Qual jornalismo defende os direitos humanos? Jaqueline Neves Bueno Agradecimentos Para os meus amigos e família, que sempre estiveram presentes quando eu precisei. “Arquitetura da destruição das políticas de combate à fome no Brasil” O Joio e O Trigo “Projetos de lei para alterar a Lei Maria da Penha disparam no Congresso” Revista AzMina Prefácio “Mortes de jovens negros aumenta mais de 400% em 20 anos” Alma Preta Jornalismo “Preso diz ter sido obrigado a comer casca de banana com fezes em SP” Ponte Jornalismo https://ojoioeotrigo.com.br/2020/02/arquitetura-da-destruicao-das-politicas-de-combate-a-fome-no-brasil/ https://ojoioeotrigo.com.br/2020/02/arquitetura-da-destruicao-das-politicas-de-combate-a-fome-no-brasil/ https://azmina.com.br/reportagens/projetos-de-lei-para-alterar-lei-maria-da-penha-disparam-no-congresso/ https://ojoioeotrigo.com.br/2020/02/arquitetura-da-destruicao-das-politicas-de-combate-a-fome-no-brasil/ https://ojoioeotrigo.com.br/2020/02/arquitetura-da-destruicao-das-politicas-de-combate-a-fome-no-brasil/ https://ponte.org/preso-diz-ter-sido-obrigado-a-comer-casca-de-banana-com-fezes-em-sp/ Estas são algumas manchetes de jornais alternativos que possuem viés de direitos humanos. O que elas comunicam para você? O que todas elas têm em comum? Para mim, elas refletem a situação do nosso país, e como ele trata as pessoas que vivem nele - em especial, as minorias sociais, com a violação dos seus direitos mais fundamentais. De comer, de morar, e muitas vezes até de existir. E a comunicação entra nessa história não só como ferramenta, mas como um direito humano também. Afinal, essa galera precisa se pronunciar, apontar as falhas do Estado em protegê-las, falar sobre sua realidade e ter como veicular tudo isso. E essa definição nada mais é do que um princípio muito básico do jornalismo, que é o de garantir que a gente viva em uma democracia. Nesse sentido, não há como negar que as estruturas políticas são fundamentais quando falamos sobre direitos humanos. Na verdade, pode-se até dizer que elas configuram a base de tudo, já que é por meio dela que os direitos mais básicos da sua protegida população é assegurado, pelo menos em tese. Até porque só nos tornamos cidadãos a partir do momento em que nos são reconhecidos direitos fundamentais. E esse reconhecimento precisa partir do Estado. Só que o histórico da proteção desses direitos humanos que a gente tanto fala aqui é bem conturbado. A criação da ONU, por exemplo, é muito recente, e o fim da ditadura militar também. O Brasil aderiu às ideias da Nações Unidas e implementou políticas de apoio, defesa e prática dos direitos humanos logo depois de um período de extrema violação humana por meio de nada mais, nada menos que a estrutura política da época, se é que podemos chamar tal barbárie desta forma. Depois do ocorrido, a volta do Estado Democrático de Direito se consolidou. Mas acho que consolidar não é o termo correto nesse caso porque mesmo com a abertura de órgãos e ministérios para a promoção de direitos humanos no Brasil, a democracia que vos fala nunca foi consolidada, já que uma democracia não pode ser violenta. Muito pelo contrário: ela é contra a violência e a favor do diálogo, da pluralidade de ideias e pensamentos, e principalmente do consenso e respeito à diversidade em todos os níveis. A violência que vivemos no Brasil é muito grande, vide todas essas manchetes que coloquei ali no início, e todas as outras dezenas de histórias que ouvimos diariamente. E a violência é a desculpa perfeita para a ascensão de governos totalitários. “A gente te protege, mas para isso vamos precisar armar a população, dar passe livre para a polícia matar (mais!) e ser mais rígidos com as condenações, preenchendo ainda mais um sistema carcerário lotado e desumanizado”. Piada! Então, quando a gente fala sobre comunicação e direitos humanos, e sobre o papel do jornalismo em defendê-los e, dessa forma, defender também a democracia, nós estamos falando sobre tudo isso. Só que para que isso de fato aconteça, o jornalismo precisa querer ter essa função. Bom, não sei se querer é a palavra certa, até porque querer não é poder, como diz o famoso ditado. O jornalismo que está dentro das grandes emissoras, por exemplo, não pode falar tudo que deve. Ou porque o chefe não deixa, ou os patrocinadores não deixam. E também, por estarem dentro de um viés mais econômico e neoliberal, se me permito dizer, trabalham com pautas que refletem esse tipo de ponto de vista, inclusive quando lembramos que esses veículos são controlados por poucas e poderosas famílias. O que, vamos combinar, é o oposto de agir a favor dos direitos humanos. Ou será que é pura coincidência que o Brasil, país que contém altos índices de violência e violação de direitos fundamentais, também possua uma alta concentração midiática? E essa é a minha motivação para escrever este livro. Eu acredito que o nosso contexto político e social, especialmente da época em que estou escrevendo, está passando por grandes desafios, principalmente na questão da proteção dos direitos humanos. Mas eu também sei que esses direitos nunca foram, de fato, uma garantia, mesmo que hoje esteja pior. E isso, por si só, já é um problema. Em toda a minha trajetória, a defesa dos direitos humanos sempre foi algo que me movimentou a querer fazer algo. E em todos os anos que pensei sobre o assunto, a conclusão que eu cheguei foi a mesma que a maioria dos meus colegas de classe: poxa, talvez o jornalismo possa ajudar. Talvez, se as pessoas tiverem informação de verdade sobre essas questões, elas se mobilizem em prol da causa. E foi o que eu tentei fazer durante a faculdade toda, nas pautas que eu escolhia para os trabalhos acadêmicos e principalmente nos projetos de extensão de qual eu colabo- rei, em especial o Jornal Voz do Nicéia e o Fatos da Rua, que tinham como linha editorial o viés de direitos humanos. E eu aprendi tanta coisa, que acredito até que não tive escolha quanto a este livro, que é também o meu Trabalho de Conclusão de Curso. E como eu nunca fui fã dos textos científicos e das suas incontáveis normas de espaçamento, parágrafo e sabe-lá- deus mais o quê - nada contra quem gosta, mas esse tipo de produção nunca me prendeu - eu quis trazer esse tema de uma forma que considero um pouco mais acessível: por meio de uma conversa. Então, este é um livro de entrevistas? Sim. Mas eu prefiro definir como um diálogo sobre os direitos humanos no jornalismo. Um debate sobre o tema, para que todo mundo que leia consiga entender um pouco mais sobre esse assunto através da prática da profissão. Nas próximas páginas, você vai se deparar com diversas conversas que eu tive com jornalistas especializados em direitos humanos, que em sua maioria fundaram e trabalharam em veículos de comunicação alternativos. Veículos que não devem nada para chefe nenhum e patrocinador nenhum. E espero que seja uma reflexão construtiva para você, da mesma forma que foi para mim. Boa leitura! “Nesse cenário de graves violações e de concentração midiática, a comunicação que brota nas bordas dos sistemas hegemônicos – mídias livres, comunitárias, populares, coletivos – não só têm função fundamental, como estrutural. Representam não apenas a reivindicação do direito fundamental de informar e se informar, mas o lugar a partir do qual se exige o cumprimento de outros direitos.” Revista Mídia e Cotidiano, Editorial Volume 11, Número 1, abril de 2017 SUMÁRIO Capítulo 1 ----------------------- 10 Última entrevista: Bia Barbosa, especialista em direitos humanos e co- fundadora do Intervozes Capítulo 2 ----------------------- 38 Primeira entrevista: Bibiana Alcantra Garrido, do Jornal Dois Capítulo 3 ----------------------- 72 Segunda entrevista: João Peres, do O Joio e O Trigo Capítulo 4 ---------------------- 100 Terceira entrevista: Caetano Vasconcelos, da Agência Mural e da Ponte Jornalismo Capítulo 5 ---------------------- 143 Quarta entrevista: Pedro Borges, do Alma Preta Capítulo 6 ---------------------- 162 Quinta entrevista: Semayat Oliveira, do Nós Mulheres da Periferia Afinal, qual jornalismo defende os direitos humanos? ---- 181 Bia Barbosa é jornalista e co-fundadora do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, onde também foi coordenadora. É especialista em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Gestão e Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas. Foi colaboradora de diversos veículos como a Radio France Internacional, emissora de TV Al Jazeera, e Agência Carta Maior. É também co-autora de alguns livros, como “A Sociedade Ocupa a TV - O caso Direitos de Resposta”, “Por uma opinião pública democrática no Brasil”, “Golpe16” e “A quem pertence o corpo da mulher”. E, por fim, hoje é pesquisadora na Repórter Sem Fronteiras e representante do 3º setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil. CAPÍTULO 1 10 Última entrevista: Bia Barbosa, especialista em direitos humanos e co-fundadora do Intervozes Não precisa estranhar o título. O que aconteceu foi que eu fechei o meu ciclo de entrevistas com a pessoa que precisaria dar início a este livro. Antes de começar a falar com jornalistas e co-fundadores de alguns dos veículos de comunicação alternativa que eu selecionei, eu pensei que seria bacana trazer alguém para dar um certo contexto sobre a comunicação como direito humano e um pouquinho também sobre a questão da luta pela democratização da comunicação. Só que eu não sabia muito bem com que falar. Então, decidi mandar uma mensagem para o Pasti para pedir indicação. Para contextualizar, André Pasti é integrante do Intervozes, uma organização da sociedade civil que luta para que o direito humano à comunicação seja concretizado no país. Mas, antes disso, ele foi meu professor em um observatório de Mídia e Atualidades na escola, e depois acabamos ficando amigos também. Então, quando eu falei com ele, Pasti logo me indicou a Bia como fonte, e na hora eu soube que ela seria perfeita para este capítulo: jornalista, especialista em direitos humanos e co-fundadora do intervozes (check!). Logo mandei mensagem. Só que justamente naquela semana a Bia iria viajar para o México para uma pesquisa e não conseguiria falar comigo. Então, deixamos a conversa mais ou menos acertada para a sua volta, em dezembro. E aí, nesse meio tempo, já fui fazendo as demais entrevistas com os jornalistas presentes nos próximos capítulos. E foi isso. A Bia voltou e a gente sentou pra conversar, cada uma na sua própria casa, claro. E, bom, primeiro eu quis co- 11 nhecer um pouco mais sobre ela. - Fala um pouquinho sobre você. Sua trajetória profissional, o que tem feito hoje… - Eu não vou nem falar que ano me formei porque faz muito tempo (risos). - Mas ela conta que logo quando isso aconteceu, ela foi trabalhar em algumas redações de imprensas mais tradicionais. Porém, desde 2004 ela já trabalha com essa intersecção entre direitos humanos e liberdade de expressão. De modo que, em um primeiro momento da sua carreira, Bia trabalhou em veículos com temas relacionados a direitos humanos. Ela foi, inclusive, editora de direitos humanos na Carta Maior - que, na época, era uma agência de notícias - durante 4 anos. E foi nessa editoria que ela conheceu os outros comunicadores que também fundariam o Intervozes. - Então eu continuei trabalhando em redação por um tempo e fazendo uma militância paralela, ativista nessa bandeira de entender a comunicação também como um direito fundamental. Ela não é só um meio pra que outros direitos sejam defendidos e exercidos, mas ela em si também é um direito fundamental. Ela explica que, desde 2003, o Intervozes levanta essa 12 bandeira no Brasil, da comunicação como um direito humano, mas também da intersecção desse direito fundamental com outros direitos: educação, cultura, saúde, entre outros. - E a gente entende que essa ideia da comunicação como um direito humano, ela é fundamental pra você conseguir consolidar a democracia, qualquer sociedade democrática. Porque num contexto em que somente uma minoria de vozes, de grupos, de ideias, está representado no que a gente chama de debate público, a gente não pode falar que a sociedade é de fato democrática. Então a ideia da comunicação como um direito fundamental passa por esse aspecto no sentido de entender que não basta só todo mundo ter o direito à liberdade de expressão. A gente pode vir aqui e defender uma ideia, defender um