UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS OSMAR HENRIQUE COSTA PARRA CONTROLE DO QUÊ E PARA QUEM? UMA ANÁLISE DOS PLANOS ESTRATÉGICOS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS E DE SEU PAPEL NO DESENVOLVIMENTO NACIONAL FRANCA – SP 2017 OSMAR HENRIQUE COSTA PARRA CONTROLE DO QUÊ E PARA QUEM? UMA ANÁLISE DOS PLANOS ESTRATÉGICOS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS E DE SEU PAPEL NO DESENVOLVIMENTO NACIONAL Dissertação submetida à Banca Examina- dora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públi- cas da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, como pré requisito para obtenção do título de Mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas na área de concentração em Instituições, Governança e Desenvolvimento. Orientador: Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille FRANCA - SP 2017 Parra, Osmar Henrique Costa. Controle do quê e para quem? Uma análise dos planos estratégicos dos Tribunais de Contas e de seu papel no desenvolvimento nacional / Osmar Henrique Costa Parra. –Franca : [s.n.], 2017. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional – Políticas Públicas). Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Orientador: Luís Alexandre Fuccille 1. Planejamento estratégico. 2. Controladoria. 3. Auditoria administrativa. I. Título. CDD – 350 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira – CRB8/8773 FOLHA DE APROVAÇÃO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré- requisito para obtenção do Título de Mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. Área de Concentração: Instituições, Governança e Desenvolvimento. Orientador: Prof. Dr. . Luís Alexandre Fuccille BANCA EXAMINADORA Presidente: _____________________________________________________ Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille (UNESP) 1ª Examinadora: _________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ana Elisa Périco (UNESP) 2ª Examinadora: _________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Keila Pacheco Ferreira (UFU) Franca, 15 de dezembro de 2017 À memória de meu avô, Professor Alfre- do Henrique Costa, pela presença inspiradora mesmo na ausência. AGRADECIMENTOS Agradeço sinceramente, Aos muitos que, de várias formas, contribuíram para a realização desta pesquisa, e que são tantos que não há como relacioná-los todos. Ao Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille, pela cordialidade, disponibili- dade e precisão com que me orientou neste trabalho. Aos colegas, professores e ao pessoal da coordenação do mes- trado, que tanto contribuíram com discussões, apoio e profissionalismo. Aos companheiros de luta e colegas de trabalho, do Banespa, das prefeituras de Franca e Ibiraci, do Ministério do Planejamento, da SP-Obras e do Tribunal de Contas, que participaram, com infindáveis discussões, de nossa formação crítica. Aos meus familiares, pais, irmãos, filhos, noras e tios, pelo apoio constante. Ao meu tio e grande amigo, Alfredo Costa Filho, que realmente faz a diferença pelas ideias e ideais de justiça social. Ao Lucas Bruxellas Parra, filho e companheiro de convicções, sem cuja ajuda na revisão e na formatação, esta dissertação não ficaria pronta. À Graça, companheira de trinta anos, pelo apoio, pela inspiração, pelo carinho. À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acor- rentada, que finalmente não exprime se- não o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo, 1967. PARRA, Osmar Henrique Costa. Controle do quê e para quem? Uma análise dos planos estratégicos dos Tribunais de Contas e de seu papel no de- senvolvimento nacional. 2017. 299 f. Dissertação (Mestrado em Planejamen- to e Análise de Políticas Públicas) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2017. RESUMO Este estudo se propõe a uma análise de como os Tribunais de Contas brasilei- ros são influenciados por interesses internacionais, utilizando-se de uma abor- dagem funcionalista à qual se agregam elementos históricos, para compreen- são da construção dos vínculos que sustentam essa influência. Os sistemas de controle surgem da necessidade das classes dominantes. O apartamento das estruturas de dominação política (Estado) e econômica (capital), no capita- lismo, originou um tipo de controle focado em aprimorar a gestão (auditorias) e outro em conter irregularidades (Tribunais de Contas), modelo francês, que se apresenta como defensor dos interesses sociais pela garantia da apreensão liberal de limitação do Executivo. No Brasil, que adota esse modelo, os TCs, fortalecidos pela Constituição e pela ascensão neoliberal que se seguiu ao “consenso de Washington” (1989), foram estruturados para implantar a LRF (2000) e um rígido modelo de governança, supostamente como condição para o desenvolvimento, mas que propositalmente dificulta atingi-lo, com a constru- ção de obstáculos institucionais. Submetidos a um processo de planejamento estratégico financiado pelo BID, os TCs se unificam em torno da concepção de que o combate à corrupção, que precede quaisquer outras questões, lhes ga- rantiria reconhecimento social e poder institucional. Caracterizado como “negó- cio”, o controle externo, submetido à mídia, passa à exposição sistemática de casos de corrupção, enfraquecendo o Estado. Produz-se um consenso que obstrui a percepção da burocracia do controle e da sociedade, tornando invisí- veis as questões sociais, contendo o desenvolvimento e garantindo que a mai- or parcela da arrecadação seja destinada a credores. A ineficácia social desse modelo tende a esgotá-lo, levando a uma inflexão da mídia no sentido de expor também a corrupção dos Tribunais de Contas, cuja intervenção torna-se des- necessária ao neoliberalismo inclusive em razão do novo contexto de alinha- mento ideológico direto do Poder Executivo, com provável enfraquecimento do sistema de controle externo. Palavras chave: Consenso de Washington. Controle externo. Corrupção. De- senvolvimento. Neoliberalismo. Planejamento estratégico. Tribunais de Contas. PARRA, Osmar Henrique Costa. Control of what and for whom? An analysis of the strategic plans of the Courts of Accounts and their role in national development. 2017. 299 f. Dissertation (Master’s Degree in Planning and Analysis of Public Policies) - Faculty of Human and Social Sciences, Paulista State University "Júlio de Mesquita Filho", Franca, 2017. ABSTRACT This study proposes an analysis of how the Brazilian Audit Courts are influ- enced by international interests, using a functionalist approach to which histori- cal elements are added, in order to understand the construction of the bonds that underpin this influence. Control systems arise from the need of the ruling class. The separation of the structures of political (state) and economic (capital- ist) domination, in capitalism, originated a type of control focused on improving management (audits) and another on containing irregularities (Courts of Ac- counts), French model, which presents as defender of the social interests by the guarantee of the liberal apprehension of limitation of the Executive. In Brazil, which adopts this model, the TCs, strengthened by the Constitution and the ne- oliberal ascension that followed the "Washington Consensus" (1989), were structured to implement the LRF (2000) and a rigid model of government sup- posedly as a condition for development, but which purposely makes it difficult to achieve it, through the construction of institutional obstacles. Submitted to a strategic planning process financed by the IDB, the TCs unite around the idea that the fight against corruption, which precedes any other issues, would guar- antee them social recognition and institutional power. Characterized as a "busi- ness", external control, submitted to the media, goes to the systematic exposure of cases of corruption, weakening the state. There is a consensus that obstructs the perception of the bureaucracy of control and society, making social issues invisible, concomitant with development and ensuring that the largest portion of the collection goes to creditors. The social inefficiency of this model tends to exhaust it, leading to an inflection of the media in order to expose also the cor- ruption of the Courts of Accounts, whose intervention becomes unnecessary to neoliberalism even in view of the new context of direct ideological alignment of the Executive Power , probably weakening the external control system. Key words: Courts of Accounts. Corruption Development. External control. Ne- oliberalism. Strategic planning. Washington consensus. LISTA DE SIGLAS ANM - Agência Nacional de Mineração ANTC - Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária ARENA - Aliança Renovadora da Nação (Partido Político) ATRICON - Associação dos Membros dos Tribunais de Contas no Brasil AUD-TCU - Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BRT - Bus Rapid Transit BSC - Balanced Scorecard CODEVASF - Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio São Francisco CSN - Companhia Siderúrgica Nacional DAERP - Departamento de Água e Esgoto de Ribeirão Preto DAS - Direção e Assessoramento Superior (Gratificação pelo exercício de cargo público em comissão) DASP - Departamento de Administração do Serviço Público DF - Distrito Federal DNPM - Departamento Nacional de Produção Mineral EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EMBRATEL - Empresa Brasileira de Telecomunicações FHC - Fernando Henrique Cardoso FIA-USP - Fundação Instituto de Administração da Universidade de São Paulo FMI - Fundo Monetário Internacional GAO - United States General Accounting Office IBAD - Instituto Brasileiro de Ação Democrática IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais IEG-M - Índice de Efetividade da Gestão Municipal INTOSAI - International Organization of Supreme Audit Institutions IPES - Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais JK - Juscelino Kubitschek de Oliveira (Presidente do Brasil) LRF - Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) MDB - Movimento Democrático Brasileiro (Partido Político) MLPUA - Método da Limitação dos Preços Unitários Ajustados PAC - Programa de Aceleração do Crescimento PC do B - Partido Comunista do Brasil PCB - Partido Comunista Brasileiro PDC - Partido Democrata Cristão PDCA - Planejar, Desenvolver, Controlar, Avaliar (Ciclo) PDS - Partido Democrático Social PDT - Partido Democrático Trabalhista PETROBRAS - Petróleo Brasileiro S. A. PFL - Partido da Frente Liberal PL - Partido Liberal PMB - Partido Municipalista Brasileiro PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro PPP - Parceria Público-Privada PROMOEX - Programa de Modernização do Sistema de Controle Externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios Brasileiros PSB - Partido Socialista Brasileiro PSC - Partido Socialista Cristão PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira PT - Partido dos Trabalhadores PTB - Partido Trabalhista Brasileiro SIG - Sistema de Informações Gerenciais (Governo Federal) STF - Supremo ribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justiça TC – Tribunal de Contas TC DF – Tribunal de Contas do Distrito Federal TCE AC – Tribunal de Contas do Estado do Acre TCE AL – Tribunal de Contas do Estado de Alagoas TCE AM – Tribunal de Contas do Estado do Amazonas TCE AP – Tribunal de Contas do Estado do Amapá TCE BA – Tribunal de Contas do Estado da Bahia TCE CE – Tribunal de Contas do Estado do Ceará TCE ES – Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo TCE GO – Tribunal de Contas do Estado de Goiás TCE MA – Tribunal de Contas do Estado do Maranhão TCE MG – Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais TCE MS – Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso do Sul TCE MT – Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso TCE PA – Tribunal de Contas do Estado do Pará TCE PB – Tribunal de Contas do Estado da Paraíba TCE PE – Tribunal de Contas do Estado do Pernambuco TCE PI – Tribunal de Contas do Estado do Piaí TCE PR – Tribunal de Contas do Estado do Paraná TCE RJ – Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro TCE RN – Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte TCE RO – Tribunal de Contas do Estado de Rondônia TCE RR – Tribunal de Contas do Estado de Roraima TCE RS – Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul TCE SC – Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina TCE SE – Tribunal de Contas do Estado de Sergipe TCE SP – Tribunal de Contas do Estado de São Paulo TCE TO – Tribunal de Contas do Estado do Tocantins TCM BA – Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia TCM CE – Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará TCM GO – Tribunal de Contas dos Municípios do Goiás TCM PA – Tribunal de Contas dos Municípios do Pará TCM RJ – Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro TCM SP – Tribunal de Contas do Município de São Paulo TCs – Tribunais de Contas TCU - Tribunal de Contas da União TER - Tribunal Regional Eleitoral UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas USP - Universidade de São Paulo LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Panorama do Sistema de Controle Externo Brasileiro .................. 