UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS – UNESP, UNICAMP E PUC-SP JOSÉ KÉSSIO FLORO LEMOS A Política Energética da Rússia e sua Estratégia de Projeção Internacional no Espaço Pós- soviético (2000-2020) São Paulo – SP 2023 JOSÉ KÉSSIO FLORO LEMOS A Política Energética da Rússia e sua Estratégia de Projeção Internacional no Espaço Pós- soviético (2000-2020) Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional”, na linha de pesquisa “Pensamento Estratégico, Defesa e Política Externa”. Orientador: Luís Alexandre Fuccille São Paulo – SP 2023 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Este estudo revela o papel crucial da política energética russa na geopolítica do espaço pós- soviético, destacando como Moscou utiliza energia como arma política, influenciando alianças e a segurança regional. Avalia-se a interação energética da Rússia com Ucrânia, Geórgia e Belarus (2000-2020), contribuindo para a compreensão das dinâmicas de poder e influência no cenário global. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH This study reveals the crucial role of Russian energy policy in the geopolitics of the post-Soviet space, highlighting how Moscow uses energy as a political weapon, influencing alliances and regional security. It assesses Russia's energy interactions with Ukraine, Georgia, and Belarus (2000-2020), contributing to an understanding of the dynamics of power and influence on the global stage. IMPACTO POTENCIAL DE ESTA INVESTIGACIÓN Este estudio revela el papel crucial de la política energética rusa en la geopolítica del espacio postsoviético, destacando cómo Moscú utiliza la energía como un arma política, influyendo en las alianzas y la seguridad regional. Se evalúa la interacción energética de Rusia con Ucrania, Georgia y Bielorrusia (2000-2020), contribuyendo a la comprensión de las dinámicas de poder e influencia en el escenario global. JOSÉ KÉSSIO FLORO LEMOS A Política Energética da Rússia e sua Estratégia de Projeção Internacional no Espaço Pós- soviético (2000-2020) Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional”, na linha de pesquisa “Pensamento Estratégico, Defesa e Política Externa”. Orientador: Luís Alexandre Fuccille. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) Prof. Dr. Sebastião Velasco e Cruz (Universidade Estadual de Campinas) Profª. Drª. Cristina Soreanu Pecequilo (Universidade Federal de São Paulo) Profª. Drª Daniela Vieira Secches (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) Prof. Dr. Alexandre César Cunha Leite (Universidade Estadual da Paraíba) São Paulo, 26 de setembro de 2023 À memória de meu pai, Celso Lemos, cuja sabedoria, amor e inspiração permanecem vivos em meu ser. AGRADECIMENTOS Agradeço à FAPESP pelo fundamental apoio financeiro concedido ao processo nº 2019/02536-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. Elevo meu pensamento e minha gratidão a Deus, cuja graça e providência têm sido a sustentação invisível de minha jornada acadêmica e existencial. É sob Sua égide que este trabalho foi concebido e realizado. Em memória de meu pai, Celso Lemos, cujo legado de integridade e perseverança continua a ser uma fonte inesgotável de inspiração. Embora ausente no plano físico, sua presença é uma constante emocional e moral em minha vida. À minha mãe, Maria de Fátima Lemos, expresso minha eterna gratidão por seu amor incondicional e por ser o alicerce espiritual sobre o qual pude construir minha trajetória acadêmica. Às minhas irmãs, Karol e Ana Kelly Lemos, agradeço pelo fraterno apoio, companhia e pela alegria que vocês infundem em minha vida. Um especial agradecimento ao Dr. Alexandre Fuccille, meu orientador, cuja erudição e meticulosidade foram fundamentais nessa trajetória. Sua orientação foi mais do que acadêmica; foi um exercício de formação intelectual e ética. Ao Dr. Tom Casier, que durante meu estágio na Universidade de Kent, agiu como um ilustre mentor, ampliando meus horizontes acadêmicos e enriquecendo minha compreensão do campo das Relações Internacionais. Aos meus preciosos amigos, tanto aqueles que compartilham comigo os corredores acadêmicos quanto aqueles que enriquecem minha vida fora deles, minha sincera gratidão. Vocês são o tecido social que dá cor e substância à minha existência. Também estendo meus agradecimentos ao corpo docente e administrativo do Programa San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). A excelência e o comprometimento de cada um de vocês elevam não apenas este programa, mas também o campo acadêmico como um todo. Este trabalho, embora assinado por mim, é fruto de uma rede complexa de relações, apoios e inspirações. A todos vocês, minha gratidão é tão profunda quanto o conhecimento que busquei, tão ampla quanto o campo de estudo que explorei e tão elevada quanto as aspirações que vocês me ajudaram a alcançar. “Não posso prever para vocês as ações da Rússia. É uma charada embrulhada num mistério dentro de um enigma; mas talvez haja uma chave. Essa chave é o interesse nacional russo”. Wilson Churchil RESUMO O principal objetivo desta pesquisa é avaliar os impactos que a política energética russa tem produzido na configuração geopolítica do espaço pós-soviético. Ou seja, identificar se a possível utilização da energia como arma de política externa tem atraído ou afastado os países da referida região à esfera de influência do Estado russo. Partimos da premissa de que Moscou tem procurado utilizar a política energética e sua privilegiada posição monopolista de exportador de hidrocarbonetos para coagir as ex-repúblicas soviéticas a se alinharem politicamente com o Kremlin. Afinal, após a desintegração da URSS a percepção é de que as condições de segurança do país começaram a se deteriorar. Instituições historicamente hostis à Rússia, como a OTAN e a União Europeia, estão se expandido e carregando o interesse geopolítico do Ocidente para bem perto de suas fronteiras, fazendo com que muitos países da região se aproximassem politicamente das potências ocidentais. Para alcançar os objetivos pretendidos, utilizaremos a técnica de estudo de caso combinado com energy weapon model, que se propõe a explicar todas as etapas do uso da energia como arma política, desde a conversão de capacidades até o resultado da coerção. Serão analisadas as políticas energéticas da Rússia para a Ucrânia, Geórgia e Belarus entre os anos de 2000 e 2020, e as repercussões destas para a conjuntura geopolítica regional. Palavras-chave: Rússia; energia; geopolítica; arma energética; Ucrânia; Geórgia; Belarus. ABSTRACT The primary objective of this research is to assess the impacts that Russian energy policy has had on the geopolitical configuration of the post-Soviet space. That is, to identify whether the potential use of energy as a tool of foreign policy has drawn countries from the said region closer to or further from the sphere of influence of the Russian state. We operate under the premise that Moscow has sought to use its energy policy and its privileged monopolistic position as an exporter of hydrocarbons to coerce former Soviet republics into aligning politically with the Kremlin. After all, following the disintegration of the USSR, the perception is that the country's security conditions began to deteriorate. Institutions historically hostile to Russia, such as NATO and the European Union, have been expanding and bringing Western geopolitical interests closer to their borders, causing many countries in the region to politically approach Western powers. To achieve the intended objectives, we will use a case study technique combined with the energy weapon model, which aims to explain all stages of using energy as a political weapon, from the conversion of capabilities to the outcome of coercion. We will analyze Russia's energy policies towards Ukraine, Georgia, and Belarus between the years 2000 and 2020, and the repercussions of these for the regional geopolitical context. Keywords: Russia; energy; geopolitics; energy weapon; Ukraine; Georgia; Belarus. RESUMEN El objetivo principal de esta investigación es evaluar los impactos que la política energética rusa ha producido en la configuración geopolítica del espacio post-soviético. Es decir, identificar si la posible utilización de la energía como arma de política exterior ha atraído o alejado a los países de dicha región de la esfera de influencia del Estado ruso. Partimos de la premisa de que Moscú ha buscado utilizar la política energética y su privilegiada posición monopolista como exportador de hidrocarburos para coaccionar a las ex repúblicas soviéticas a alinearse políticamente con el Kremlin. Después de todo, tras la desintegración de la URSS, la percepción es que las condiciones de seguridad del país comenzaron a deteriorarse. Instituciones históricamente hostiles a Rusia, como la OTAN y la Unión Europea, están expandiéndose y llevando el interés geopolítico de Occidente muy cerca de sus fronteras, haciendo que muchos países de la región se acerquen políticamente a las potencias occidentales. Para alcanzar los objetivos propuestos, utilizaremos la técnica de estudio de caso combinada con el modelo de arma energética, que se propone explicar todas las etapas del uso de la energía como arma política, desde la conversión de capacidades hasta el resultado de la coerción. Se analizarán las políticas energéticas de Rusia para Ucrania, Georgia y Bielorrusia entre los años 2000 y 2020, y las repercusiones de estas para el contexto geopolítico regional. Palabras clave: Rusia; energía; geopolítica; arma de energía; Ucrania; Georgia; Bielorrusia. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1– Matriz Energética Global (1971-2019) .................................................................... 23 Figura 2 - Níveis de Poder Estatal ............................................................................................ 27 Figura 3 - Política Externa com base na Teoria do Realismo Neoclássico .............................. 29 Figura 4 - Estreito De Ormuz ................................................................................................... 36 Figura 5 - Rotas dos Gasodutos Nord Stream 1 e 2 .................................................................. 41 Figura 6 - Países Membros da OTSC (2023) ........................................................................... 51 Figura 7 - Esferas de Influência Almejadas pela Rússia .......................................................... 53 Figura 8 - População que se identifica como Etnia Russa (%) ................................................. 54 Figura 9 - Revoluções Coloridas .............................................................................................. 63 Figura 10 - Núcleo Territorial da Rússia .................................................................................. 66 Figura 11 - Doutrinas russas relacionadas à energia (1993 e 2019) ......................................... 67 Figura 12 - Gastos Militares da Rússia entre 1993 e 2022. ...................................................... 70 Figura 13 - Produção de Petróleo e PIB da Rússia entre 2000-2018 ....................................... 70 Gráfico 1- Exportadores de Petróleo Cru e Condensado da Rússia por Destino (2021) ...........74 Figura 14 - Exportações de Gás Russo por Destino em Trilhões de Pés cúbicos (2021) ......... 75 Figura 15 - O que torna a Rússia importante em termos energéticos ................................ .......76 Figura 16 - Receitas de Gás e Petróleo no Orçamento Federal da Rússia (2000-2017) ......... ..77 Figura 17 - Exportações Russas Totais de Energia, 1991-2030 (mtoe) ................................... 77 Figura 18 – Preços do Petróleo em Rublos ............................................................................... 78 Figura 19 - Dados sobre produção e exportação de energia da Rússia entre 1985-2012. ........ 82 Gráfico 2 - Controle sobre o Setor Petrolífero Russo (%) ........................................................88 Figura 20 - Produção de Petróleo da Rússia em MTM (2000-2022) ...................................... .89 Gráfico 3 - Os 10 Principais países com as maiores reservas de gás natural (2020) .................91 Figura 21 - Aumento da capitalização de mercado da Gazprom em bilhões de dólares americanos (2010-2022). .......................................................................................................... 94 Figura 22 – Gasodutos Russos (existentes e propostos) ........................................................... 97 Gráfico 4 - Dívida do Governo russo em relação ao PIB (%) ..................................................99 Gráfico 5 - Dívida Externa da Rússia em relação ao PIB (%) ..................................................99 Gráfico 6 - Evolução do Fundo Nacional de Bem-estar da Rússia (2008-2019) ................... 100 Figura 24 - Mapa da Geórgia .................................................................................................. 104 Figura 25 - Oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan (BTC) ................................................................ 105 Gráfico 7 - Preço do Gás Natural Importado pela Geórgia vindo da Rússia (2005-2008) .....107 Gráfico 8 - Comércio de mercadorias entre Geórgia e UE-28 (2005–2015) ........................ 111 Gráfico 9 - De Onde Vem o Gás Natural da Geórgia (2000-2020) .......................................113 Gráfico 10 - Vendas de Gás da Gazprom para a Geórgia (Bmc) ...........................................113 Figura 26 - Mapa da Ucrânia .................................................................................................. 116 Figura 27 - Rede de Gasodutos que passam pela Ucrânia ...................................................... 121 Figura 28 - Principais Redes de Gasodutos que ligam Rússia à Europa .................................122 Gráfico 11 - Evolução dos preços de gás e das taxas de trânsito na esteira da crise de 2005-2006 ($/mmc) ..................................................................................................................................126 Gráfico 12 - Parcela do fornecimento de gás interrompida em decorrência da crise do gás de 2009 (% por país) ....................................................................................................................129 Figura 29 - Projeto Nord Stream .............................................................................................132 Figura 30 - Consumo de Gás Natural da Ucrânia por Setor (2000-2020) ..............................134 Figura 31 - Consumo e Importação de Gás Natural da Ucrânia (1991-2017).........................134 Gráfico 13 - Vendas de Gás da Gazprom para Ucrânia (BMC) .............................................135 Figura 32 - Importações de gás da Ucrânia da UE e da Rússia (2008-2021) (Bmc) ............. 136 Figura 33 - Mapa de Belarus .................................................................................................. 141 Gráfico 14 - Passivos de investimentos diretos estrangeiros em Belarus (2018) ..................145 Figura 34 - Margens de lucro estimadas para operações de refinação e exportação de petróleo na Bielorrússia (2005–2010) .................................................................................................. 146 Gráfico 15 - Importação de Gás (bmc) e Petróleo (millions of tons) de Belarus vindas da Rússia .....................................................................................................................................147 Figura 35 - Gasoduto Yamal-Europa ...................................................................................... 148 Gráfico 16 - Subsídios de energia russos para a Belarus (% do PIB da Belarus por ano) .....149 Figura 36 - Preços comparativos do gás da Gazprom para Belarus, Ucrânia e Moldávia (2000– 2020) US$ por mil metros cúbicos. ........................................................................................ 150 Figura 36 - União Econômica Eurasiática .............................................................................. 156 Figura 38 – De onde Belarus importa petróleo bruto e refinado? (2001-2020) ..................... 158 Figura 39 – De onde Belarus importa gás natural liquefeito e gasoso? (2001-2020) ............ 159 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Informações Medotológicas .................................................................................... 18 Tabela 2 - Análise dos Casos .................................................................................................... 19 Tabela 3 - Aspectos e Condições da Arma Energética ............................................................. 33 Tabela 5 - Empresas Detentoras dos Maiores Dutos do Mundo (Petróleo e Gás) ................... 95 Tabela 6 – Participação da Gazprom em empresas nacionais do FSU ..................................... 96 Tabela 7 - Linha do Tempo (Geórgia) .................................................................................... 114 Tabela 8 - Linha do Tempo (Ucrânia) .................................................................................... 139 Tabela 9 - Linha do Tempo (Belarus) .................................................................................... 163 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BCM Bilhões de Metros Cúbicos CEI Comunidade dos Estados Independentes ER Energias Renováveis FSU Former Soviet Union MTM Milhões de Toneladas Métricas NS Nord Stream ONU Organização das Nações Unidas OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte OTSC Organização do Tratado de Segurança Coletiva PIB Produto Interno Bruto TPES Total Primary Energy Supply UE União Europeia SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 15 1.2 Problemas e objetivos ..................................................................................... 16 1.3 Importância e justificativa ............................................................................. 