pensamento, mas é fundamental que essa diversidade de ideias e de visões de mundo tbm estejam representadas no espaço midiático em função do tamanho da influência que a mídia tem, não só pro acesso a informação, mas pra formação da opinião pública, pra formação de valores, pro acesso a cultura. Então essa liberdade de expressão, que é um direito individual, ela precisa se materializar no espaço de meios de comunicação de massas. E então Bia conta que, em 2013, ela deixou de exercer o jornalismo de imprensa para se dedicar ao Intervozes. Foram 8 anos de trabalho em Brasília, acompanhando o Congresso Nacional, o Poder Executivo e Judiciário sobre esses temas relacionados à essa questão. Ou seja, leis e políticas públicas que precisam ser implementadas para garantir que o direito à comunicação seja efetivado, assim 13 como todos os outros direitos humanos. Hoje, Bia Barbosa não trabalha mais no Intervozes, porém nunca deixou de ser associada a eles. - Eu trabalho na Repórter sem Fronteiras, que é uma outra organização que defende liberdade de imprensa, liberdade de expressão, e eu trabalho com uma coisa um pouco diferente, que tá dentro desse guarda chuva também, mas que tem a ver com políticas públicas de proteção à jornalistas. Então a gente, a Repórter sem Fronteiras, tem uma área de proteção que a gente se preocupa em entender como que os estados garantem ou não o exercício do trabalho jornalístico. E aí eu tô fazendo uma pesquisa em torno disso, estudando um pouquinho a realidade do Brasil, da Colômbia e do México e de Honduras. - Você sempre teve esse objetivo de trabalhar nas áreas voltadas para os direitos humanos? Como isso aconteceu? Bia trabalhou em algumas outras áreas antes de se aventurar pelo universo dos Direitos Humanos. Uma delas foi a de Ciências e Tecnologia, por exemplo. E foi só no momento em que ela entrou para a redação da Carta Maior, onde ficou até 2008, que essa integração aconteceu. Então, quando passou a escrever sobre direitos humanos, ela sentiu que o tema era relevante o suficiente para que passasse a concentrar suas energias, experiências e atuação profissional nele. 14 Ela explica que naquele tempo, esse assunto era constantemente deixado de lado. Hoje em dia as coisas podem até ter melhorado um pouco, mas estão longes do ideal. - Se você olhar para os grandes veículos de comunicação, e sua própria pesquisa - este livro - mostra isso, os próprios veículos de comunicação não tem editoria de direitos humanos por exemplo. Não tem esse enfoque. É muito raro você ter uma cobertura focada nesse tipo de abordagem. Ao contrário do que a gente tem visto nos veículos de comunicação alternativa. Bia cita como exemplo a Ponte Jornalismo, que é um site totalmente voltado para a agenda de direitos humanos. A Ponte (a qual a gente vai falar um pouquinho mais no capítulo 4) nasceu no ambiente digital - o que Bia entende como consequência do crescimento do jornalismo na internet, que não existia a uns anos atrás. - Então acho que a internet ajudou muito nessa multiplicação diversidade de linguagens, e também de temas que puderam ganhar espaço, temas que não tinham espaço historicamente nos meios de comunicação tradicionais. A jornalista conta que quando começou a trabalhar na Carta Maior, criar uma editoria que se chamasse“Direitos Humanos”, com todas as letras, era quase que uma afirmação da redação do jornal. - Tudo bem que direitos humanos cabe um monte de coisa, então saúde também cabe, educação também cabe ali den- 15 tro. Mas a gente achava que até simbolicamente era importante ter uma afirmativa de que o nome da editoria era direitos humanos porque você não encontra isso nos jornais. Nos jornais você tem editoria de política, de economia, de internacional, de cultura às vezes, mas você não tem um editoria de direitos humanos. Aqui, ela também pontua a ideia equivocada presente na sociedade de que você só está falando de direitos humanos quando ocorre violência policial ou problemas no sistema prisional. Mas não é bem assim. E inclusive esse pensamento se torna um problema quando dá margem para que surjam discursos como “direitos humanos para humanos direitos”, ou “lá vem os direitos humanos defender bandidos”. - E aí um esforço que a gente fazia muito lá na Carta Maior era de mostrar como outros temas também são direitos humanos, pra ajudar a construir também uma ideia, informar melhor a sociedade de que essa ideia de direitos humanos não é só isso. - E por que a comunicação é um direito humano? A questão é que ela ainda não é. Bom, pelo menos ainda não é reconhecida como tal. Bia explica que, se a gente for olhar os tratados internacionais sobre os direitos humanos, vamos encontrar apenas a liberdade de expressão. A comunicação, não. E aí a jornalista explica que isso acaba sendo um problema porque, pensando que a gente vive em uma sociedade mediada pelos meios de comunicação, como é que vamos exercer, de fato, o direito à liberdade de 16 expressão se ela não for representada pela radiodifusão, meios impressos e a internet? - É diferente você poder ir numa praça fazer uma manifestação, ou fazer na rua, e isso também se refletir nos meios e chegar para todo mundo que não estava lá acompanhando aquela manifestação. Então a gente entende que o direito da comunicação precisa passar pela ocupação desse espaço, que é público, para um espaço de debate público, que quando a gente tá falando de rádio e televisão, a gente tá falando de concessões públicas. A gente entende que é isso, você não vai conseguir consolidar a democracia em nenhum país se essas vozes, por mais que elas encontrem algum espaço pra serem exercidas e terem suas expressões exercidas, se elas também não se manifestarem no ambiente midiático. Por isso que a Bia e o Intervozes defendem a comunicação, em si, como um direito fundamental. - Porque grupos minorizados, socialmente excluídos, vozes historicamente não representadas nos meios de comunicação, são os setores que mais sofrem violações de direitos na sociedade como um todo. Então a gente entende que essa ferramenta da ocupação do espaço midiático por esses grupos para exercerem suas liberdades de expressão, que caracterizariam o direito à liberdade de expressão, é algo que a gente precisa defender como fundamental pra dignidade humana. E aqui eu complemento dizendo que, pensando nisso tudo, o que mais vemos como justificativa na criação dos veículos 17 alternativos é justamente essa fala: “A mídia tradicional não nos representa, então vamos comunicar a gente mesmo sobre a nossa realidade”. E eu acredito que vai ser possível visualizar isso de maneira mais concreta durante as entrevistas com os jornalistas presentes neste livro. - De que forma o jornalismo deve trabalhar na prática para que esse direito à comunicação seja respeitado? Em primeiro lugar, Bia explica que é preciso garantir uma escuta diversa. Os jornalistas, enquanto profissionais, precisam sempre ter a preocupação de buscar uma diversidade de fontes de informação e de vozes. - É muito importante que a gente entenda que você não precisa ouvir só homens brancos enquanto economistas pra falar de economia, você não precisa ouvir só os políticos que estão ocupando os cargos de poder pra falar de política. A sociedade pode opinar sobre isso, e quando a gente vai ouvir a sociedade a gente precisa entender qual é a diversidade que existe nela e fazer essa sociedade se representar. Mas não é só isso. Bia afirma que cada vez mais a internet tem permitido que as populações, que são excluídas dos meios de comunicação, possam produzir seu próprio conteúdo a partir da sua própria realidade. E hoje é possível enxergar a importância da informação ter vindo do local onde o fato está acontecendo. Bia explica que isso traz uma grande riqueza de dados e de visões para a compreensão de 18 qualquer realidade, muitas vezes destruindo estereótipos e ideias historicamente estabelecidas sobre determinadas questões. - Então hoje você tem, por exemplo, indígenas produzindo conteúdo e informação a partir da sua realidade, mostrando o que tá acontecendo com os garimpos clandestinos na Amazônia, mostrando o que tá acontecendo com o desmatamento. Certamente traz mais riquezas de fatos e de informações pra gente do que você mandar um repórter lá de São Paulo pra fazer uma cobertura. Bia pontua que precisamos entender que essas diferentes formas do exercício ao direito à comunicação devem se manifestar de forma complementar. Não é todo mundo que vai ser produtor de conteúdo, e a gente vai continuar sempre tendo os meios de comunicação tradicionais. Mas é importante ter também os meios alternativos. E aí ela exemplifica novamente: - Quando você pega algumas iniciativas que tem bastante tempo, por exemplo, comunidades do Rio de Janeiro, nas favelas do Rio, o quanto que a gente, durante décadas - e aí ela fala que eu não vou lembrar porque sou muito nova - cobria operação policial no morro a partir só da visão da polícia que conseguia entrar, ou de alguns jornalistas de conseguiam acompanhar. Hoje você tem uns veículos comunitários dessas favelas, construindo comunicação, produzindo ao vivo o que tá acontecendo ali e ajudando muitas vezes a derrubar versões que a imprensa, às vezes por omissão ou às vezes por desinformação das próprias autoridades, acabava reproduzindo uma visão muito parcial 19 do que que tinha acontecido por exemplo num determinado episódio nesses territórios. Então acho que a gente ganha duplamente quando a gente garante esse exercício do direito à comunicação por esse conjunto de diversidade que existe na sociedade que é não só você garante uma população em geral não só mais bem informada né, melhor informada sobre os fatos, mas você garante também um conhecimento a partir de uma realidade local que muitas vezes a imprensa tradicional não consegue chegar. - Então, na sua opinião a mídia tradicional cumpre o papel de trazer essas questões ou não? Bia afirma que é difícil generalizar. Mas ela acredita que, justamente por conta do surgimento de novos veículos na internet - ou até mesmo de páginas em redes sociais, que não são exatamente veículos de comunicação, mas são usadas para produzir informação sobre determinada realidade - a mídia tradicional passou a ser forçada (positivamente) a se diversificar. Isso, claro, somado aos movimentos sociais, todos eles. Feministas, LGBTQIA+, negros, indígenas… todos que sempre tiveram suas vozes excluídas, reinvindicaram até cansar de não conseguir, e então decidiram criar sua própria forma de comunicar com o resto da população. - E a hora que essas coisas emergem muitas vezes essas informações conflitam, né. Você tem a imprensa tradicional com uma determinada versão de fatos, e aí quem tá no terri- 20 tório produzindo aquilo contando uma história de uma maneira diferente, mostrando com vídeo, com foto, de que não foi bem assim e tal… isso acaba forçando os meios de comunicação a precisarem, a diversificarem suas fontes de informação. Porém, Bia pontua que alguns veículos responderam melhor que outros. Os que seguiram pelo que eu gosto de chamar de “caminho certo”, tiveram que atualizar seus colunistas, parar de ouvir pessoas negras apenas nos vinte- de-novembros ou as mulheres nos oito-de-marços, e também aumentar a diversidade interna - o que é super importante. Já os demais, que ainda existem vários, infelizmente, “continuam bem quadradinhos, funcionando como se tivessem lá nos anos 70”, como Bia mesma disse. - A pressão que foi feita de fora pra dentro né? Acho que tudo isso a gente pode colocar como conquista desses movimentos e do próprio movimento em defesa dos direitos humanos, porque não foi dado de presente pra ninguém. Nem você ter uma diversidade maior de informações nos veículos, de pautas, de entrevistados. Foi muita pressão no lado de fora pra que essa representatividade pudesse começar a aparecer nesses veículos. E acho que aqueles que não aprenderam pelo bem, do tipo "Precisamos ter mais diversidade e tal", começaram as vezes a aprender pelo mal, começaram a ter suas matérias muitas vezes questionadas. E aí alguns responderam positivamente no sentido de ampliar suas vozes dentro da redação e também nas matérias que passaram a produzir. 