93 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 – Dívida pública e resultados do governo central - evolução .......... 141 Gráfico 2 – Evolução dos investimentos em bolsas e fomento à pesquisa ... 155 Gráfico 3 – Evolução da produção total de grãos ........................................... 155 Gráfico 4 – Produção de petróleo e gás natural ............................................. 156 Gráfico 5 – Investimentos em infraestrutura de transporte ............................. 156 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Comparação dos modelos de controle ........................................... 37 Tabela 2 – Distribuição das informações ....................................................... 194 Tabela 3 – Resultados da pesquisa ............................................................... 207 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Missão Institucional e Visão de Futuro – TCE-SP ........................... 17 Figura 2 – Fluxo do Balanced Scorecard (BSC)............................................. 197 Figura 3 – Mapa Estratégico – Exemplo ........................................................ 199 15 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................. 17 1. OS SISTEMAS DE CONTROLE EXTERNO E O MODELO BRASILEIRO ......................................................................................... 23 1.1. Controle Administrativo e Controle Externo da Administração Pública ................................................................................................... 23 1.1.1. Controle Administrativo .......................................................................... 24 1.1.2. Fiscalização e Auditoria ......................................................................... 30 1.1.2.1. A Fiscalização ................................................................................... 32 1.1.2.2. A Auditoria ......................................................................................... 35 1.1.2.3. Considerações a partir da comparação entre modelos ..................... 36 1.2. Aspectos Históricos dos Sistemas de Controle Externo ........................ 43 1.2.1. O Sistema de Controle Francês ............................................................. 44 1.3. Modelos de Controle Externo ................................................................ 51 1.3.1. O Modelo Brasileiro ............................................................................... 54 1.4. Os Tribunais de Contas Brasileiros ....................................................... 57 1.4.1. Da Fase Pré-Colonial ao Império ........................................................... 57 1.4.2. Origens do TCU ..................................................................................... 61 1.4.3. A Era Vargas e o Governo Kubitscheck................................................. 67 1.4.4. O Governo Militar ................................................................................... 75 1.4.5. Antecedentes, Debates e a Constituição de 1988 ................................. 79 1.4.6. Panorama Institucional Atual ................................................................. 91 2. A AUDITORIA GOVERNAMENTAL ...................................................... 95 2.1. Princípios Gerais da Auditoria e da Administração Pública ................... 97 2.2. Auditoria Governamental e Administração Gerencial .......................... 105 3. O ESTADO CONTEMPORÂNEO, O “CONSENSO DE WASHINGTON” E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL .................... 116 3.1. Do Estado Moderno ao Contemporâneo ............................................. 117 3.2. Desenvolvimento Nacional e Institucional ............................................ 123 3.3. O Controle Externo como Política Pública ........................................... 129 3.4. O “Consenso de Washington” e a Lei de Responsabilidade Fiscal ................................................................................................... 136 3.5. O Controle como Estratégia de Contenção do Desenvolvimento ................................................................................. 143 3.6. A Relação com a Mídia ........................................................................ 158 16 3.6.1. Poder sem Responsabilidade .............................................................. 159 3.6.2. Opção pela Corrupção ......................................................................... 165 3.6.3. Invisibilidade da Sociedade ................................................................. 173 3.6.4. Deslocamento da Democracia ............................................................. 178 4. O PROMOEX E O PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS .................................................................... 182 4.1. O PROMOEX ....................................................................................... 183 4.2. Missões e Visões de Futuro dos Tribunais de Contas ......................... 192 4.2.1. Balanced scorecard (BSC) .................................................................. 195 4.2.2. A Contradição entre Missões e Visões ................................................ 198 4.3. Os Significados da Escolha do BSC .................................................... 208 4.4. A Evidência de uma Orientação Externa ............................................. 209 4.5. A Participação da Mídia ....................................................................... 210 4.6. Aderência a Princípios ......................................................................... 213 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 216 BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 225 Apêndice I - Resultados da Pesquisa ............................................................. 246 Anexo I - Carta de Porto Alegre ..................................................................... 253 Anexo II – Pesquisa FIA-USP ........................................................................ 255 Anexo III – Contrato de Empréstimo .............................................................. 266 Anexo IV – Relatório de Progresso - 2012 ..................................................... 285 17 INTRODUÇÃO O presente estudo propõe uma análise histórica e conjuntural da atuação dos Tribunais de Contas brasileiros, que fiscalizam e julgam atos de administradores públicos, na qual se considerará a influência de interesses in- ternacionais, especialmente na construção dos planos estratégicos desses ór- gãos, e as consequências políticas, sociais e econômicas dessa influência. Objetiva-se assim uma análise sobre um aspecto determinado do sistema de controle externo brasileiro, e embora esse aspecto tenha repercus- sões gerais sobre o sistema, não se confunde com o todo. O reconhecimento da importância dos órgãos de controle externo no cenário institucional contem- porâneo é o que motivou esse estudo, com eventuais críticas dirigidas ao seu funcionamento e não à sua existência. Todavia essa abordagem crítica impõe, necessariamente, um afastamento do ufanismo e do moralismo que, frequen- temente, monopolizam os debates sobre a corrupção e o trabalho dos Tribu- nais de Contas. A perspectiva dessa análise nasceu da identificação de uma con- tradição entre a missão e a visão de futuro expressas no mapa estratégico do TCE-SP, conforme figura 1: MISSÃO INSTITUCIONAL VISÃO DE FUTURO Fiscalizar e orientar para o bom e transparente uso dos recursos públicos em bene- fício da sociedade. Fiscalizar, orientar e divul- gar, em tempo real, o uso dos recursos públicos, pri- orizando a auditoria de re- sultados e a aferição da sa- tisfação social, consolidan- do uma imagem positiva perante a sociedade. Figura 1 – Missão Institucional e Visão de Futuro – TCE-SP A contradição está em que, se o objetivo está ligado à melhoria do uso dos recursos públicos em benefício da sociedade, a visão, necessariamen- te, deveria estar ligada à consolidação de uma “imagem positiva perante a so- 18 ciedade” do uso desses recursos. Ou seja, se a auditoria visa melhorar os usos dos recursos, a sociedade deve perceber a melhoria desse uso. Mas não: a auditoria não vislumbra a percepção, pela sociedade, de um melhor uso dos recursos públicos, mas sim a melhoria de sua própria imagem. A mesma situa- ção foi percebida em diversos Tribunais de Contas brasileiros, que implementa- ram seus planos estratégicos no âmbito de um programa de desenvolvimento financiado pelo BID, o PROMOEX, tendo então se levantado a possibilidade de um marketing institucional voltado para a construção de uma imagem pública dissociada dos resultados efetivos em benefício da Administração Pública e de uma orientação externa coordenando essa construção similar em diversos ór- gãos. Assim surgiram algumas das questões que perpassarão o desen- volvimento deste estudo, relativas: 1) à possibilidade de os Tribunais de Contas melhorarem a gestão dos órgãos fiscalizados buscando a construção de sua própria imagem positiva por meio da destruição da imagem da gestão pública; 2) a que danos podem advir, para as instituições auditadas, das ações de uma fiscalização nesses moldes; 3) à capacidade da sociedade em perceber esses danos e sua relação com as ações da fiscalização; 4) a que fatores impedem essa percepção e 5) havendo danos, se eles produzem um benefício maior a longo prazo. O tema da pesquisa é delimitado pela análise da gênese e das características das estratégias adotadas pelos Tribunais de Contas e pelas possibilidades, decorrentes dessa estratégia, de cumprimento da missão insti- tucional desses órgãos, de agregar valor à gestão pública. O problema de pes- quisa diz respeito a quais interesses orientam as estratégias dos Tribunais de Contas brasileiros. Como objetivo geral se pretende analisar a existência de influên- cia de interesses internacionais na construção da estratégia de ação dos Tribu- nais de Contas brasileiros e se há, em termos de princípios e métodos utiliza- dos na construção dessas estratégias, sintonia entre missões (fins institucio- nais) e visões (como se veem no futuro) dos órgãos de controle. Tal análise será realizada com base, especialmente, nos fundamentos da administração 19 gerencial, mas também à luz de princípios da auditoria e do direito administrati- vo. Os objetivos específicos do trabalho são as análises do nível de coincidência dos enunciados de missões