17 1.4 Aspectos Metodológicos .................................................................................. 18 1.5 Estrutura da tese ............................................................................................. 20 2 A POLÍTICA MUNDIAL PELAS LENTES DA ENERGIA ...................... 21 2.1 Energia: fonte de conflito ou cooperação? .................................................... 22 2.2 Realismo neoclássico e a conversão de capacidades ..................................... 25 2.3 Energia e Grande Estratégia .......................................................................... 30 2.4 Arma Política ................................................................................................... 33 2.4.1 Manipulação dos fluxos .................................................................................... 34 2.4.2 Manipulação dos preços .................................................................................... 38 2.4.3 Manipulação da infraestrutura .......................................................................... 40 2.4.4 Interdependência assimétrica: uma fonte de poder? .......................................... 42 2.6 Estratégias de segurança energética .............................................................. 43 3 A RÚSSIA NA ORDEM INTERNACIONAL PÓS-SOVIÉTICA ............. 46 3.1 O entorno estratégico da Rússia (Near Abroad) ........................................... 47 3.1.1 Comunidade dos Estados Independentes (CEI) ................................................ 49 3.1.2 Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) .................................. 50 3.2 Limites e alcance da influência da Rússia no seu Near Abroad.................... 52 3.2.1 A visão dos líderes russos sobre a ordem internacional ..................................... 58 3.2.2 Do otimismo ao medo ....................................................................................... 58 3.2.3 As revoluções coloridas .................................................................................... 62 3.3 A Grande Estratégia da Rússia ...................................................................... 65 3.3.1 O papel da energia da Grande Estratégia da Rússia ........................................... 67 3.3.1.1 Estratégia Energética da Rússia para o período até 2035 ................................... 72 4 RÚSSIA: UMA SUPERPOTÊNCIA ENERGÉTICA? ............................... 73 4.1 Posicionamento da Rússia nos mercados globais de energia ........................ 73 4.2 A Tese de Putin ................................................................................................ 79 4.3 O expurgo dos oligarcas .................................................................................. 82 4.4 Convertendo recursos em poder estatal ........................................................ 84 4.4.1 Controlando o petróleo ...................................................................................... 85 4.4.2 Controlando o gás ............................................................................................. 91 4.5 Putin ou o Petróleo? ...................................................................................... 98 5 ARMA ENERGÉTICA EM AÇÃO ............................................................ 102 5.1 Geórgia ........................................................................................................... 103 5.1.1 Revolução Rosa .............................................................................................. 106 5.1.2 Resposta georgiana ......................................................................................... 109 5.1.3 Diversificando as fontes energéticas ............................................................... 112 5.1.4 Conclusões (Geórgia) ...................................................................................... 114 5.2 Ucrânia ........................................................................................................... 116 5.2.1 Interesses russos na Ucrânia ............................................................................ 117 5.2.2 Relações energéticas ....................................................................................... 118 5.2.3 Ponte entre Rússia e Europa ............................................................................ 120 5.2.4 Revolução Laranja .......................................................................................... 123 5.2.5 Implementando a Arma Energética (2006-2013) ............................................ 124 5.2.5.1 Crise do Gás (2009) ......................................................................................... 127 5.2.5.2 Crise do Gás (2013) ......................................................................................... 130 5.2.6 Nord Stream: o início do fim ........................................................................... 131 5.2.7 Reação e contramedidas de Kiev ..................................................................... 133 5.2.8 Conclusões (Ucrânia) ...................................................................................... 137 5.3 Belarus ........................................................................................................... 141 5.3.1 Alavancagem e Dependência .......................................................................... 142 5.3.2 Rússia utiliza sua arma energética ................................................................... 150 5.3.2.1 Beltransgaz ou subsídio (2004) ....................................................................... 151 5.3.2.2 Moscou insiste na Beltransgaz (2006-07) ........................................................ 151 5.3.2.3 Cortejando o Ocidente (2010) ......................................................................... 153 5.3.2.4 Retornando à esfera russa (2011-2012) ........................................................... 154 5.3.3 Conclusões (Belarus) ...................................................................................... 160 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 165 REFERÊNCIAS............................................................................................. 171 ANEXOS.......................................................................................................... 192 15 1 INTRODUÇÃO O advento do século XXI marcou um ponto de inflexão na reemergência da Rússia como um ator geopolítico proeminente. O país emergiu de um período de declínio econômico e desintegração institucional, caracterizado pela ascensão de oligarcas que constantemente negligenciavam os interesses estratégicos dos governantes russos (Goldman, 2008; Tsygankov, 2001; Perovic 2009). Embora detentora de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e do maior arsenal nuclear do mundo, a Rússia começou a enfrentar com crescente inquietação, uma erosão de sua esfera de influência regional, exacerbada pela expansão da OTAN e da União Europeia em regiões consideradas vitais para seus interesses (Mearsheimer, 2014). Paralelamente, o cenário energético global estava permeado de incertezas. A suposta iminência do "Peak Oil"1 e a escalada militar no Oriente Médio, após os ataques de 11 de setembro de 2001, convergiram para elevar os preços dos hidrocarbonetos a patamares históricos. Este contexto propiciou uma rara oportunidade para a Rússia capitalizar suas vastas reservas de energia e transformá-los em poder estatal (Hogselius, 2019; Hill, 2004). A eleição de Vladimir Putin em 2000 representou um claro divisor de águas no comportamento estratégico do país. Com um mandato lastreado em um robusto apoio popular, Putin empreendeu uma série de reformas destinadas a reverter o declínio do poder estatal e a maximizar os rendimentos provenientes do setor energético em favor do Estado e do seu regime político. Sua administração efetuou uma reestruturação abrangente, que incluiu a obtenção de controle majoritário sobre indústrias estratégicas e a marginalização dos oligarcas do período Yeltsin (Hill & Gaddy, 2013). No que tange às ex-repúblicas soviéticas, o Kremlin enfrentava o importante desafio de contrabalançar a crescente influência dos Estados Unidos e da OTAN na região (Freite & Kanet, 2012). A expansão da OTAN, em duas ondas sucessivas, incorporou várias nações da Europa Oriental e os países Bálticos, exacerbando a percepção russa de um cerco geopolítico orquestrado pelos Estados Unidos e por seus aliados europeus (Pecequilo, 2012). Por essa razão, os países da região passaram a ser alvos de diversas investidas do Kremlin (Mackinno, 2008). Neste contexto de aparente vulnerabilidade relativa, a Rússia buscou estratégias para reafirmar sua influência na esfera pós-soviética, especialmente através de sua política energética 1 Peak Oil refere-se à teoria de que, em determinado momento, a produção mundial de petróleo atingirá seu ponto máximo e, posteriormente, entrará em um declínio irreversível. A preocupação central é que, à medida que o petróleo se torna mais escasso e mais difícil de extrair, os custos de produção aumentariam significativamente, impactando a economia global e potencialmente levando a conflitos por recursos. 