UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” CAMPUS DE BAURU/SP ESCOLAS RURAIS COMO ESPAÇOS FORMATIVOS: vozes de professores que atuaram na região de Borebi/SP CLAUDINÉA SOTO DA SILVA BAURU-SP 2018 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” CAMPUS DE BAURU/SP ESCOLAS RURAIS COMO ESPAÇOS FORMATIVOS: vozes de professores que atuaram na região de BOREBI/SP CLAUDINÉA SOTO DA SILVA Dissertação apresentada ao curso de Pós-graduação em Educação para Ciência da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Bauru - UNESP, para a obtenção do título de Mestre em Educação para a Ciência. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Edneia Martins Salandim BAURU-SP 2018 Silva, Claudinéa Soto da. Escolas rurais como espaços formativos: vozes de professores que atuaram na região de Borebi/SP / Claudinéa Soto da Silva, 2018 153 f. Orientador: Maria Ednéia Martins Salandim Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2018 1. Educação rural. 2. História oral. 3. Formação de professores. 4. História da educação. 5. História da educação matemática. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. Aos meus pais, esposo e filha que independente de minhas escolhas sempre estiveram ao meu lado apoiando e compartilhando todos os momentos. Aos meus amigos, que acreditaram nos meus objetivos e me incentivaram, com palavras de força, fé e coragem. Aos alunos da EMEF Fausto de Marco (Agudos), formandos 2016 que fizeram parte deste período de minha vida e puderam compreender minha ausência, estimulando e motivando a prosseguir. Aos professores depoentes, colegas de profissão, que mesmo diante dos obstáculos, das dificuldades educacionais conseguem enxergar no fim do túnel uma luz e que fazem do espaço da sala de aula um ambiente rico, mágico, cheio de descobertas, proporcionando um espaço de interação no processo de ensino e aprendizagem. AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, que me concedeu forças, muitas foram as pedras encontradas pelo caminho, mas com todas elas construí meus sonhos. Aos meus pais José Carlos e Maria pelo amor, apoio e compreensão. A Zaíne Alícia por compreender minha ausência, por ser minha filha amada e acima de tudo amiga e companheira. Ao meu esposo Josué, por estar sempre ao meu lado nos momentos mais difíceis. As amigas Cinira, Rosa, Beatriz, Sara, Gisele Sebastião, Márcia, Patrícia Priscila, Giovana Biazi, Elaine Gomes, Liliene, Maria Lauris, Priscila Kelly, Regina Bianchi e Lúcia Del Rio pela paciência, compreensão, apoio incondicional e acima de tudo amizade. A Sol, que não poderia faltar aqui, mesmo sendo tão pequenina tem um grande coração e todos os dias me recebe com alegria e amor me mostrando que a felicidade consiste nas coisas mais simples. Aos depoentes: Marisa Bueno, Cleonice F. P. Carlos, Maria C. Gallo, Marilene M. Prado, Aparecida F. Pinto e ao senhor Antônio Carlos Vaca que compartilharam suas experiências, confiando e possibilitando a construção deste estudo. A minha orientadora Professora Doutora Maria Ednéia M. Salandim pelo apoio, paciência, compreensão e orientações. A Banca de Qualificação e Defesa: Professora Doutora Ivete Maria Baraldi e Professor Doutor Felipe Santos Fernandes pelas excelentes considerações. A todos os colegas de trabalho, que não foram citados diretamente, mas que contribuíram com uma palavra, mensagem, gesto e que mesmo com a distância e a correria do cotidiano participaram deste momento tão importante. A todos, meus sinceros agradecimentos. “É experiência aquilo que nos passa, ou que nos toca, Ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação.” Larrosa Bondí RESUMO Esta pesquisa teve por objetivo tecer compreensões sobre escolas rurais como espaços formativos, da região de Borebi- SP dos anos 1980. Para tanto, realizamos seis entrevistas com professores que atuaram em escolas rurais na região de Borebi- SP. A partir dessas narrativas de professores, de estudos da literatura e legislações referentes à educação rural, elaboramos uma análise narrativa (de narrativa) na qual problematizamos esses espaços formativos a partir da formação e atuação de professores dessas escolas, sob um ponto de vista historiográfico. Este estudo está vinculado à linha de pesquisa: Projeto “Mapeamento da Formação e Atuação de Professores de Matemática no Brasil” do grupo GHOEM – Grupo História Oral e Educação Matemática. Os resultados apontaram elementos relevantes que foram tematizados como a formação de professores nestes espaços, a utilização de livros didáticos, a multisseriação, a municipalização do ensino, a urbanização da educação na região de Borebi-SP – uma região de lutas pela reforma agrária. Essa pesquisa é uma contribuição importante e original para a História da Educação Matemática brasileira. Palavras-chave: Educação Rural; História Oral; Formação de Professores; História da Educação; História da Educação Matemática. ABSTRACT This research had as objective to weave understandings about Rural Schools as formative spaces of the Borebi - SP region of the 1980s. Therefore, we performed six interviews with teachers who acted in rural schools in the Borebi- SP region. From these narratives of teachers, studies of literature and legislation concerning rural education, we elaborate a narrative analysis (narrative) in which we problematize these formative spaces from the formation and performance of teachers of these schools, from a historiographic point of view. This study is linked to the research line: Project "Mapping the Training and Performance of Mathematics Teachers in Brazil" of the group GHOEM - Oral History Group and Mathematics Education. The results pointed out relevant elements that were thematized as the training of teachers in these spaces, the use of textbooks, multiseria, municipalization of teaching, urbanization of education in the region of Borebi-SP - a region of struggles for agrarian reform. This research is an important and original contribution to the History of Brazilian Mathematical Education. Keywords: Rural Education; Oral History; Teacher training; History of Education; History of Mathematics Education. Sumário Introdução ............................................................................................................................... 10 1. Reflexões sobre o fazer pesquisa e referenciais ............................................................. 13 1.1 Estruturando um projeto de pesquisa ............................................................................ 13 1.2 História Oral ..................................................................................................................... 17 1.3 Primeiros Contatos ........................................................................................................... 21 1.4 Gravação e edição das entrevistas ................................................................................... 25 1.5 Sistematizando nossas percepções ................................................................................. 29 2. A - cor- dando as memórias... .......................................................................................... 31 2.1 A-cor- dando à Marisa Bueno... ...................................................................................... 32 2.2 A-cor- dando à Maria Célia Gallo................................................................................... 47 2.3 A-cor- dando à Aparecida de Fátima Pinto... ................................................................ 61 2.4 A-cor- dando à Cleonice de Fátima Pereira Carlos....................................................... 72 2.5 A-cor- dando à Marilene Marques Prado... ................................................................... 78 2.6 A-cor- dando à Antônio Carlos Vaca... ........................................................................... 91 3. Esta história entrou por uma porta .................................................................................... E saiu pela outra, ........................................................................................................................ Quem quiser que conte outra.................................................................................................96 3.1 Sobre as cercanias dos anos 1980: compondo um cenário ............................................ 97 3.2 A municipalização e a urbanização do ensino em Borebi ........................................... 104 3.3 Escolas rurais como espaços formativos de professores ............................................. 114 Considerações finais: A- cor- dando à Claudinéa... .......................................................... 130 Referências ............................................................................................................................ 133 ANEXOS ............................................................................................................................... 137 APÊNDICES ......................................................................................................................... 146 10 Introdução Um pouco de minha trajetória... Meu nome é Claudinéa, sou professora efetiva na Educação Básica nos municípios de Agudos-SP, desde 2003 e Borebi-SP desde 2011. Quando concluí o Ensino Fundamental, queria cursar o Magistério, mas em Agudos não havia turmas nas escolas que ofereciam o curso. Dessa forma, soube do CEFAM - Centro de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério - na cidade de Bauru-SP. Prestei um “Vestibulinho” e fui aprovada, cursando o Magistério por quatro anos. Ao terminar o curso me inscrevi para começar a lecionar na Rede Municipal de Agudos, fiquei por alguns anos como professora eventual e posteriormente fui aprovada em um concurso. Sempre gostei de atuar com crianças em fase de Alfabetização, fico maravilhada com a descoberta da escrita e leitura pela criança e a cada palavrinha que ouço na leitura ou vejo na escrita deles sinto que minha missão foi cumprida e isso é muito gratificante. Durante alguns anos lecionei sem ter cursado o curso de Pedagogia. No ano de 2006 decidi procurar uma instituição e iniciar meus estudos, pois na Secretaria de Educação de Agudos já haviam alertado os professores para a necessidade de ter graduação para continuar lecionando. Concluí o curso pela Faculdade de Agudos (FAAG), no ano de 2010. No ano seguinte, prestei concurso para professor em Borebi-SP para o qual já havia a obrigatoriedade de ter o curso Pedagogia. Nesse processo todo havia algo que me inquietava: a Indisciplina na Escola. Eu sempre observava os Sistemas de Ensino nos quais atuava, pois eram realidades diferentes e resolvi fazer uma Especialização, mas queria fazer um curso que atendesse minha necessidade. Em 2014, por intermédio de uma colega de trabalho, soube que a USP- Universidade de São Paulo- Bauru-SP, abriria um curso intitulado “Ética, valores e cidadania na escola” oferecido em parceria com a UNIVESP- Universidade Virtual do Estado de São Paulo. Fiz uma breve leitura sobre o curso e resolvi me inscrever, fiz a prova e consegui ser aprovada. O curso me possibilitou novas aprendizagens, em cada aula aprendi muito e conclui com um trabalho sobre a indisciplina em sala de aula, tema ainda polêmico entre os docentes. Mas, eu não queria parar e fui incentivada pelo professor tutor do curso a tentar o processo seletivo do Mestrado Docência na Educação Básica na UNESP-Bauru. 