21 - Eu queria entender um pouquinho de você sobre do que se trata a luta pela democratização da comunicação. E também, qual é a ligação dessa pauta com a defesa dos direitos humanos? - Quando a gente fala democratização de qualquer coisa, a gente fala em ampliar né? - ela começa respondendo - Então no Brasil, historicamente, antes da gente começar a falar em defesa do direito à comunicação, a gente falava em democratização da mídia. Hoje a gente fala das duas coisas, porque, a gente não conquistou nenhuma delas ainda. Então, quando a gente fala em democratizar, a gente fala em ampliar os meios, a diversidade de meios de comunicação no Brasil. E aí ela explica que não é uma questão de quantidade, mas sim do perfil das vozes que conseguem se expressar por esses veículos. - Quando você olha pra propriedade dos grandes meios, quem são os grupos que controlam os grandes meios que tem mais audiência na televisão, mais audiência no rádio, mais audiência inclusive em termos de portais de notícia na internet ou nos jornais que circulam, nas revistas que circulam, esses grupos são controlados pelas mesmas famílias. Não são só grandes grupos econômicos, mas também são famílias no Brasil, que é uma característica específica que a gente tem, que a gente sempre precisa lembrar, que são empresas familiares. E o fato de serem em- 22 presas familiares faz com que isso vá passando de pai pra filho, e o poder que esses meios detém fiquem cristalizados nessas famílias. [...] Mas aí muita gente fala: "Você tem hoje 10 famílias que controlam. Se você tiver 20, você democratizou?" Sim, você democratizou. Mas quer dizer que é democrático? Não necessariamente. Então, não adianta passar de 10 para 20 homens brancos controlando a mídia brasileira, pois serão os mesmos perfis, as mesmas visões de mundo sendo veiculadas em todos os canais. Bia explica que na nossa Constituição existe um capítulo para a comunicação social que até hoje não foi regulamentado, e portanto não colocado em prática. Esse capítulo fala, por exemplo, que é proibido ter monopólio dos meios de comunicação, mas não esclarece quais são as características desse monopólio, deixando aberta a interpretação. - Tem gente que fala que a Globo é um monopólio. Tem gente que fala que não, que a Globo já perdeu muita audiência e ela não pode mais ser considerada um monopólio hoje. Mas em alguns países, por exemplo, o tamanho da audiência que a Globo tem aqui no Brasil seria considerado ilegal. Alguns países que regulam os meios de comunicação pra estabelecer justamente limites à essa concentração, entenderiam que o que tá acontecendo no Brasil hoje é algo extremamente antidemocrático. Então tá lá um artigo da constituição que a gente ainda não conseguiu resolver em relação a isso. 23 A jornalista cita um outro artigo da Constituição que também não foi regulamentado, sobre a finalidade dos meios de comunicação para conteúdos educativos, informativos, culturais e artísticos. - Em geral está lá, os princípios da constituição. Mas se a gente olha também a programação da nossa televisão, que é o veículo que ainda chega pra 97% dos lares em todo Brasil, 97 ou 98, a gente vai ver que o conteúdo dessas programação tá muito diferente de respeitar esses princípios. Inclusive a gente tem cotidianamente conteúdos que violam direitos humanos de uma maneira sistemática na programação. Nesse sentido, Bia afirma que é preciso entender que não basta que só a democratização aconteça. Que a gente só vai conseguir construir uma sociedade democrática de verdade quando a ideia do direito à comunicação for garantida para todas e todos, indistintamente. E, para que isso aconteça, é necessário que haja uma transformação e democratização do controle dos meios de comunicação, além de outras iniciativas, para que os cidadãos possam exercer esse direito, ter suas vozes representadas. - E aí a gente vai falar, por exemplo, de políticas públicas pra que você possa produzir conteúdo nesses territórios e ter canal pra divulgar. É uma série de ideias que precisam vir juntas aí pra essas duas ideias se concretizarem: tanto a democratização da comunicação, quanto o direito à comunicação. 24 - E por que a regulamentação ainda não aconteceu? Bia explica que, na verdade, já existem alguns tipos de regulação, como regras para o funcionamento das emissoras de rádio e televisão. Porém, elas foram criadas há muito, muito tempo, quando os meios de comunicação de massa chegaram no país. Algumas dessas regras foram estabelecidas, por exemplo, nas décadas de 50 e 60, quando as televisões ainda eram em preto e branco. Ou seja, são marcos regulatórios extremamente desatualizados. A jornalista ainda pontua que, hoje em dia, nós vivemos um cenário de convergência das mídias. Você pode acompanhar um mesmo conteúdo pela televisão, pela internet e pelo streaming, que são os aplicativos de filmes e séries. E ainda assim, as legislações avançaram muito pouco ou quase nada, dando espaço para que o pessoal que já controla a radiodifusão no Brasil pudessem controlar também essas novas linguagens. - Qual é o principal canal de streaming hoje no Brasil? É a Globo Play! Que é do mesmo grupo de comunicação da principal emissora de televisão, do maior portal de notícias, das principais emissoras de rádio em cada estado. Então, a ausência dessa regulamentação foi permitindo que essa concentração, inclusive, se mantivesse, apesar das novas tecnologias que foram surgindo. A gente perdeu a oportunidade de usar as novas tecnologias pra democratizar o acesso e a diversidade de conteúdo nos meios de comunicação, e a gente foi mantendo esse ambiente concentrado nas mãos das mesmas empresas. 25 Ela ainda acrescenta que esse avanço do marco regulatório não aconteceu porque esses grupos que controlam a comunicação são totalmente contrários à sua atualização. - A gente fala que o congresso nacional tem a bancada BBB, que é bancada da Bala, do Boi e da Bíblia, né? Mas ele tem a bancada da radiodifusão, desde sempre. Um dos capítulos mais difíceis de você aprovar na época da constituinte em 88 foi o capítulo da comunicação social, porque as empresas fizeram um lobby pesadíssimo sobre os constituintes pra não garantir. Mas aí conseguimos garantir os princípios constitucionais, só que nunca esses princípios desceram em formato de lei infraconstitucional para que pudessem ser implementadas na prática. E cada vez que a gente fala da necessidade de se regulamentar os artigos da Constituição, de regular os setores, de atualizar as regras para o funcionamento dos meios de comunicação no Brasil, a primeira coisa que os meios de comunicação fazem é sair gritando falando que a gente quer censurar os meios de comunicação. Para Bia, a mídia tradicional se aproveita do imaginário recente, que ainda existe no Brasil, da época da Ditadura Militar (1964 a 1985), em que a censura era utilizada como ferramenta de controle da imprensa, das mídias e das pessoas. - A censura, sim, é uma forma de regulamentar os meios de comunicação, tem países autoritários que fazem isso. Mas não é qualquer regulação que é censura. Então você tem regulações democráticas no mundo inteiro, se tem países que estabelecem regras, países que não são de realidades 26 muito diferentes da nossa. Cito, por exemplo, a Argentina, vizinha nossa aqui, que na década passada fez uma reforma nos seus meios de comunicação e reservou um espaço no espectro eletromagnético pra meios públicos e comunitários. Aqui no Brasil, as rádios comunitárias, se você pega o “dial” de uma cidade, uma rádio FM, cê tem trinta e tantos canais de rádio comerciais com fins lucrativos e um canal pra rádio comunitária. Ela fala da Argentina, mas diversos outros países considerados democráticos, como a França, Inglaterra, Estados Unidos, Japão, Áustria, Canadá e por aí vai, tem regras muito mais restritas sobre o funcionamento dos meios de comunicação. E não dá para falar que é censura, que esses países são ditatoriais. Então, a Bia analisa que a concentração da mídia nas mãos desses grupos, dessas famílias, sempre se manteve porque eles se utilizam dos próprios meios para se preservar no poder. Quando se começa a falar sobre qualquer iniciativa de atualizar o marco regulatório, criar novas regras ou políticas públicas, eles rapidamente usam dos próprios canais para difundir essa ideia distorcida de censura para a população. E, dessa forma, fica difícil conseguir avançar. - Qual seria o cenário do jornalismo brasileiro se a regulamentação de fato acontecesse? O jornalismo alternativo teria um benefício? 27 - Então, primeiro, eu acho que é bom a gente lembrar que todas as propostas de atualização do marco regulatório das comunicações que foram debatidas (e várias delas foram debatidas lá em 2009, quando aconteceu a primeira Conferência Nacional de Comunicação, ainda no governo Lula), essas propostas praticamente não tocavam no jornalismo. Ela conta que essas propostas falavam muito mais sobre a propriedade dos meios de comunicação: lidar com canais que são controlados por políticos - que é uma questão que a nossa Constituição proíbe, mas que é recorrente no Brasil; qual o tempo de grade de programação que pode ser ocupado por publicidade para que haja garantia dos princípios informativos, culturais e artísticos; a proteção dos direitos da crianças por meio da classificação indicativa e por aí vai. - A imprensa é uma parte do sistema midiático, ela não o sistema midiático inteiro, não é tudo jornalismo. Uma parte enorme inclusive é entretenimento. Então os jornalistas, os nossos colegas da chamada imprensa tradicional, muitas vezes contribuíram para desinformar a sociedade nesse sentido. Porque a maioria das propostas nem tinham a ver com a questão da imprensa e eles falavam que era uma iniciativa do governo para calar o jornalismo crítico, para calçar a imprensa. - como foi discutido na pergunta anterior. Agora, falando sobre os benefícios que um marco regulatório traria para o jornalismo alternativo caso aconteça, Bia explica que vai depender de qual vai ser esse 28 marco regulatório. Primeiro, ela dá o exemplo da França, onde foi instituído pelo governo um fundo público destinado à criação de novos veículos, locais ou regionais (algo parecido com uma linha de crédito). - Se a gente constituisse uma política pública de incentivo desse tipo aqui no Brasil, certamente o jornalismo alternativo poderia se beneficiar. Porque você, por exemplo, conseguir produzir comunicação e distribuir num território que nem o Brasil, do tamanho do Brasil… não é atoa que a gente não tem nenhum jornal alternativo de circulação nacional, porque o custo de papel, de distribuição num território no tamanho do nosso é muito grande, muito difícil. A gente não tem política de incentivo pra isso. Depois, ela fala sobre a questão da concentração da propriedade dos meios de comunicação. Se houvesse uma atualização do nosso marco regulatório em torno desse assunto, criaria-se um ambiente muito mais competitivo no mercado, já que apareceriam novas iniciativas, novos veículos - que não fossem necessariamente sem fins lucrativos, como é a maioria dos jornais alternativos que já sofrem para pagar seus jornalistas, existir… imagina para ter lucro. - Mas, até do ponto de vista capitalista, seria interessante que a gente tivesse novos competidores disputando com esses grandes jornais, com essas grandes revistas, com esses grandes canais de televisão. O Estados Unidos, por exemplo, que é um país super liberal ele regula e limita a concentração dos meios de comunicação, não porque ele 29 tem uma ideia de sociedade democrática e plural, mas porque ele quer incentivar a competição. Mas ele tem limitação: uma emissora não pode ter mais do que 40% da audiência no território porque isso é considerado um risco pra essa competição. E aqui no Brasil não. Mesmo com toda a queda de audiência da Globo, a Globo ainda tem mais da metade da audiência, sozinha, da nossa televisão aberta. E aí eu me pergunto… se beneficiaria o capitalismo, qual é o problema do Estado em não dar logo o que a gente quer e precisa? Não me levem a mal, não sou nem um pouco fã de um sistema político exploratório como esse. Mas, não dá para negar que é ele que comanda o nosso país e boa parte do mundo. Então, por que negar algo que o ajudaria? O que me faz questionar também qual é o tipo de poder que esses donos dos meios têm sobre o Estado. Dinheiro? Chantagem de levar a parte não bonita ao conhecimento da grande massa de espectadores? Questões, questões… Mas, continuando. A Bia ainda fala de outra iniciativa que poderia constar em um marco