16 (Balmaceda, 2015; Česnakas, 2016). Com o objetivo de reafirmar seu protagonismo geopolítico, Moscou instrumentalizou sua política energética como um mecanismo de atração e/ou coerção política (Newnham, 2011). Valendo-se de sua posição monopolista como exportadora de hidrocarbonetos para vários países do seu entorno estratégico, Moscou estabeleceu um relacionamento baseado em “sticks” e “carrots”. Isto é, Estados que se alinharam ao Kremlin foram beneficiados com subsídios energéticos e outros privilégios, enquanto aqueles que se opuseram, tiveram que lidar com elevação de preços e/ou interrupções no fornecimento de gás e petróleo. Esse uso estratégico de recursos energéticos reflete uma política de coerção e atração, empregada para moldar o alinhamento político e econômico dos atores envolvidos. A análise desta dinâmica sugere que a Rússia, valendo-se de sua posição dominante como exportadora de hidrocarbonetos, procurou criar um ambiente geopolítico favorável em sua esfera de influência. 1.2 Problema e Objetivos Esta pesquisa parte da premissa de que a política externa russa é fortemente influenciada por percepções de ameaça e vulnerabilidade, abrangendo preocupações persistentes tanto sobre ameaças externas como internas, possivelmente apoiadas por inimigos externos. Deste modo, nos concentramos precisamente em explorar como a Rússia utiliza seus recursos energéticos como instrumentos de poder geopolítico para salvaguardar seus interesses estratégicos no espaço pós-soviético. Nesses termos, a pergunta que propomos a responder é a seguinte: Quais os impactos da política energética russa na configuração geopolítica do espaço pós- soviético? Mais especificamente, questiona-se aqui se a potencial instrumentalização da energia como ferramenta política por parte da Rússia tem aproximado ou repelido os países da referida região da órbita de influência de Moscou. Portanto, "configuração geopolítica" refere-se ao grau de alinhamento ou divergência entre a Rússia e as ex-repúblicas soviéticas, localizadas em uma área tida como de importância estratégica para a segurança e projeção global da Rússia. Nesses termos, os objetivos da presente pesquisa se concentram nos seguintes aspectos: § Investigar o conceito de “energy weapon” e o papel da energia nas relações internacionais; § Descrever a visão e o posicionamento da Rússia na ordem internacional pós-soviética; § Avaliar o processo de “conversão de capacidades” implementado por Vladmir Putin; 17 § Analisar as relações, em matéria de energia e política externa, da Rússia com os Estados da Geórgia, Ucrânia e Belarus; § Investigar os resultados políticos resultantes da utilização da arma energética russa em relação aos Estados selecionados. 1.3 Importância e justificativa Nos dias atuais, a política energética da Rússia no cenário pós-soviético, especialmente à luz do conflito ucraniano e das mudanças emergentes na dinâmica energética global, destaca- se como um tópico de relevante interesse acadêmico. A ruptura entre a Rússia, o principal exportador de gás natural, e a União Europeia, sua maior consumidora, em 2022, provocou alterações significativas nos padrões energéticos mundiais. O conceito de "arma energética" ganhou notoriedade, sendo frequentemente mencionado em reportagens e declarações oficiais. A hipótese de que a Rússia poderia empregar seus recursos energéticos como uma ferramenta de coação, influenciando a postura dos países europeus face à sua intervenção na Ucrânia, catapultou o assunto para o epicentro da discussão geopolítica internacional. Por outro lado, a agressividade estratégica de Moscou em relação ao seu país vizinho tem demandado a necessidade de compreensão sobre as motivações e os objetivos geopolíticos do Kremlin em relação ao seu entorno estratégico. Estaria a Rússia tomando a iniciativa ou meramente respondendo a estímulos externos? Qual o real valor estratégico da Ucrânia para a Rússia? Como se consolidou a posição de Belarus como um aliado regional tão relevante para Moscou? Qual o papel da energia na estratégia internacional do Kremlin? Neste contexto, o trabalho em tela pode oferecer contribuições na construção de respostas para os questionamentos acima colocados. Além disso, ele visa preencher uma lacuna na literatura nacional existente que frequentemente se concentra nas relações energéticas entre a Rússia e a União Europeia, negligenciando as interações com os chamados Estados-trânsito. Estes Estados, embora financeiramente menos significativos, possuem importância estratégica e securitária, servindo como corredores para o trânsito de hidrocarbonetos entre a Rússia e as potências europeias. Essa posição de destaque torna estes Estados alvos de diversas estratégias do Kremlin, incluindo a arma energética. A necessidade de uma análise rigorosa das relações da Rússia com o seu entorno estratégico é amplificada pela complexidade do cenário pós-soviético, que é permeado por questões ainda não resolvidas acerca dos objetivos, da trajetória e do posicionamento da Rússia no sistema internacional. Compreender essas dinâmicas é essencial não apenas para decifrar a 18 política externa russa em sua esfera de influência, mas também para entender seu papel e suas ambições em escala global. Adicionalmente, esta tese pode potencialmente contribuir para avaliar o impacto da atual ordem energética global sobre a capacidade dos Estados produtores de hidrocarbonetos de exercer coerção política, à semelhança do ocorrido durante as crises petrolíferas da década de 1970. A escassez de pesquisas que abordem essa dimensão, tanto no Brasil quanto no exterior, reforça a originalidade e singularidade deste trabalho. 1.4 Aspectos Metodológicos Metodologicamente, esta pesquisa adota como variável independente (X) a política energética internacional da Rússia e como variável dependente (Y) a configuração geopolítica do espaço pós-soviético. As unidades de análise são as relações energéticas e externas da Rússia com os seguintes Estados selecionados: Geórgia, Ucrânia e Belarus. O período de análise abrangerá eventos ocorridos entre os anos 2000 e 2020 - uma janela que não apenas evidencia a ascensão de Vladimir Putin ao mais alto cargo da Rússia, mas também a crescente presença ocidental no ambiente pós-soviético, a elevação dos valores do petróleo e a revigorada assertividade da Rússia no palco internacional. Tabela 1 - Informações Metodológicas Variáveis e Casos Tipo Países Variável Independente Política Energética Russa Variável Dependente Configuração Geopolítica do Espaço pós-soviético Unidade Política energética/Política externa Casos Rússia, Ucrânia, Geórgia, Belarus (2000-2020) Coleta e Análise de Dados Técnica de Coleta Bibliográfica e documental Técnica de Análise Estudo de caso/Energy Weapon Model Fonte: Elaborada pelo autor. No que concerne aos dados mobilizados, empregaram-se fontes mistas, abarcando tanto aspectos qualitativos quanto quantitativos. Dentre as fontes consultadas, destacam-se documentos oficiais como "Energy Strategy of Russia for The Period Up To 2030" e "Energy 19 Strategy of the Russian Federation until 2035", “The Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation”. Ademais, foram incorporados discursos de agentes políticos, relatórios elaborados por think tanks, matérias veiculadas em imprensa especializada, bancos de dados provenientes de organizações internacionais e entidades governamentais, bem como publicações acadêmicas de elevado fator de impacto. Para avaliar a eficácia da política energética como instrumento de poder político, esta obra empregou o modelo conceitual desenvolvido por Stegen (2011), combinada com a técnica de estudo de caso. O modelo é estruturado em quatro etapas, que segundo a autora, são fundamentais para a conversão de recursos energéticos em capital político. 1) Primeiramente, o Estado deve exercer controle substancial sobre seus próprios recursos energéticos. 2) Em segundo lugar, deve controlar as rotas de trânsito que conectam esses recursos aos mercados consumidores. 