11 Inicialmente achava impossível, porém fui buscar informações e resolvi me inscrever nos Programas Docência na Educação Básica e Educação para Ciência, ambos da Unesp- Bauru. Fui aprovada nos dois, mas nem tudo acontece como queremos e acabei encontrando alguns obstáculos pelo caminho. Na segunda fase do processo seletivo comecei a ter problemas de saúde e acabei passando por uma cirurgia, já estava prestes a desistir quando observei a classificação e que havia sido aprovada para a terceira fase e isso me inquietou, pois ainda estava hospitalizada. Mesmo assim, não podia desistir na reta final, saí do hospital dois dias antes da avaliação e consegui comparecer para a arguição do projeto e fui aprovada no Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência. Minha proposta de pesquisa inicial era analisar o material do Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, com um olhar para a formação docente indicada por esse material, o qual foi disponibilizado, no ano de 2014, para os docentes do município de Borebi/SP. Tendo em vista que as formações do PNAIC eram repassadas aos docentes por uma professora que participava das orientações em um período de curta duração (uma vez por semana, em duas horas-aula) e percebendo o velho discurso “teoria é distante da prática”, comecei a questionar: Será que os docentes realmente aplicam tais conhecimentos adquiridos nas formações em sala de aula? Quais adequações seriam realizadas, tendo em vista a demanda de alunos provenientes de áreas rurais do município? As necessidades de aprendizagem destes alunos eram contempladas? Esses questionamentos começaram a surgir porque eu observava o número de veículos disponibilizados para o transporte de alunos da área rural para escola urbana do município de Borebi/SP. Essa situação começou a me inquietar e passei a ter outro olhar para a educação rural, devido ao número de alunos que frequentavam a escola urbana e suas necessidades de aprendizagem e, também, porque há no material do PNAIC um livro específico denominado “Educação Matemática do Campo”, mas ainda não percebia isso como um tema para pesquisa. Ingressei no Programa de Pós-Graduação sob orientação da professora Maria Ednéia Martins Salandim e passei a compor o Grupo de História Oral e Educação Matemática- GHOEM, no qual participei de encontros de estudos, ciclo de Seminários e assim, fazendo muitas leituras e debates, fui conhecendo a História Oral e outras pesquisas do Grupo. No início, confesso que me surpreendi e aos poucos fui compreendendo e percebendo as potencialidades dessa metodologia de pesquisa. Assim, nas primeiras sessões de orientação novas ideias começaram a surgir, sendo que minhas reflexões sobre a elaboração e desenvolvimento do projeto de pesquisa narrarei nesse relatório. 12 Estruturamos esse relatório em três capítulos. No primeiro capítulo, Reflexões sobre o fazer pesquisa e referenciais, tratamos mais propriamente de nossas reflexões sobre a estruturação de nosso projeto de pesquisa e ao modo como agimos, metodologicamente, na condução da pesquisa e para a organização de um texto analítico. Em um novo capítulo, A- cor-dando às memórias, apresentamos as seis textualizações das entrevistas com professores que atuaram em escolas rurais em Borebi-SP. No terceiro capítulo, Esta história entrou por uma porta, e saiu pela outra, quem quiser, que conte outra, abordamos elementos disparados pelas narrativas, e os articulamos com a literatura de referência e legislações, como o papel de um livro didático nessas escolas, a multisseriação e a urbanização dessas escolas e como esses elementos nos ajudam a pensar sobre a formação e atuação de professores em escolas rurais na região de Borebi. Para finalizar, apresentamos algumas considerações que não finalizam nossas reflexões, mas que são, nesse momento de conclusão do material para defesa de mestrado, nossas contribuições para História da Educação Matemática brasileira. 13 CAPÍTULO 1 1. Reflexões sobre o fazer pesquisa e referenciais Nesse capítulo trago reflexões, que não são só minhas, mas são junto com meu grupo de pesquisa, sobre o modo como fomos estruturando o projeto e ao modo como construímos e percebemos a metodologia e a análise. Organizar um relatório desse modo foi muito importante para mim, uma vez que pensava que tais considerações não compunham a dissertação. Minhas primeiras ideias, e muitas delas ainda arraigadas nesse texto, era de que devíamos apresentar o objetivo da pesquisa – sem tematizar como se chegou a ele -, tratar da metodologia da pesquisa a partir de autores de referência e formatar a minha pesquisa de acordo com essa Metodologia. Além disso, pensava em apresentar os dados da pesquisa e uma análise fundamentada teoricamente. No entanto, ao ir estudando e exercitando o fazer pesquisa qualitativa, fui tendo novas compreensões sobre o que já havia lido sobre esse tipo de pesquisa e o quão fundamental é o processo nesse fazer. 1.1 Estruturando um projeto de pesquisa Como já dissemos 1 na Introdução a esse relatório, a estruturação do projeto dessa pesquisa deu-se a partir de reflexões que trago sobre minha prática docente e de Especializações que cursei. Com meu ingresso na Pós-Graduação, nas sessões de orientações e nos grupos de estudos e nos debates no GHOEM, me dispus a fazer uma reestruturação do projeto de pesquisa, a partir da percepção de Borebi-SP como potencial para se tematizar a formação e atuação de professores, sem distanciar-se muito de minhas ideias iniciais. Mas, afinal, quem é Borebi? Borebi é, atualmente, um município do interior do Estado de São Paulo, distante cerca de 300 km da capital e 40 km da cidade de Bauru/SP. O mapa, a seguir, nos ajuda a dizer um pouco mais sobre sua localização geográfica. 1 Usarei nesse relatório a terceira pessoa do plural quando o contexto for de uma reflexão mais coletiva com a orientadora ou o grupo de pesquisa e na primeira pessoa do plural quando tratar mais especificamente de reflexões e marcas da pesquisadora Claudinéa. 14 MAPA 1: Mapa do Estado de São Paulo com recorte destacando o município de Borebi. Fonte: Produzido pelo autor baseado em mapa disponível em: https://mapasapp.com/mapa/sao-paulo/borebi-sp/. Acesso em 08 de janeiro de 2018. É um município relativamente novo, criado nos anos de 1990, quando deixa de ser Santa Maria de Borebi - distrito municipal 2 de Lençóis Paulista-SP, passando a chamar-se Borebi - palavra de origem indígena que significa "Poço das Antas" - quando de sua emancipação, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, Lei 6.645, em 9 de janeiro de 1990. Já em 1992 aconteceu a primeira eleição municipal tendo como prefeito a partir de 01 de janeiro de 1993, o senhor Antônio Carlos Vaca, que atualmente (Gestão 2017- 2 Um povoado, que não a sede do município, com maior concentração populacional. 15 2020) é novamente o prefeito municipal e um de nossos depoentes. Com uma área de aproximadamente 350km 2 , é considerado um município de extensão média no Estado, com uma população (em 2017) com cerca de 2.500 pessoas – figurando entre os menos populosos municípios paulistas. O município tem sua economia baseada no plantio e cultivo de cana-de- açúcar, laranja e eucalipto, sendo essas produções controladas por grandes fazendas e grandes empresas. Há conflitos rurais na região, mais intensos a partir dos anos 1990, relativos à reforma agrária, com assentamentos e acampamentos de lutas por novas redistribuições de terras3. Mas a sensibilização para perceber as potencialidades dessa região para uma pesquisa foi lenta. Sou pedagoga e professora que atende e convive, em escola urbana, com estudantes de zonas rurais do município de Borebi que vivem em grandes fazendas, pequenas propriedades de assentamentos rurais ou não e também estudantes que vivem nos acampamentos vinculados ao Movimento dos Sem Terra (MST) – esses últimos com maior instabilidade na frequência escolar, uma vez que suas residências estão à mercê de ordens judiciais de desocupação. Também sabia que a cidade de Borebi foi destacada como uma das menos violentas do Brasil em 2013 com taxa de homicídio zero 4 , associando isso ao fato de ser pouco populosa. Mesmo vivendo todas essas contradições do lugar, a princípio não fazia muito sentido, para mim, problematizar, na pesquisa, esse lugar “tão pequeno”. Aos poucos fui percebendo as contradições da Borebi-SP, com muitas desigualdades sociais, carência de infraestrutura, saneamento básico e escolas nas áreas rurais, principalmente nos assentamentos. Tudo isso foi se tornando mais claro à medida que colocamos nosso foco nas questões educacionais. Passamos a pensar sobre o processo de ensino e aprendizagem dos alunos provenientes das áreas rurais em escolas urbanas atuais e como isso se dava antes, quando havia escolas rurais – se é que existiram – em Borebi 5 . Quais professores atuavam nessas escolas? A quais séries atendiam? Quais eram suas formações? 3 Um estudo sobre esses assentamentos da região pode ser visto em SOUZA, A.L. de, CARMO, M.S do.. Produção Agroecológica e Políticas Públicas no Assentamento Loiva Lourdes- Borebi-SP. Revista Alamedas, Unioeste, campus Toledo, vol. 4, n. 1, 2016. E também em http://www.mst.org.br/2015/08/02/sem-terra- ocupam-fazenda-grilada-pela-cutrale-em-sao-paulo.html 4 Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,sao-paulo-ainda-tem-25-cidades-com-homicidio- zero,1068405. Acesso em 07/01/2018. 5 Atualmente (em 2017) não existem escolas rurais em funcionamento no município ou na região, os alunos que residem nos assentamentos, sítios ou fazendas deslocam-se diariamente até a escola urbana (EMEF Professora Iracema Leite e Silva) para estudar. Essa escola é municipal, atende alunos do 1º ao 9º ano, em regime de colaboração com o Estado, pois o prédio pertence a EE Iracema Leite e Silva, que atende no período noturno alunos do Ensino Médio. Além dessa escola, há no município uma Creche 5 e uma EMEI 5 (Escola Municipal de Educação Infantil) que funcionam em prédios distintos, atendendo a população urbana e rural. O município 16 Desse modo, fomos sendo sensibilizados para a elaboração de um projeto de pesquisa no qual a intenção não seria mais olhar para um material específico, mas problematizar, a partir de narrativas de professores que atuaram com a população rural na região de Borebi/SP, questões relativas a esses espaços formativos, relativos à atuação e formação de professores que neles atuaram. Como as escolas rurais da região foram fechadas antes dos anos 2000, o fim do nosso período de tematização foi determinado, ficando seu início para ser determinado em função do tempo nos quais professores que entrevistaríamos atuaram 6 . Assim, conhecendo os trabalhos desenvolvidos pelo grupo GHOEM, vinculamos esta pesquisa à linha de pesquisa Projeto “Mapeamento da Formação e Atuação de Professores de Matemática no Brasil”, do Grupo História Oral e Educação Matemática, GHOEM. As pesquisas vinculadas a esta linha têm trazido para o debate acadêmico elementos de Educação (Matemática) como formação e atuação de professores em diferentes regiões geográficas, períodos, contextos, cenários, níveis e tipos de escolarização (educação básica, ensino superior, educação rural, ensino técnico etc.). Com Garnica (2013, p.44) fomos compreendendo a ideia desse mapeamento: O mapeamento – ao fim e ao cabo, é um conjunto de narrativas que permitem outras narrativas, num processo constante de criação de narrativas – que propomos é aberto, fluido, de difícil configuração, amplo, dinâmico... e, ainda assim, nos permite compreensões, nos permite elaborar discursos sobre um tema – a formação de professores de Matemática no Brasil – que é mais direção que ponto de partida. É um mapeamento (em sentido amplo) que não se permite a ilusão de mapear (em sentido estrito). Ao ir me sensibilizando com a temática da educação rural, surgiram alguns questionamentos: O que os docentes que atuaram em escolas rurais na região de Borebi-SP podem nos contar sobre esse espaço formativo? Como eles o percebem? Como era estruturado? A qual público atendia? Não há mais escolas rurais no município? Quando foram fechadas? Nesse cenário inicial de sensibilização com o tema, a pesquisa foi sendo elaborado, configurando, em uma versão final, com o objetivo de tecer compreensões sobre as escolas atende diariamente, entre Creche, Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, cerca de 650 alunos que residem nas áreas urbana e rural, nos períodos diurno, vespertino e noturno. Os estudantes de áreas rurais são transportados por peruas e micro-ônibus que prestam serviço à Prefeitura. 