e visões dos Tribunais de Contas; da influência do PROMOEX na construção do objetivo de busca de reconhecimen- to público dos Tribunais de Contas; da implicação do objetivo de reconheci- mento público nas linhas gerais de conduta dos Tribunais de Contas e das im- plicações na qualidade dos processos de auditoria da relação dos Tribunais de Contas com a mídia. Esse processo passará pela avaliação da submissão do sistema de controle externo aos pressupostos do “consenso de Washington” e de que circunstâncias a possibilitam, de modo a evidenciar se o PROMOEX é uma materialização da teoria de Chang (2003). Segundo essa teoria, os países em desenvolvimento implementam políticas de governança seguindo orientações de países desenvolvidos visando trilhar os mesmos caminhos, o que, todavia, é uma forma de dificultar que alcancem os patamares desejados por meio da construção de obstáculos institucionais internos. Desse modo, a relevância da pesquisa está associada ao seu po- tencial de levar a reflexões sobre que interesses podem interferir na atuação dos Tribunais de Contas e de porque e como essas interferências ocorrem; como o acoplamento histórico pressiona o presente; como estratégias de longo prazo podem se concretizar sem a adesão consciente dos grupos que as ope- ram. Especialmente para a burocracia do sistema de controle esse é um aspec- to importante – trata-se de um grupo moralmente comprometido com o aprimo- ramento da Administração Pública ao qual interessa o aprofundamento desse tipo de análise. Mas essa reflexão pode ser útil também para os demais servi- dores públicos, gestores e dirigentes públicos. O trabalho será desenvolvido com base no método funcionalista, adequado à interpretação do contexto colocado, porque permite enfocá-lo abordando a função dos Tribunais de Contas na sociedade e a interdependên- cia entre eles, os governos, agentes de mercado, mídia e sociedade enquanto 20 instituições correlacionadas, integrantes de uma estrutura complexa. A esse método serão agregados elementos históricos, de modo a se compreender o atual contexto como consequência de um processo. A análise funcionalista associada à contextualização histórica possibilitará um aprofundamento sobre o papel do Estado em suas variáveis moderna e contemporânea e sobre a inserção dos Tribunais de Contas nesse contexto, bem como dos interesses econômicos, políticos e corporativos envol- vidos. A pesquisa será toda documental, por meio de levantamento de documentação de acesso público, especialmente junto aos sites de Tribunais de Contas e órgãos de mídia. A documentação referente aos planejamentos estratégicos dos órgãos de controle é farta, e em geral disponibilizada livre- mente em local de fácil acesso nos sítios eletrônicos dos órgãos de controle. O nível de coincidência dos enunciados de missões e visões dos Tribunais de Contas será objeto de coleta de dados nos mapas estratégicos desses órgãos, sendo que os 34 Tribunais de Contas brasileiros serão pesquisados. Os dados relativos ao conteúdo do PROMOEX serão pesquisados na documentação oficial do programa, também disponibilizada nos sites de al- guns Tribunais de Contas do Estado do Maranhão. Também serão analisados outros documentos públicos correlatos disponíveis nas páginas do Ministério do Planejamento, da ATRICON (Associação dos Membros de Tribunais de Contas no Brasil), do Instituto Rui Barbosa (associação de estudos, pesquisas, capaci- tações, seminários, encontros e debates com foco no aprimoramento das ativi- dades dos Tribunais de Contas) e dos próprios Tribunais de Contas, inclusive decisões. Por fim serão pesquisados ainda casos exemplares de jurisprudência dos Tribunais de Contas e de sua reprodução e repercussão midiática. Quanto ao conteúdo da dissertação, inicialmente serão expostos conceitos relacionados à questão do controle com base no ciclo “PDCA” (Pla- nejar, Desenvolver, Controlar, Avaliar) e sua relação com o processo de gestão nas repúblicas contemporâneas, cuja estrutura de divisão de poderes guarda simetria com as etapas daquele ciclo. Em seguida serão discutidos aspectos 21 históricos distintivos dos conceitos de fiscalização e auditoria, relativos à gêne- se e desenvolvimento dos sistemas de controle, com ênfase na descrição do modelo da Revolução Francesa, que introduziu a ideia de um sistema que atu- asse no interesse da população e na limitação da ação do Poder Executivo, na defesa de interesses liberais, base do modelo brasileiro, cuja evolução histórica também será discutida. No capítulo 2 são tratados conceitualmente temas relativos à au- ditoria pública, incluindo princípios gerais e a relação da auditoria pública com os fundamentos da administração gerencial, em especial sob o enfoque da vin- culação ideológica de ambas ao liberalismo e, mais especificamente, ao neoli- beralismo. No capítulo 3 se discorrerá sobre o papel dos sistemas de contro- le no processo de garantia dos interesses das classes dominantes, em especial como meio de contenção das iniciativas de redução de desigualdades e de de- senvolvimento local quando descoladas das agendas centrais. Nesse contexto serão apresentadas as questões do Estado en- quanto forma política necessária ao modo de produção capitalista, sua evolu- ção enquanto controlador dos processos de emancipação social, os conflitos e processos envolvidos nas disputas entre desenvolvimento institucional e nacio- nal, a natureza das atividades de controle externo e suas interferências na ini- bição ou na formulação e implementação de políticas públicas. Também serão expostos os fundamentos do “consenso de Wa- shington” e discutida a implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal como ferramenta para enraizamento daqueles fundamentos. Também será apresen- tada a tese de Ha-Joon Chang de que países em desenvolvimento são pressi- onados pelos desenvolvidos a adotar, sob o pretexto de promoção do desen- volvimento econômico, políticas e instituições similares às que tais países de- senvolvidos adotam, mas que não existiam durante se processo de desenvol- vimento, e se existissem não teriam se desenvolvido, contexto que inclui um sistema de controle que pode inibidor o processo de desenvolvimento. 22 Também será discutido o papel da grande mídia nesse ajuste e como se dá, em linhas gerais, o alinhamento de instituições em busca de “musculatura institucional” com essa mídia e a construção de discursos ideoló- gicos com aparência supra ideológica, envolvendo os discursos construídos em torno da questão da corrupção. No capítulo 4 são apresentados os resultados da pesquisa docu- mental sobre o Programa de Modernização do Sistema de Controle Externo e sobre o planejamento estratégico dos Tribunais de Contas, financiados pelo BID a partir de 2006, com o objetivo de fortalecimento dessas instituições, bem como será discutida sua relação com os interesses representados pelo “con- senso de Washington”. Serão analisados os dados da pesquisa no que diz res- peito à escolha pelo modelo de planejamento estratégico, sua adequação ao perfil institucional a que se destina, a consistência do planejamento e a eventu- al ocorrência de contradições, bem como as perspectivas de produção de re- sultados, consistentes no cumprimento da missão institucional dos Tribunais, a partir do planejamento desenvolvido. Também serão analisados os significados contidos nos discursos que sustentam esse planejamento, as evidências de uma orientação externa na condução desse processo, as consequências da relação dos órgãos de controle com a mídia, a sustentabilidade, no tempo, desse modelo e sua compatibilidade com princípios essenciais à sua manuten- ção. Por fim serão tecidas considerações adicionais sobre como o sis- tema de controle no que diz respeito à consistência ética do discurso que o sustenta, sobre a relação entre objetivos formais e reais (e seus destinatários), sobre o melhor aproveitamento do potencial técnico dessa estrutura e sobre as tendências que se apresentam, especialmente diante da nova orientação políti- co-econômica do Governo Federal. 23 1. OS SISTEMAS DE CONTROLE EXTERNO E O MODELO BRASILEIRO Este primeiro capítulo tem por objetivo expor uma visão geral so- bre os conceitos básicos de controle, controle administrativo e controle externo, de fiscalização e de auditoria, necessária à compreensão dos conceitos e pon- tos de vista que serão desenvolvidos no decorrer dessa dissertação, em espe- cial porque, como é frequente em ciências humanas e ainda mais em um am- biente interdisciplinar de construção de conhecimento, os termos utilizados pa- ra definição de conceitos podem estar associados a mais de um significado em razão do conteúdo e escopo de cada disciplina. Neste caso concreto, a disser- tação se situa em uma zona que sofre influência da Administração, do Direito, da Sociologia, da História e da Política, além dos conteúdos técnicos específi- cos da área de controle externo. Também se apresentam alguns dados relevantes acerca dos an- tecedentes históricos dos sistemas de controle, o que tem por finalidade permi- tir sua compreensão como fruto dos resultados de correlações de forças políti- cas ao longo de um processo, correlações que evoluem produzindo modelos bastante dinâmicos de sistemas de controle externo. Por fim, busca-se a evidenciação das características essenciais dos principais modelos de controle externo, com especial atenção ao modelo brasileiro e ao panorama contemporâneo do sistema brasileiro, sempre como consequentes do processo histórico aludido. 1.1. Controle Administrativo e Controle Externo da Ad- ministração Pública Controle, fiscalização e auditoria são termos para os quais a ho- mogeneização1 de significados é relevante para a compreensão da discussão objeto deste trabalho. Frequentemente são usados indistintamente, mas aqui há necessidade de distingui-los e precisar-lhes o sentido específico no âmbito 1 No sentido de “processo que se efetiva enquanto superação da heterogeneidade da vida cotidiana” (DUARTE, 2001, p. 61). 24 deste texto, em especial no que diz respeito à diferença que se fará entre audi- toria e fiscalização, onde se situa o cerne da questão aqui tratada. Essa distinção entre fiscalização e auditoria, portanto, baseada fundamentalmente nas circunstâncias do advento e nas finalidades históricas de cada instituto, não se aplicam às citações de autores, decisões e legislação feitas aqui, mas apenas aos conteúdos desenvolvidos pelo autor. 