3) Terceiro, o Estado deve empregar esses recursos energéticos para avançar seus objetivos políticos, seja por meio de ameaças, punições ou recompensas direcionadas a um Estado cliente específico. Adicionalmente, o modelo sugere uma quarta etapa: 4) a análise da resposta do Estado cliente às táticas coercitivas, sejam elas aumentos de preços ou interrupções no fornecimento. Este estudo propõe ainda uma quinta etapa, que 5) examinará se o Estado cliente diversificou suas fontes de fornecimento energético em resposta a tentativas iniciais de coerção, mitigando assim a eficácia futura da "arma energética" por parte do Estado exportador. Ao término da análise de cada caso, uma tabela sintetizará os resultados, delineando se o Estado importador cedeu às coerções ou, alternativamente, buscou fontes de energia diversificadas para eludir as pressões políticas do Kremlin. Esta abordagem permitirá uma avaliação coerente das tendências de aproximação ou afastamento dos Estados importadores em relação ao Estado exportador. Tabela 2 - Análise dos Casos Condições Resultados Rússia controla as fontes de recursos energéticos ? Rússia controla as rotas de exportação ? Rússia realiza aumentos de preços e / ou interrupções no fornecimento ? Estado importador aceita / concede às demandas da Rússia ? Estado importador diversifica fontes de fornecimento de energia após tentativas iniciais de coerção ? Fonte: Elaborado pelo autor 20 1.5 Estrutura da Tese No que concerne à organização desta tese, após a Introdução (1), sua estrutura se articula da seguinte forma: no capítulo (2), denominado "A Política Mundial pelas Lentes da Energia", busca-se estabelecer uma base conceitual sólida e robusta que norteará as análises subsequentes. Este segmento não se limita a ser meramente expositivo, mas representa um esforço de síntese e posicionamento crítico de conceitos e teorias essenciais para a elucidação do nosso problema de pesquisa. Este capítulo serve como um alicerce teórico, abordando temas como Geopolítica Energética, Realismo Neoclássico, Conversão de Capacidades, Grande Estratégia e Arma Energética. O Capítulo (3), “A Rússia na Ordem Internacional Pós-soviética”, mergulha nas consequências geopolíticas do desmantelamento da União Soviética em 1991. Este segmento não apenas mapeia a evolução da Rússia no palco internacional, mas também examina a assertividade e complexidade de sua política externa, cujas motivações são profundamente enraizadas em percepções de cerco, ameaça, insegurança e vulnerabilidade. O Capítulo (4), “Rússia: Uma Superpotência Energética?”, constitui uma avaliação aprofundada da posição da Rússia no espectro das potências energéticas globais. Este capítulo dissecará as reformas estratégicas implementadas no setor energético sob a administração de Vladimir Putin e avaliará o impacto dessas reformas na configuração geopolítica global, solidificando a posição da Rússia como uma potência influente. O Capítulo (5), "A Arma Energética em Ação", é dedicada a uma análise empírica e multidimensional dos desdobramentos políticos e geopolíticos resultantes da mobilização da arma energética russa. Utilizando estudos de caso de países como Geórgia, Ucrânia e Belarus, este capítulo desvendará as complexidades e as consequências da estratégia russa na dinâmica geopolítica do espaço pós-soviético. Por fim, as Considerações Finais (6) servem como um epílogo analítico, sintetizando as descobertas centrais e as contribuições acadêmicas deste trabalho. Este segmento também busca instigar reflexões futuras sobre os temas e conceitos abordados nos capítulos anteriores. Adicionalmente, a pesquisa é complementada por anexos que fornecem documentos e dados adicionais para a análise do tema central desta pesquisa. 21 2 A POLÍTICA MUNDIAL PELAS LENTES DA ENERGIA Os recursos energéticos são fundamentais para quase todas os segmentos da atividade humana. Talvez não haja outro recurso que afete tanto a segurança, o bem-estar social, econômico e ambiental quanto a energia. Ela move computadores, meios de transportes, instrumentos de comunicação, equipamentos médicos e forças militares. É um recurso de vital importância para a humanidade, especialmente em tempos modernos. Assim, a disponibilidade, a acessibilidade e a confiabilidade destes recursos são condições necessárias para a segurança, a economia e para o desenvolvimento humano. Consequentemente, essa realidade influencia diretamente a trajetória de desenvolvimento dos Estados, tornando a energia não só um importante objetivo, mas também um meio da estratégia e da política nacional (Goldthau, 2013). Simultaneamente, a energia emerge como um vetor significativo que molda o comportamento internacional dos Estados, atuando como um instrumento potencial na condução de suas políticas externas. Para os Estados importadores, a garantia da segurança na oferta energética constitui uma componente essencial de sua agenda de segurança nacional. Em contrapartida, para os Estados exportadores, a estabilização e a expansão de mercados para seus recursos energéticos são imperativos que figuram proeminentemente em suas agendas políticas. (Shaffer, 2009). Poucos percebem, de forma clara, como as relações internacionais são moldadas pela forma como os Estados produzem, comercializam e consomem energia. As estratégias nacionais frequentemente posicionam a energia no epicentro de suas agendas, dada a sua capacidade de engendrar interdependências complexas decorrentes das necessidades de oferta e demanda. Essa complexidade é exacerbada pela distribuição desigual de recursos energéticos a nível global, uma disparidade que inevitavelmente cria uma hierarquia de Estados com maior ou menor acesso a tais recursos. O resultado dessa realidade é que as questões relacionadas à energia se tornam profundamente geopolíticas, o que gera consequências distributivas importantes, uma vez que produz um cenário de vencedores e perdedores (Yergin, 2014). Visto por este aspecto, a energia passou a simbolizar umas das mais importantes variáveis da nova geopolítica do século XXI, conforme apontado por Yergin (2014). De certa forma, sua proeminência sinaliza uma mudança profunda em relação à confiança tradicional no poder político e militar. Ao mesmo tempo, a energia não é menos um vetor de competição geopolítica do que o foram as armas nucleares ou as forças armadas massivas durante o período da Guerra Fria. Embora os mecanismos de influência internacional tenham evoluído para formas mais diversificadas e sofisticadas, os objetivos subjacentes mantêm-se em grande 22 medida inalterados, abrangendo a segurança nacional, a projeção de poder, o controle territorial e a busca por superioridade ou paridade estratégica (Högselius, 2019). Neste contexto, a ausência de acesso a recursos energéticos confiáveis emerge como um ponto de vulnerabilidade geoestratégica, catalisando preocupações em torno do conceito de "segurança energética". Este termo pode ser concisamente definido como o imperativo de assegurar fluxos de energia que sejam simultaneamente disponíveis, acessíveis e confiáveis (Pascual & Elkind, 2010). Assim sendo, o controle sobre os recursos energéticos é um fator determinante de poder, riqueza e de conflito. Focar nesses aspectos intransigentes do comércio internacional de energia corresponde à narrativa dominante da política energética global, ou seja, da geopolítica, que é semelhante à escola realista de pensamento das Relações Internacionais. Nesse contexto, a energia é vista como uma moeda de poder, uma ferramenta estratégica de política externa e uma fonte-chave de conflitos (Klare, 2004). Para a Rússia atual, a posse de extensos recursos de petróleo e gás natural constitui um elemento central de poder, análogo, embora em um contexto diferente, à importância estratégica das armas nucleares durante a era soviética. Enquanto as armas nucleares representavam um poder de dissuasão baseado na capacidade de destruição, os recursos energéticos oferecem à Rússia uma forma de influência mais sutil e pragmática. Ou seja, são ferramentas de poder flexíveis e adaptáveis, adequadas para uma variedade de aplicações geopolíticas, sem as severas implicações associadas ao uso de armamento nuclear. Enquanto o mundo já temia um possível confronto nuclear, agora muitos países, grandes e pequenos, temem e precisam da energia russa. Quando os comunicadores do Kremlin falaram da Rússia como uma “superpotência energética”, a mensagem que pretendiam transmitir é que a Rússia está de volta como uma superpotência global, multidimensional e, acima de tudo, moderna. Afinal, a energia não é apenas um instrumento de influência em si mesma, mas tem poder de impactar outras dimensões do poder - como o militar, político, econômico, tecnológico e cultural/normativo (Fernandes & Rodrigues, 2017). A energia é um recurso estratégico, portanto, uma importante variável na dinâmica de poder global. 