6 Embora o município de Borebi tenha surgido nos anos 1990, mantivemos o interesse pela região da hoje Borebi, considerando a década de 1980. 17 rurais como espaços formativos na região de Borebi- SP, a partir de narrativas de professores que atuaram nesse contexto nas cercanias da década de 1980 – uma vez que havíamos localizado uma escola rural instalada nessa década. Vale destacar que nos anos 1980 Borebi ainda era um distrito do município de Lençóis Paulista/SP. 1.2 História Oral . No desenvolvimento dessa pesquisa nos aproximamos tanto da História quanto da História Oral. Sobre a História Oral, uma das primeiras observações que queremos fazer é que aqui a mobilizamos como metodologia para realização de entrevistas para uma pesquisa de viés historiográfico. No entanto, essa metodologia tem sido utilizada para realização de entrevistas para pesquisas sem pretensões historiográficas e mesmo em situações que não envolvem pesquisas acadêmicas, como em entrevistas que visam constituir história de lugares e comunidades. A História Oral criará apenas fontes historiográficas e construirá outras, possibilitando questões geradoras e abordagens de análise. “Por produzir fontes historiográficas, a história oral, mesmo quando utilizada para outros fins que não uma operação historiográfica, estará sempre potencialmente relacionada à escrita da história”. (GARNICA, 2015, p. 41). E o que temos entendido por História? Aprendermos com Garnica e Souza (2012) a diferenciar História como fluxo dos acontecimentos, no tempo, e Historiografia, como registro desse fluxo: como um estudo do homem no tempo e o espaço, vivendo em comunidade. Mas, destacam esses autores que, no entanto, é bastante usual usarmos o termo História no sentido de Historiografia - como também usaremos muitas vezes aqui nesse relatório. Garnica e Souza nos ajudam a refletir sobre a não linearidade do movimento histórico – ao qual temos acesso a partir de resíduos e de questões do presente – e sobre a impossibilidade do registro único do passado. Assim, desenvolvemos essa nossa pesquisa com a ideia de conhecermos sobre os espaços formativos rurais da região de Borebi, a partir de algumas fontes às quais tivemos acesso como livros de ponto de uma escola, fotos, mapa de região dos anos 1990, livros didáticos e, a partir de fontes que constituímos em situações de entrevistas com professores que atuaram em escolas rurais nesse contexto. Realizamos as entrevistas mobilizando referências da História Oral, tanto por estarmos inseridos em um Grupo que vem mobilizando essa metodologia também com essa finalidade, quanto por ir, aos poucos, percebendo e reconhecendo o quão fundamental são as 18 vozes desses professores para nos auxiliarem na compreensão desses espaços formativos que tematizamos. Os pesquisadores que mobilizam a História Oral interessam-se também por grupos e populações coadjuvantes, analisando e compreender a história de outro ângulo, com um olhar mais preciso da realidade. “Utilizada mais comumente na História e nas Ciências Sociais, a história oral traz consigo uma intenção comum a qualquer área que dela se utiliza: a valorização de narrativas orais como fontes de pesquisa.” (SILVA e SOUZA, 2007, p. 141). Assim, Garnica (2015, p. 40-41) afirma que: Os registros de narrativas orais são fontes historiográficas. (...) Narrativas orais tornadas narrativas escritas são fontes historiográficas legítimas. A história oral é um modo de produzir narrativas orais e com essa finalidade tem sido mobilizada por inúmeros agentes, dentro e fora da academia. Na academia ganha contornos mais rígidos, inscreve-se numa determinada ordem de discurso e passa a ser vista como metodologia de pesquisa de abordagem qualitativa. Dessa forma, as narrativas permitem a interpretação livre pelo leitor e possibilitam a aproximação da experiência narrada pelo depoente e a apresentação de informações e significados socialmente vividos e que não foram registrados. Como narrar é uma das maneiras de constituir as coisas (os “acontecimentos”, as “experiências”), o trabalho com as narrativas em história oral, incluindo todos os seus procedimentos, acaba sendo “um exercício de tornar explícitas (ou, de outra forma, menos „racional‟ – sensíveis!)” as “aproximações” com as formas como as coisas são constituídas. (SILVA e SOUZA, 2007, p. 144). Ao narrar, o depoente não apenas descreve o que viveu, mas problematiza-o, passa a perceber o passado e suas experiências. Neste sentido, Martins-Salandim (2007, p. 21) ressalta: O alcance da História Oral é muito maior do que o da autobiografia publicada, pois o pesquisador pode escolher quem entrevistar e o que a ele perguntar. A entrevista ainda possibilita levantar documentos escritos e fotografias cujo acesso, de outro modo, seria sensivelmente mais difícil ou até mesmo impossível. A história oral, conforme apontam Garnica e Souza (2012), enquanto método qualitativo nos permite compreender e constituir registros historiográficos para pesquisas de diversas áreas. “A história oral cria fontes que diversas tramas qualitativas de pesquisa 19 permitem explorar”. (p. 97). Assim, a história oral contribui para o desenvolvimento de procedimentos metodológicos que possibilitam produzir novos conhecimentos que anteriormente não eram valorizados. Martins-Salandim (2007, p. 19) afirma que: A narrativa, além de expressar diferentes dimensões acerca da experiência vivida, também media a própria experiência e configura a construção social da realidade. Por considerarem a subjetividade as investigações narrativas se diferenciam das posturas positivistas que prezam pela defesa de uma ligação entre despersonalização e objetividade, apostando na neutralidade do pesquisador. Podemos afirmar que a história oral é uma metodologia de pesquisa que envolve a criação de fontes a partir da oralidade e analisa coerentemente sua fundamentação, indicando questões geradoras de pesquisa e abordagens de análises. Assim, Alberti, Fernandes e Ferreira (2000, p. 13) ressaltam: O desafio da história oral nesse sentido é mostrar, diferentemente do que costuma ser consagrado, que a memória não é apenas ideológica, mitológica e não confiável, mas sim um instrumento de luta para conquistar a igualdade social e garantir o direito às identidades. A história oral possibilita ao pesquisador interpretar os testemunhos orais, refletindo e analisando as informações, respeitando as memórias dos depoentes. As entrevistas de história oral também permitem explorar aspectos da experiência histórica que raramente são registrados “(...) oferecem uma rica evidência sobre os verdadeiros significados subjetivos, ou pessoais, de eventos passados (...).” (ALBERTI, FERNANDES e FERREIRA, 2000, p. 51). Assim, para nossa pesquisa, foram realizadas seis entrevistas com professores que atuaram com alunos que residiam em áreas rurais no município de Borebi-SP, nas proximidades dos anos 1980. Adotamos alguns protocolos utilizados em História Oral conforme aponta Martins-Salandim (2007, p. 26) “(...) seleção dos depoentes, elaboração de um roteiro para entrevistas, entrevistas gravadas e/ou filmadas, transcrição das entrevistas, textualização, conferências, assinatura de carta de aceite pelos depoentes e análise”. Para a viabilidade desta pesquisa e elencando as discussões e estudos realizados pelo GHOEM- Grupo de História Oral e Educação Matemática utilizamos os procedimentos de seleção dos depoentes, uma sondagem de possíveis entrevistas a serem gravadas que se constituíram como registro da pesquisa, posteriormente a transformação do documento oral em escrito: a transcrição literal, a textualização e a “legitimação” (o documento textualizado 20 retorna aos depoentes para conferência e posterior cessão de direitos de uso pelo pesquisador) e assim, o momento de análise, no qual buscamos a consonância aos objetivos propostos. A realização de entrevista pensada na história oral não possui, portanto, somente o intuito de obter informações acerca de um dado tema, mas coloca- se como um meio de produzir documentos históricos (orais e escritos) a serem disponibilizados ao público, independente de áreas. (SILVA e SOUZA, 2007, p. 157). Dessa forma, ouvir e registrar histórias de professores vai se configurando como essencial nessa pesquisa e para o modo como vamos compreendendo o que é isso a História Oral. Cabe ressaltar o que Martins-Salandim (2007, p. 170) diz: É nesse sentido que concebemos a metodologia de pesquisa História Oral como potencialidade para pesquisas em Educação Matemática, por propiciar compreensões que não seriam possíveis apenas a partir de registros escritos. As fontes, em História Oral, são produzidas não apenas por – ou a partir de – pessoas já consideradas centrais pelos documentos oficiais ou por eles referenciadas, mas por uma vasta gama de atores que vivenciaram uma determinada situação: para a História Oral, todos são atores – e autores – em potencial. As fontes orais possuem informações tão relevantes quanto os registros escritos, portanto, conhecer, interpretar, analisar e refletir sobre as informações que elas nos fornecem podem revelar aspectos que não foram observados socialmente e culturalmente, contribuindo com novos conceitos e conhecimentos historicamente construídos. Alberti (2004, p. 22) ressalta: A experiência histórica do entrevistado torna o passado mais concreto, sendo, por isso, atraente na divulgação do conhecimento. Quando bem aproveitada, a história oral tem, pois, um elevado potencial de ensinamentos do passado, porque fascina com a experiência do outro. Enquanto nos aprofundávamos no referencial da História Oral e sobre sua mobilização em pesquisa já realizadas por membros do Ghoem, realizamos entrevistas com professores que atuaram no município ou na região de Borebi-SP. Por meio de conversas informais entre a pesquisadora e professores da escola na qual atua, alguns nomes de docentes que atuaram em escola rurais foram surgindo, inclusive professores em atuação na escola urbana de Borebi. Dessas conversas, soubemos que já não havia mais escolas em 21 funcionamento em zonas rurais na região e tivemos as primeiras informações de como era a atuação nessas escolas. Tendo realizado seis entrevistas, constituído então, narrativas, negociado com cada depoente o teor da textualização final, iniciamos uma análise dessas fontes visando sistematizar nossas compreensões sobre Educação que vêm sendo praticadas nesse contexto rural, a fim de comunicar significados que produzimos e apresentar aspectos relevantes que possam contribuir com a história da Educação Matemática. Mas antes, vamos apresentar como foram estas etapas. 