1.1.1. Controle Administrativo A ideia de controle que nos interessa tem sua origem na definição sociológica de “controle social” como o conjunto de “meios e processos através dos quais um grupo ou uma sociedade garantem a conformidade de seus membros com suas expectativas” (HORTON e HUNT, 1980, p. 104 apud BER- NARDES e MARCONDES, 2000, p. 165). Ou seja, controlar significa fazer com que alguém aja em conformidade com as expectativas do controlador, de onde se depreende, em princípio, um processo hierarquizado. Em administração os processos de controle têm por fim garantir que os resultados esperados pelos sócios sejam atingidos por meio da ação dos atores envolvidos na produção, aparecendo já de forma bastante sistema- tizada no final do século XIX, nas propostas tayloristas de administração cientí- fica, com a racionalização do trabalho: estabelecimento de objetivos em razão dos quais o trabalho era dividido em unidades menores (planejamento - plan) com base em funções desempenhadas pelos trabalhadores mais aptos (reali- zação - do), constituindo-se assim um sistema coordenado passível de super- visão (ou controle – see) a cada etapa, mas ainda concebido como um proces- so linear (ORIBE, 2009). Na década de 1930 o processo linear proposto por Taylor foi re- desenhado, como um ciclo que se retroalimenta, por Walter Shewhart, sob o argumento de tratar-se de um “processo científico dinâmico de aquisição de conhecimento” (ROTHER, 2010, p. 123). O modelo foi levado ao Japão na dé- cada de 1950 por W. Edwards Deming, onde o termo “see” (“veja”) foi substitu- ído por “check” (“cheque” ou “verifique”) e foi acrescida a etapa “act” (“agir”, no 25 sentido de realizar os ajustes necessários), passando a ser identificado pela sigla “PDCA” (“plan, do, check, act”) (ORIBE, 2009). Posteriormente, outras versões foram desenvolvidas, mas no Bra- sil o ciclo tornou-se bastante conhecido e utilizado com essa configuração, “traduzida” como “Planejar, Desenvolver, Controlar, Avaliar”. Assim, como o ciclo é contínuo, após sua introdução inicial há uma simultaneidade de etapas: ao se lançar um produto (ou um programa, no caso da Administração Pública) começa-se pela etapa do planejamento e se- gue-se a sequência até o final, mas depois de certo tempo os processos de execução, controle, avaliação e planejamento (ou replanejamento) podem inter- ferir uns sobre os outros produzindo interações e modelagens com frequência e intensidade variáveis. A análise do ciclo evidencia que as etapas do PDCA se referem a atividades, em princípio, hierarquizadas. Ainda que sejam possíveis modelos de gestão em que a avaliação de um programa seja realizada de forma partici- pativa (por exemplo, em PAULA, 2005, p. 70-71, 90) isso não é o mais comum, e essa participação, quando ocorre, quase sempre tem caráter colaborativo e não efetivamente decisório, posto que não se promovem a emancipação ou a transferência de poder ao trabalhador (PAULA, 2005, p. 90-91). Assim, plane- jamento é uma atividade hierarquicamente superior à execução, controle é su- perior a ambas e a avaliação superior às outras três. Após a avaliação dos pro- cessos de planejamento, de execução e de controle incidentes sobre determi- nado programa, a alta direção da organização, com ou sem a participação de outros atores, pode decidir mantê-lo, eliminá-lo ou modificá-lo. Nesse sentido as etapas do PDCA podem se referir tanto a ativi- dades de um fluxograma (planejamento, execução, controle e avaliação) quan- to a estruturas administrativas ou políticas no organograma da organização (órgãos responsáveis por cada uma dessas atividades). Embora o PDCA seja apenas um dos diversos modelos possíveis de desenvolvimento de processos administrativos, em geral, tem especial rele- vância para a Administração Pública e aplicação no âmbito deste trabalho. Isso 26 devido à simetria que guarda com o modelo de divisão de poderes na demo- cracia representativa, decorrente da teoria da tripartição de Montesquieu. A “avaliação”, representada pelo processo eleitoral, que define novas diretrizes a cada período, é a atividade em tese hierarquicamente superior e as demais etapas são desenvolvidas pelos três poderes da República. Nos termos da Constituição Federal: Art. 1º. [...] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A própria ordem em que os três poderes são elencados no texto constitucional equivale à do PDCA. A atividade legislativa corresponde, em essência, ao processo de planejamento do que será realizado (finalidades) e como essa realização se dará (comportamentos) no âmbito da sociedade, inclusive pelo Estado. No ca- so do Estado, inicialmente pela questão do planejamento orçamentário, propri- amente dito, que envolve a aprovação dos planos plurianuais, das leis de dire- trizes orçamentárias e das leis orçamentárias, que elencam os programas, as atividades e os projetos dos governos para determinados períodos e disponibi- lizam os recursos supostamente necessários para sua execução. Ainda que tais leis sejam necessariamente de autoria do Executivo (atividade administrati- va), o exercício do poder político de aprová-las cabe ao Legislativo. Para além do planejamento orçamentário, em essência, qualquer lei é um plano. A previsão do Código Penal de que “matar alguém” implica em “reclusão, de seis a vinte anos” (artigo 121) corresponde a um plano que deve- rá ser executado caso ocorra a hipótese prevista, mas esse plano pode sim- plesmente não ser executado se a notícia do fato não chegar ao Poder Público, se o autor não for identificado ou se conseguir fugir, etc. A natureza das leis é fundamentalmente de “enunciado prescriti- vo”, ou seja, enunciados que descrevem ou expressam uma finalidade, quando 27 se refere a um princípio, ou um comportamento esperado, quando se refere a regra; apenas residualmente os enunciados legais são “descritivos”, e sempre como função assessória dos “prescritivos”, como quando a lei define um con- ceito de modo a possibilitar sua compreensão em dado contexto. (ÁVILA, 2005). Portanto, o enunciado legal sempre projeta para uma situação futura uma expectativa do legislador. A atividade do Poder Executivo corresponde à etapa “desenvol- ver” no PDCA, ou à efetivação dos programas, projetos e atividades governa- mentais; à implementação das políticas públicas em sentido mais estrito (aque- las que afetam de maneira mais direta a vida das pessoas). A atividade judiciária corresponde à etapa de “controle”. É o Poder Judiciário que vai “ver” (“see”), “checar” (“check”) se os planos (as leis) estão sendo executados a contento. Embora existam outras formas de controle, co- mo o do Legislativo, do Ministério Público, de organismos internacionais, e agências reguladoras ou de fiscalização, por exemplo, no que diz respeito ao exercício da atividade de controle enquanto exercício de poder político, há ex- clusividade do Judiciário: No Brasil, ao contrário do que ocorre em inúmeros países europeus, vigora o sistema da jurisdição única, de sorte que assiste exclusiva- mente ao Poder Judiciário decidir, com força de definitividade, toda e qualquer contenda sobre a adequada aplicação do Direito a um caso concreto (MELLO, 1998, p. 144). Em outras palavras, qualquer forma de controle a que esteja sujei- ta a Administração Pública é subordinada ao controle jurisdicional2 do Judiciá- rio; qualquer decisão legislativa ou dos Tribunais de Contas pode ser revista judicialmente. Esse controle do Judiciário sobre os poderes Legislativo e Executivo se dá em razão tanto da adequação direta da conduta em relação a normas específicas quanto em razão da adequação da conduta em relação à proporcionalidade que existe entre o valor das várias normas no sistema jurídico, em relação aos valores fundamen- 2 Jurisdição (do latim juris (direito) + dictio (dicção). Etimologicamente é a “dicção do direito” ou a capacidade de “dizer o direito”. Tecnicamente é o “poder de julgar, de dizer o direito entre as partes, sem estar subordinado a nenhum outro poder” (SOIBELMAN, vol. II, p. 58). 28 tais. Nesse sentido, o controle incide não apenas sobre a execução (a etapa “desen- volver”), mas também sobre a produção normativa (a etapa “planejar”). Assim, o controle sobre a atividade legislativa tem especial eficácia na manutenção do status quo, pois em razão do princípio da legalidade estrita3 a restrição no exercício do “poder de planejar” inviabiliza o exercício do “poder de executar”. Teoricamente, segundo Ávila (2005, p. 125-126): De um lado o âmbito de controle, pelo Poder Judiciário e a exigência de justificação da restrição a um direito fundamental deverá ser tanto maior quanto maior for: (1) a condição para que o Poder Judiciário construa um juízo seguro a respeito da matéria tratada pelo Poder Legislativo; (2) a evidência de equívoco da premissa escolhida pelo Poder Legislativo como justificativa para restrição do direito funda- mental; (3) a restrição ao bem jurídico constitucionalmente protegido; (4) a importância do bem jurídico constitucionalmente protegido, a ser aferida pelo seu caráter fundante ou função de suporte relativa- mente a outros bens (por exemplo, vida e igualdade) e pela sua hie- rarquia sintática no ordenamento constitucional (por exemplo, princí- pios fundamentais). [...] De outro lado, o âmbito de controle pelo Poder Judiciário e a exigên- cia de justificação da restrição a um direito fundamental deverá ser tanto menor, quanto mais: (1) duvidoso for o efeito futuro da lei; (2) difícil e técnico for o juízo exigido pela matéria; (3) aberta for a prer- rogativa de ponderação atribuída ao Poder Legislativo pela Constitui- ção. Se, todavia, do ponto de vista estritamente técnico-teórico a ex- tensão do controle pode ser dimensionada pelos elementos acima, não se po- de perder de vista a natureza política do exercício de poder pelo Judiciário, que advém da interferência dos interesses dominantes, de classe e corporativos, por exemplo, e que poderão atuar tanto como elementos autônomos quanto como elementos definidores da proporcionalidade dos elementos técnicos em dado contexto histórico-social: As lutas de classes e grupos e as disputas entre frações do capital fazem com que as instituições políticas e jurídicas sejam atravessa- das por tensões, antagonismos e contradições. Por isso, não se pode pensar em Estado e direito como aparatos consolidados, neutros ou 3 Legalidade estrita – princípio constitucional previsto no caput do artigo 37, a que está sujeita a administração pública: a administração só pode executar o que está previsto em lei. Difere do princípio da legalidade civil, previsto no artigo 5º, II, aplicável ao setor privado, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. 29 técnicos, mas como correias de transmissão de movimentações ge- rais da dinâmica social. Havendo descompasso entre forças econô- micas e posições político-jurídicas, a resolução da reprodução social capitalista se faz sempre em detrimento do plano institucional (MAS- CARO, 2016, p. 2). A etapa “avaliar” (ou “act” – agir para reorientar), em linha com o citado parágrafo primeiro do artigo primeiro da Constituição, é desempenhada “diretamente” pelo povo, no processo de eleição dos seus representantes, fe- chando o ciclo. Ou seja, a cada eleição popular a sociedade avalia o período findo e “reorienta” a gestão pela eleição de novos representantes e novos pro- gramas de governos (ou não reorienta – mantém os mesmos). Observe-se, assim, que o sistema republicano democrático possui, natu- ralmente, um quarto (ou primeiro) poder além do Legislativo, Executivo e Judi- ciário: o “Avaliativo”, cujo exercício, em princípio, não seria delegado, devendo ser exercido direta e livremente pela sociedade. Até porque, se todo o poder fosse delegado, nenhum poder restaria ao povo, que consequentemente deixa- ria, efetivamente, de “emaná-lo” ou de exercê-lo. Essa análise é fundamental para o presente estudo porque indica que toda e qualquer intervenção de outro poder político na prerrogativa ou no direito de exercício do Poder Avaliativo implica em indevida intromissão na so- berania popular de escolher seus representantes e respectivos programas. Nesse sentido, o sistema brasileiro de controle administrativo ex- terno, formado fundamentalmente pelos Tribunais de Contas, deveria ser com- preendido como instância administrativa e não como instância que exerce po- der político. Não se equipara, na essência constitucional, aos poderes da Re- pública. Qualquer atuação que extrapole a administrativa implica em ocupação ilegítima de outro espaço de poder, ainda que haja a conivência desse poder cujo espaço é invadido ou compartilhado. Ocorre que, constitucionalmente, o exercício das atividades de controle externo dos órgãos da União se dá no âmbito de uma atividade mais ampla de “fiscalização” (artigo 70) e constitui atribuição do Congresso Nacional, a ser desempenhada com o “auxílio” do Tribunal de Contas da União (artigo 71), detentor das mais amplas competências, incompatíveis com a de um ór- 30 gão de auxílio. Os detalhes desse modelo serão aprofundados no subtítulo “1.3.1 – O Modelo Brasileiro”, sendo relevante, por ora, mencionar o uso pouco preciso das expressões “fiscalização” e “auditoria”. A primeira, ora aparece co- mo gênero do qual a segunda e a “inspeção” seriam espécies (v.g. combinan- do-se o caput do artigo 70 com o inciso IV do artigo 71), ora como sinônimo da segunda (v.g. comparando-se os incisos IV com o V e o VI do artigo 71) e ora como instituto mais amplo, que abrange o julgamento de contas (combinando- se, por exemplo, o caput do artigo 70 com o inciso II do artigo 71). Esse tipo de redação verificado na Constituição permite as mais abrangentes e divergentes interpretações acerca da natureza do controle ex- terno e dos Tribunais de Contas enquanto entes jurisdicionais ou administrati- vos, políticos ou técnicos. Por essa razão deve-se distinguir fiscalização e auditoria, ambas formas de controle, prioritariamente pelas suas configurações históricas e pelos conceitos decorrentes dessa distinção, o que possibilita uma apreensão mais precisa de suas naturezas do que uma análise baseada essencialmente nas prescrições legais vigentes. 