2.1 Energia: fonte de conflito ou cooperação? A literatura contemporânea em Relações Internacionais (RI) encontra-se polarizada entre duas teorias antagônicas que debatem se a interdependência energética atua como um catalisador de conflito ou de cooperação entre Estados. A primeira, frequentemente denominada como abordagem geopolítica, posiciona a energia como um elemento intrínseco de conflito 23 interestatal. Esta perspectiva, fundamentada no realismo estrutural da teoria de RI, prevalece tanto em discursos acadêmicos quanto em debates públicos sobre a política energética. Neste arcabouço literário a questão da energia é frequentemente associada as abordagens geopolíticas tradicionais que estão ancoradas nos preceitos centrais do realismo político: dominação, rivalidade e conflito. Dannreuther (2013) define essa perspectiva realista simplesmente como a "geopolítica energética clássica", enquanto Kaplan (2018), destaca a existência da geopolítica energética - que figura com as tradicionais geopolíticas militar, diplomática e econômica. Kaplan argumenta que os recursos naturais e as rotas de comércio - por onde esses recursos fluem até os consumidores finais - são elementos centrais para o estudo da geografia, e consequentemente, para a dinâmica geopolítica global (Kaplan, 2018). A predominância da abordagem realista nos estudos de política energética em Relações Internacionais pode ser atribuída, em grande medida, à contínua dependência global de fontes de energia não renováveis. Segundo dados de 2019, o petróleo representava aproximadamente 31% do consumo energético global, enquanto o gás natural e o carvão contribuíram com cerca de 23% e 27%, respectivamente (International Energy Agency, 2020). Tal cenário implica que Estados ou regiões detentores de abundantes recursos energéticos não renováveis detêm uma vantagem estratégica significativa na arena internacional. Além disso, os atores que controlam a extração e o transporte desses recursos para mercados externos exercem uma influência considerável sobre o equilíbrio político - tanto em escala regional quanto global. Nesse contexto, a energia pode ser analisada eficazmente através de uma lente geográfica e está intrinsecamente entrelaçada com a dinâmica do poder político, conforme articulado por Kaplan (2018). Figura 1– Produção Global de Eletricidade por Recurso (1971-2019) Fonte: International Energy Agency, 2020. 24 A tendência de ver a geografia como um instrumento de política de poder é algo natural nas teorias geopolíticas tradicionais. Ao reduzir a geografia em um objeto que pode ser conquistado ou distribuído para o acúmulo de poder, a geopolítica tradicional torna-se bastante alinhada à teoria realista das RI (Sloan & Gray, 1999). Durante muito tempo esse modo de explicação foi utilizado para simplificar o mapa-múndi para os formuladores de políticas, colocando uma forte ênfase no tamanho, distância e outros atributos físicos dos territórios que poderiam ser subjugados por fatores tradicionais de poder - como a força militar de um Estado (Cohen, 1994). Esta é uma importante razão que explica a popularidade das abordagens geopolíticas tradicionais no campo da política externa ao longo da História, principalmente em momentos em que a energia e segurança estiverem fortemente atrelados. Em contraste, uma teorização rival conhecida como abordagem de governança energética global baseia-se em conceitos da teoria neoliberal institucionalista das Relações Internacionais para explicar o papel dos recursos energético na dinâmica internacional. Segundo Wilson (2019), essa abordagem concentra-se em observar a energia como um domínio internacional potencialmente cooperativo. Ou seja, a interdependência pode ser considerada uma característica definidora da segurança energética, uma vez que pouquíssimos Estados possuem toda a gama de bens energéticos que suas economias demandam. Tal cenário teria catalisado o fenômeno conhecido como "globalização da energia". Segundo essa literatura, a cooperação em matéria energética tem o potencial de gerar benefícios mútuos e atenuar os riscos associados à insegurança energética em escala global (Wilson, 2019). De um lado, os Estados importadores temem que uma oferta restrita e que preços altos impactem negativamente sua segurança energética. Por outro lado, a volatilidade do mercado dificulta o planejamento de investimentos em projetos de energia e em toda infraestrutura relacionada nos países exportadores (Wilson, 2019). Para ambas as partes, as crescentes inquietações acerca da escassez de recursos e das mudanças climáticas servem como catalisadores para a "transição energética", que visa mitigar a dependência de hidrocarbonetos convencionais por meio do fomento de fontes renováveis (Graaf & Sovacool, 2020). Esta abordagem, ao conceber as relações energéticas como potencialmente cooperativas, reenquadra a insegurança e o conflito não como elementos intrínsecos, mas como consequências contingentes de "falhas de mercado" (Wilson, 2019). Tais falhas poderiam ser corrigidas através de ações coletivas, culminando na instauração de uma governança energética global. Apesar de apresentarem preceitos radicalmente diferentes, as abordagens geopolítica e de governança global convergem quanto ao ponto de vista sistêmico da teorização. Elas conceituam a política energética como um jogo de coordenação internacional primariamente 25 jogado entre governos, destacando que o comportamento estatal é explicado pela inferência ao “jogo da interdependência energética”. Neste sentido, o debate propõe explicar se essa dinâmica é de soma zero – securitizado e conflitante (visão geopolítica); ou de soma positiva – não- securitizado e cooperativo (governança global). Dessa forma, as teorizações de RI sobre política energética reproduzem os termos do chamado “debate Neo-Neo”, que promove o embate entre a realismo estrutural e o institucionalismo neoliberal (Baldwin, 1993). Teoricamente, tal teorização coloca a literatura de Relações Internacionais (RI) sobre política energética em tensão com avanços mais contemporâneos no campo. Durante os anos 1980, no contexto do "segundo debate do Estado", teóricos de RI questionaram o enfoque sistêmico de teorização adotado tanto pelo realismo estrutural quanto pelo institucionalismo neoliberal (Hobson, 2000). Segundo essa crítica, as teorias sistêmicas falham em capturar adequadamente o impacto das políticas domésticas sobre as políticas externas, tratando as preferências estatais como variáveis exógenas e não explicadas. Consequentemente, essas teorias sistêmicas seriam insuficientes em considerar as particularidades institucionais específicas inerentes a cada Estado (Hobson, 2000). Nesse sentido, percebe-se que as abordagens tradicionais das RI, particularmente no estudo de política energética, carecem de um olhar mais cuidadoso e aprofundado que utilize a combinação de fatores sistêmicos e domésticos em sua lente de análise. Contudo, essa limitação não deve ser vista como um obstáculo insuperável. Na seção subsequente, exploraremos qual teoria das Relações Internacionais pode ser eficaz em preencher essa lacuna analítica, abordando fatores sistêmicos e domésticos sem sacrificar a parcimônia teórica. 2.2 Realismo Neoclássico e a Conversão de Capacidades Como os Estados, ou mais especificamente os tomadores de decisão e instituições que agem em seu nome, avaliam as ameaças e oportunidades internacionais? Como os Estados procedem para extrair e mobilizar os recursos necessários para implementar as políticas externas e de segurança? Qual a função dos recursos energéticos nesse processo? Nesta seção buscaremos responder esses questionamentos à luz do Realismo Neoclássico das Relações Internacionais (RI), teoria escolhida como modelo analítico para explicar a instrumentalização do setor energético, por parte dos líderes russos, com objetivo de alcançar interesses de política externa - neste caso o reposicionamento da Rússia na distribuição de poder global. O realismo neoclássico é o reflexo da tendência, entre os analistas de RI, de buscar maneiras de combinar categorias explicativas de natureza materiais/objetivas, com as subjetiva 26 - de natureza externa e interna. É uma abordagem de política internacional que enfatiza que o escopo e a ambição da política externa de um país são impulsionados primeiro e principalmente por seu lugar no sistema internacional e, especificamente, por suas capacidades de poder material relativo; mas que também reconhece a importância das variáveis intervenientes no nível da unidade (Burchill, 2001). Percepções, memórias históricas, cultura e outros fatores subjetivos, por exemplo, desempenham um papel importante na seleção e implementação de respostas políticas ao ambiente internacional (Lobell, Ripsman, & Taliaferro, 2009). Olhando um pouco de volta ao passado, uma das principais premissas realistas é que os Estados visam a provisão de segurança, manutenção e/ou maximização de poder, influência e soberania (Burchill, 2001). No entanto, os realistas clássicos também notaram que não apenas fatores materiais (como a disponibilidade de recursos naturais, o estado de desenvolvimento militar-industrial e socioeconômico, tamanho das forças armadas etc.), mas também subjetivos ou sociopsicológicos (por exemplo, competência da elite política, caráter nacional, moral etc.) importam (Baumann, Rittberger, & Wagne, 2001). Além disso, eles notaram que nem todas as políticas externas seguiram sempre um curso tão racional, objetivo e não emocional. No realismo neoclássico, os principais atores do sistema internacional não são os Estados, mas aqueles que os lideram. Os estadistas, não as nações, são os que enfrentam e constroem a arquitetura do sistema internacional. Para os teóricos desse pensamento, os tomadores de decisão são incapazes de utilizar todo o poder que um Estado tem - entendido como capacidade militar, econômica e/ou energética. Os estadistas conseguem usar apenas parte do poder nacional que o aparelho de Estado pode extrair. Zakaria (1998) sugere a seguinte hipótese acerca do realismo neoclássico: as nações tentam expandir seus interesses nacionais no exterior quando os decisores centrais percebem um aumento relativo no poder dos outros Estados (Zakaria, 1998). Sendo assim, para a teoria realista neoclássica das Relações Internacionais a variável independente com a qual a política externa é explicada é a preocupação dos Estados pela posição relativa que ocupam na distribuição de poder internacional. Concomitantemente, o realismo neoclássico busca (re)introduzir de maneira sistemática importantes fatores domésticos em suas explicações de política externa. Geralmente esses fatores traduzem-se em recursos (aqui podemos encaixar a energia), capacidade de mobilização, influência dos atores sociais domésticos e grupos de interesse, nível de coesão das elites internas, entre outros. Esses elementos não são considerados os principais determinantes do comportamento internacional dos Estados, e sim variáveis intervenientes, presentes em modelos que priorizam a explicação por meios dos fatores sistêmicos. 