1.3 Primeiros Contatos Conforme mencionado anteriormente, a pesquisadora teve contatos com alguns docentes que atuaram em escolas rurais da região de Borebi-SP. Assim, pensamos primeiro em perfis de depoentes que, julgávamos, poderiam trazer contribuições para nossa questão de pesquisa. Queríamos ouvir professores que tivessem atuado em escolas rurais, por um período mínimo de 6 meses (excluindo assim aqueles que, porventura, tivessem atuado devido à pequenas licenças do professor da escola); seria interessante encontrar professores que tivessem atuado em mais de uma escola ou em diferentes períodos. Após elencar o perfil dos depoentes, fizemos contatos com professores e funcionários da escola urbana atual e uma das sugestões foi que olhássemos documentos no acervo de registros da escola EE Iracema Leite e Silva (a qual atualmente atende 120 alunos do Ensino Médio no período noturno). Poucos foram os documentos encontrados pois, segundo a diretora 7 , houve um período de fortes chuvas e o local onde tais documentos estavam arquivados foi atingido e quase nada restou. Pudemos ter contato apenas com uma caixa onde estavam guardados documentos de registro de compra do lote onde essa escola estadual foi construída, alguns desenhos manuscritos de parte da escola a ser construída e alguns livros ponto nos quais estavam registrados os horários de entrada e saída dos professores, data e local de trabalho. Diante de poucos documentos, o que chamou mais atenção foi o livro ponto, no qual encontramos nomes de professores e as localidades em que atuavam – uma vez que as escolas isoladas (rurais) eram vinculadas à uma escola urbana na qual já havia a figura do diretor. 7 Rosangela Isabel de Andrade Bueno. 22 Figura 1: Livro Ponto EEPSG Profª Iracema L. Silva- Borebi/SP. Fonte: Acervo da EE Iracema L. Silva- Borebi/SP. 23 Figura 2: Registro de frequência: Profª Marisa Bueno. Fonte: Acervo da EE Iracema L. Silva- Borebi/SP. 24 Nesse registro, encontramos o nome da professora Marisa Bueno, como alguém que atuou na escola rural da Fazenda Turvinho II 8 . De posse do nome da professora, fomos em busca de um contato inicial e foi, novamente, através de conversas informais com funcionários da escola que descobrimos que essa professora atua, na Educação Infantil 9 do município de Borebi-SP. Já no primeiro contato com a depoente, ela citou nomes de outros professores que não constavam no livro ponto que encontramos, mas que haviam atuado em escolas rurais da região. A professora Marisa Bueno foi a primeira entrevista e sua entrevista tornou-se o pilar necessário para encontrarmos outros docentes que atuaram nas escolas rurais da região de Borebi. Ela nos indicou a professora Aparecida de Fátima Pinto, que atua no município de Borebi no Ensino Fundamental, a professora Marilene Marques Prado que atua no Conselho Tutelar de Borebi e a professora Maria Célia Gallo, que atualmente está aposentada e que contribuiu com sua entrevista nos indicando a professora Cleonice de Fátima Pereira Carlos, aposentada e que exerce docência na Educação Especial no município de Agudos e o professor Antônio Carlos Vaca, aposentado e atual prefeito de Borebi- SP 10 . Nosso segundo contato foi o do professor Antônio Carlos Vaca, sendo que, devido suas atividades, tivemos dificuldades para o agendamento para uma conversa inicial e para uma posterior entrevista, uma vez que o contato era sempre com sua secretária e não havia uma disponibilidade na agenda dele para conversamos. Diante disso, enviamos ao professor uma carta de apresentação com os dados da pesquisadora, objetivos da entrevista e interesses acadêmicos, o qual foi entregue na Prefeitura. No mesmo dia recebemos uma resposta, na qual ele solicitava que enviássemos um roteiro – o que fizemos rapidamente –, mas não houve retorno sobre a possibilidade de fazermos a entrevista. Como não recebemos resposta do segundo entrevistado, tentamos contato com outros professores indicados por Marisa 11 através das redes sociais ou pessoalmente. Todos se mostraram interessados em contribuir com a pesquisa e verificamos a disponibilidade de cada um de forma que não tumultuasse a rotina pessoal dos envolvidos, visto que alguns deles ainda atuam na docência. Com as professoras Maria Célia Gallo e Cleonice de Fátima Pereira Carlos, o contato inicial foi através das redes sociais (Facebook e WhatsApp), com a professora Marilene Marques Prado foi por telefone, com Aparecida de Fátima Pinto foi 8 Um mapa com a localização de algumas das fazendas nas quais os professores depoentes atuaram foi inserido no início de cada textualização do capítulo 2 (Mapa 2). 9 EMEI José Leite de Campos. 10 Gestão 2017/2020. 11 Professora Marisa Bueno. 25 pessoalmente e com o senhor Antônio Carlos Vaca entrei em contato com sua secretária por telefone, esclarecendo que estava aguardando uma possível entrevista, visto que já havia enviado o roteiro. Ela me atendeu prontamente e a entrevista foi realizada ao final de todas as outras. 1.4 Gravação e edição das entrevistas As entrevistas foram marcadas em locais e horários definidos pelos depoentes a fim de possibilitar maior comodidade e liberdade para se expressarem. Dois dos depoentes nos solicitaram um roteiro antes da entrevista, a fim de melhor se organizarem com as informações. Embora, concordando com Thompson (1992) que o roteiro deve ser como um mapa na cabeça do entrevistador, para que possa recorrer a ele com segurança, havíamos elaborado uma versão escrita desse roteiro e a qual enviamos aos depoentes que solicitaram. Sendo o momento da entrevista, muitas vezes, preocupante para o pesquisador - uma vez que está produzindo uma fonte histórica, tem uma questão de pesquisa específica que está problematizando, sente responsável pelo bem-estar do depoente, quer ser um bom interlocutor, além de se responsabilizar por todo o aparato de gravação e do caderno de campo – adotamos a postura mencionada por Thompson (1992, p. 257): “Deixo que a entrevista flua. Nunca procuro controlá-la. O menos que se pode fazer é orientá-la e procuro fazer o menor número possível de perguntas (...). Todo o tempo necessário, toda fita necessária e poucas perguntas”. É necessário, portanto, deixar o depoente livre para mergulhar em seu passado e assim, acordar as lembranças, tecendo-as como partes de suas vidas e guardadas em seu íntimo, restando ao entrevistador a tentativa de auxiliá-lo nesse processo, colocando questões, provocações, apresentando artefatos disponíveis e que podem disparar essas lembranças como fotos, recortes de jornal, um livro etc. Este é um momento da produção das fontes é muito importante, uma vez que as narrativas nos possibilitam ir além das informações, elas nos permitem compreendê-las e identificar aspectos que anteriormente não eram tão visíveis à luz de outras fontes históricas. Neste sentido, Garnica (2007, p. 64) conclui: Sempre existirá uma distância entre o que vivo e o que me é narrado como vivido pelo outro. As formas de narrar vão se modificando e o modo de perceber- tanto o que é narrado quanto o modo de narrar- dos sujeitos vão se configurando junto a essas alterações nas formas de narrar. 26 Cada indivíduo terá uma percepção diferente ao se colocar na posição de narrador, principalmente no que diz respeito à experiência, ela não surtirá as mesmas emoções e sentimentos, pois cada um extraiu daquele acontecimento o que foi essencial. Assim, conforme Thompson (1992) a entrevista nos permite obter informações históricas importantes, desde que se tenham os objetivos definidos de onde se pretende chegar. Martins-Salandim (2007, p. 24) reforça que: Compreendemos que, em História Oral, produzimos fontes – registros dos relatos das memórias dos professores – que já nasceram com a intenção de serem documentos, ou seja, foi a partir de indagações de um pesquisador que tal relato materializou-se como parte das respostas as estas indagações. Thompson (1992) afirma que sendo a entrevista uma forma de testemunho, elas contêm informações relevantes, assim como outras fontes. “Essa capacidade de fazer conexões entre esferas distintas da vida constitui uma força intrínseca da história oral no desenvolvimento da interpretação histórica”. (THOMPSON, 1992, p. 327). Assim, como é apontado por Martins-Salandim (2007, p. 21): A História Oral também não deve ser vista apenas como forma de preencher lacunas em trabalhos que utilizaram outras fontes, mas como elemento vital para a constituição de versões dessa história. A entrevista, técnica também adotada em História Oral, nela se diferencia quanto ao uso e abordagem, pois tem como pressuposto que se está produzindo uma fonte, um documento. Assim, fomos percebendo mais claramente a narrativa como uma fonte de informação e problematização relevante e fundamental para nossa compreensão, interpretação e análise histórica. Buscamos tornar nossos objetivos bem claros e definidos também para nossos depoentes, visando estabelecer, para o momento da entrevista, confiança, respeito e diálogo que possibilitam a segurança ao narrar. O momento da gravação é singular, em cada entrevista: alguns mostravam-se ansiosos, outros verbalizavam estar inseguros, outros se mostravam bastante sérios e outros mais descontraídos. Após a realização das entrevistas, elas foram transcritas e textualizadas – uma edição no texto resultante da gravação oral, no qual fazemos adequações para que o texto se torne mais fluido e para que marcar excessivas de oralidade sejam eliminadas. Nas textualizações que produzimos, incluímos notas de rodapé que explicam alguns termos – destacando que 27 zeramos as notas a cada nova textualização visando que cada uma delas possa ser lida isoladamente desse em relação a esse relatório. Incluímos também fotos cedidas pelos depoentes ou que fizemos de materiais por eles cedidos. Também incluímos, no início de cada textualização, uma apresentação do depoente, dos caminhos para encontrá-lo e das negociações para a gravação das entrevistas e das edições dos textos dela decorrentes, além de mapas que nos ajudam a indicar a localização geográfica das fazendas citadas nas entrevistas. A composição do nosso mapa deu-se a partir das informações presentes nas textualizações, e isso é uma diferenciação em relação aos mapas produzidos por Martins- Salandim (2012), para a qual “O objetivo destes mapas /.../ é o de destacar, de um ponto de vista plástico, visual, o campo que percebemos quando de nossos levantamentos iniciais”. Das quinze diferentes fazendas citadas, conseguimos compor um mapa ilustrativo no qual indicamos a localização. Muitas foram as nossas dificuldades para localizá-las: algumas tiveram o nome modificado, outras passaram ou passam por processos de reforma agrária, outras, por sua grande extensão, abrangem áreas de mais de um município, outras pertencem a outros municípios mais distantes etc. Enquanto enfrentávamos esse impasse de localizar as fazendas, pedido também feito pela banca de qualificação, nos atentamos a detalhes de grande mapa do município de Borebi e que está afixado em uma parede da escola na qual a pesquisadora atua – vale destacar que nunca tínhamos sido sensíveis a esse mapa. Os detalhes que nos chamaram a atenção foram de nomes de fazendas no município e outras de seu entorno – algumas delas citadas nas entrevistas. Conversando com a diretora dessa escola sobre o uso de tal mapa pela escola, soubemos que servia para orientar as trajetórias dos motoristas que fazem o transporte escolar no município e para o estabelecimento das rotas de cada um. Como havia uma indicação que tal mapa era do ano de 1994 e como soubemos que fora elaborado pela Prefeitura do município, fizemos contato com a Prefeitura solicitando uma cópia. Essa solicitação movimentou os funcionários da Prefeitura, uma vez que o original do mapa não foi encontrado: eles então fizeram uma cópia do exemplar disponível na escola e nos entregaram um arquivo em CD e uma versão impressa em formato real. Posteriormente, fomos por eles informados de que uma atualização desse mapa está, agora, em andamento. Para compor nosso mapa, nos valemos de informações e a base de um mapa disponível na página http://www.igc.sp.gov.br/produtos/divisao_municipal.html, do Instituto Geográfico e Cartográfico (IGC) do Estado de São Paulo, o qual está disponível para download e que traz todos os municípios paulistas. Fizemos um recorte desse mapa e 28 mantivemos apenas os municípios do entorno de Borebi, aos quais pertencem as fazendas citadas nas entrevistas: Borebi, Agudos, Bauru, Iaras, Lençóis