1.1.2. Fiscalização e Auditoria O controle, em sentido amplo, corresponde à capacidade ou à ação por meio da qual se interfere na conduta de alguém de modo que aja em conformidade com a decisão do controlador, para que membros de um grupo exibam determinado comportamento (BERNARDES e MARCONDES, 2000, p. 51). Assim, a pessoa sob controle age de acordo com a determinação do con- trolador. Ainda de acordo com Bernardes e Marcondes (2000, p. 51-57) são três os mecanismos de controle: o poder, por meio do qual as determina- ções são impostas ao controlado por meio de coação (força, em última instân- cia), havendo assim uma sobreposição dos interesses representados pelo con- trolador aos interesses do controlado; a autoridade, que consiste no convenci- mento do controlado pelo controlador, de modo que se opera um processo de 31 identificação dos interesses; e a troca, por meio da qual há uma negociação em que os interesses são compostos. O exercício do poder exige domínio pessoal ou, no caso das or- ganizações, institucional da força, sendo, portanto, fontes desse mecanismo de controle o poder formal, a posição hierárquica ou a força, propriamente dita, inclusive, em última instância, o poder militar. O poder é imposto pelo medo ou pela concretização da submissão. O exercício da autoridade decorre do reconhecimento da superio- ridade da opinião do controlador sobre o controlado, sendo fontes desse meca- nismo a autoridade formal (um diploma, por exemplo), o carisma ou o conteúdo da argumentação e, nesse caso, pode haver uma delimitação imprecisa entre controlador e controlado, na medida em que, da confrontação de argumentos, pode haver o desenvolvimento de uma posição intermediária ou diferente da inicial. O exercício da troca ocorre pelo oferecimento do controlador ao controlado de um bem, material ou imaterial, que seja do interesse desse últi- mo que, para obtê-lo, conduz-se de acordo com o interesse do controlador, sendo, portanto, a principal fonte dessa forma de controle, a riqueza. Observa-se assim que o poder se exerce por meio de uma supe- rioridade não consentida (por exemplo, na relação fiscal-fiscalizado), a autori- dade por meio de uma superioridade consentida (por exemplo, na relação mé- dico-paciente) e a troca por meio de uma igualdade (por exemplo, na relação de compra e venda). Naturalmente esses três mecanismos de controle tendem a uma incidência menor isoladamente e maior de forma mesclada. Por exem- plo, a troca, que em princípio seria uma operação mais igualitária e que rege as relações de trabalho, mescla-se ao poder quando o desemprego é elevado, posto que a oferta de salário tem um “peso relativo” muito mais elevado do que a oferta de mão de obra, tanto pela escassez da primeira em face da abundân- cia da segunda quanto pela relação imediata da primeira com a satisfação de necessidades básicas à sobrevivência (irrenunciável e pouco negociável) e da segunda com o aumento de riqueza (renunciável e altamente negociável). 32 Havendo, portanto interesses divergentes, em que controladores e controlados estão em lados opostos, em princípio a solução, essencialmente, se dá pela via do poder (em organizações como prisões, ou nas guerras, por exemplo), havendo interesses convergentes, em que controladores e controla- dos buscam o mesmo fim, pela via da autoridade (como nas universidades ou associações) e, havendo interesses paralelos, em que as duas partes buscam objetos que não se relacionam diretamente, mas que se compõem para satis- fazer a ambos (como nas compras e outros tipos de contrato), pela via da troca (BERNARDES e MARCONDES, 2000, p. 56-57). Na sociedade organizada as relações de controle, complexas, vi- sam em um primeiro momento à satisfação comum, de modo que o controle se estabelece de todos para cada um, inibindo excessos e condutas incompatíveis com os interesses da coletividade e promovendo ou estimulando comporta- mentos mais conformes às expectativas grupais. Após esse primeiro momento surgem dois movimentos: a espe- cialização, decorrente da necessidade de satisfação da diversidade de interes- ses coletivos e, paralelamente, o desenvolvimento de interesses específicos de pessoas ou grupos especializados, que podem escapar aos mecanismos de controle social e se sobrepor aos interesses da coletividade. A partir desses dois movimentos se acentua a produção de gru- pos especializados em proteger e administrar a sociedade ou a produzir bens e serviços com maior valor relativo, o que também gera processos de controle de conduta tanto sob o enfoque dos interesses gerais (sendo que o “interesse ge- ral” pode ser definido a partir de uma visão mais ou menos geral) como, tam- bém, dos próprios grupos. 1.1.2.1. A Fiscalização Nesse processo desenvolvem-se as ideias de tributo e de tesouro, necessários à manutenção das estruturas de sustentação social (e também dos 33 grupos que a administram) e, naturalmente, a ideia de fiscalização4. A elevação da complexidade social, com as organizações comer- ciais, industriais e financeiras, sindicatos e conselhos de classe, diversidade de religiões estruturadas e formas de Estado e de governo, produzem, também, uma elevação quantitativa e qualitativa das funções e atribuições da fiscaliza- ção, cujo corpo burocrático passa a se constituir em um grupo essencial ao financiamento do Estado e, também, um grupo com interesses corporativos próprios, com capacidade, dependendo da eficácia do controle a que está submetido, de utilizar a estrutura, o aparato estatal e a exação em favor, além dos interesses do Estado, de seu próprio. Esse movimento ficará melhor expli- citado no subtítulo “1.2 – Aspectos Históricos dos Sistemas de Controle Exter- no”. Assim, a forma político-jurídica necessária à instituição da fiscali- zação, como parte do corpo burocrático que é, surge como extensão da admi- nistração direta das classes dominantes, sobre pessoas físicas e organizações privadas e públicas, controlando a conduta destas de modo a que se moldem aos interesses daquelas. Ou seja, como instrumento de poder das classes do- minantes na busca e na garantia de apropriação de uma parte da produção. Extra oficialmente essa atuação pode se dar em favor de interesses do próprio corpo burocrático. Naturalmente a precificação da atividade fiscalizatória é direta- mente proporcional à ânsia e inversamente proporcional à facilidade de apro- priação, pelas classes dominantes, dessa produção social; também não se vol- ta, em princípio, contra a própria classe a que serve diretamente, salvo em con- textos em que seus próprios interesses corporativos estejam sob ameaça. No Estado capitalista contemporâneo esse corpo burocrático se ajusta e se estrutura funcionalmente ao modo de produção, não mais como extensão direta dos interesses dominantes, mas, com base no ordenamento 4 O termo vem do latim fiscus, cesto no qual, na república romana, eram guardadas as receitas do Estado, sob responsabilidade dos questores - origem da palavra “gestor”. Daí também a origem do termo “confiscar” – colocar “no” ou “com” o fiscus. 34 jurídico-político vigente, como elemento intermediador, essencial à garantia de um sistema de regras que legitime a exploração, mas sem evidenciá-la: No passado, a aparelhagem “pública” advinha somente da vontade e da estabilidade dos interesses dos próprios senhores. Não era dada aos exploradores e aos escravos a possibilidade de referência ou ar- ticulação em face do Estado. No presente, a forma-mercadoria, que estrutura a forma política estatal, está tecida em relações que são lastros, inexoravelmente, tanto ao capitalista quanto ao trabalhador assalariado explorado. Por isso o Estado é uma forma que se apre- senta para todos, porque todos, para a exploração, são constituídos e tornados iguais para as trocas – e, por extensão também, para a penetração de suas vontades no plano formal do Estado. (MASCA- RO, 2013, p. 58). Dessa forma a fiscalização modifica sua forma de atuação como braço direto das classes dominantes para atuar como braço do Estado, man- tendo-se, todavia, como (1) instrumento de exercício de poder (2) na busca pela maior parcela possível da produção social (3) em favor de uma estrutura poderosa na hierarquia social. Ocorre que esse Estado tem função intermediária no modo de produção e, atuando em favor dele, a fiscalização atua, em última análise, em prol de um conjunto de regras e de uma forma de regulação que beneficia a estabilidade desse modo de produção e das classes que dele mais se benefici- am. Se o Estado não pode ser compreendido como um elemento salva- dor, de contraponto à lógica capitalista – como ainda persistem em ver muitas teorias econômicas e políticas progressistas de esquerda –, no entanto, tampouco pode ser entendido como elemento deletério a um pretenso equilíbrio natural e perfeito dos mercados – como vi- sões de direita, miseravelmente, insistem em propalar. O papel do Estado na regulação se revela a partir da sua manifestação estrutural e funcional, como forma necessária da reprodução do capital, com sua relação constante com as formas mercadoria e jurídica. Somente nesse pano de fundo, na articulação das formas do capitalismo, é possível então estabelecer-se, com melhor delineamento e proveito, uma teoria crítica da regulação. (MASCARO, 2013, p. 115). Portanto, o exercício da fiscalização, observada a perspectiva his- tórica, se constitui em exercício de poder funcional ao equilíbrio do modo de produção vigente e das formas de apropriação da produção social a ele ineren- tes. 35 1.1.2.2. A Auditoria Ainda em razão da complexidade social, mas já no século XIX e como consequência do advento do modo de produção capitalista, diversas or- ganizações, especialmente sob a forma de sociedades por ações, passam a desenvolver processos de controle, com apoio externo, com o objetivo de veri- ficar a adequação dos procedimentos adotados, prevenir desfalques e penali- zações pelo fisco, e corrigir rumos. Esse tipo de controle, as auditorias (do latim audi – ato de ouvir), inversamente ao do fisco, se dá no interesse da própria administração e dos sócios acionistas das organizações (ou de quem ocupe posições similares), tendo se originado na Grã-Bretanha, como consequência da Revolução Industrial e da necessidade de se proteger investidores “após inúmeros processos de falência de empreendimentos que captavam dinheiro do povo”, em meados do século XIX (CARDOZO, 1997, p. 27). A auditoria foi introduzida nos Estados Unidos por auditores ingle- ses contratados por empresas de capital britânico, ainda no final do século XIX, tendo aí encontrado grande impulso, o que colocou o país como referência, “de onde são emanados os procedimentos técnicos adotados por contadores de quase todos os países do chamado mundo capitalista, inclusive o Brasil” (CARDOZO, 1997, p. 28). Dada a necessidade de não envolvimento dos auditores com os interesses do corpo funcional, desde o início, já em 18535, a área se organizou por meio de associações profissionais especializadas, modelo também adotado nos Estados Unidos6. Assim, o termo “auditoria externa” não diz respeito, inicialmente, a uma intromissão externa na organização (como é o caso da fiscalização), mas à contratação de um serviço independente capaz de olhar e compreender com isenção os processos, condições, estrutura e situação da organização de modo a apontar falhas, identificar desvios e recomendar correções no interesse da própria organização e de seus acionistas (em princípio e em regra esses inte- 5 Fundação da Sociedade dos Contadores de Edimburgo. 