27 Nesse contexto, o Realismo Neoclássico emerge como uma abordagem teórica apta a elucidar o problema de pesquisa em questão. Assim, o declínio da Rússia no sistema internacional e sua subsequente percepção de ameaça frente às potências ocidentais seriam, de acordo com esta teoria, fatores influentes na formulação da política externa do Kremlin. Embora as Relações Internacionais comportem uma pluralidade de dimensões analíticas, optamos por concentrar nossa atenção no Realismo Neoclássico, dada sua capacidade de fornecer explicações robustas acerca das aspirações dos líderes russos. Para solidificar tal argumentação, é pertinente invocar uma obra seminal na literatura de estudos internacionais da década de 1970: Three Approaches to the Measurement of Power in International Relations, de Jeffrey Hart. Neste escrito, Hart postula que o poder estatal pode ser categorizado em três estratos distintos: (1) recursos ou capacidades; (2) conversão dessas capacidades por meio de processos nacionais; e (3) eficácia dos resultados (Hart, 1976). O ponto de partida para pensar o desenvolvimento de métricas para o poder nacional é ver os Estados como "contêineres de capacidade"2, que só conseguem transformar seus recursos em poder (de fato) através de um processo de conversão. Assim, este processo de conversão torna-se necessário e fundamental para que os Estados alcancem seus objetivos no âmbito externo. Figura 2 - Níveis de Poder Estatal Fonte: Elaborado pelo autor. O poder obtido através da conversão dos recursos mobilizados por um Estado é fungível, segundo Hart. Ou seja, pode ser facilmente convertido de um tipo de poder para outro - o poder econômico pode ser convertido em poder em militar, por exemplo. No entanto, existem certas limitações, nem todo poder pode ser convertido para um outro tipo. O poder do Estado é descrito 2 Por capacidade entenda-se demografia, economia, tecnologia e recursos naturais. Recursos ou Capacidades Conversão de capacidades através de processos nacionais Poder Estatal 28 como a capacidade do aparato estatal de extrair poder nacional para alcançar seus fins. O Estado aqui é entendido como: uma organização composta por várias agências lideradas e coordenadas por seus líderes. A liderança (autoridade executiva) é que tem a capacidade ou autoridade de fazer e implementar as regras vinculativas para todas as pessoas, formular e executar regras para as organizações sociais em um determinado território, usando a força quando e se necessário (Zakaria, 1998). Naturalmente, diferentes Estados têm diferentes capacidades e, portanto, diferentes posições na hierarquia da distribuição de poder global. Para ter maiores possibilidades de expandir seus interesses para o exterior, um Estado precisa de instituições estatais capazes de extrair poder nacional de suas riquezas e recursos. A abordagem do realismo neoclássico do poder do Estado é racional e objetiva, pois os governos, e não as nações, moldam a política externa e selecionam ferramentas para a implementação de seus interesses (Hart, 1976). Nesse sentido, os recursos energéticos não fazem parte da política externa de um país até que seja possível convertê-los em ferramenta de poder por meio de processos estatais. De acordo Zakaria (1998), os Estados se expandem como consequência dos recursos materiais. O realismo neoclássico oferece bons caminhos para a análise dos recursos energéticos na política externa, uma vez que a teoria se concentra no poder material e destaca a importância da estrutura doméstica do Estado, bem como a percepção dos estadistas acerca do sistema internacional. Esses aspectos criam a oportunidade de explicar as diferentes posições dos recursos energéticos na política externa de diferentes Estados. Permitem inclusive analisar mudanças na atuação da política externa em determinados períodos em que o poder energético nacional não tenha mudado (Dannreuther, 2013). Os exemplos da Rússia ou da Venezuela ilustram bem esse argumento, uma vez que os recursos energéticos se tornaram mais importantes na agenda de política externa após mudanças de governo (quando Vladimir Putin e Hugo Chávez assumiram os cargos). Ademais, os aspectos apresentados pelo realismo neoclássico permitem a análise da relação entre recursos energéticos e política externa não apenas nos Estados exportadores, mas também nos importadores e nos países de trânsito. 29 Figura 3 - Política Externa com base na Teoria do Realismo Neoclássico Fonte: Baumann, Rittberger, & Wagne (2001). Dito isto, o realismo neoclássico sugere uma abordagem analítica mais simples, sem a necessidade de observar a política interna de um país em pleno detalhes. Quando mudanças nos governos ou na percepção dos governos são encontradas, elas podem ser usadas para explicar alterações nos interesses dos Estados no sistema internacional, e consequentemente, mudanças na política externa. Isso evita uma análise doméstica muito profunda que provavelmente distorceria o foco e daria atenção a outros objetos, ao invés daquele desejado. Tanto o realismo neoclássico quanto o neorrealismo acentuam as restrições do sistema internacional, mas sem deixar de considerar as restrições domésticas para a análise do comportamento externo. Isso é especialmente importante para o estudo dos recursos energéticos na pauta de política externa, pois possibilita explicações a respeito das principais diferenças entre os Estados pertencentes a um mesmo grupo (exportadores, consumidores e Estados de trânsito). Outro ponto observável nas lentes da teoria realista neoclássica é que utilização dos recursos energéticos para fins de política externa são usados mais comumente em Estados onde o setor de energia está mais próximo ao governo, em comparação com Estados onde o setor de energia é predominantemente privado (Ghaleb, 2011). Ou seja, é mais difícil transferir recursos de energia do poder nacional (capacidades) para o poder estatal (poder dos resultados), onde o setor de energia é mais independente em relação às estruturas governamentais. Isso explica o porquê de os Estados menos democráticos usarem os recursos energéticos para projetar seus interesses no exterior de forma mais comum e eficiente (Moran & Russell, 2009). Em resumo, o realismo neoclássico é uma teoria em que variáveis domésticas interagem com forças sistêmicas para manter a parcimônia. É uma teoria que permite analisar o papel que 30 a segurança energética desempenha na política externa dos Estados. Por este ângulo de análise, as interações e variáveis estão intimamente interligadas, sugerindo amplas explicações e previsões. Assim, o “nacionalismo energético russo”, que veremos nos capítulos posteriores, pode ser entendido como um esforço da Rússia de converter a imensa capacidade energética do país em poder e influência na ordem internacional. Esse processo é apontado como uma das engrenagens do ressurgimento russo nos últimos anos. O aumento do protagonismo da Rússia nas relações internacionais é considerado um resultante da estratégia de instrumentalizar o controle sobre sua capacidade energética para alavancar sua economia e usar a exportação de gás e petróleo como arma política no plano internacional. O petróleo e o gás natural são meio para se chegar a outro patamar, o de reforçar as bases para que o país tenha condições de exercer uma política exterior de maior envergadura. Ou seja, a energia tem sido um elemento central dentro da grande estratégia russa. 