Paulista, Paulistânia, Cabrália Paulista e Piratininga. Nesse recorte, fomos inserindo números, inspirados em Martins- Salandim (2012), para indicar a localização, aproximada, de cada fazenda, a partir do mapa de Borebi que encontramos. Os nomes dessas fazendas foram indicados na legenda do nosso mapa. A ordem da numeração deu-se de acordo com a ordem com que os nomes das fazendas aparecem no conjunto das narrativas, sendo que repetimos um mesmo mapa em todas as seis narrativas, uma vez que elas podem ser lidas em ordem aleatória, e, inclusive, desvinculadas desse relatório. As textualizações, ainda sem a inclusão dos mapas que foram inseridos antes de cada uma delas, foram devolvidas aos entrevistados para adequações, quando enviamos também uma carta de cessão de diretos sobre o áudio e a textualização para serem assinadas pelos depoentes. Fizemos um esforço de esclarecer cada etapa aos depoentes a fim de que nenhuma dúvida se tornasse um obstáculo para ambos, depoente e pesquisador, explicando que apenas a textualização seria publicada no corpo da dissertação. Sobre a produção e concordância com a textualização, Souza (2006, p. 45) diz: A noção de textualização coloca-se aqui como transformar em texto (escrito) e envolve dois momentos distintos: a transcrição (que fixa pela escrita os dizeres, pausas, entonações e vícios de linguagem, aproximando-se ao máximo do registro do oral) e a textualização, propriamente dita, que seria o processo de transformar o discurso em uma narrativa mais corrente (com ou sem o estilo pergunta-resposta) e sem os vícios que marcam a espontaneidade das construções nos momentos de fala. Um trabalho conjunto é efetivado, nesse processo, com a negociação quanto a este último texto, possibilitando correções, inserções e reformulações. A concordância com a versão final a ser disponibilizada tem sido registrada por meio de cartas de cessão assinadas pelos entrevistados (cuidado comum entre historiadores) ou garantida pela construção de uma relação de confiança e harmonia entre pesquisador e entrevistado (como tem sido feito por alguns sociólogos). Alguns depoentes solicitaram um período maior para conferência das textualizações e mostraram-se preocupados com o conteúdo, incluindo e excluindo trechos. Outros, porém, solicitaram agendarmos horário para detalhar melhor alguns tópicos que julgaram relevantes e que precisavam ser apontados na entrevista. Com a professora Marisa, tivemos outros encontros nos quais ela nos auxiliou com nomenclaturas e localização de algumas fazendas citadas no conjunto de textualizações. Todos os depoentes assinaram a carta de cessão de 29 direitos e ainda se colocaram à disposição para esclarecimentos. Essas cartas constam como apêndices desse relatório. 1.5 Sistematizando nossas percepções Durante a realização das entrevistas, edição das textualizações e leitura dessas narrativas resultantes, foi possível observar alguns elementos que se destacavam em todas elas e outros muito particulares de uma dada entrevista, além de anseios e dificuldades encontradas pelos depoentes ao lecionar em escolas rurais. Assim, recebidas as textualizações já conferidas pelos professores depoentes, estávamos amadurecendo um modo de analisar esse material, tendo em vista nossa questão de pesquisa. A nós, alguns elementos das narrativas já iam sendo ressaltados à medida que gravávamos as entrevistas ou quando a textualizávamos, como por exemplo, o acesso e o papel do livro didático de Matemática nessas escolas, a precariedade predial, as dificuldades de acesso à escola – muitos desses elementos já destacados por Martins-Salandim (2003), quando entrevistou professores que atuaram em escolas rurais, também do estado de São Paulo, nas décadas de 1950, 1960 (nessa nossa pesquisa estamos com foco em período nas cercanias dos anos 1980). Mas como sistematizar nossas percepções a partir de alguns elementos particulares e outros comuns nas narrativas? Mobilizando as ideias de Cury (2013), começamos a pensar em como elaborar a nossa narrativa: (...) contar uma história, narrar-se é contar nossa história ou uma história da qual também somos, fomos ou nos sentimos personagens. As narrativas, então, oferecem em si a possibilidade de uma análise, se concebermos análise como um processo de produção de significados a partir de uma retroalimentação que se iniciaria quando o ouvinte/leitor/apreciador de um texto se apropria deste texto, de algum modo, tecendo significados que são seus, mesmo que produzidos de forma compartilhada, e constrói uma trama narrativa própria que será ouvida/lida/vista por um terceiro, retornando ao início do processo. (CURY, 2013, P. 160). As narrativas trazem uma tessitura de informações que podem ser interpretadas conforme os objetivos do leitor. “O método narrativo de conhecimento parte do princípio de que as ações humanas são únicas e irrepetíveis. Sua riqueza de matizes não pode, então, ser exibida em direções, categorias ou proposições abertas”. (CURY, 2013, p. 164). 30 Conforme Cury (2013), a análise narrativa (de narrativa) abre para a possibilidade de uma nova narrativa a partir do produto da análise, apresentando elementos comuns que tornam os dados significativos. Neste tipo de análise o pesquisador constituirá significados às experiências dos depoentes, buscando aspectos unificadores e de alteridade. “E tal análise não será tomada como um julgamento de valor do outro a partir do que foi relatado, mas como um arrazoado das compreensões em uma trama de escuta atenta ao que foi dito sem fixar um cenário definitivo”. (CURY, 2013, p. 158). Para Martins-Salandim (2007, p. 19): Esses professores-depoentes, nossos colaboradores, permitem que, a partir de suas narrativas, uma outra narrativa seja constituída: uma narrativa em interlocução, trama em que se mesclam memórias e outros tantos resíduos filtrados pelo tempo, e em cuja elaboração opera o passado vivido pelo sujeito e o presente que re-elabora e situa, ao mesmo tempo, depoentes e pesquisador. Assim, iniciamos a escrita de nossa narrativa, contemplando as problematizações que fizemos a partir de alguns elementos que percebemos como relevantes nas narrativas para tecer compreensões sobre a educação no meio rural na região de Borebi/SP dos anos 1980. É a partir destes elementos e de suas problematizações que estamos compondo essa história: anseios e dificuldades dos professores; estratégias para ensinar na escola rural, com destaque aqui para a mobilização do livro didático; a municipalização da educação em Borebi; a formação de professores que atuaram nas escolas rurais e as turmas multisseriadas. No capítulo seguinte apresentaremos as narrativas dos seis professores na ordem em que elas ocorreram. 31 Capítulo 2 A - cor- dando as memórias... O ato de narrar está, portanto, entre as faculdades humanas mais antigas e é instrumento importante de sobrevivência, mas também de transmissão e preservação de heranças identitárias e de tradições, sob a forma de registro oral ou escrito, caracterizando-se, principalmente, pelo movimento peculiar de contar, transmitir com palavras as lembranças da memória no tempo. (CURY, 2013, p. 153) Neste capítulo apresentaremos as narrativas dos professores que contribuíram com esta pesquisa. Optamos por usar a palavra “a-cor-dando” separada, com o intuito metaforicamente de ir além do sentido de despertar, mas de dar cor, dar vida às memórias dos depoentes, pois cada um tem sua particularidade e, as experiências, não são as mesmas para os diferentes indivíduos. Assim, para cada entrevista apresentada utilizaremos o termo: “A- cor- dando” precedido do nome do depoente, valorizando suas memórias como algo histórico, constituído de vida. 32 2.1 A-cor- dando à Marisa Bueno... “Gosto muito de estar com minha família, amo a natureza e passei esse amor aos meus filhos. Nas horas vagas cultivo mudas de árvores frutíferas, minhas orquídeas, cactos e suculentas...” Marisa Bueno atuou na escola rural da Fazenda Turvinho II: seu nome constava nos poucos arquivos que restaram na escola estadual EE Iracema Leite e Silva de Borebi-SP – escola na qual atua, 2017, como professora da Educação Infantil da rede municipal de ensino (em um mesmo prédio funcionam duas escolas – uma vinculada à rede municipal e outra à rede estadual de ensino). Conseguimos marcar uma apresentação inicial em horário de ATPC- Aula de trabalho pedagógico coletivo, para que pudéssemos esclarecer os objetivos e as contribuições que a entrevista iria proporcionar para a pesquisa acadêmica. Dessa forma, a professora pontuou algumas questões sobre sua atuação na escola rural do Turvinho II e percebemos que ela se enquadrava nos perfis de depoentes que havíamos estabelecido. Inicialmente a professora não acreditava que sua história seria importante, mas aceitou marcarmos uma entrevista. A entrevista foi realizada na escola em que a docente atua, de acordo suas disponibilidades de horário. Solicitamos autorização da direção e agendamos a entrevista. No dia e horários marcados, me desloquei até o local combinado e percebi muito nervosismo por parte da depoente, nos dirigimos a uma sala fornecida pela direção da escola para a entrevista, após ligar o gravador esse nervosismo aumentou, ela começou a falar sempre na direção do gravador e observando que estava tensa, tentei deixa-la mais à vontade, demonstrando-lhe liberdade para se expressar. Após este momento de tensão notei que a depoente já estava mais tranquila para narrar sua história. Como aponta Larrosa (2002, p. 21): “A experiência é o que nos passa, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca.” Observei que a depoente se expressou como o autor destaca, pois, ao narrar sua história havia um certo contentamento, alegria e um brilho nos olhos em poder compartilhar momentos que podiam ter sido esquecidos no tempo e no espaço, ela narrava com ternura, saudades e demonstrando toda alegria de poder ter vivido aqueles momentos, deixando-se encantar pelas memórias daquele período. A seguir, apresentamos um mapa da região geográfica de Borebi, na qual indicamos várias das fazendas citadas na textualização dessa entrevista, a qual inicia-se logo após. 33 Mapa 2- Ilustrativo: Localização de Fazendas na região de Borebi-SP. 1- Fazenda Turvinho II 2- Fazenda Santo Antônio do Caçador 3- Fazenda Luna (** Divisa Borebi/ Iaras) 4- Fazenda Capim (** Divisa Borebi/ Iaras) 5- Fazenda Santo Henrique 6- Fazenda São José (* Não identificada a localização correta no município). 7- Fazenda Santa Izabel 8- Fazenda Geada 9- Fazenda Água do segredo 10- Fazenda Santa Rita de Cássia 11- Fazenda Espadilha 12- Fazenda Santo Antônio (* Não identificada a localização correta no município). 13- Fazenda Jiboia (* Não identificada a localização correta no município). 14- Fazenda Globo ou Sobar 15- Fazenda Aripa (* Não identificada a localização correta no município). Fonte: Produzido pelo autor baseado em mapa disponível em: http://www.igc.sp.gov.br/produtos/divisao_municipal.html. Acesso em 29/01/2018 e https://www.google.com.br/maps/@-22.6256128,-47.9554795,8.13z. Acesso em 01/04/2018. http://www.igc.sp.gov.br/produtos/divisao_municipal.html https://www.google.com.br/maps/@-22.6256128,-47.9554795,8.13z 34 Meu nome é Marisa Bueno. Comecei a trabalhar, em 1985, na escola particular Prevê- Bauru como secretária onde também fiz o Magistério. Logo após, continuei substituindo aulas no município de Borebi-SP 1 e em 1993 surgiu a primeira classe em zona rural, nesse município, para eu lecionar. Fiquei com um pouco de receio por ser distante, aproximadamente 45 km da cidade, mas assim mesmo fui conhecer e gostei. Assumi e lá eu fiquei de 1993 a 1998. O nome da fazenda é Turvinho II 2 , fica no município de Borebi-SP e é propriedade da Lwart 3 . Lá era uma escola multisseriada, onde tinha 1ª, 2ª, 3ª e 4ª série, aquele tempo ainda era série e os alunos iniciavam sem fazer a pré-escola. Figura1: Escola da Fazenda Turvinho II- Borebi/SP Fonte: Acervo da pesquisadora. Era bem difícil: tinha que ensinar desde pegar no lápis, desde o rabiscar até escrever o nome, mas eles se desenvolviam rápido. A maioria tinha vontade de aprender, não tinha muito problema de indisciplina, eles ajudavam até na merenda: lavavam, cortavam os legumes, ajudavam preparar, lavavam a louça da merenda, cada um lavava seu prato, seu talher, seu copo e era bem gostoso. 