regulatório: a reserva do espectro eletromagnético para canais públicos e comunitários, como é feito na Argentina. - A gente teve uma experiência no Brasil que mostrou que não é por falta de iniciativa de produção de conteúdo que a gente não tem isso circulando, é muitas vezes por falta de espaço. Quando a gente reformou em 2011, aqui no Brasil, a Lei da TV por assinatura, foram criadas algumas regras obrigando que os pacotes de TV por assinatura necessaria- 30 mente tinham que carregar canais também de conteúdo nacional. O aumento de produção de conteúdo nacional foi enorme naquele momento. Essa reforma, inclusive, levou à criação de um política pública que existe até hoje, que é o Fundo Setorial do Audiovisual. Por meio dela, é possível que iniciativas busquem recursos públicos para produzir conteúdos audiovisuais e depois veicular nos canais. - Um marco regulatório, por exemplo, que pensasse isso não só na TV por assinatura, mas na televisão aberta, regulasse, reservasse uma parte do espectro pra canais públicos e comunitários, e desse um fundo pra que novas iniciativas surgissem, sem dúvida nenhuma podia beneficiar o jornalismo alternativo. Porque você poderia ter outros canais de comunicação, com outra linguagem, com outra ideia, produzidos em outro lugares do país, com outros grupos sociais e atores sendo representados ali, que poderia ter recurso público pra apoiar o funcionamento deles e ter canal pra ser divulgado. E acrescenta: - Então depende muito do que seria esse novo marco regulatório, mas sem dúvida nenhuma se a gente quisesse, se o Brasil quisesse produzir uma legislação para favorecer essa diversidade no jornalismo, sem dúvida nenhuma a gente poderia fazer isso. 31 - Por último, eu queria saber um pouquinho dos anos que você participou do Intervozes. Quais os principais marcos e/ou conquistas que você considera que foram importantes para a comunicação brasileira? - O Intervozes fez 18 anos esse ano, e eu espero que a gente consiga continuar contribuindo com mudanças positivas no marco das comunicações aí nos próximos anos. Não é uma luta simples, é uma luta difícil… a gente tá falando de grupos muito poderosos, a gente tá falando de interesses. - Bia começa respondendo. E aqui ela está falando de grupos políticos, deputados e senadores que possuem meios de comunicação, mas existem outros também. Bia explica que as igrejas, por exemplo, são um poder muito forte de controle dos meios de comunicação, e essa, de fato, é uma característica séria que a gente no Brasil possui. - Mas com todas essas dificuldades, eu acho que a gente conseguiu conquistar algumas coisas importantes nesses 18 anos assim, na área da comunicação. Eu citaria na radiodifusão dois exemplos e na internet outros dois. Primeiro na radiodifusão: Logo no começo da história do Intervozes, lá em 2005, a organização conseguiu um Direito de Resposta na Rede TV 32 contra um programa do apresentador João Cleber. O programa se chamava “Tardes Quentes”, passava na TV às quatro horas da tarde, e violava os direitos humanos sistematicamente. Esse Direito de Resposta, para quem não sabe, é uma lei que garante que qualquer pessoa física ou jurídica que se sinta ofendida por alguma matéria veiculada nos meios de comunicação possa se defender. O Intervozes, por exemplo, conseguiu por meio dessa lei que o espaço destinado ao “Tardes Quentes” saísse do ar por 30 dias. E esse horário, então, foi concedido ao Intervozes, que levou ao ar 30 programas defendendo os direitos humanos. - Cada dia era um tema, então um dia era direito à saúde, outro educação, outro direito à terra, direito à diversidade sexual, questão racial… Bia explica que esse caso ajudou a construir uma jurisprudência dentro do poder judiciário de que sujeitos coletivos que tiverem seus direitos violados podem exigir esse direito, e que a justiça precisa conceder e a emissora precisa aceitar. Afinal, elas são nada menos do que concessões públicas. - Já faz 15 anos essa história, e a gente não conseguiu mais nenhum direito de resposta desse montante. Mas esse episódio inspirou vários outros coletivos, movimentos sociais, organizações a buscarem direitos de respostas nos meios de comunicação também, e vários deles conseguiram. Seja contra, sei lá, um programa da igreja universal que estigmatizou religiões de matrizes africanas, que o movi- 33 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13188.htm mento negro conseguiu um direito de resposta recentemente, mulheres que foram ofendidas em programas policialescos, por exemplo, conseguiram direito de resposta em alguns estados. Mas isso não quer dizer que a violação dos direitos humanos na televisão acabou. Muito pelo contrário. Mas, de fato, o Intervozes conseguiu mostrar para a sociedade que o que ocorria no programa “Tardes Quentes” nunca foi aceitável, e que a justiça precisa ser acionada quando algo do tipo acontecer. O segundo exemplo de conquista alcançada pelo Intervozes que Bia me contou tem a ver com as figuras políticas que controlam os meios de comunicação. - A gente conseguiu ganhar decisões na justiça em vários estados que obrigaram políticos a devolverem concessões de rádio e televisão que estavam sendo exploradas irregularmente. A gente conseguiu principalmente emissoras de rádio no estado de São Paulo, e em outros estados também. A partir de denúncias que o Intervozes fez, a justiça foi pra cima desses políticos, provou que eles por serem deputados e senadores não podiam explorar diretamente emissoras de rádio e televisão. Eles tiveram que ou se desfazer de suas ações que tinham essas emissoras e deixar outras pessoas cuidarem ou tiveram que devolver essas licenças por estado poder abrir outras licitações e entregar pra quem regularmente pudesse explorar esse serviço. De acordo com Bia, esses dois episódios são chamados de 34 “litigância estratégica”, que é quando se aciona casos muito emblemáticos no judiciário para tentar conseguir as “jurisprudências” (interpretação, decisão e aplicação das leis). Agora, continuando, as conquistas alcançadas na área da internet: Bia relembra que na época que o Intervozes começou a existir,a Internet não tinha a importância que tem hoje. - A gente não mediava tudo pela internet, a gente não fazia isso que a gente tá fazendo aqui pela internet, né, então, a gente trabalhava muito mais com a ideia de imprensa, escrita, jornal, rádio, revista e televisão. E aí ao longo do tempo a gente precisou também se preocupar mais com a internet, porque ela passou a ser um ambiente fundamental pra esse exercício do direito à comunicação. Então a gente começou a olhar pra isso também. E aí ela pontua que o Intervozes foi fundamental para que a conquista da aprovação do Marco Civil da Internet (2014) fosse possível. Essa lei é referência no mundo todo, pois até hoje é ela que estabelece direitos para os usuários no ambiente digital. - Ela não é uma conquista do Intervozes, mas de todo o movimento de organizações da sociedade civil que lutaram por isso, mas o Intervozes foi uma sociedade bastante ativa nesse processo. Por fim, ela fala sobre um episódio um pouco mais recente. 35 O Intervozes trabalha em parceria com a Coalizão Direitos na Rede, uma articulação de 50 organizações da sociedade civil que trabalham com direitos digitais para aprovar a Lei Geral de Proteção de Dados. - Parece um assunto que não tem haver com comunicação, mas tem tudo totalmente a ver. Porque, se você está num ambiente em que você não sente que seus dados podem estar protegidos, o exercício da sua liberdade de expressão vai ser bastante limitado. Por exemplo, se a gente pega países vigilantistas como a China, como os países do Oriente Médio, países autoritários, a própria Rússia e alguns países africanos, os ativistas, os defensores do direitos humanos se sentem permanentemente vigiados pelo Estado, pelas forças de segurança, e não exercem sua liberdade de expressão do ambiente digital por conta disso. Ela aponta que o Brasil não está na situação desses países, porém existe sim uma coleta de dados de usuários na internet. E esses dados muitas vezes são vendidos para empresas de publicidade e propaganda. Mas, muitas vezes também, o uso desses dados pode gerar vigilância, descriminação e até mesmo controle do Estado sobre as pessoas. E, felizmente, em 2018 essa galera toda conseguiu que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais fosse implementada. Uma lei que ainda tem chão para percorrer, mas que vai garantir uma série de regras para o tratamento dos dados das pessoas. E, na visão dessas organizações, essa lei irá fazer com que seja possível exercer democraticamente a nossa liberdade de expressão. 36 - Então, foi uma luta que a gente participou bastante por conta disso. E com toda dificuldade que a gente teve em 2018, tinha acabado de acontecer o golpe contra a presidenta Dilma, o país num governo que a gente não reconheceu como legítimo, que foi o governo do presidente Temer, a gente, na campanha eleitoral com chances do Bolsonaro ganhar, com toda essa conjuntura a gente conseguiu aprovar essa lei que foi muito importante no congresso nacional. Então eu também coloco essas duas mais antigas e duas mais recentes, que são conquistas importantes e que nos ajudam a seguir em frente acreditando que essa luta vale a pena. [...] 37 Acredito que esse capítulo vai ser especial para enriquecer a discussão que irá se seguir. Diria até que é um ponto de partida importante para falar sobre o jornalismo alternativo com olhar nos direitos humanos, que existe e resiste em meio a tantas adversidades. Falta de incentivo governamental e de espaço nas rádios e televisões, sobrevivência financeira, inserção no debate público e por aí vai. 38 Jornalista e Mestra em Comunicação pela UNESP, Bibiana é co-fundadora do Jornal Dois, um veículo alternativo da cidade de Bauru, interior de São Paulo. Atualmente mora em Brasília, onde trabalha na equipe de comunicação do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). CAPÍTULO 2 Primeira entrevista: Bibiana Alcantra Garrido, do Jornal Dois A Bibiana foi a primeira pessoa que eu entrevistei para este livro. E durante o planejamento do projeto eu nem havia pensado em falar com ela, por simples descuido. Quem me deu esse toque foi o meu amigo Caê, companheiro de (futura) profissão. Quando eu fui falar com ele para me ajudar a pensar em nomes legais para trazer aqui, ele disse: - E o Jornal Dois? Você vai falar com alguém de lá? E nessa hora me deu um estalo: como eu poderia deixar de fora um veículo que foi construído por estudantes da faculdade que eu estou me formando agora? O exemplo que essa galera deixou pra gente não tem comparação. E é sobre isso que vou falar nesse capítulo. Sobre como o trabalho do Jornal Dois, em 4 anos de história, virou uma parte tão importante de uma cidade repleta de conservadorismo e desigualdade social, mas que também carrega muita beleza e luta. Caê salvou minha vida nessa hora. Mas como o Jornal Dois - ou J2 para os íntimos - é um veículo regional, é provável que algumas pessoas que vão ler esse livro não o conheçam. Por enquanto, o que é necessário saber até aqui é que ele nasceu com o propósito de ser uma nova alternativa para o jornalismo local, com um viés político de esquerda e de defesa dos direitos humanos. Hoje, a Bibiana Alcantra Garrido, co-fundadora do J2 junto com Lucas Mendes, não participa tão ativamente da equipe do jeito que era antes. Ela deixou de atuar como repórter e passou a permanecer mais como editora ou coordenando algumas pautas, de longe mesmo. A última matéria que ela 39 reportou foi em março de 2021, já em Brasília, para cobrir a primeira edição do acampamento indígena contra o Projeto de Lei 490. Nesse dia, 40 indígenas da Terra de Araribá, em Avaí, região de Bauru, foram para lá protestar pelo reconhecimento da demarcação de suas terras. Mas vamos começar do começo. Primeiro, eu quis saber como a Bibiana decidiu que gostaria de ser jornalista. Ela me contou que sempre foi o objetivo dela, desde que a sua professora Malvina, do Ensino Fundamental, pediu para que a classe fizesse algumas tarefas de casa relacionadas à jornalismo. Depois disso, essa ideia de ser jornalista não saiu mais da sua cabeça. Sobreviveu até mesmo aos comentários de que “jornalismo não dá dinheiro”, ou “você tem que fazer alguma Engenharia, ou Direito porque você gosta de ler”. Mas o jornalismo gritou mais alto, e Bibiana, que só havia colocado essa opção de curso em todas as faculdades que prestou, acabou indo para a Unesp de Bauru. - E você sempre teve vontade de trabalhar na área dos direitos humanos?, eu perguntei. E eu já esperava por essa resposta, porque também era a minha: - Quando eu entrei (na Universidade) eu tinha uma visão muito tradicional do que era jornalismo. O auge para mim era trabalhar na Folha ou no Estadão e cobrir política, a coi- 40 sa mais “mainstream” que tem na nossa área. Quando a gente entra e pensa o que quer fazer, né, política ou economia, sei lá. E aí eu queria ser repórter de política em um jornalão! Nessa hora eu só balancei a cabeça em reconhecimento, já que comigo foi a mesma coisa. Então, quando ela completou o pensamento, eu estava de novo lá, balançando a cabeça em afirmativa: - Então, essa experiência na universidade pública trouxe muita coisa que eu não sabia. Eu aprendi bastante, mesmo fora do curso, na convivência com as pessoas, nos debates e tudo mais. Essa questão dos direitos humanos, por exemplo, e a questão social mesmo, surgiu durante o curso, como uma consequência das experiências que a universidade pública trouxe. E, gaguejando de nervosismo entre uma pergunta e outra (como se eu nunca tivesse entrevistado ninguém antes), questionei se o interesse pelo jornalismo alternativo tinha surgido nessa mesma linha dos direitos humanos. Bibiana disse que sim, que na verdade ela passou a prestar atenção na mídia alternativa durante a cobertura das manifestações de 2013, que eram sobre o aumento das tarifas do transporte público. A jornalista conta que acompanhou as matérias por meio dos veículos alternativos, que na época não eram muitos. Alguns nomes que surgiram na conversa foram a Revista Fórum, Opera Mundi e Agência Pública. 