6 A Associação Americana de Contadores Públicos foi fundada em 1887 e a primeira empresa de auditoria a se estabelecer nos Estados Unidos o fez em 1893. 36 resses são coincidentes, mas, eventualmente, a extinção da organização pode ser mais proveitosa para os acionistas do que sua manutenção. No Brasil, até 1946, quando foi regulamentada a profissão de con- tador (Decreto-Lei nº 9.295/1946) a auditoria praticamente não existia, “exceto em empresas estrangeiras, como uma continuidade dos hábitos adotados em suas matrizes” (CARDOZO, 1997, p. 28), tendo efetivamente tomado maior impulso a partir dos anos 1970. No setor público brasileiro a auditoria foi introduzida de forma im- positiva com o Decreto-Lei 200/1967, cujo artigo 13 previa o controle das ativi- dades da Administração Federal e, na alínea “c”, “o controle da aplicação dos dinheiros públicos e da guarda dos bens da União pelos órgãos próprios do sistema de contabilidade e auditoria”. A Constituição de 1967 previu a auditoria como modalidade de fiscalização a ser desempenhada pelo TCU (artigo 70, §§ 1º, 3º e 4º e artigo 72, § 5º). Portanto, técnica e historicamente a auditoria se constituiu como instrumento por meio do qual o sócio ou o investidor se capacitam para a avali- ação e para a tomada de decisões sobre a sociedade, o que lhe impôs como finalidade fornecer informações de modo a promover melhorias na gestão, agregação de valor e estímulo a investimentos na organização. No setor públi- co brasileiro, todavia, ela surgiu por determinação legal, portanto impositiva- mente, e sempre atrelada à ideia histórica de fiscalização. Desse modo, enquanto nessa concepção técnico-histórica a audi- toria propicia um processo de controle por meio do exercício de autoridade, no caso do Brasil ela sempre esteve atrelada ao controle enquanto exercício de poder. 1.1.2.3. Considerações a partir da comparação entre mo- delos Circunscrevendo-nos ao campo de estudo deste trabalho, consta- ta-se, historicamente, a existência de dois tipos de controle com conotações absolutamente distintas: a fiscalização, que tem por fim, hodiernamente, a im- 37 posição, a organizações públicas e privadas, de condutas no interesse do Es- tado e a auditoria, que tem por fim agregar valor à gestão. Portanto, a definição de um modelo de controle deve partir da finalidade do controle e a finalidade se depreende a partir dos interesses predominantes envolvidos no processo. Nesse sentido, se os interesses envolvidos dizem respeito, mais diretamente, à melhoria do Estado, da prestação de serviços públicos, ou da implementação de políticas prioritárias (v.g. redução das desigualdades soci- ais), o modelo mais adequado seria baseado em processos de auditoria. Por outro lado, se os interesses envolvidos dizem respeito, mais diretamente, ao cumprimento da legislação, prevenção à corrupção e imposição de penalida- des, o modelo mais adequado seria baseado em processos de fiscalização. A opção por um modelo híbrido, que poderia em tese satisfazer os dois grupos de interesses e atender às duas finalidades, deve ser avaliada em função das incompatibilidades existentes entre os dois tipos de intervenção de controle e que se depreendem dos mecanismos adotados e das reações pro- vocadas nas instituições controladas, conforme tabela abaixo: Tabela 1 – Comparação dos modelos de controle baseados em processos de fiscalização e auditoria Fiscalização Auditoria  O processo de controle é baseado na utilização de mecanismos de poder.  O processo de controle é baseado na utilização de mecanismos de autorida- de.  A relação entre fiscalização e fiscaliza- dos tende a produzir o desenvolvimento de uma cultura mais autoritária.  A relação entre fiscalização e fiscaliza- dos tende a produzir o desenvolvimento de uma cultura mais igualitária.  A fiscalização implica de forma mais imediata na punição de agentes fiscali- zados e eventual e indiretamente na me- lhoria de processos.  A auditoria implica de forma mais imedia- ta na melhoria de processos e eventual e indiretamente na punição de agentes fiscalizados.  O foco dos processos de fiscalização são condutas pessoais.  O foco dos processos de auditoria são processos e estruturas. 38 Tabela 1 – Comparação dos modelos de controle baseados em processos de fiscalização e auditoria Fiscalização Auditoria  Para o fiscalizado os documentos produ- zidos pela fiscalização são peças acusa- tórias, objeto de defesa.  Para os auditados os documentos pro- duzidos pela auditoria são peças críti- cas, objeto de avaliação.  O tempo do controle é o pretérito, posto que focado no ajuste de condutas já ocorridas a condições estáticas, defi- nidas em lei.  O tempo do controle é o futuro, posto que focado na melhoria de processos em desenvolvimento a expectativas dinâmicas, definidas programaticamen- te.  O resultado do controle é mensurado pelas irregularidades que identifica.  O resultado do controle é mensurado pelas melhorias que proporciona.  O processo, a priori, tende a implicar em rejeição pelo fiscalizado com imprová- vel assimilação de propostas pela orga- nização.  O processo, a priori, tende a implicar em análise pelo auditado com maior pro- babilidade de assimilação de propostas pela organização.  O Controle se robustece com maior con- centração de poder.  O controle se robustece à medida que adquire reconhecimento (autoridade).  O processo de controle é finalístico, se encerrando em si mesmo com a declara- ção de regularidade ou irregularidade (e consequentes punições) e sustação dos atos.  O processo de controle é instrumental, destinando-se à utilização posterior para fins de avaliação por instâncias decisó- rias. A inviabilidade de um modelo híbrido, portanto, fica evidenciada diante do antagonismo de finalidades, mecanismos, procedimentos e resulta- dos típicos de cada abordagem, indicando a probabilidade de uma estrutura de controle de início ineficiente, porque incapaz de se utilizar dos instrumentos adequados (que são diferentes em cada modelo) e, consequentemente, inefi- caz. Ainda que a auditoria também aponte irregularidades e ainda que a fiscalização possa indicar soluções e propor aprimoramentos, a concepção de um sistema de controle da Administração Pública deve envolver a opção clara por uma dessas linhas de atuação, pois a opção por um modelo de fisca- lização se baseia em exercício de poder, que se destina à administração de interesses conflitantes e a opção por um modelo de auditoria se baseia em exercício de autoridade, que se destina à administração de interesses conver- 39 gentes. A fiscalização, ao identificar e eventualmente punir falhas, pode auxiliar na promoção do desenvolvimento institucional, mas não é instrumento especí- fico de promoção para isso e, se utilizada em substituição à auditoria, tende a inibi-lo. Deve-se levar ainda em conta a existência de outras estruturas que atuem na área pública e que tenham atribuições ligadas a cada um dos dois modelos. No Brasil já se incumbem da fiscalização os Ministérios Públicos (federal, do trabalho e estaduais), diversas agências estatais (v.g. IBAMA, na área ambiental; ANVISA, na área de saúde pública; PROCONs, na área de Direitos do Consumidor; ANM7, na área de mineração), vários órgãos típicos de fiscalização (como a Receita Federal e as fiscalizações estaduais e municipais das áreas tributárias, posturais, sanitárias e ambientais), conselhos de classe que também atuam na fiscalização8, as instituições policiais em geral, como a Polícia Federal9, que inclusive fiscaliza a fiscalização, como na recente opera- ção “carne fraca”10. Além disso há alguns conselhos superiores que fiscalizam o próprio sistema de controle, como o Conselho Nacional da Justiça e o Conse- 7 O DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), com atribuição de fiscalizar o exer- cício das atividades de mineração no Brasil, foi extinto e substituído pela ANM (Agência Nacio- nal de Mineração), pela Medida Provisória 791/2017. 8 Por exemplo, os Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia: “A fiscalização desempe- nhada por este Conselho consiste na verificação das condições do exercício profissional, na existência de responsável técnico e respectivo registro da Anotação da Responsabilidade Téc- nica ART, prevenindo e reprimindo infrações à legislação profissional (art. 6º da Lei nº 5.194/66), tudo de modo a assegurar à sociedade a participação efetiva e declarada de profis- sionais habilitados nas obras e serviços de engenharia e agronomia e de outras áreas tecnoló- gicas (art. 2º da Lei nº 6.496/77), garantindo padrões mínimos de segurança e qualidade indis- pensáveis à natureza de tais serviços profissionais”. Disponível em: . Acessado em: 15/07/2017. 9 O plano estratégico da polícia federal, aprovado pela Portaria Nº 4.453/2014-DG/DPF prevê, por exemplo: “9.5.4. Ação Estratégica: Controle Regulatório e Fiscalizatório: Desenvolver, estabelecer, sistematizar, e implantar normas, técnicas e mecanismos de regulação e fiscali- zação da prestação de serviços públicos delegados, no âmbito de atuação da Polícia Fede- ral, fiscalizando o cumprimento das normas e regulamentos (...)”; “9.6.3. Ação Estratégica: Gestão de Acordos e Parcerias: Desenvolver, sistematizar e implantar mecanismos de acom- panhamento e fiscalização dos instrumentos de cooperação firmados em âmbito nacional e internacional; “9.7.1. Ação Estratégica: Gestão de Obras e Infraestrutura: (...) como desen- volver, sistematizar e implementar mecanismos de gestão de obras, aprimorando, formalizando e padronizando procedimentos, técnicas e metodologias de controle e fiscalização (...). (g.n.). Disponível em: . Acessado em: 15/07/2017. 