1 Município brasileiro do estado de São Paulo, com população estimada em 2,5 mil habitantes. Possui uma área de 348 mil km 2 , faz divisa com os municípios de Avaré, Iaras, Agudos e Lençóis Paulista. 2 Fazenda Turvinho II, possui extensão territorial de 27 mil hectares. O Grupo Lwart ao adquirir a propriedade denominou-a Turvinho II devido ao fato do Rio Turvo passar pela propriedade, a principal atividade econômica é o cultivo do Eucalipto. Anexo, recorte do Mapa 2 com localização da Fazenda Turvinho II. 3 Grupo Lwart com sede no município de Lençóis Paulista-SP atua na área de coleta e refino de óleos lubrificantes usados e na produção de celulose de mercado. 35 Eu trabalhava sozinha na Turvinho II, não tinha auxiliar, era sozinha mesmo. Eu tinha todas as funções, desde fazer a merenda, limpar a escola; geralmente, a gente limpava às sextas-feiras, após o recreio. Quem não queria ajudar ficava brincando, eu sempre levava uma caixa de brinquedo, de jogos pedagógicos, os meninos jogando bola, e as meninas e meninos que queriam, participavam da limpeza. No início foi um pouco difícil, porque não tinha uma escola com prédio próprio, trabalhei na área da sede da fazenda, enquanto isso o administrador e os funcionários foram reformando e transformando uma casinha em escola, depois ficou muito bom. Eles construíram três banheiros, um quarto para eu dormir e uma cozinha. Eu dormia lá, era muito distante, 45 km, vinha embora na sexta-feira. Quem me levava era o motorista do caminhão com o qual eu pegava carona, um caminhão da Lwart. Eu ia de carona, com um veículo da prefeitura que seguia para Botucatu-SP 4 , até a Lwart e de lá o caminhão me levava junto com os tratoristas para trabalhar. Eu ficava lá a semana toda e na sexta-feira eu voltava de carona com um caminhão de madeira. À tarde, às vezes, eu ganhava um dinheirinho extra: quando tinha pouco caminhão eu media o caminhão, eles mesmos mediam, mas eu fazia a nota para Lwart e ganhava um dinheiro extra, muitas vezes à tarde, período que eu estava de folga. Em 1995 eu comecei a faculdade em Aparecida de São Manoel 5 . Eu ia com a perua que levava estudante até Lençóis Paulista 6 e de lá eu pegava um ônibus de Agudos 7 , na rodovia, e seguia para faculdade onde eu fiz Pedagogia. Mesmo assim, eu continuei lecionando na fazenda, eu lecionava pela manhã, fazia Pedagogia à noite e voltava para fazenda à noite. Eu saía da fazenda, seguia para a faculdade e voltava para a fazenda, às sextas-feiras voltava para Borebi, mas passava em Agudos. Eu voltava com o ônibus do Mirtão 8 , que era um ônibus que fazia o transporte de Agudos até Aparecidinha, e em Agudos eu esperava o ônibus que vinha de Bauru 9 ou eles me esperavam: quem chegasse primeiro esperava e dava certo. Daí vinha para casa, como não tinha carro era só de carona mesmo. Não era fácil não, mas deu tudo certo. Quando eu tinha que fazer algum 4 Município brasileiro localizado no centro do estado de São Paulo, área de 1, 5 mil Km 2 , com população de 140 mil habitantes. 5 Distrito pertencente ao município brasileiro do estado de São Paulo, São Manoel. 6 Município brasileiro localizado no estado de São Paulo, com população estimada em 67 mil habitantes e com extensão territorial de 810 mil Km 2 . 7 Município brasileiro localizado no estado de São Paulo, com população de 37 mil habitantes e extensão territorial de 997 mil Km 2 . 8 Motorista e proprietário do ônibus que transportava estudantes de Agudos-SP até o distrito de Aparecida em São Manoel/SP. 9 Município brasileiro, localizado no estado de São Paulo, com população de 370 mil habitantes e extensão territorial de 668 mil Km 2 . 36 trabalho ou alguma coisa da faculdade eu sempre entrava no grupo de Agudos. Porque era mais fácil eu me locomover até Agudos do que até outra cidade. A escola que eu trabalhava, na Turvinho II, era uma casinha pré-montada, de madeira - antigamente essa era a casa do administrador da fazenda - eles tiraram as paredes da sala e de um quarto e montaram uma sala de aula, pois antes eram dois quartos, sala, cozinha e banheiro. O banheiro eles tiraram uma porta que era para sala e fizeram porta de acesso para o quarto, uma suíte para eu ficar lá. Do lado da cozinha, eles cortaram um pedacinho da cozinha e fizeram dois banheiros. Nós fizemos um refeitório, onde eles tomavam a merenda. O pátio era um grande gramado, uma área em frente da escola. Nesse gramado eu dava as aulas de Educação Física. Eu também dava aula de Arte, de tudo - não tinha outro professor especialista. A merenda era preparada todos os dias, a prefeitura mandava. Mas não tinha condições da prefeitura ficar mandando os alimentos, então nós fizemos uma horta. A Lwart designava um funcionário para fazer a horta, eles adubavam, o resto era com a gente: manter o canteiro e replantar era eu e os alunos mesmo e dali a gente tirava cenoura, às vezes os alunos iam lá e eles adoravam comer cenoura. Era o que eu lembro que eles mais gostavam da horta, e nunca tinha cenoura para merenda, não chegava produzir, porque os alunos comiam a cenoura pequenininha. Esta escola era vinculada à EMEF Iracema Leite e Silva 10 de Borebi, da diretoria de ensino de Lençóis Paulista - já era vinculada a esta escola, porque nessa época Borebi não era mais distrito 11 . Lá eu tinha vários níveis de aprendizagem, não tinha educação infantil, era a partir da 1ª série, mas eu tinha que ensinar a parte da educação infantil também, porque eles chegavam sem nenhuma noção da escrita. Eu tive um aluno que me marcou muito. Ele chegou lá na 2ª série, ele já era repetente da 2ª série (não era ano), ele fez a 2ª, 3ª e 4ª série. Quando ele veio para Lençóis Paulista fazer a 5ª série, ele fez uma provinha, passou em primeiro lugar e ganhou um curso de informática - naquele tempo era o auge, era caríssimo. Ele ganhou porque ele foi o primeiro aluno da sala, ele ficou comigo por três anos. Cheguei a ter mais de 40 alunos, porque naquele tempo não desmembrava a turma, depois é que começou a desmembrar. A Neia 12 foi diretora durante a maior parte do tempo, faziam visita e a Edneia (Neia) foi só uma vez, quem ia muito era a supervisora Maria 10 Escola municipal de Ensino Fundamental do município de Borebi-SP. 11 Borebi-SP foi distrito de Lençóis Paulista-SP até 09 de Janeiro de 1990 (Lei estadual nº 6.645/90) quando o município foi criado. 12 Ednéia Padilha, diretora da EMEF Iracema Leite e Silva. 37 Teresa 13 de Lençóis. Ela comparecia todos os anos e falava para Neia que estava tudo em ordem, o único problema era a estrada. Eu fazia a parte de matrícula e trazia os documentos das crianças para tirar cópia aqui e retornava para os responsáveis. Os alunos não tinham acesso, vinham aqui na cidade uma vez por ano, na semana das crianças: no começo era na semana das crianças, mas depois eu falei para o Vaca 14 - aquele tempo ele era prefeito - para deixar passar essa época, porque a gente visitava o zoológico, o shopping e o aeroporto. Fazíamos os três passeios num dia só em Bauru. Então os alunos aproveitavam bem, não tínhamos problemas de horário, porque à tarde eu estava livre e íamos aos três lugares e eles não davam trabalho. Eu sempre levava duas mães, porque elas também não conheciam, para elas era interessante. Eu combinava de irem duas mães para ajudar a olhar as crianças e também para elas conhecerem o zoológico que era novidade para elas, não tinham carro nada. Era bem legal o passeio. As crianças eram carentes e a merenda, quando sobrava, geralmente eu pedia para eles trazerem uma latinha ou uma vasilha - geralmente levavam latinha de leite ninho ou chocolate - para levar o restante da merenda. Havia uma família de uma fazenda chamada Pinus Pires 15 que eles trabalhavam na coleta da resina do pinho e essa resina não dava muito dinheiro. Eles tinham muita dificuldade financeira, às vezes tinha umas aluninhas que falavam: “Tia, à tarde só tinha farinha para a gente comer”. Então, o que sobrava da merenda eles levavam para comer com a família, tratar dos outros irmãos. No começo eu tinha um pouco de dificuldades, mas como eu também estudei em fazenda, eu já conhecia o ritmo, já sabia como era. Eu estudei na Fazenda Boi Pintado 16 e na Fazenda Santo Antônio do Caçador 17 , que ficam na região de Borebi. Fiz até o terceiro ano no sítio - o primeiro, segundo e terceiro, não fiz educação infantil, naquela época no sítio não se fazia. Quando eu estudei tinha que levar o lanche, que geralmente era uma marmitinha. Ia a pé, atravessava rio, corria de vaca brava que tinha na estrada. A gente ia atravessando no meio de sítio, de fazenda para chegar na escola. Quando fui trabalhar na fazenda, era o mesmo sistema de quando eu estudava, não mudou muito, só que no meu tempo de aluna não tinha o quarto ano, ou melhor, a quarta série. Na escola era primeira, segunda e terceira série, eu não fiz a 4ª série, isso é novidade - 13 Maria Teresa da Silva Coelho Jacon, supervisora de ensino que inspecionava as escolas rurais do município de Borebi-SP. 14 Antônio Carlos Vaca, prefeito do município de Borebi-SP. 15 Fazenda localizada na região de Borebi-SP, cuja economia era a extração de resina. 16 Fazenda localizada no município de Borebi-SP. 17 Fazenda localizada no município de Borebi-SP. 38 acho que quase ninguém sabe disso, mas eu não fiz a 4ª série. Perdi meu pai aos 10 anos, eu tinha só a 3ª série, então eu fui trabalhar em Botucatu, numa casa de família como babá e nessa época eu já tinha 11 anos. Voltei a estudar à noite e fui trabalhar durante o dia como babá de três crianças: eram duas gêmeas e uma menininha com um ano de diferença, as gêmeas eram recém-nascidas. Eu fiz uma prova de reclassificação escolar e passei, uma não, eram quatro provas, naquela época era uma redação, uma prova de Língua Portuguesa, de Matemática e uma que não me lembro muito bem, eu acho que englobava Geografia, História e Ciências. Passei! Lembro que fui elogiada na redação, foi excelente minha redação e comecei a fazer Supletivo 18 da quinta série em Botucatu, no Cardoso de Almeida 19 . Era uma escola boa, tanto é que lá eu fiz a quinta, sexta, sétima e na sétima série eu fiquei para recuperação em Matemática, por causa de 0,25 pontos o professor me deixou. Que absurdo! Mas na época valia tudo, né. Ele me deixou de exame, fiz e graças a Deus passei, não tive problema e vim para Bauru morar com a minha prima e trabalhar de babá para cuidar da minha priminha e continuei estudando. Fiz o Supletivo no Prevê Objetivo 20 e terminei o primeiro e segundo grau. Como não saí com nenhuma formação, o que eu ia fazer? Eu gostava muito do Magistério, sonhava desde pequena em ser professora. Então eu fiz, no Prevê Objetivo, o terceiro e quarto ano do Magistério Especial 21 e lá mesmo eu fiquei empregada. Trabalhei dois anos no Prevê Objetivo, na escolinha como auxiliar de sala 22 , eu não pagava porque eles me contrataram. O Supletivo eu pagava, mas quando comecei a fazer o Magistério me deram uma sala de aula sem eu ser formada, foi um desafio grande, mas deu tudo certo, depois comecei a lecionar. Comecei a substituir aqui em Borebi mesmo, quando faltava professor, teve greve e, às vezes eu dava aula pela manhã, à tarde e à noite, porque aqui também tinha Supletivo - mas tinha outro nome, não lembro o nome 23 . A professora do Supletivo faltava bastante, principalmente às sextas- feira. Para mim era ótimo, pois eu dava aula de manhã, à tarde e à noite, às vezes lançavam aulas para o outro dia. Quando entravam em greve era ótimo! Porque eu trabalhava o mês inteiro, substituía os professores, eu comecei aqui como eventual. Eu me formei em 1986 e comecei no Prevê 18 Modalidade de ensino que compreende a base nacional comum do currículo, habilitando ao prosseguimento dos estudos em caráter regular. Art. 38- LDBEN 9394/96. 