41 E esse marco realmente deve ter sido importante para a construção da sua trajetória no jornalismo, pois Bibiana decidiu fazer uma Iniciação Científica - que depois virou seu TCC - comparando a cobertura desses protestos na mídia tradicional e na mídia independente. Mas vale ressaltar que o debate sobre a forma com que a grande mídia faz matérias não funcionava do jeito que é hoje, viu. Na época se falava muito pouco, ou nem se falava. Bibiana mesmo conta que o que aprendeu sobre o assunto durante a sua vivência na cidade, na universidade e nos projetos de extensão. Uma dessas vivências foi a sua trajetória no Participe, a primeira experiência mais concreta no jornalismo alternativo, de 2014 a 2015, antes de fundar o Jornal Dois. Lá, ela era repórter da editoria de cultura. Só que o projeto ainda era de dentro do meio acadêmico, criado por dois alunos do último ano do curso, e com colaboradores dos anos anteriores. E mesmo que não fosse exatamente um projeto de extensão universitária, Bibiana conta que ele não tinha tanto envolvimento com a cidade. - Então, foi mais ou menos da metade para o final da faculdade que eu comecei a circular por Bauru mesmo e ver "poxa, precisa mesmo de uma mídia independente aqui". E aí, nessa hora eu já queria saber um pouco mais sobre a história do jornal. Mas eu acabei me enrolando (lembre-se que eu disse que estava nervosa), e a pergunta saiu assim: 42 - Como foi essa experiência de trabalhar no Jornal Dois? Mas no fim, deu certo. Bibiana conta que o J2 surgiu em 2017 - eu meio que tinha essa memória, pois foi logo no ano que comecei a estudar na Unesp. Ela relembra que na época estava fazendo o mestrado. E, em suas palavras, esse foi um momento catártico pois, além dela, havia uma movimentação de pessoas recém-formadas doidas para começar a fazer matéria. - E aí o grande gatilho para isso foi o movimento Tarifa Zero Bauru naquele ano, porque a tarifa ia aumentar e não sei o quê, e a galera queria mobilizar a população. Então, eu tava participando dessas reuniões do Tarifa Zero. Daí eu e o Lucas Mendes, que é o outro cofundador do Jornal Dois, pensamos "vamos fazer uma reportagem sobre esse lance da tarifa aqui". E aí a gente começou a conversar com as pessoas, militantes antigos de Bauru. O Roque Ferreira também foi uma grande referência para a gente, explicou tudo desse negócio da tarifa de ônibus. Ele tinha vários documentos da EMDURB. Só para contextualizar, o Roque foi um ex-vereador da cidade, ferroviário, sindicalista e militante pelos direitos da classe trabalhadora. Por incompetência do Estado (que alguns podem chamar de infortúnio) , ele foi mais uma vítima da Covid-19. Faleceu no dia 4 de setembro de 2020. Mas voltando. Bibiana conta que ela e Lucas fizeram, então, a matéria sobre o movimento Tarifa Zero, explicando o problema da tarifa de ônibus em Bauru. Só que tinha um 43 pequeno problema: eles não tinham onde publicar. - A gente não ia mandar para o Jornal da Cidade, entregar uma reportagem assim de lambuja. E a gente não tinha um blog, um site de notícias de Bauru com reportagens críticas. E daí eu lembro que, na época, a gente foi fazendo outras reportagens sobre assentamentos Urbanos em Bauru, que também tavam surgindo vários. E a gente foi publicando no Alma Preta, que hoje é um grande portal, mas estava surgindo naquele período. Era de uns amigos nossos e eles ainda estavam publicando coisas de diversos lugares. Hoje já está mais nichado, mas aí a gente estava soltando no Alma Preta porque era o único espaço que tinha para divulgar esse tipo de coisa. E aí a necessidade de criar logo um veículo bateu na porta. Bibiana me disse que primeiro eles reuniram uma galera, e juntos, passaram de 3 a 4 meses apenas planejando o nascimento do Jornal Dois. Sobre o nome "Jornal Dois", eu gostaria de fazer um parênteses aqui. (Eu falhei). Esqueci de perguntar como foi o processo de escolha. Porém, eu tenho a memória - e que fique claro que é apenas uma breve memória - do porquê desse nome. Eu me lembro de alguém, que tenho quase certeza que foi o Caê, me dizendo na época da criação do jornal que o nome era esse porque a cidade já tinha o “Jornal nº 1”, que era o Jornal da Cidade. Então, seguindo essa linha de raciocínio, eles seriam então o Jornal Dois. Eu e Bibiana vamos conversar um pouco sobre o Jornal da Cidade logo logo, então não vou me estender muito por 44 aqui ainda. Mas sim, o JC é o principal jornal de Bauru, ou já foi, pelo menos. Ele sobrevive, basicamente, da publicidade local. Inclusive, se você entrar agora no site, duvido que ache a aba sobre a linha editorial. A primeira reportagem lançada pelo J2 foi em novembro de 2017, escrita por Lucas, sobre a chegada da faculdade de Medicina da USP em Bauru. O seu título foi “O que não te contaram sobre a faculdade de medicina da USP em Bauru”, porque na época, só se falava sobre os benefícios, e não era bem assim. O que ficou bem claro para a população depois dessa publicação do jornal, já que a matéria teve mais de 20 mil acessos. - E de lá pra cá foi essa experiência. Quatro anos que o Jornal Dois está fazendo esse mês (novembro/2021), e basicamente com foco nisso né, publicar reportagens críticas, aprofundadas e bem explicadas sobre as questões estruturais de Bauru, envolvendo direito à cidade, envolvendo direitos humanos, movimentos sociais populares, cultura independente, cultura de rua das periferias, do Hip Hop e do Funk. E até um certo tempo a gente trabalhou também com futebol amador. E uma outra questão levantada por Bibiana é que, diferente de outras mídias independentes recentes que surgiram na cidade, o Jornal Dois foi o primeiro jornal que não foi pautado na Unesp. Para explicar melhor, a Universidade tem como um dos seus principais eixos a extensão universitária. Os projetos de extensão são uma forma de retribuir à sociedade todo o investimento público que foi dado a ela de acordo com o conhecimento que é gerado ali 45 https://medium.com/jornaldois/o-que-n%C3%A3o-te-contaram-sobre-a-faculdade-de-medicina-da-usp-em-bauru-5c04432ff070 dentro. Mas o Jornal Dois tinha outros planos. - Claro que o jornal só surgiu porque cada um de nós teve a sua experiência na universidade, e a gente chegou nesse consenso em comum de que era necessário uma mídia independente em Bauru. Mas ele é pautado na cidade, ele é pautado nas coisas que acontecem nos bairros, e necessariamente, para estar no Jornal Dois, a gente precisa conhecer cada vez mais Bauru e as pessoas que fazem Bauru. Só pontuando que a ideia aqui não é falar que os projetos de extensão não funcionam, muito pelo contrário! Além desse retorno social, eles são essenciais para a formação prática dos futuros profissionais que poderão fazer algo tão incrível como o pessoal do Jornal Dois fez. A diferença é que, mesmo que os projetos de extensão tenham essa pegada, o objetivo também é a geração de conhecimento para a academia. No caso do J2, o foco foi, de fato, a cidade de Bauru. - Então, no começo até rolava uma coisa assim “ah, vocês são do jornal da Unesp, do Jornal Dois? Ah, o Jornal Dois da Unesp…”, e a gente falava “não, não é Jornal Dois da Unesp, a gente é um jornal de Bauru”. Então rolava um pouco isso porque claro, a maioria das pessoas que estavam compondo o jornal eram da Unesp. [...] Não é uma condição ser da Unesp ou não, isso não é o nosso foco. É um jornal de Bauru, e todas essas experiências só foram possíveis, o Jornal Dois só continuou crescendo, porque a gente se envolveu em certa medida com a cidade. Até porque para falar sobre uma coisa você precisa se inserir nela, conhecer, explorar, esse tipo de coisa. Então foi mais ou menos por 46 esse caminho. - E quais foram as experiências que mais te marcaram nesses 4 anos de Jornal Dois? Teve alguma matéria específica, algum acontecimento ou marco? Eu quis saber, porque quando se trabalha cobrindo direitos humanos, a questão é mais complexa. A gente lida com gente, com ser humano em situação de vulnerabilidade, com os seus direitos negados. E a gente se envolve, né. Como não se envolver? Como não escolher esse lado da história? Bibiana respondeu que o jornal costuma cobrir bastante os movimentos sociais de assentamentos urbanos. E os assentamentos passam por reintegração de posse. As pessoas são despejadas, tem suas casas demolidas e as coisas jogadas no chão. Literalmente. - E essas coberturas sempre foram muito pesadas, porque a gente lida e se envolve com essas histórias, com pessoas que já vem de um passado vulnerável, estruturalmente vulnerável, por condições impostas pela sociedade capitalista. E aí você está alí cobrindo a pessoa que está perdendo a casa dela, e você não sabe aonde ela vai dormir amanhã. Aí ela conta sobre uma reintegração de posse específica que cobriu do Assentamento Nova Canaã. Eles acompanhavam o 47 pessoal desde 2017, que nesse intervalo de tempo, até 2021, passou por pelo menos 3 reintegrações de posse. Centenas de pessoas eram realocadas pela prefeitura de terreno para terreno, até que o prefeito Clodoaldo Gazetta os transferiu para o local em que estão atualmente, no Parque Primavera. Hoje, a região é chamada Vila Cristiana em homenagem à falecida líder do assentamento. Quando os assentados chegaram lá, o terreno estava coberto de chorume, aquele líquido fedido que é produto da decomposição de matéria orgânica, sabe? Só que nesse caso, esse chorume descia do cemitério Cristo Rei, que fica bem na frente do “novo” terreno dos assentados. - Eles chegaram lá, o terreno tava nessa situação, com um monte de pedra, terra virada, e esse negócio que alaga quando chove, e vem do cemitério, sabe? Então, eu lembro muito de uma cena em que a gente fez um vídeo deles chegando lá. Tava sem luz, à noite, e uma mulher com filho dela falou "ah, a gente vai dormir aqui hoje a noite, se chover a gente vai tomar chuva, porque é isso, não tem o que fazer. Nossas casas foram demolidas, e amanhã a gente começa a reconstruir de novo”. E é uma coisa muito difícil. Sempre que a gente voltava desses lugares eu pensava "eu fui lá, fiz a reportagem e agora tô na minha casa. Se eu tomei chuva eu tomo um banho, fico quentinha, e eles não. Eles continuam lá”. Ela me disse que a equipe já chorou diversas vezes depois de algumas coberturas, porque essa é a proposta do Jornal Dois: um jornalismo mais humano. 