidental, and where the word turannos is used in conjunction with other items from the 'vocabulary of barbarism' the implication is that the ruler, whether or not he is himself a barbarian, is a tyrant after the model of the oriental despot (see further below, chapter 5. 1). Thus in Agamemnon, where Priam, it is said, would willingly have trodden the purple carpets (93 s- 6), turannikou in reference to his city's blood has a clearly deprecatory meaning (828). In Euripides especially the Trojans' rule is formulated as a barbarian tyranny. Priam's hearth was turannon, and Hecuba who came from a 'tyrant's home' is now a slave (Andr. 3; Hee. 55-6, see also 365-6, 809, Tro. 474). Astyanax was to have been 'tyrant of fruitful Asia', and Helen claims that she has saved Hellas from subjection by a barbarian army to a barbarian turannis (Tro. 748, 933-4). (HALL, 1991, p. 155).21 Ainda na visão da autora, a visão helenocêntrica dos poetas trágicos os levou a reinterpretar mitos, transformando personagens heroicos de etnia helênica ou etnias indeterminadas em bárbaros e até mesmo inventando outras figuras bárbaras para contrapor o “grego”. Há um mundo bárbaro inventado na literatura grega que desenvolveu uma dinâmica 21 Os tragediógrafos enfrentaram um problema ao escolherem celebrar a ideologia democrática por meio de mitos em que os personagens principais eram quase exclusivamente membros de famílias reais. Apenas Ésquilo ousou retratar uma Atenas mítica sem um rei em sua Eumênides. Os governantes na tragédia grega variam desde o rei sábio e benevolente, equipado com virtudes democráticas, até o déspota verdadeiramente decadente. O status ambíguo do rei trágico é refletido na variedade de termos usados quase indistintamente para designá-lo e na ambiguidade de suas implicações. Deve-se conceder, portanto, que tyrannos e seus cognatos podem ser usados na tragédia para se referir a um governo quase benigno, assim como anax e basileus, mas frequentemente carregam conotações pejorativas. As implicações devem ser avaliadas em cada caso de acordo com o contexto. Quando um líder bárbaro é chamado de basileus em contraste com os 'generais' gregos, dificilmente pode ser coincidência, e onde a palavra tyrannos é usada em conjunto com outros itens do 'vocabulário do barbarismo', a implicação é que o governante, seja ou não ele mesmo um bárbaro, é um tirano nos moldes do déspota oriental (ver mais abaixo, capítulo 5.1). Assim, em Agamêmnon, quando se diz que Príamo teria voluntariamente pisado nos tapetes púrpura (93-96), tyrannikou em referência ao sangue de sua cidade tem um significado claramente depreciativo (828). Em Eurípides, especialmente, o governo dos troianos é formulado como uma tirania bárbara. O lar de Príamo era tyrannon, e Hécuba, que veio de uma 'casa de tirano', agora é escrava (Andr. 3; Hee. 55-6, veja também 365-6, 809, Tro. 474). Astíanax deveria ter sido 'tirano da Ásia fértil', e Helena afirma que salvou a Grécia da submissão por um exército bárbaro a uma tyrannis bárbara (Tro. 748, 933-4). 44 interna e se tornou, por si só, uma fonte de inspiração teatral (HALL, 1991, p.114) que tinha, entre outras razões, destacar a força política de Atenas em seu apogeu. 3.2.1 A alteridade expressa no coro: quando mulheres e bárbaros falam Além dos personagens individuais bárbaros, os trágicos importaram coros estrangeiros para peças com personagens gregos. Para Edith Hall, a razão para a prevalência de coros estrangeiros pode ter sido originalmente conectada aos rituais dos quais a tragédia surgiu (1991, p. 115): The theory that its roots lay in the goat sacrifice, eloquently defended by Burkert, has the advantage of explaining both the use ofmasks and the 'anonymity' ofthe chorus; the male citizens who originally performed such sacrifices may have ritually disguised themselves in order to disassociate the community from the violence of the action, and to displace their individual personae. Burkert suggests that this might throw light on the popularity of female and foreign choruses. But as tragedy developed the foreign chorus became conventional in its own right- especially the female barbarian chorus-and the reasons for this lie rather in the chorus' function as plural lyric voice, distanced from the individual actors both physically and in role. On one level, of course, the chorus is the voice of the collective, whose well-being is dependent on and jeopardized by the individual characters, but it is paradoxically also estranged from the central pathos. It rarely participates or influences decisions and events, for its members remain marginal, standing and dancing on the edges of the actors' space; their medium is song rather than speech, and their role-usually that of social inferior - to sympathize and lament. The chorus' relation to the central figures, simultaneously dependent and marginalized, is thus almost a cultural paradigm of the relation borne in the Greek city-state by women, slaves, and metics to the body of male citizens22. 22 A teoria de que suas raízes estão no sacrifício do bode, eloquentemente defendida por Burkert, tem a vantagem de explicar tanto o uso de máscaras quanto o 'anonimato' do coro; os cidadãos do sexo masculino que originalmente realizavam tais sacrifícios podem ter se disfarçado ritualisticamente para desassociar a comunidade da violência da ação e deslocar suas personagens individuais. Burkert sugere que isso possa lançar luz sobre a popularidade dos coros femininos e estrangeiros. Mas, à medida que a tragédia se desenvolveu, o coro estrangei