19 EE Cardoso Almeida, localizada no município de Botucatu- SP. 20 Escola privada que oferecia cursos supletivos de 1º e 2º Graus. 21 Segundo a professora, os alunos que cursaram o Ensino Médio, faziam dois anos de aperfeiçoamento para o Magistério (3º e 4º ano) com disciplinas específicas (Didáticas e Metodológicas). 22 Auxiliava as professoras em sala de aula e as substituía, e auxiliava na secretaria da escola com a documentação. 23 EJA-Educação de Jovens e adultos; 39 Objetivo em 1985, trabalhei lá antes de me formar, só que eu não era registrada. Naquele tempo podia trabalhar sem registro, depois de dois anos trabalhei com registro. Quando me formei passei a trabalhar dois períodos no Prevê Objetivo. Em 1989 eu vim para Borebi - como começaram a subir as mensalidades - a diretora retirou um período meu, fiquei só um período. Como eu pagava aluguel de casa, passagem de ônibus para trabalhar, o custo de vida ficou muito alto e difícil, então eu pedi a conta e vim substituir em Borebi. Fiquei com um pouquinho de medo, porque lá era Educação Infantil e aqui Ensino Fundamental. Eu só queria substituir primeira e segunda série, depois comecei a substituir a quarta série. Um dia teve uma licença, era minha vez de pegar na atribuição, era uma licença de agosto até o final do ano. A professora da sala tirou licença maternidade, era de uma quarta série, e até a Leila 24 falou: “Marisa você vai pegar”. A sala era da filha dela, a Rúbia 25 , olha que responsabilidade. Insisti: “Eu não quero Leila, eu não vou dar conta”. E ela dizia: “Não, você vai, é a sua vez e você está preparada”. Tinha um diretor na época, com necessidades especiais, ele era deficiente físico, tinha um braço só, não lembro o nome dele e ele dizia: “Você vai, eu te ajudo”. A Heleninha 26 também falou “Eu te ajudo também”, ela é cunhada da Lucia 27 . No começo eles me ajudaram e deu tudo certo. Foi uma ótima experiência, acho que isso foi em 1992. Em 1993 peguei aula na escola rural e fiquei 1994, 1995, 1996, 1997 e 1998 foi meu último ano na Turvinho II 28 . A Marilene 29 assumiu em 1999. Em 1996 eu tive um aborto e como abortei de quatro meses tive direito a quinze dias de licença e nesses dias não teve aula, porque não tinha professor que me substituísse e pela distância ninguém quis substituir. Depois que passou o período da licença me chamaram na escola e falaram se eu queria me substituir aos sábados, para os alunos não perderem esses dias, como uma reposição de aulas. Eu fui, dava aula de segunda a sábado, sábado era para repor a licença. De segunda a sexta eu trabalhava normal e aos sábados eu me substituía e ganhava essas aulas aos sábados à parte. Na escola da Turvinho II estudavam alunos das fazendas vizinhas: o perueiro passava e os levava. A maioria era de acampamento, o pessoal trabalhava no corte da 24 Leila Ayub Vaca, primeira dama do município de Borebi-SP, Gestão 2017- 2020. 25 Rubia Maria Ayub Vaca, filha do prefeito do município de Borebi-SP. 26 Helena M. C. F. Daniel, professora que atuava na unidade escolar de Borebi-SP. 27 Lucia Ângela Del Rio Daniel, secretária da Educação do município de Borebi-SP, Gestão 2017-2020. 28 A fazenda recebeu este nome, devido ao fato do Rio Turvo passar pela propriedade, portanto o Grupo Lwart ao adquirir a propriedade denominou-a Turvinho II. 29 Marilene Marques Prado, professora que atuava na unidade escolar de Borebi-SP. 40 madeira, a família toda trabalhava no corte da madeira, matando formiga, trabalhava no eucalipto para a Lwart. Eles eram contratados temporários, prestavam serviço e moravam no acampamento, que era como faziam os do Movimento dos Sem-terra, mas não eram do movimento, prestavam serviço para a Lwart. Eles ficavam lá por muitos anos, e como havia muitas fazendas vizinhas e tinha veículo que os levava para o campo para trabalhar, a maior parte dos alunos eram da Turvinho II. Os acampamentos eram bem precários, a casinha de madeira coberta com telha, a água era encanada de uso coletivo e abastecia todas as casinhas. Não tinha água dentro dos “barraquinhos”, era uma torneira para todos. O banheiro era aquela casinha de madeira com um buraco no chão sem vaso sanitário, a fossa 30 . Quando enchia uma, fechava, abria outra. Geralmente, duas ou três famílias faziam uma casinha e usavam até encher. Raramente as famílias iam embora, ficavam sempre os mesmos lá. Eles tinham vários filhos de idades diferentes. Então, quando um saía da escola entrava o outro irmão, era o que mantinha a escola aberta. Eu fiquei seis anos trabalhando lá e na divisa de Borebi e Iaras 31 , em 1996 ou 1997, começou o movimento do MST 32 na região. A gente ficava um pouco assustada, porque eles destruíram o reflorestamento da Lwart, invadiram fazendas, a Luna e a Fazenda Capim 33 que eram bem próximas também. Eu fiquei com um pouco de receio, porque era gente de fora que veio e eles estudaram um ano comigo na Turvinho II, outros foram estudar em Iaras. Os integrantes do MST ficavam acampados na estrada, depois começaram a derrubar o eucalipto e a entrar na fazenda. Naquele tempo ninguém mexeu com eles, deixou lá, a Lwart até tentou tirar, em vão. Passou um ano, eles foram para a Fazenda Capim, até eles conseguiram se estabelecer lá, mas foi um processo muito lento, era bem o início do MST, estão até hoje lá, agora chama-se Assentamento Zumbi dos Palmares e uma parte ficou Fazenda Santo Henrique. O maior desafio para mim neste período, foi quando um trator passou, chacoalhou uma árvore, um enxame de abelhas se espalhou e entrou na escola. Nós entramos embaixo das mesas, das carteiras, mas mesmo assim as abelhas ferroaram um menino. Ele era alérgico e começou a inchar. Esse foi o maior medo que passei lá na fazenda, falei para o rapaz da 30 Buraco feito no chão, substituindo vaso sanitário, feito em lugares sem rede de esgoto. 31 Município brasileiro localizado no estado de São Paulo, com população de 6 mil habitantes e extensão territorial de 400 mil Km 2 , faz divisa com o Borebi/SP. 32 Movimento dos trabalhadores rurais sem terra- MST, movimento social brasileiro. 33 Fazendas localizadas no município de Borebi-SP, divisa com Iaras. 41 perua: “Vamos levar, vamos entregar as crianças agora e ir na casa da mãe dele, pegá-la e levar para Lençóis Paulista/SP, no consultório médico”. Nós fomos ao médico, a mãe dele estava trabalhando e não quis parar o serviço para acompanhar. Eu pedi os documentos para a irmã dele e o levamos até o posto de saúde em Lençóis Paulista/SP, no Ubirama 34 . Ele foi medicado na hora, eu comprei os medicamentos que faltavam, que o médico receitou e o levamos de volta para a fazenda. Ele melhorou, mas foi um susto muito grande. No começo quando fui para a Turvinho II eu levava a merenda para duas semanas, 15 dias, depois eu comprei um carro, em 1996 comprei um fusca e eu mesma levava. Toda segunda-feira eu passava na creche pela manhã e a “tia” da creche já me entregava a merenda. Foi quando melhorou muito. Passou a ter sobremesa, porque eu já levava frutas para a semana toda. E eu continuei ficando durante a semana lá, porque o gasto era muito grande se eu viesse todo dia, dava 90 km por dia, além de a estrada ser ruim. Quando chovia não conseguia passar e fusca já tem problema de platinado, motor, tanto que eu acabei aprendendo até a consertar sozinha. Eu saí da Turvinho II, porque em 1999 municipalizou 35 a educação em Borebi/SP e várias salas de aula fecharam e eu perdi a sala para a Marilene que estava na minha frente na escolha na atribuição. Ela tinha mais pontos que eu, mais tempo de serviço e ela pegou. Ela pegava sempre aqui na cidade, mas como fecharam salas, não sobrou e ela pegou a fazenda, ficou lá acho que por dois anos. Depois ela saiu e a Mônica 36 pegou, daí já era municipalizado, não era mais do Estado. A Mônica prestou concurso, passou e foi para lá. Depois ela teve uns probleminhas de saúde e a Cidinha 37 assumiu. Mas a escola funcionou por mais uns três ou quatro anos depois que eu saí. A escola fechou porque esses alunos do acampamento se mudaram, a Lwart reduziu a mão de obra, porque é tudo mecanizado agora, o plantio de eucalipto é realizado por máquina, acabou a mão de obra braçal. Tudo passou a ser mecanizado e eles saíram desse acampamento, ficou só o caseiro e alguns moradores das fazendas vizinhas que são os que vêm hoje estudar em Borebi/ SP. 34 Bairro localizado no município de Lençóis Paulista-SP. 35 Lei 9394/96- Institui sobre a municipalização do ensino no Artigo 11. 36 Mônica Rodrigues de Lima, professora que assumiu a sala posteriormente. 37 Aparecida de Fátima Pinto, professora que assumiu a sala e permaneceu na escola da fazenda TurvinhoII até seu fechamento. 42 No ano seguinte, depois que saí da Turvinho II fui para Pederneiras 38 , trabalhei um ano em 1999. Em 2000 eu peguei aula na fazenda novamente, na Fazenda Santo Antônio do Caçador 39 , que também fica no município de Borebi/SP. Trabalhei na Fazenda Caçador, que era uma escola mais precária, tinha morcego, não era forrada, os alunos maiores é quem espantavam os morcegos, porque eles sujavam a escola. A escola tinha cerca de arame farpado em volta e fazíamos jardim. Lá trabalhei por um ano, era a mesma rotina. A prefeitura levava a merenda, eu levava o pão e tinha uma pessoa que preparava, ela era voluntária, a Cleuza 40 . Ela morava na fazenda e gostava de colaborar. Os alunos buscavam a merenda na casa da Cleuza: pegavam o caldeirão de sopa, panela de arroz, feijão e mistura. Como ela preparava tinha arroz, feijão, uma carne e salada todos os dias, a gente fazia um suco, muitas vezes com aqueles pacotes de suco que vinham na merenda. De sobremesa o que eles mais gostavam era a “melequinha” que nós inventamos, até hoje meus filhos fazem em casa, misturar chocolate no leite em pó e comer, eles adoravam e muitas vezes era isso, quando podia fazia doce de abóbora que eles levavam da casa deles e eu fazia doce. Pela manhã o motorista do ônibus passava na padaria, naquele tempo era circular para Borebi/SP, todos os dias ele trazia o pão, eu esperava cedo, pegava o pão e seguia para lá, entrava às sete horas. Eu ia e voltava todos os dias. E um grande desafio nesta escola foi um aluno com necessidades especiais que eu tive o Edgar, não lembro a deficiência dele, só lembro que ele ficava nervoso e era difícil, ele não frequentava APAE 41 . Naquele tempo não era para ficar na minha escola, mas não tinha transporte que o levasse para a APAE. Lá na Fazenda Caçador eu fiquei por um ano em 2000, eu saí de lá, porque eu perdi a sala, outra professora pegou, esqueci o nome dela. Ela já tinha dado aula, ela gostava de lá. Essa escola era vinculada à escola EE Padre Aquino 42 de Agudos/SP, mas ela está localizada no município de Borebi/SP. No ano seguinte, quem assumiu foi a Vera 43 , mas sabe quando assume e não vai? Depois eu acabei assumindo a sala, acabei ficando no ano seguinte, mas depois foi para a atribuição e perdi de novo. 38 Município brasileiro localizado no estado de São Paulo, com população de 42 mil habitantes e extensão territorial de 729 mil km 2 . 39 Nome da fazenda onde se localizava a escola rural no município de Borebi-SP. 40 Moradora da fazenda, mãe de aluno da escola rural. 41 Associação de Pais e amigos excepcionais. 