48 - Não é como se a gente fosse robô. Vou lá para pedir para a pessoa me contar a história da vida dela e eu vou ficar completamente separado ali, vou construir uma barreira emocional... não tem como você não se abalar emocionalmente com esses assuntos porque, quando a gente cobre Direitos Humanos, a pauta é essa. A pauta é a desigualdade social, a pauta luta diária da classe trabalhadora e as dificuldades, mil dificuldades enfrentadas em torno disso. Então essas coberturas sempre me marcaram muito. Mas a pauta também não é só sofrimento. A ideia dos jornais alternativos, no geral, também é a de quebrar estereótipos, humanizar as pessoas e mostrar contextos de alegria e conquistas. Nesse sentido, Bibiana contou que uma outra cobertura que a marcou bastante foi uma festa de Dia das Crianças desse mesmo assentamento, em 2018, na época que a líder Cristiana ainda era viva. - A gente foi meio de canto conversar para saber como foi a organização, aí ela disse "olha, quase que não teve esse ano". Eles estavam ameaçados da reintegração de posse como sempre, e tava todo mundo muito desanimado. E ela foi contando pra gente, e aí a gente “nossa, mas que bom que vocês conseguiram fazer, né”, porque as crianças em assentamento não tem muito esse espaço para brincar. Então é sempre importante quando tem essas mobilizações sociais em torno de um evento, é sempre importante ter festa, sabe. Ter esse espaço para comemorar e celebrar, principalmente em assentamentos, que às vezes o ambiente é só de luta ali, de reivindicação, e de você lutar para ter a sua casa. 49 - Como você enxerga a cobertura da mídia tradicional, principalmente bauruense, como o Jornal da Cidade, sobre a pauta dos direitos humanos? O que difere da abordagem de vocês? Nesta pergunta eu decidi focar no fato de que os dois jornais são da região de Bauru. Acho que dessa forma é bastante palpável a comparação entre os dois, já que são e falam da mesma cidade. - A questão do Jornal da Cidade, eu não posso falar pelo Jornal Dois, mas pessoalmente falando, é um jornal que só existe ainda por publicidade. Porque diversas conversas que a gente tem com as pessoas ao longo desses anos, sempre vinha um papo de “ai, o Jornal da Cidade vai fechar, o Jornal vai fechar” e nunca fecha, porque é um grande espaço publicitário pras empresas de Bauru, e cumpre esse papel. Sobre a cobertura dos direitos humanos, Bibiana cita um trecho do livro reportagem Cidade Quebrada, que foi escrito por Lucas, o outro co-fundador do J2. Ele narra um momento em que estava em assentamento, e presenciou a cobertura que o Jornal da Cidade fez sobre uma mulher assentada que havia perdido a sua casa. - E eles colocaram a manchete “não sei o que da miséria”, alguma coisa falando de miséria na manchete. E daí, falando com essa mulher que foi entrevistada pela reportagem de- 50 pois, ela ficou abismada que o retrato dela tinha saído no jornal ligada a essa palavra “miséria”, a essa narrativa de miserabilidade, porque ela não tinha se sentido nada confortável com aquilo. Ela ainda dá outro exemplo de uma vez que acompanhou o projeto De Grão em Grão, que arrecada e faz doação de alimentos para pessoas em situação de vulnerabilidade social em algumas regiões de Bauru. Ela conta que, junto com Tati, a organizadora do projeto, presenciou o relato de uma mulher que teve que dar água com terra para seu neto beber na noite anterior, pois eles não tinham o que comer. Tati postou a história no Facebook, e logo que o Jornal da Cidade viu, já foram atrás de fazer uma matéria sobre. - Então assim, eu avalio que às vezes a cobertura da mídia tradicional bauruense em cima do tema de direitos humanos fica muito no sensacionalismo, sem abordar o contexto ou os porquês por trás desta situação das pessoas. Por que um terço da população bauruense vive com menos de um salário mínimo? Por que 60 mil pessoas dependem do auxílio da SEBES (Secretaria do Bem Estar Social)? Não aborda essas questões estruturais, porque não é interessante para o ambiente empresarial, que depende de anúncios de outras grandes empresas. Não é interessante cutucar a ferida. E por mais que aqui ela esteja falando especificamente de Bauru, a lógica da mídia empresarial que consumimos nas rádios, TVs e periódicos por todo o país são as mesmas. Depender de publicidade para sobreviver pode ser sinônimo de limitações editoriais. Como você vai noticiar algo ruim 51 sobre o seu anunciante, por mais que a notícia seja importante para a sociedade? Não tem como a linha editorial de um veículo dizer que possui viés de direitos humanos, sendo que ela é financiada, por exemplo, pelo agronegócio. Ou é uma coisa, ou é outra. De acordo com a análise da Bibiana, a mídia tradicional bauruense, quando fala da temática dos direitos humanos, não chega à raiz do problema - e também, as pautas sociais e dos movimentos sociais não são recorrentes. Ela noticia o fato apenas pelo fato, sem dar continuidade. E o sensacionalismo faz com que a notícia repercuta, gere curtidas e compartilhamentos nas redes sociais. E aí, Bibiana questiona: - A quem uma reportagem desse tipo tá ajudando? Essa reportagem não traz conhecimento do porquê das coisas, ela nivela, e ela trata superficialmente sobre a vida das pessoas, e fica por isso mesmo, sabe. Não tem uma continuidade nem do trabalho da cobertura, nem do tema, nem de nada. E ela finaliza com uma reflexão que me fez pensar bastante. Segue: - O espaço que teria se veículos como esses fizessem uma cobertura adequada, seria muito proveitoso para a sociedade no geral, porque eles chegam nas pessoas, eles têm dinheiro para chegar nas pessoas. Mas é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo que a mídia tradicional empresarial tem essa estrutura e esse espaço, às vezes ela só o tem justamente por não abordar essas temáticas dessa for- 52 ma. Então fica meio nesse contrasenso assim, nesse paradoxo que é o que a gente vê no retrato local da mídia empresarial, o retrato regional, nacional, e por aí vai. Como fugir deste paradoxo? - E vocês do Jornal Dois se intitulam como uma mídia sem amarras, vocês não tem esse financiamento de publicidade, essa fonte de renda com assinatura para poder acessar as matérias e enfim. E como vocês sobrevivem, então? É possível fazer um jornalismo que fuja desse padrão mercadológico, que funcione mesmo, que tenha uma periodicidade? Bibiana dá início a sua resposta comentando sobre as diversas experiências a nível nacional de mídias consolidadas, que têm seu sustento financeiro baseado em campanhas de financiamento coletivo e por verbas de editais. Para ela, de acordo com a sua experiência, essas são as duas formas principais de sustento financeiro de mídias independentes. Mas, a jornalista pontua que isso também dá margem para a discussão sobre a cultura - das pessoas no geral mesmo - de entender que jornalismo é um trabalho, e que os jornalistas precisam ter um salário. 53 - Então quando a gente entra nesse tema do financiamento direto do público leitor, rola um entrave porque as pessoas não tem muito essa noção de que eu preciso pagar pra que isso aqui continue existindo. O Jornal Dois em particular possui uma campanha de financiamento coletivo pelo Catarse, um site que media esse tipo de relação. Por lá, você pode colocar uma meta de arrecadação e oferecer alguns presentes para as pessoas que derem essa ajuda financeira. As pessoas podem, por exemplo, já deixar o cartão de crédito cadastrado para doações mensais. Mas eles também recebem pagamentos de forma direta por boleto ou pelo PIX (transferência bancária). Porém, a mídia alternativa local ainda enfrenta algumas dificuldades a mais. Bibiana explica: - Ainda não é suficiente pra pagar um salário integral pra todas as pessoas da equipe. Outras mídias independentes nacionais têm essa amplitude e já ganharam um pouco mais por poderem contar com contribuições de todo o país. Então, por mais que, sei lá, milhões de pessoas acompanhem a Agência Pública, por exemplo, é uns 10% disso que apoia no financiamento coletivo. Mas esses 10% já dão uma grana suficiente pra pagar toda a equipe. Agora na mídia local, isso é um desafio. Porque o nosso público tá restrito a Bauru, né, ainda que pessoas de outros lugares nos leiam. Mas o interesse é Bauru. Então como é que a gente vai contar com uma porcentagem mínima dentro desse número de pessoas, que já é pequeno, pra financiar o jornalismo independente a nível local? 54 Então, a alternativa que o pessoal do Jornal Dois encontrou foi a de remunerar os colaboradores por reportagem e por vídeo produzidos, em um esquema de trabalho “freelancer” mesmo. - O cenário ideal, claro, seria contratar todas essas pessoas com carteira assinada e pagar um salário com todos os direitos e benefícios ,que todo o trabalhador tem direito pela CLT. Mas com a verba que a gente tem hoje, o que é possível fazer é essa remuneração das produções, realmente. Ela explica que a manutenção financeira acaba sendo um dos principais desafios da mídia alternativa local. O jornal não consegue pagar todas as contas só com o dinheiro do financiamento coletivo, e a consequência disso é que os jornalistas acabam tendo que procurar outros empregos em paralelo. - O jornal não pode ser a única fonte de renda, não dá um salário mínimo. E daí isso gera um outro entrave também, porque a pessoa tem que manter dois empregos. Um emprego no horário comercial, e aí a noite, final de semana no jornal pra esse projeto continuar existindo. E isso, ele só continua existindo por conta da motivação pessoal. Por considerar a relevância social dessa mídia pra Bauru. Em seguida, Bibiana toca em um ponto importante desse debate. Ela entende que tudo isso é um processo, e que uma dessas fases pode ser, quem sabe, a regulação da mídia no Brasil. Na sua visão, esse ponto seria chave para que a mídia independente fosse de fato fomentada, recebendo incentivos e subsídios, coisa que hoje não existe. 55 E aqui eu acrescento: eu, particularmente, sei que existem editais que cobrem algumas dessas lacunas, mas não se compara com o espaço que a mídia tradicional tem nas ondas de Rádio e TV. “Ah, mas a internet é acessível, as pessoas conseguem ver o conteúdo de mídias alternativas por lá”. Mas aí que está: o acesso a esse conteúdo é consumido de forma ativa; o espectador precisa ir atrás. No caso da mídia tradicional, não. A TV já está lá, dentro da sua casa, falando com você o tempo todo. E não é aceitável que só esses grandes veículos e emissoras tenham esse espaço. - Então tem uma série de entraves regulatórios, além dessa própria cultura de eu, como cidadã que me interesso por determinadas informações do país ou da minha cidade, me sentir responsável por financiar essa mídia que eu acredito. Porque se eu não financiar ela pode acabar. E a cobertura, a produção de conhecimento sobre o que a gente tá vivendo vai ficar prejudicada, a minha concepção de mundo vai ficar prejudicada - Bibiana finaliza. - Mas vocês conseguem atingir um público significativo em Bauru? O pessoal da cidade engaja bastante? Quis saber, para tentar de alguma forma mensurar a importância desse pequeno veículo para cidade. - O nosso público, pelo que eu me lembre, em alguns meses específicos chega a dezenas de milhares de pessoas, tipo sessenta mil pessoas. Já passou de cem mil. 56 A média, de acordo com a jornalista, é de 20 a 150 mil pessoas. Bibiana diz que a audiência tende a aumentar dependendo da reportagem. Quanto maior a proximidade da população com aquele acontecimento, maior é o número de acessos. E as pautas e denúncias sempre acabam chegando para a equipe, então sim, existe essa demanda da presença do J2 em Bauru. - Então, eu acho que essa relação próxima é uma das principais constatações que a gente tem do envolvimento do Jornal Dois com a população de Bauru. Porque quando tem uma treta que não vai sair em nenhum outro lugar, a galera vem procurar o Jornal Dois. E isso acontece muito, a gente recebe muitas mensagens, pessoas falando no boca-a-boca também. Ela conta que esse relacionamento com a população acaba sendo orgânico, e que isso reflete na difusão do conteúdo do jornal pela internet, principalmente. Inclusive, antes da pandemia, o Jornal Dois também produzia jornais zine impressos em diversos pontos da cidade, e essa era uma forma de disseminar conteúdo fora da internet. Mas infelizmente, com a pandemia, a produção ficou restrita às telas. - E esse pessoal, eles são mais jovens ou é uma galera mais velha também? São pessoas com pontos de vista parecidos com o do jornal, ou as que pensam diferente também estão ali consumindo? 