10 KANIAK e FONSECA. A Polícia Federal (PF) deflagrou nesta quarta-feira (31) a 2ª fase da Operação Carne Fraca, que investiga irregularidades na fiscalização de frigoríficos. G1 Paraná RPC, 31 de maio de 2017, versão digital. Disponível em: . Acessado em 16/09/2017. http://normativos.confea.org.br/downloads/5194-66.pdf http://normativos.confea.org.br/downloads/5194-66.pdf http://normativos.confea.org.br/downloads/6496-77.pdf http://www.creasp.org.br/perguntas-frequentes/fiscalizacao http://www.pf.gov.br/institucional/planejamento-estrategico https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/policia-federal-deflagra-a-2-fase-da-operacao-carne-fraca.ghtml 40 lho Nacional do Ministério Público. Todos esses órgãos fiscalizam os governos e as estruturas estatais, que internamente frequentemente contam com corre- gedorias e controladorias, que atuam também como estrutura de fiscalização. Essa quantidade de órgãos de fiscalização evidentemente cria uma significativa capacidade de veto nas estruturas do governo e um enorme potencial de litigância intragovernamental, propiciando um permanente desgas- te do Estado e a sua consequente “desidratação”, o que também implica em redução da capacidade de gestão e, por óbvio, na evidenciação do fracasso dos sistemas de controle e sua desnecessidade em patamares tão elevados. O ambiente político hostil que opera em muitos países enfraquece ainda mais os esforços dos gestores públicos e, ao longo do tempo, isso pode dar origem a demandas populares para o enxugamento do governo e a transferência de muitas responsabilidades públicas para os setores privados ou sem fins lucrativos, promovendo uma maior fragmentação das políticas públicas. (WU et al, 2014, p. 16). Outro aspecto a ser observado é o nível de desenvolvimento so- cial e da Administração Pública, o que importaria na maior ou menor necessi- dade de órgãos especializados em auditoria, propriamente dita, focados priori- tariamente na promoção desses tipos de desenvolvimento. Essa dimensão, especificamente, tem especial relevância no Brasil, tendo em vista que propos- tas constitucionais de desenvolvimento social básico ainda se encontram no campo das expectativas, tornando todo o esforço do sistema de controle redu- zido em seu significado: Sem os ditos direitos sociais: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à in- fância, e assistência aos desamparados, consagrados no caput do art. 6º da Constituição Federal de 1988, com redação dada pela EC n. 26, os controles realizados pelas cortes de contas não se tornam exercidos em sua plenitude. (SILVEIRA, 2008, p. 13). Um exemplo típico dos resultados desse processo é a insistência dos Tribunais de Contas brasileiros em julgar o resultado da gestão com base no índice de aplicação no ensino, o que desde 1988, com a promulgação da Constituição Federal, é aspecto considerado central no julgamento. No caso de 41 São Paulo é recorrentemente um dos principais motivos de rejeição11. Após 29 anos de intensa fiscalização exclusivamente sobre os percentuais de gastos “Estudo do TCE-SP aponta que apenas investimento em ensino público não garante bons resultados na Educação”12, o que dificilmente não seria conside- rado óbvio do ponto de vista administrativo. A partir dessa descoberta, todavia, o TCE-SP não chegou à con- clusão de que havia problemas com sua fiscalização ou com o foco na aplica- ção de recursos, mas de que “a fiscalização é essencial. Como será que esse dinheiro, que vem dos impostos pagos pelos cidadãos, está sendo gasto para os resultados serem tão diferentes? É uma questão de eficiência”13. Essa exuberância de instituições atuando na fiscalização, o insufi- ciente desenvolvimento social e administrativo e a pouca discussão dos pro- blemas com vistas a soluções futuras acabam se tornando peças importantes para o desenvolvimento, no país, da visão simplista de que todos os problemas decorrem da corrupção, o que implica na incessante busca e consequente en- contro de irregularidades em qualquer iniciativa, por melhor que seja, que pro- cure enfrentar a complexidade das questões nacionais. 11 [...] Dentre os principais motivos de reprovação da prestação de contas das Prefeituras estão o não cumprimento dos índices estabelecidos na Constituição Federal para a aplicação de recursos em saúde e educação; descumprimento de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, com ênfase na extrapolação do limite de gastos com pessoal e insuficiência de disponi- bilidade de caixa, insuficiência no pagamento de precatórios; falta de recolhimento de encargos sociais; e déficit orçamentário em grau elevado”. SÃO PAULO (Estado). Tribunal De Contas Do Estado De São Paulo. TCE divulga relatório e análise de julgamento de contas nas Prefeituras. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, 06/09/2013. Disponível em: . Acessado em 08/09/2017. 12 “O estudo inédito realizado a partir do cruzamento entre gastos municipais com alunos e o desempenho das cidades paulistas no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) revela que há administrações que aplicaram menos que a média anual do Estado e tiveram boas notas na prova. Por outro lado, existem municípios que investiram mais que isso e não conseguiram melhorar suas avaliações”. (SÃO PAULO. Tribunal De Contas Do Estado De São Paulo. Estudo do TCESP aponta que apenas investimentos em ensino público não garantem bons resultados na educação. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, São Paulo, 12/07/2017. Disponível em: . Acessado em 08/09/2017). 13 SIDNEI BERALDO (Presidente do TCE-SP). SÃO PAULO (Estado). Tribunal De Contas Do Estrado De São Paulo. Estudo do TCESP aponta que apenas investimentos em ensino público não garantem bons resultados na educação. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, São Paulo, 12/07/2017. Disponível em: . Acessado em: 18/11/2017. https://www4.tce.sp.gov.br/6524-tce-divulga-relatorio-e-analise-de-julgamento-de-contas-nas-prefeituras https://www4.tce.sp.gov.br/6524-tce-divulga-relatorio-e-analise-de-julgamento-de-contas-nas-prefeituras https://www4.tce.sp.gov.br/6524-estudo-tcesp-aponta-apenas-investimento-ensino-publico-nao-garante-bons-resultados-educacao https://www4.tce.sp.gov.br/6524-estudo-tcesp-aponta-apenas-investimento-ensino-publico-nao-garante-bons-resultados-educacao https://www4.tce.sp.gov.br/6524-estudo-tcesp-aponta-apenas-investimento-ensino-publico-nao-garante-bons-resultados-educacao https://www4.tce.sp.gov.br/6524-estudo-tcesp-aponta-apenas-investimento-ensino-publico-nao-garante-bons-resultados-educacao 42 Segundo Jessé de Souza (2009, p. 15-17). A impressão mais compulsivamente repetida por todos os jornais e por todo o debate intelectual e político brasileiro contemporâneo é a de que todos os problemas sociais e políticos brasileiros já são co- nhecidos e que já foram devidamente “mapeados”. [...] Quando se sabe pouco sobre assuntos tão importantes, não só não se admite que não se sabe, como tenta-se também passar a impres- são de que se sabe muito. [...] É isso que explica que a forma como a sociedade brasileira percebe, hoje em dia, seus problemas sociais e políticos seja “colonizada” por uma visão “economicista” e redutoramente quantitativa da realidade social. O economicismo é, na realidade, o subproduto de um tipo de liberalismo triunfalista hoje dominante em todo o planeta (isso se mantém, apesar da recente crise, já que a articulação de uma con- traideologia nunca é automática), o qual tende a reduzir todos os problemas sociais e políticos à lógica da acumulação econômica. [...] Na verdade, a força do liberalismo economicista, hoje dominante en- tre nós, só se tornou possível pela construção de uma falsa oposição entre mercado como reino paradisíaco de todas as virtudes e o Esta- do identificado com a corrupção e o privilégio. Essa oposição simplis- ta e absurda – que ignora a ambiguidade constitutiva de ambas as instituições –, [...] é o que permite, no Brasil de hoje, que a eterniza- ção dos privilégios econômicos de alguns seja “vendida” ao público como interesse de todos na luta contra uma corrupção pensada co- mo “mal de origem” e supostamente apenas estatal. Consequentemente a obsessão com a “solução” da questão da corrupção como panaceia nacional provoca também, inclusive para o sistema de controle, a invisibilidade das questões sociais e a inviabilidade de desenvol- vimento de soluções ou alternativas para essas questões, que sempre serão objeto de fiscalização sob o enfoque da legalidade, da regularidade formal e do combate à corrupção. Ainda segundo Souza (2009, p. 17): [...] os reais conflitos sociais que causam dor, sofrimento e humilha- ção cotidiana para dezenas de milhões de brasileiros são tornados li- teralmente invisíveis. É essa invisibilidade da sociedade e de seus conflitos – que é o prin- cipal produto do tipo de ciência social conservadora que se tornou dominante entre nós nas universidades, na grande imprensa e no debate público – que permite um tipo de economicismo, que, de tão hegemônico, transformou-se na única linguagem social compreensí- vel por todos. É esse contexto desolador que explica que, mesmo nos setores não identificados com a manutenção dos privilégios de mercado de alguns poucos, nossos graves problemas sociais e polí- ticos sejam todos superficialmente percebidos e amesquinhados a questões de “gestão de recursos”. Com isso, cria-se a falsa impres- 43 são de que conhecemos os nossos problemas sociais e que o que falta é apenas uma “gerência” – a crença fundamental de toda visão tecnocrática do mundo – quando, na verdade, sequer se sabe do que se está falando. Assim, se a “razão de ser14” dos Tribunais de Contas brasileiros diz respeito ao aprimoramento da Administração Pública em benefício da soci- edade, a produção do conhecimento necessário ao cumprimento dessa “mis- são” pode estar associada à migração do sistema de controle de um modelo focado em fiscalização para um modelo focado em auditoria. 1.2. Aspectos Históricos dos Sistemas de Controle Ex- terno Estabelecida a relação de poder, nasce, para o oprimido, a obri- gação e, em consequência, para o opressor, a necessidade de fiscalizar seu cumprimento. Em organizações mais complexas esse controle não pode ser executado diretamente, surgindo assim, gradativamente, a necessidade de “classes especializadas”, não apenas no sentido de se exigir o cumprimento da obrigação (em um nível mais próximo da população – os órgãos de arrecada- ção, propriamente), mas também para garantir que os recursos arrecadados não sejam desviados ou desperdiçados (o sistema de controle administrativo). Há registros da existência, ainda que incipiente, dessa classe exercendo funções de controle superior desde aproximadamente 3.200 a.C., referentes à época do faraó Menés I, do Egito: “[...] existia uma classe de funcio- nários públicos, os escribas, indivíduos muito cultos que supervisionavam toda a Ad- ministração Pública, responsabilizando-se pela cobrança de impostos” (BARROS, 1999, p. 223). Na Grécia antiga, em Atenas, periodicamente eram escolhidos dez “tesoureiros” da deusa Palas Athena, aos quais os administradores deveri- am apresentar prestações de contas e justificativas de atos de gestão, o que depois era objeto de aprovação por uma assembleia, em moldes similares ao que ocorre hoje, no Brasil, em que as contas dos governantes são julgadas 14 A missão está ligada diretamente aos objetivos institucionais e aos motivos pelos quais a organização foi criada, na medida em que representa a sua razão de ser. MISSÃO: “Aprimo- rar a Administração Pública em benefício da sociedade por meio do controle externo” (BRASIL. Tribunal De Contas Da União, 2015, p. 44). 44 pelas assembleias legislativas com base em pareceres dos Tribunais de Con- tas. Esse é identificado como o primeiro registro de um “esboço de tribunal de contas” (BRITTO, 2015, p. 9), com identificação mais precisa das atividades de controle, propriamente ditas. Na república romana havia um corpo de funcionários públicos (questores) que, além de cuidar da arrecadação, também realizavam auditorias e auxiliavam o Senado e os magistrados em questões que envolvessem inte- resses do tesouro. Entre suas atribuições se incluíam a regulação dos limites de crédito de contribuintes e funcionários públicos e avaliação das contas dos administradores, inclusive do cônsul, podendo ainda atuar como interventores em províncias e mesmo “expressar a vontade do Estado, criando direitos e obrigações” (BRITTO, 2015, p. 9). No império, a expansão territorial, os intensos intercâmbios co- merciais e a consequente complexidade promoveram acentuado desenvolvi- mento da Administração Pública e privada e, paralelamente, da contabilidade. Nesse contexto, o sistema de controle atingiu destacado status jurídico e os processos foram sistematizados já com vistas, inclusive, à verificação da efici- ência dos administradores (BRITTO, 2015, p. 9). Desde essas primeiras referências históricas nota-se que o funci- onamento dos sistemas de controle sempre esteve ligado a processos de fisca- lização e aos interesses das classes dominantes. 