42 EE Padre João Batista de Aquino, localizada no município de Agudos-SP. A escola da fazenda Caçador localizava-se no município de Borebi-SP, era vinculada a escola estadual mais próxima de sua localidade e todo o custeio com merenda e transporte eram fornecidos pela prefeitura municipal de Agudos-SP. 43 Professora que assumiu as aulas posteriormente. 43 Então, assumi sala em Bauru, trabalhei no Luíz Braga 44 . Não, minto! Eu fui para uma fazenda em Piratininga 45 . Não, naquele ano acho que fiquei em Agudos substituindo. Em 2001 fiquei em Agudos substituindo, em 2002 que eu fui para uma fazenda em Piratininga. Já havia me acostumado tanto em fazenda que fui para a fazenda São José 46 , trabalhei o ano todo em Piratininga. Eu gostava de pegar aula na fazenda, porque era sala livre. Se a gente pegasse na cidade era sala de outro professor e quando chegava trinta e um de dezembro perdia, porque ele voltava e não recebíamos as férias. Assim eu ganhava direto, ganhava até fevereiro e no início do mês, pegava outra sala e não perdia o vínculo. Era interessante porque eu não quebrava pagamento. Naquela época levava três meses para receber se você perdesse o vínculo tinha que passar pelo médico, fazer as avaliações médicas e levava cerca de três meses para voltar a receber o pagamento e se pegasse sala livre não, ficava direto. Na fazenda era sempre sala livre e não se perdia o vínculo. Continuava recebendo normalmente, além de ganhar o auxílio transporte que era valor fixo de cento e vinte e oito reais, independente da quilometragem, para todo professor que dava aula em fazenda. Se passasse de vinte quilômetros, se não me engano, quanto à distância da cidade até a fazenda, então recebia cento e vinte e oito reais. Quanto ao material didático era só o mimeógrafo, não havia cópia, era só no mimeógrafo. Então, eu repartia a lousa ao meio para duas turmas, de um lado para uma turma, outro lado para outra. Os alunos da terceira e quarta série copiavam muito de livros ou faziam atividades no livro, porque tinha validade por dois anos - como é hoje também. Já os alunos da primeira série eles tinham praticamente que copiar, muitas coisas tinham que ser passadas no caderno e os da segunda série, faziam no livro que era levado embora no final do ano. À tarde eu não tinha aulas e já preparava os cadernos e às sextas-feiras eu pegava estêncil 47 e deixava preparado para rodar no mimeógrafo da escola Padre Aquino à noite, por que lá na Fazenda Caçador, não tinha mimeógrafo. Os cartazes para a sala de aula eu confeccionava na cartolina, cartaz, alfabeto, alfabeto móvel 48 , era tudo em cartolina. Para as aulas de Matemática tinha o material dourado e números. Eu tinha uns números de plástico que eu mesma comprava, não era de EVA, eu tenho até hoje e estou usando com minha turma na Educação Infantil. 44 EE Profº Luiz Braga, localizada no município de Bauru-SP. 45 Município brasileiro localizado no estado de São Paulo com população de 12 mil habitantes e extensão territorial de 402 mil km 2 . 46 Fazenda localizada no município de Piratininga- SP. 47 Tipo de papel fino utilizado como matriz para impressão em mimeógrafo. 48 Consiste em reproduzir as letras do alfabeto repetidamente em recortes de papel para serem utilizadas no processo de alfabetização na formação de palavras pela criança. 44 Os materiais que recebíamos eram réguas, tesouras e material dourado também. Agora outras coisas, eu tinha que comprar como número e letra de plástico, alfabeto de madeira e deixava na escola durante o ano em que estava dando aula, depois no final do ano eu levava tudo embora. O próprio perueiro no final do ano ele me ajudava guardar na perua e trazia tudo. Lá na fazenda tinha livro didático para os alunos desde a primeira série e era consumível 49 , já os livros da segunda, terceira e quarta série eram válidos por dois anos. Eu trabalhava com esses livros e outros também, usava muito mimeógrafo, rodava muitas atividades. Os livros que recebíamos eram para todas as disciplinas (Língua Portuguesa, Geografia, História, Matemática e Ciências) e de diferentes editoras como: Moderna, Scipione, Ática. Um livro que utilizei muito foi o “Mundo mágico” 50 , é um livro bom, até hoje vejo professoras utilizando, ele é de Matemática, não consegui encontrar livro igual, acho que nem tem mais dele. Atualmente eu trabalho com a Educação Infantil no município de Borebi/SP, sou concursada e atendo algumas crianças de áreas rurais, trabalho com a Etapa 1 51 . Tenho uma aluna que reside na fazenda e não fez o maternal, ela entrou este ano. A faixa etária é de três anos e meio a quatro anos e ela entrou sem fazer maternal por escolha da família ou talvez pela distância, essa menina mora na fazenda Santa Isabel 52 . A família dela achou que era muito nova para ir até a escola de perua já que mora bem distante daqui. Ela é ótima aluna e está se desenvolvendo muito bem, já sabe a letra inicial do nome, sabe pegar no lápis, tem coordenação motora, ela está indo bem e acompanhando os outros alunos. Percebo que há muita diferença na disciplina, porque criança de fazenda tem outro comportamento, não sei se é a educação ou porque não tem contato com muita criança, o comportamento é bem diferente, são mais disciplinados. Com relação ao desenvolvimento cognitivo, não muda muito, dependerá da criança, algumas das áreas rurais tem dificuldade ou aprende com facilidade, eu não vejo diferença. Quando eu dava aula nas fazendas eu gostava muito, apesar das dificuldades de transporte, distância, merenda que tinha que fazer, a higiene 49 Livros distribuídos pelo governo do estado que podem ser preenchidas as atividades no próprio livro, pois não será reutilizado no ano seguinte por outros alunos. 50 Livro 4, não consumível: Mundo Mágico- Matemática: Mariana Andrade e Lídia Maria de Moraes. 51 Nomenclatura utilizada na Educação Infantil do município de Borebi-SP para designar faixa etária dos alunos, sendo Maternal- 2 a 3 anos, Etapa I- 3 a 4 anos e Etapa II- 4 e 5 anos. 52 Fazenda localizada no município de Agudos-SP, porém a escola mais próxima está localizada no município de Borebi-SP, dessa forma os alunos que residem nesta fazenda deslocam-se diariamente até o a escola. 45 do prédio, que tinha que manter, eu ainda prefiro aquele período por conta da disciplina dos alunos. O calendário escolar era o mesmo para todas as escolas, a cultura rural, o plantio, a parte da agricultura e criação de animais era a parte que os alunos mais gostavam. Então, eu puxava mais para esse lado tentando adequar à realidade deles. Acredito que temos que adaptar, porque na cidade é uma realidade diferente, além do tempo que gastam no transporte, já chegam aqui cansados. É difícil ter um atendimento diferenciado, aqui para esses alunos é fora da realidade. A escola da zona rural é bem melhor, só que não tendo demanda de alunos, eles acabam se deslocando para cidade. Tudo mudou muito e alguns trabalhos passaram a ser mecanizados nas fazendas, não tem muita mão de obra braçal como tinha, as máquinas tiraram muitos empregos. Antes era tudo com mão de obra das famílias que trabalhava na lavoura, era trabalho braçal desde o plantio. Hoje não. Hoje até para tirar leite é mecanizado, tem máquinas que plantam as mudas... Eu presenciei essa mudança, era o tempo que eu estava na Fazenda Caçador e muitas famílias foram para a cidade porque não tinha trabalho. Eu acho que foi pior para os jovens, para as crianças, porque eles não tinham muito que fazer na cidade já que eles estavam acostumados na zona rural. Foi ruim para eles e para as famílias, pois muitos eram analfabetos. Eu tive um aluno que quando era dia de fazer compras, ele seguia com a família para o mercado, ele estava na segunda série e eu marcava todos os dias de prova para a família já saber e marquei prova em um dia que a família iria até a cidade, mas eu não sabia. Como as provas eles não perdiam, as famílias tinham muita responsabilidade em mandar as crianças para a escola. A família do menino foi até a cidade fazer compras e ele não foi, e era ele quem lia os rótulos para fazer as compras. Quando chegaram em casa, a mãe foi fazer salada e colocou detergente, porque no lugar do vinagre ela comprou detergente. Era aquele detergente vermelho de maçã, ela não sabia ler e eles foram comer perceberam que estava errado. No dia seguinte, o menino me contou o que aconteceu, cortou meu coração. Era ele quem lia os rótulos para ajudar a família fazer compras. Eu aproveitava essa situação de ir ao mercado, porque trabalhava com embalagem, brincava de mercadinho e de lojinha fazia essa parte para eles conhecerem mesmo os produtos de supermercado. E, geralmente, o passeio que faziam era no supermercado, uma vez no mês eles iam fazer compras com a família, quando recebiam o pagamento e para eles esse era 46 passeio. Nós brincávamos de mercadinho, trabalhando com valores dos produtos, nomes, preços e eles pegavam bem, gostavam. Eu acho que tem que abordar sobre as questões da reforma agrária, mas sem afirmar se está certo ou errado. Não podemos julgar, mas temos que abordar porque está dentro da escola, muitos alunos são desse movimento- MST. Então, precisa falar sobre questões de higiene e o que precisam aprender para melhorar de vida, já que eles têm muitas dificuldades financeiras e a maioria que está no movimento não possui renda. Eles recebem do INCRA 53 , se não me engano, uma cesta básica e bolsa família 54 ou bolsa escola 55 . A vida deles é muito precária, acredito que não se alimentam direito, não dormem bem. É impossível dormir bem num barraquinho coberto com lona, que muitas vezes voa com a chuva ou com o vento. Certa vez um aluno falou que tomou chuva, que não tinha roupa para ir à escola, o caderno molhou, o barraco descobriu, estragou tudo. Não deu para levar caderno para a escola os que levou, estavam molhados. Acredito que na mentalidade dos pais e o que passam para os filhos é que querem a terra que vão plantar, colher, criar e tudo mais para melhorar de vida, esse é o sonho da família e deles também. 53 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-Criado pelo Decreto nº 1.110, de 9 de julho de 1970. 54 Programa social desenvolvido pelo Governo Federal de distribuição direta de renda, que busca garantir às famílias vulneráveis o direito a alimentação, educação e saúde. 55 Programa do Governo Federal que possibilitava condições para que as famílias brasileiras em situação de pobreza tivessem acesso à alimentação, saúde e pudessem melhorar suas condições de vida através da educação. Este programa foi abolido e substituído pelo Programa Bolsa família. 47 2.2 A-cor- dando à Maria Célia Gallo... Gosto muito jogos de raciocínio, de ler, leio muito. Músicas, gosto de ouvir no carro, dirigindo e cantando alto... Nossos primeiros contatos foram através das redes sociais, Maria Célia foi indicada pela professora Marisa Bueno, nossa primeira depoente, e prontamente esteve disposta a colaborar com a pesquisa. Marcamos a entrevista em sua residência. Chegando ao local, fui muito bem recebida pela entrevistada que de imediato já me forneceu um álbum de fotografias das escolas em que atuou na Fazenda Geada 1 e Fazenda Santo Antônio do Caçador 2 , na região de Agudos/ SP e Borebi/SP. Apresentou-me algumas fotos, apontando alunos e em cada uma era algo que recordava, uma lembrança que se despertava colorindo os momentos fotografadas por ela com o objetivo de eternizá-los. Realizamos nossa entrevista e a depoente se mostrou interessada em contribuir fornecendo as fotos para uso na pesquisa, as quais apresentarei. Atualmente está aposentada e desenvolve trabalho voluntário no Abrigo Vicentino 3 em Agudos/SP, onde realiza visitas aos internos, participa na organização de eventos para angariar fundos para a entidade e auxilia na distribuição de cestas da Empresa Duratex 4 , pois esta faz doações ao abrigo. Também exerce ativida