57 - Olha, pelas informações de público que a gente tem nas mídias sociais, é um público jovem adulto, de 20 até 40 anos, que mais acompanha a gente na internet. Mas aí, fora da internet, a gente tem muito diálogo e muita relação também com pessoas mais velhas, de 50, 60, 70 anos, que às vezes só acompanham o jornal pelo que chega no WhatsApp por exemplo, porque a gente tem umas listas de transmissão pelo WhatsApp. - Ela responde. Bibiana pontua que o Jornal Dois tenta diversificar a forma com que o conteúdo chega para as pessoas, já que cada faixa etária ocupa um espaço na internet. - Hoje a gente vê que as pessoas mais jovens tão no Instagram, e as mais jovens ainda tão no Tik Tok, sabe. Daí o Facebook ficou pra pessoas mais velhas, e o WhatsApp ficou pra pessoas mais velhas que só usam WhatsApp. Sobre a questão ideológica, a jornalista conta que o pessoal que acompanha o trabalho do J2 tende a ter um olhar à esquerda (politicamente falando). Porém, também tem muita gente que nem conhece a linha editorial do jornal que acompanha simplesmente por se sentirem representadas pelo conteúdo. - E daí é geralmente dessas pessoas que às vezes falam “ah, comecei a acompanhar o Jornal Dois por causa de um conteúdo aqui sobre o futebol amador do time que eu gosto”, e de repente tem uma reportagem sobre a população LGBT de Bauru. A pessoa estranha! Então geralmente a gente recebe esses comentários de “ah, jornal de esquerda, não sei o que” e tal. Mas segue acompanhando 58 a gente, porque vira e mexe tem um conteúdo lá que ela fala “ah, isso aqui é importante, isso aqui é do meu bairro, isso aqui eu vi acontecer, ou eu conheço essa pessoa aqui que tá no jornal”. Então rola um pouco desse sentimento de identificação. - Quais foram os principais aprendizados que esse trabalho com o Jornal Dois trouxe para você e para a sua vida profissional? Ela lembra também que quando se formou, logo deu início ao Mestrado. E um dos motivos foi a vontade de continuar na cidade e fazer o jornal, tanto, que passou quase uma década em Bauru. - E querendo ou não, a cidade não tem muitas vagas de emprego no Jornalismo para a gente trabalhar. Então, eu acho que se não fosse o Jornal nestes primeiros anos de formada, eu não teria tido a quantidade de experiências que eu tive com diversos setores da sociedade, e a proximidade, com movimentos locais mesmo, associações comunitárias, movimentos socias… eu não teria tido tudo isso. Bibiana atribui 80% do seu aprendizado técnico aos anos trabalhando no Jornal Dois. Ela diz que foi lá que, durante a prática do dia-a-dia, ela foi conseguindo colocar em prática tudo o que aprendeu na Universidade: texto, edição de texto, produção audiovisual, fotografia, pensar e formular pautas, pensar nos entrevistados, usar a Lei de Acesso à Informação, jornalismo de dados e até mesmo design - que a 59 gente nem aprende no curso. - Então hoje a qualidade do texto, o olhar pra edição, o olhar pra uma pauta, qual que vai ser o lead da matéria, eu devo muito isso ao Jornal Dois, na questão da técnica profissional. Ela também fala sobre a parte de fazer entrevistas, que a gente sai da faculdade morrendo de medo (e eu, ouvindo isso pensando o tempo todo se não estava fazendo papel de tonta na frente de uma jornalista formada e experiente). É engraçado como a prática é uma das melhores escolas. Eu, por exemplo, gaguejei tanto nessa primeira entrevista com a Bibiana, que na hora de transcrever tudo, eu tinha até ódio de me ouvir falando. Mas conforme fui fazendo as próximas com os outros jornalistas, percebi que eu fui conseguindo lidar cada vez melhor. - E eu ficava meio em choque, ficava “nossa, vou entrevistar sei lá qual vereador”, qualquer pessoa, eu ficava com vergonha de entrevistar. E eu perdi isso com o Jornal Dois, tendo que entrevistar as pessoas, indo em determinados lugares. “Ah, eu tô na fila do Bom Prato aqui, e eu preciso sair com umas 3 entrevistas sobre a importância do Bom Prato pra segurança alimentar”. [...] E no meio do almoço ali, a pessoa com fome, meio chato parar para dar entrevista. Mas cê vai, se enfia no meio das pessoas e começa a perguntar e começa a puxar assunto, porque você tem que fazer isso. Se não, você não vai conseguir a sua pauta. Então foi também uma das coisas que eu desenvolvi graças ao Jornal. 60 Sobre a parte pessoal, Bibiana reflete que amadureceu bastante graças ao Jornal Dois por conta das vivências das coberturas. - Noção de mundo mesmo, de crítica, de se entender no mundo e ver qual que eu acho que é o meu papel, qual que é o meu lugar e o lugar das outras pessoas. E entender essas relações, né, da desigualdade social, de enxergar os impactos do sistema capitalista na vida local, na vida da cidade mesmo. Porque as coisas acontecem nas cidades, acontecem nos bairros. E de incansavelmente tentar conciliar o meu trabalho com aquilo que eu acredito pra transformação do mundo. Eu acho que quem eu sou hoje, tem muito do Jornal Dois dentro de mim também. - E já pegando o gancho, você acredita na comunicação como uma ferramenta de transformação do mundo? Eu gosto de perguntar isso para jornalistas formados porque de duas, uma: ou ele vai dizer que sim, como Bibiana (e geralmente esse tipo de profissional, de fato, está nesse meio da comunicação alternativa), ou dirá que não, que toda essa idealização morrerá nos primeiros anos de formada, que o mundo é podre, não tem salvação e não sei mais o quê. E não vou mentir aqui, não. Já ouvi muito essa segunda afirmação dentro da Universidade. Confesso que durante um tempo, até eu tinha perdido as motivações que me levaram a prestar jornalismo em 2016. Não vou dizer que eu 61 queria salvar o mundo, mas com certeza o foco era ajudar de alguma forma por meio da informação, da base. Mas eu entendo que esse debate do impacto da mídia alternativa é um fenômeno recente, e que muitos ainda não se aprofundaram nele. Então, está perdoado! Bibiana mesmo, respondeu logo de cara: - Com certeza. Eu acredito que a comunicação é uma ferramenta social pra formulação da opinião crítica, pra produção de conhecimento. Porque o que o Jornalista faz? Ele produz conhecimento sobre o que acontece no dia-a-dia quando é um jornalismo factual, mas também conhecimento sobre a realidade de determinado local, sabe? Ela explica que o Jornal Dois tem essa proposta de produzir conhecimento além do factual. E vale ressaltar que o J2 não é um veículo de hard news - que fica de plantão e relata os acontecimentos daquele momento o mais rápido possível. Então, a jornalista exemplifica que quando eles falam de determinado assunto, como por exemplo a mobilidade urbana, o conteúdo vai um pouco além. Eles tratam de algumas questões estruturais sobre a pauta, como a forma que a mobilidade urbana acontece em Bauru, a especulação imobiliária na cidade… e como Bibiana mesma disse, isso é conhecimento sobre a cidade. - A comunicação é uma ferramenta que coloca as cartas na nossa mão para a gente julgar quais vão ser nossas ações, nossas pautas, nossas demandas sociais, e buscar essas conquistas pra melhorar a vida da população, pra melhorar o cuidado com o meio ambiente, por exemplo. Então, ela 62 nos dá esse acervo de conhecimento pra gente, olhando pro passado, olhar para o futuro e ver o que que a gente quer. Eu acredito muito nisso. Ela complementa que essa comunicação da qual ela está falando deve ser, necessariamente, voltada para pessoas. - E aí tem essa diferença né, porque o jornalismo pautado numa linha editorial que não prioriza o interesse público ou que se pauta por determinado olhar elitista diante dos fatos não vai oferecer essas ferramentas. Então tem sempre essa questão de ser um jornalismo independente. O jornalismo que a gente atua no Jornal Dois é um jornalismo objetivo, é um jornalismo parcial. Ah, a imparcialidade… essa aí já caiu por terra, né?! A linha editorial é o norte da construção da informação. Aquilo que o veículo de comunicação (pensando nele como uma empresa) acredita, vai definir a forma com que a matéria é dada. Escolha de acontecimentos, tom da notícia, enquadramento, escolha de fontes e por aí vai. Então, o J2 já deixa bem claro para quem quiser ouvir: o Jornal Dois é um jornal à esquerda. - Para a comunicação ser essa ferramenta transformadora ela tem que estar pautada nas pessoas, no interesse público, no ponto de vista das minorias sociais, pra trazer as questões adequadamente contextualizadas e problematizadas. Se eu vou fazer uma pauta sobre falta d’água e eu não entrevistar quem tá passando sede, ela tá incompleta. 63 - Você até respondeu a minha próxima pergunta. Porque vocês se consideram uma mídia radical... Como dizem no Editorial: “Mídia, um meio que dá suporte à produção e compartilhamento de conteúdo. Radical, que procura chegar à raiz dos problemas. Acreditamos que a diversidade de informação é fundamental para um jornalismo mais justo e democrático”. E isso tem tudo a ver com essa questão de você ir lá e dar o enquadramento que é buscar falar com os movimentos sociais, buscar falar com a população, né? - É, então, a gente recebe várias críticas também de pessoas falando que o Jornal Dois é parcial, ou que é um jornal comunista, ou que é um jornal financiado pelo PT, financiado pelo PSOL… As pessoas falam isso porque na verdade é uma falta de conhecimento sobre o que é o jornalismo. Fica num senso comum muito alimentado pela mídia empresarial, que pra ela é vantajoso se dizer imparcial, porque na verdade não é (!!!), e tem os interesses contrários ao interesse público por trás. Então, pra elas é OK dizer que é imparcial pra gente acreditar nelas. Mas aí, quando surge essa mídia pautada à esquerda, gera um estranhamento. Porque na verdade é o ponto de vista dos direitos humanos, dos direitos sociais, e das minorias sociais, como a gente chama, né, que na verdade são a maioria da 64 população. - Explica Bibiana, de acordo com a sua visão. Até deixei a fala dela toda aqui, porque acho que explicou muito bem a forma com a mídia tradicional sempre pautou o imaginário coletivo. Como não pautaria, se ela sempre esteve ali? São anos de Globo, SBT e Record dentro das nossas casas, com viés editorial liberal e muitas vezes sensacionalista - para não falar das vezes que, de alguma forma, feriram os direitos humanos. - Mas isso a gente trata de uma maneira bem colocada na nossa linha editorial que é: o nosso ponto de partida não afeta o rigor e a qualidade jornalística porque a gente trabalha com as mesmas técnicas de apuração, de checagem de dados e de técnica mesmo, para que seja uma linguagem objetiva, só que trazendo esse ponto de vista por trás dela, né. A nossa visão, o nosso olhar é outro a partir do momento que a gente se propõe a fazer, a ser uma mídia radical voltada para os direitos humanos. O olhar é outro, mas a técnica, o rigor e a apuração jornalística são completamente objetivos. E é aí que está. Não é que o jornalismo tradicional mente, ou que ele seja o vilão do conto de fadas. Ele ainda é jornalismo, e jornalismo de qualidade tecnicamente falando (com exceções, claro). A questão aqui é que ele tem outro ponto de partida, outra linha editorial, que é diferente do jornalismo alternativo. Tanto, que a maioria dos veículos alternativos foram criados partindo dessa premissa de noticiar assuntos que não são pautados pelo Jornal Nacional. Como por exemplo os direitos humanos, que é o nosso foco aqui neste livro. 65 Mas, se me permitem a opinião, ainda defendo que jornalismo mesmo é o que está, de fato, de braços dados com as minorias sociais, com o meio ambiente, com o avanço da ciência e a defesa da democracia. - E qual é a importância do Jornal Dois, como um veículo de comunicação, para a manutenção dos direitos humanos fundamentais? Primeiro, Bibiana conta que o Jornal Dois, de 2018 a 2019, compôs o Conselho Municipal de Direitos Humanos em Bauru. Lá, por conta da proximidade com os temas que estavam sendo discutidos, diversas coberturas do jornal foram baseadas nelas. Até porque são diversos relatos e denúncias que chegam para o Conselho pela população. Uma dessas produções foi a Websérie sobre insegurança alimentar, realizada para o encerramento da Semana de Direitos Humanos Roque Ferreira, que levou o nome do Roque - aquele ex-vereador, sindicalista e ferroviário do qual já falamos por aqui anteriormente - em homenagem a ele, por uma demanda do Conselho de Direitos Humanos. Quem deu a ideia dessa produção foi Vanessa, uma assistente social que compõe o Conselho. Ela percebeu que o tema estava se tornando muito recorrente entre as assistentes sociais, e sugeriu a pauta para o jornal. A websérie, então, foi feita em conjunto: Jornal Dois + Conselho Municipal de Direitos Humanos. 