1.2.1. O Sistema de Controle Francês Considerando sua característica paradigmática, inclusive para Brasil, é relevante relatar brevemente a evolução do sistema de controle fran- cês. Segundo Silveira, “[a] criação dos órgãos responsáveis pelo controle de contas públicas se disseminaria por todo o mundo, muitos dos quais (modelo brasileiro) sob a influência do modelo francês” (2008, p. 1). Na França, o sistema de controle baseado em procedimentos de prestação de contas no interesse da monarquia constitui tradição iniciada em 1256, com determinação do “Tribunal do Rei” para que os gestores de peque- 45 nas unidades territoriais apresentassem prestação de contas anualmente, o que também se mantém ainda hoje, inclusive no Brasil (MIGUEL, 2010, p. 1). Em 1319 foi criada a “Câmara de Contas”, que no século XV tor- na-se responsável pela guarda dos bens do Estado cedidos a particulares con- tra pagamento de taxas, tornando-se instituição de elevado status político. Além de arrecadadora, a câmara assumiu a função acessória de julgar as con- tas públicas, passando a impor sanções, inclusive físicas, aos gestores conde- nados. “No uso daquele poder, a referida Câmara sentenciou à morte diversos fraudadores do Tesouro do Rei, mandando cumprir as sentenças no pátio do prédio onde funcionava” (SIQUEIRA in BRASIL.TCU, 1999, p. 145). Entre os séculos XIV e XVIII foram criadas outras câmaras nos principais feudos e em Paris (MIGUEL, 2010, p. 2). Em 1467 os oficiais das Câmaras foram agraciados com a vitalici- edade e inamovibilidade (MIGUEL, 2010, p. 1). É relevante observar que esses institutos, que até hoje se constituem em garantias dos julgadores de contas, surgiram no seio de um regime absolutista e no interesse da nobreza e da pró- pria corporação, e não como prerrogativas necessárias à defesa do interesse social. O crescimento das demandas estatais, inclusive da própria buro- cracia e da necessidade de aumento da segurança para manutenção desse aparato, passou a exigir outras fontes de financiamento, levando à necessidade de estruturação de outros órgãos especializados, o que implicou no início da redução do poder das Câmaras, cuja competência passou a se limitar às con- tas públicas (MIGUEL, 2010, p. 2). É possível identificar, no processo evolutivo do sistema de contro- le francês, em diversas oportunidades, esses movimentos de ampliação e re- dução do poder atribuído às cortes, e de divisão do poder dessas estruturas burocráticas por meio da criação de novos órgãos mais especializados em de- terminados aspectos do processo de controle. 46 Foi, todavia, com a Revolução Francesa, que se formulou um sis- tema de controle externo com a proposta formal de resguardo da transparência administrativa no interesse dos cidadãos, conforme consigna a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: Art. 14º. Todos os cidadãos têm direito de verificar, por si ou pelos seus representantes, da necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração. Art. 15º. A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente pú- blico pela sua administração. Após a Revolução Francesa e com a nova orientação trazida pela Declaração, as Câmaras, identificadas com o poder monárquico e como obstá- culos às reformas, foram dissolvidas em setembro de 1791. Com a dissolução das Câmaras, a Assembleia Constituinte assume as atribuições de regulamen- tar as contas da República e criam um “Bureau de Contabilidade”, técnico, para auxiliá-la (MIGUEL, 2010, p. 2). Cabe realçar, aqui, a semelhança da percepção das Câmaras de Contas como “obstáculos às reformas”15, com a situação descrita neste estudo, da atuação dos Tribunais de Contas brasileiros como agentes de contenção do desenvolvimento. Ambos os papeis desempenhados, de forma consciente ou não, em favor da classe efetivamente dominante, a despeito das atribuições formais que lhes eram e são atribuídas. Observa-se ainda que a origem do locus legislativo dos Tribunais de Contas foi mais um “sequestro” feito pelo próprio Legislativo ao Executivo do que consequência de um processo de diálogo ou uma “evolução natural” do desempenho das atribuições fiscalizatórias daquele poder. Embora esse modelo de fiscalização pelo Legislativo com o auxí- lio de um bureau técnico tenha sido efêmero, foi extremamente inovador no que diz respeito à atribuição prevista no artigo 14º da Declaração, que previa a prerrogativa de se verificar a “necessidade da contribuição pública” e de se 15 “As Câmaras de Contas eram detestadas como instrumentos do domínio real; seus magis- trados eram descritos como agentes monarquistas que tanto haviam impedido as reformas, agora reivindicadas forçadamente” (MIGUEL, 2010, p. 2). 47 “consenti-la livremente”. Tratou-se, assim, de um modelo de controle externo, ainda que teórico, que não se incumbia da arrecadação (já da competência de órgãos especializados), mas que deveria se incumbir de verificar a necessida- de de se arrecadar16, de modo que a proteção dos interesses dos cidadãos se daria tanto pela verificação da correta realização da despesa quanto pela limi- tação da receita em um nível de equilíbrio entre capacidade de pagamento e necessidade do gasto (ou seja, se não extrapolava o necessário para a manu- tenção da força pública e para as despesas de administração). Nesse sentido, havia expressa preocupação com a coleta e a co- brança, o que envolveria tanto a eficácia do processo arrecadatório quanto sua equidade (divisão entre os cidadãos de acordo com suas possibilidades) e também com a duração, de modo que o valor da contribuição deveria ser defi- nido em razão da maior ou menor necessidade a cada momento. O modelo adotado na Revolução Francesa foi o primeiro que pre- via que o processo de prestação de contas deveria satisfazer a um direito da sociedade, e não dos governantes. Portanto, o modelo de controle proposto pela Revolução, manteve a preocupação histórica de fiscalização com vistas à aplicação dos recursos públicos em conformidade com as diretrizes centrais, mas ocupou-se também da apreensão liberal de limitação da ação do Poder Executivo. Surge, assim, com o Estado Moderno, o modelo de controle de- sempenhado por um órgão externo à Administração Pública propriamente dita com duas funções: o controle da adequada gestão dos recursos públicos, por um lado, e a limitação da ação do Estado, por outro. O contexto histórico de ascensão da burguesia com a consagração dos ideais liberais pela Revolução Francesa provocou o afunilamento dessas duas justificações em um único mo- delo institucional. 16 Essa necessidade era dimensionada com base no artigo 13º da Declaração, que prevê que “Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com suas possibi- lidades”. 48 Preliminarmente, deve-se compreender que ambas as motivações não tiveram sua presença na formação dos estados modernos de forma apartada, havendo, porém, uma aparição com intensidades di- versas, em períodos históricos variados, se materializando em distin- tas figuras institucionalizadas17. E é justamente na individualização histórica quanto à forma de aparição predominante, relacionada com ambas as justificações versadas, que se faz capaz de entender os arranjos institucionais e políticos preponderantes na sistemática do controle financeiro-orçamentário contemporâneo de cada instituição em particular. (CABRAL, 2011, p. 65-66). Assim, o efêmero modelo revolucionário, que durou menos de du- as décadas, não constituiu mudança na lógica de vinculação do sistema de controle à classe dominante. Apenas ocorreu que, em caráter transitório, houve um ajuste à necessidade de atendimento de demandas populares e, em caráter permanente, o advento de uma nova funcionalidade necessária à estabilidade da garantia dos interesses da nova classe dominante que ascendeu com a Re- volução – a burguesia. Esse modelo da Revolução Francesa se reveste de especial fun- cionalidade em relação ao modo de produção capitalista, na medida em que pode funcionar tanto como disseminador da orientação central do Estado, quando essa orientação está em sintonia com os interesses do capital, quanto como contentor desse próprio Estado, que já não é mais a extensão direta do poder monárquico, mas estrutura intermediária necessária à reprodução do capital, sempre que ele se desviar de sua função instrumental para aquele mo- do de produção (MASCARO, 2013, p. 16), o que será objeto de aprofundamen- to quando tratarmos das mudanças na estrutura do Estado, em suas formas moderna e contemporânea. Em 1807, com a restauração do despotismo, Napoleão cria a “Corte de Contas”, fortalecida no que diz respeito a meios inclusive jurisdicio- nais necessários à garantia da regularidade no emprego de recursos públicos, mas que, segundo Miguel (2010, p. 2), tinha atribuições restritas a uma abor- dagem de conformidade contábil a ser informada ao imperador, que não se 17 SPECK, Bruno Wilhelm. Inovação e rotina no Tribunal de Contas da União: o papel da insti- tuição superior de controle financeiro no sistema político-administrativo do Brasil. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000, p.31. 49 submetia ao controle externo, estruturado de forma centralizada e única, e não mais por províncias ou municípios. Aqui se identifica novamente o processo de recondução do siste- ma de controle a uma posição de menor destaque e maior subordinação ao Estado, o que se evidencia no papel de ação de vigilância contra a “infidelida- de” celebrizada por Napoleão Bonaparte em discurso quando da criação da Corte de Contas: “Quero que, mediante uma vigilância ativa, a infidelidade seja reprimida e o emprego dos fundos públicos, garantido” (destaque nosso) (apud BRITTO, 2015, p. 21). Essa corte de contas, “repressora da infidelidade” foi que “serviu de modelo para a criação de dezenas de tribunais semelhantes no mundo, in- fluenciando sobremaneira os países latinos” (BRITTO, 2015, p. 21), inclusive o Brasil. Além disso, a Corte de Contas podia responsabilizar os funcioná- rios públicos encarregados das atividades contábeis e financeiras, mas não possuía jurisdição sobre os ordenadores de despesa, podendo recomendar- lhes determinadas práticas sem aplicar-lhes penalidades, o que é mantido até hoje na França. Nas constituições francesas de 1946 e de 1958 concebeu-se um modelo de Corte de Contas voltado ao controle da execução orçamentária e dos gastos públicos, mas com foco também nas exigências da legalidade de- mocrática e do Estado de direito, de modo a atender simultaneamente à ne- cessidade de reconstrução da Europa no pós-guerra e garantir relativa satisfa- ção das pretensões das classes trabalhadoras, controlando as implicações ide- ológicas da guerra fria, “fatores que instaram o Estado a promover políticas sociais, para a diminuição das crescentes insatisfações populares ou para co- optação de grupos de oposição” (MIGUEL, 2010, p. 3). Em 1948 foi criada a Corte de Disciplina Orçamentária, que pos- sui jurisdição sobre os ordenadores (exceto ministros), de modo que o controle externo francês se divide entre as atividades da Corte de Contas, com jurisdi- 50 ção sobre os contadores públicos, e da Corte de Disciplina Orçamentária, com jurisdição sobre os ordenadores de despesa. Em 1982 foram criadas câmaras regionais de contas, com ativi- dades relativas às coletividades territoriais, estabelecimentos públicos locais e prestadores privados de serviços públicos em âmbito regional, com atribuições inclusive de julgamento de contas, e cujas decisões são passíveis de recurso à corte federal. Atualmente, além das análises relacionadas à regularidade da gestão pública, as cortes de contas buscam verificar a eficiência e eficácia das políticas públicas em face dos objetivos planejados, bem como, a partir de 2008, a análise opinativa sobre as próprias políticas (ou seja, sobre os objeti- vos). As auditorias podem ser demandadas pela Assembleia Nacional ou pelo Senado. As cortes podem representar, em caso de ilegalidades, a outras ativi- dades administrativas e judiciais. A jurisdição, propriamente dita, está adstri