66 Bibiana também conta de uma experiência de parceria com um outro veículo alternativo, que é considerado uma referência por ela: a Ponte Jornalismo - do qual vamos falar um pouquinho mais para frente. Os dois jornais trabalharam juntos para tratar da situação carcerária em Bauru. Uma das reportagens foi sobre as visitas nos presídios durante a pandemia, que foram proibidas, e como os familiares das pessoas que estavam em restrição de liberdade estavam lidando com isso. - Então, eu acredito e vejo que o papel do Jornal Dois pra manutenção dos direitos humanos é retratar as situações que estão sendo vividas pela população em situação de vulnerabilidade social em Bauru, como forma de um registro do tempo mesmo. E de dar espaço para protagonizar as vozes dessas pessoas, para que outras que não conhecem essa situação fiquem sabendo. E que isso seja um ponto em comum entre a sociedade para reivindicar, dar força à reivindicação por essas mudanças, por essas reformas na política institucional, pela criação de políticas públicas, pra melhoria da condição de vida dessas pessoas que estão à margem da sociedade como um todo. Então eu vejo muito isso no papel da atuação do Jornal Dois, como de qualquer outra mídia independente que se paute por esse olhar aos direitos humanos. [...] Então acho que é isso, nos diversos aspectos que envolvem os direitos humanos - alimentação, educação, saúde, moradia, segurança pública, direito à cidade - é a gente retratar a realidade, o recorte da realidade que é possível captar com o jornalismo, para evidenciar isso e colocar no debate público. 67 - Última pergunta: o Jornal Dois já teve alguma conquista social alcançada pela informação? E aqui, quando falo de conquista social, estou falando de desdobramentos reais e palpáveis que só foram possíveis com a ajuda do jornalismo que esse pessoal se propõe a fazer. Bibiana lista algumas: A primeira foi com o projeto De Grão em Grão, que doa alimentos para famílias em situação de vulnerabilidade, do qual o jornal é parceiro desde o início. Com toda a divulgação do projeto, da necessidade de doações, e das histórias das famílias feitas pelo J2, o número de voluntários cresceu. - Na nossa série de reportagens sobre moradia, a gente entrevistou a Tatiane, que é uma moradora de uma ocupação lá no Manchester. E depois, com a chegada desses vários voluntários e por continuidade dessas doações - essa ocupação do Manchester é atendida pelo De Grão em Grão - a Tati se tornou uma líder comunitária que foi falar na Câmara Municipal, por exemplo, sobre a questão da moradia em Bauru. Então esse foi um projeto que eu acho que a gente contribuiu de alguma forma pra fortalecer e pra levar pra frente essas pessoas, e trazer mais pra perto também outras pessoas que gostariam de atuar com temas sociais em Bauru, esse tipo de coisa. Depois, ela fala de dois projetos criados pelo jornal. O Primeiro Prêmio da Cultura Popular Bauruense foi realiza- 68 do em 2019 junto com outras duas instituições da cidade: a Fumacê, uma tabacaria que promove diversos eventos culturais focados no Hip Hop, e a RPretas, um coletivo de Relações Públicas formado por mulheres negras. - Acho que foram quase 90 inscritos em 5 categorias de música, arte, poesia, performance e tudo mais, e 20 premiados, se não me engano. A gente fez um evento, a gente fez os troféus, realmente, e foi um negócio muito bacana assim pra celebrar a cultura independente de Bauru, pra reconhecer também o trabalho desses artistas. E, por fim, o documentário Fluxo 014, que é, nas palavras de Bibiana, um registro histórico do momento cultural bauruense para o Rap, o Funk e o Hip Hop. A produção foi realizada com o fomento do Edital do Proac, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. E teve direito até mesmo a um evento de lançamento com 3 exibições, uma seguida da outra, por conta da lotação da sala. - Ao longo desse ano que a gente trabalhou com o apoio da secretaria de cultura do estado de São Paulo a gente também fez uma série de vídeo artes mostrando o trabalho de artistas de Bauru de diversos segmentos, da dança, da arte, teatro, da poesia, da música, artistas que trabalham no semáforo, então foi muito legal também, uma contribuição bem bacana. [...] 69 70 Aqui, no final deste capítulo, deixo registrado a aula que o Jornal Dois vem dando para os estudantes de jornalismo não só da Unesp, mas da cidade de Bauru. Sem dúvida, é um grande exemplo para a gente que está começando. 2017, ainda nas primeiras coberturas. Da esquerda para direita: Lorenzo Santiago, Lucas Mendes e Bibiana Garrido, co-fundadores e repórteres do J2. Foto: Arquivo pessoal. 2021, uma das poucas reuniões presenciais na pandemia. Paula Bettelli, Camila Araújo, Patrícia Domingos, Bibiana Garrido e Letícia Sartori. Foto: Arquivo pessoal 71 2021, Victória Ribeiro e Joyce Rodrigues em Brasília para a cobertura do acampamento indígena. Foto: Arquivo pessoal 2021, Letícia Sartori e Camila Araújo em entrevista com deputada estadual de SP. Foto: Arquivo pessoal 2021, Victória Ribeiro, na cobertura do acampamento indígena em Brasília. Foto: Arquivo pessoal 72 Jornalista desde 2003, João é um dos criadores da página de notícias O Joio e O Trigo, um veículo investigativo sobre alimentação e o poder privado no Brasil. Ele já trabalhou na Jovem Pan AM e na BandNews FM, e depois foi editor e repórter da Rede Brasil Atual, de 2009 a 2014. E também, escreveu o livro-reportagem chamado Corumbiara, que conta o caso do massacre que aconteceu em Rondônia, em 1995. Com esse livro, João foi finalista do prêmio Jabuti de 2016 e segundo colocado do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo 2015. CAPÍTULO 3 Segunda entrevista: João Peres, do O Joio e O Trigo A possibilidade dessa entrevista passou pela minha cabeça no último minuto do segundo tempo. Eu estava tomando banho para ir ao chá de bebê de uma grande amiga minha, a Laura. E lá, reflexiva, com a água caindo na cabeça, fiquei pensando em como o tempo passa rápido. Mas estava feliz por ela, e também porque iria encontrar alguns amigos da época do Ensino Médio. Nós sempre mantivemos contato, mesmo com toda a distância. Então eu lembrei da Clara. Ela também é uma grande amiga que, assim como eu, deixou Campinas para fazer faculdade. Hoje, ela é Designer formada pela USP de São Paulo, e trabalha no O Joio e O Trigo. Nessa hora eu pensei comigo: será que ela conseguiria me arranjar uma entrevista com o pessoal de lá? E acabou que eu nem precisei pedir, já que ela mesma ofereceu (obrigada, Clara!). E ela não só fez essa média entre eu e João, como também foi a pessoa que me apresentou O Joio, de forma indireta, quando foi trabalhar lá. Desde que ela começou a repostar os trabalhos que fazia para eles no Instagram, eu passei a acompanhar a página, o podcast, tudo! E foi muito legal conhecê-los, por diversos motivos. Mas o principal, para mim, foi a temática da alimentação, com todo o viés investigativo e de direitos humanos. Até porque parece que as pessoas esquecem que alimentação é um direito humano. Mas depois de conversar com o João, a admiração cresceu ainda mais. 73 - João, eu queria saber como foi que surgiu O Joio e O Trigo. Como você foi parar lá? Essa foi a minha primeira pergunta. E a resposta é que, aparentemente, O Joio aconteceu por acaso. - Era um projeto que era pra ter durado 6 meses quando a gente pensou nele. E agora a gente já completou 4 anos, tentando fazer com que ele se torne um projeto perene no jornalismo brasileiro. João conta que ele e o outro co-fundador, o jornalista Moriti Neto, tinham o anseio de investigar o poder privado no Brasil. Eles entendem que o jornalismo se ocupa muito do Poder Público, sendo que essa é só uma parte do poder que é exercido no mundo. - Muitas vezes Deputados, Senadores, Ministros estão reagindo a estímulos legais ou ilegais do setor privado, do poder privado, que é muito maior. Hoje em dia, as maiores gestoras de investimento do mundo detêm mais recursos do que a grande maioria dos países do mundo. Algumas delas, por exemplo a maior delas, a BlackRock, detém o equivalente a 7 PIBs do Brasil. Então, por que que a gente não tá discutindo esse assunto? Então, João e Moriti decidiram tirar essa vontade do papel: foram atrás de apresentar o projeto para a Aliança de Controle do Tabagismo (ACT) - uma organização da sociedade civil que, na época, estava expandindo o seu leque 74 de atuação para a área da saúde no geral - em busca de financiamento. E eles conseguiram. A partir daí, os dois jornalistas passaram 9 meses investigando as suas pautas antes de levá-las ao ar. Foi mais ou menos no período de março até o finalzinho de outubro, em 2017. E para publicar essas matérias, João explica que eles tiveram que pensar em criar, de fato, um site. O principal motivo é que o processo de negociação para publicação de matérias em sites que já existe é bem chato. E João conta que, por causa do tema não estar estabelecido dentro do debate da época, era mais difícil ainda. - Então, só fazendo uma digressão rápida, assim: no começo era muito comum os veículos falarem "ah, isso é muito técnico, ah isso é chato, ah não sei o que", então acho que teve uma mudança grande nesse aspecto, de agora os outros veículos procurarem a gente e falarem "nossa, vocês tão vendo esse negócio da carne? Vocês tão vendo esse problema aqui com rótulo, não sei o que". E eles terem entendido que não é um assunto técnico, que é um assunto do dia-a-dia das pessoas. No fim, eles acabaram criando o próprio site, ainda com o mesmo objetivo de andar com o projeto só durante os 6 meses pré-estabelecidos. Só que aí, com toda a repercussão e retorno público, a ACT decidiu que ia ajudar mais um pouquinho com um novo apoio. - O resultado foi muito relevante. E a gente tem a sorte de que é uma organização que entende muito bem qual é o papel do jornalismo, de que sem informação não existe mo- 75 bilização da sociedade. Não existe mudar as coisas de cima pra baixo, por decreto, salvo que você tenha dinheiro pra comprar o processo político. Aí é um pouco mais fácil né, mas acho que não é o nosso caso. E para melhorar o que já estava bom, surgiu na época o Instituto Ibirapitanga, uma organização que se dedica à equidade racial e a sistemas alimentares, ligado à família Moreira Salles. Eles procuraram o João e o Moriti para oferecer apoio também. - E foi assim, foi crescendo a coisa... e acho que o principal ciclo de crescimento se deu no ano passado, quando a gente recebeu alguns outros apoios de outras organizações, e O Joio foi se consolidando como esse espaço de discussão sobre esse assunto da alimentação e do poder privado. Esse último ciclo de crescimento foi bem surpreendente porque começou a aparecer apoio que a gente nem tinha pedido, começamos a ser procurados por várias organizações, e passou a ter um retorno muito maior de leitores e ouvintes também. Então foi um período bem frutífero. Depois de ouvir tudo isso, não quis cometer o mesmo erro da entrevista anterior e perguntei: - O nome, como surgiu? - O nome, a gente ficou quebrando a cabeça sobre o que que a gente tava fazendo. Ficamos vários dias pensando que a gente tava peneirando informação, que a gente tava filtrando informação. E aí finalmente veio essa ideia de que 76 a gente tava separando o joio e o trigo, que é uma figura muito conhecida aqui no Brasil. No fim das contas a gente tava tentando desfazer um pouco da cacofonia que existe em torno da alimentação, de tantas informações perdidas e algumas delas nocivas e tal. E aí foi um nome que quando surgiu fez total sentido pra gente e funcionou bem - Ele explicou. - E o que te levou a trabalhar neste nicho específico da alimentação? Eu gosto muito de saber os motivos, porque esse tipo de coisa sempre surge de uma base mais pessoal. E aí, João me contou que, em partes, o assunto veio justamente de uma fase em que ele começou a prestar mais atenção na sua alimentação. - Acho que o Brasil é um espaço muito privilegiado pra essa discussão, um espaço muito especial. Então, naquele momento eu vinha, eu tinha lido uns livros do Michael Pollan, que é um jornalista muito importante dessa área de alimen