2.3 Energia e Grande Estratégia A interação entre energia, segurança e grande estratégia parece ser um ambiente apropriado para investigar, através de uma perspectiva mais ampla, a estreita relação entre recursos energéticos e segurança. Um atento olhar sobre uma estrutura estratégica pode nos revelar como a energia influencia um conjunto de interações entre países, atores e instituições globais. Antes de tudo, é importante destacar que o conceito de grande estratégia é bastante abrangente. Deste modo, nos deteremos a três definições operacionais amplamente aceitas pela literatura das Relações Internacionais, da História e dos Estudos Estratégicos. Feaver (2009), por exemplo, define a grande estratégia como um conjunto de planos e políticas mobilizadas para alcançar interesses nacionais estratégicos. Já para o historiador John Lewis Gaddis, a grande estratégia é um processo pelo qual um Estado relaciona fins estratégicos de longo prazo aos meios, sob a perspectiva geral e duradoura, objetivando promover o interesse nacional (Jeffrei W. Taliaferro, 2012). Por outro lado, Biddle (2016) argumenta que a grande estratégia identifica e articula os objetivos de segurança de um determinado ator político em um determinado momento, e delineia como eles serão alcançados através da combinação de instrumentos de poder - incluindo instrumentos militares, diplomáticos e econômicos. Percebe- se, desta forma, que as definições de grande estratégia acima apresentadas enfatizam três elementos-chave: 31 1. Fins/objetivos; 2. Meios/recursos disponíveis para alcançar seus objetivos; 3. Formas/instrumentos/ferramentas para execução. A grande estratégia dos países importadores de energia frequentemente visa garantir os suprimentos necessários para o consumo doméstico ao custo de preços acessíveis. No entanto, a maioria desses países possuem poucas ferramentas geopolíticas e acabam dependendo do mercado global para obter sua energia. Nesse caso, suas estratégias priorizam a criação de reservas de moeda estrangeira com o objetivo de adquirir esses suprimentos no mercado internacional. Países exportadores, no entanto, podem empregar estratégias políticas, diplomáticas, econômicas e militares para alcançar seus objetivos energéticos e políticos. Isto é, garantir recursos financeiros e influência através da venda de seus hidrocarbonetos. Neste sentido, a busca por segurança energética pode criar tensões que levam a conflitos indiretos. Em outros casos, a necessidade de energia de um determinado país pode gerar tensões que antecedem conflitos violentos. Embora a guerra não seja a estratégia adotada para obter recursos energéticos, o confronto armado pode ser um subproduto de outras estratégias usadas para garantir o acesso a energia. Em termos atuais, conflitos ou guerras podem surgir de uma competição global por recursos, especialmente se os países acreditarem que o mundo está atingindo seus limites energéticos. Este assunto é exaustivamente tratado por Klare (2004). Geralmente, a energia é vista somente como sendo um fim/objetivo final de um país. No entanto, ela também tem um importante papel, tanto nos meios de uma grande estratégia, como pode ser a forma pela qual um país alcança seus objetivos não energéticos (Goldthau, 2013). Os países usam sua produção de energia ou sua demanda de energia para tentar moldar a arena internacional de uma forma que seja mais favorável aos seus interesses nacionais mais amplos. E a energia também pode fornecer as receitas (os meios) para os países seguirem uma política externa específica, ou agendas domésticas que podem ter implicações na segurança internacional. Devido à importância estratégica dos recursos energéticos, eles são capazes de provocar impactos e consequências geoestratégicas, tornando-se instrumentos de poder no tabuleiro geopolítico global. Eles permitem influenciar tanto o sistema de forma abrangente, como seus atores individuais, que podem mobilizar o setor de energia como um recurso de poder nacional. Conforme apontado por Česnakas (2016), para que se extraia poder nacional do setor de energia três elementos precisam ser considerados: determinismo geográfico e tecnológico, capacidade econômicas e decisões políticas do Estado. Portanto: 32 § O Estado deve possuir recursos energéticos em seu território; § O Estado deve ser capaz de extraí-los de forma econômica e racional, utilizando as tecnologias disponíveis; § O Estado deve dispor de recursos econômicos para desenvolver a extração, produção, refino e exportação; § Os tomadores de decisão responsáveis pelo Estado devem exercer uma vontade política de explorar e exportar estes recursos. O determinismo geográfico divide os Estados entre consumidores e fornecedores. Deve- se ressaltar que o determinismo geográfico, tecnológico e econômico impacta as posições dos Estados na distribuição de poder global e permite seu trânsito de um grupo para outro. Ou seja, fornecedores podem se tornar importadores e/ou vice-versa. Tal dualismo pressupõe que para os países-importadores os recursos energéticos são os objetivos de uma grande estratégia, para ganhá-los transferem seu poder econômico por meio do comércio (pagando em moeda, bens ou serviços). Outras transferências de poder em troca de recursos energéticos são possíveis através de cooperação política, econômica, militar, tecnológica etc. Em outros casos, um país- importador pode tentar adquirir recursos utilizando formas de poder com as quais os fornecedores não concordam, e que são consideradas ilegítimas: ameaças, chantagens e ações militares (como será abordado na próxima seção). Em decorrência da dicotomia dos Estados no sistema energético global é natural que para os países-fornecedores os recursos energéticos se transformem em instrumentos que permitam converter o poder do setor energético em poder econômico ou de qualquer outra natureza para ganhar/aumentar sua influência sobre outros atores do sistema internacional. A importância dos recursos energéticos como instrumentos de política externa está aumentando à medida em que instrumentos militares de política externa não são considerados pelos tomadores de decisão. Deste modo, como base para o crescimento econômico, a energia estará no centro das avaliações de praticamente todos os países. De acordo com Goldthau (2013), um dos impulsionadores da grande estratégia japonesa seria a dependência quase completa do país de fontes externas de energia. Assim, qualquer estratégia política e militar seria elaborada, pelo menos em parte, para garantir um acesso confiável e o menos dispendioso possível a recursos externos. Em contraste, a Rússia – um país rico em energia- consideraria esses recursos como um enorme ativo estratégico, e naturalmente desenvolve uma grande estratégia baseada em sua energia para o avanço de outros objetivos não energéticos nas esferas internacional e regional. 33 Em outras palavras, a energia tem um grande papel na formulação de estratégias nacionais, uma vez que ela é base para o crescimento econômico e é um fator chave no cenário internacional. 2.4 Arma política Existe uma “arma energética”? Os produtores podem bloquear o fornecimento de energia a um Estado ou grupo de Estados para atingir objetivos políticos ou para enfraquecer um oponente? Como os recursos energéticos podem ser manipulados para fins políticos? Existem pelo menos três aspectos do comércio e investimento internacional de energia que os Estados podem tentar "manipular" para fins geopolíticos: (1) fluxos de energia, (2) preços e (3) infraestrutura (Graaf & Sovacool, 2020). Essas diferentes técnicas de política energética podem servir a objetivos que são benignos - por exemplo, fomentar a paz e a interdependência entre países - ou menos benigna - para exercer influência geopolítica sobre outros Estados. Em ambos os aspectos, o ator geopolítico que usa a energia como arma deve cumprir três condições: (1) exportar em escala global ou regional - para estar em posição de impactar os preços de mercado; (2) precisa possuir uma multidimensionalidade estratégica que permita resistir a ameaças e pressões externas; e (3) finalmente, deve gozar de uma economia estável o suficiente para acomodar internamente as perdas econômicas acarretadas por seu jogo geopolítico (Fernandes & Rodrigues, 2017). Tabela 3 - Aspectos e Condições da Arma Energética Aspectos da Arma Energética Condições para o Ator Geopolítico 1 Interrupções dos fluxos de energia Ser exportador em escala global ou regional 2 Manipulação dos preços Possuir multidimensionalidade estratégica 3 Manipulação da infraestrutura Economia estável Fonte: Elaborado pelo autor. 34 2.4.1 Manipulação dos fluxos Os Estados podem utilizar a arma energética ao tentar manipular os fluxos transfronteiriços de energia. Isso pode ser feito por meio de sanções ou boicotes, como no famoso caso do embargo do petróleo árabe de 1973 (Graaf & Sovacool, 2020). No início da década de 1970, havia uma grande insatisfação dos países árabes para com os Estados Unidos. Este quadro era alimentado pelo comportamento da Casa Branca em relação ao conflito árabe- israelense. Em 1972, o rei saudita chegou a alertar o presidente Nixon de que se caso não mudasse sua política em relação à Palestina, os Estados Unidos iriam sofrer retaliações de ordem econômica. Os exportadores árabes, pela primeira vez, passaram a reconhecer o petróleo como um importante instrumento de poder. Deste modo, em 1973, “de posse da ‘arma do petróleo’, embargaram o produto para os países ocidentais em resposta ao apressado reabastecimento de armas, pelos Estados Unidos, a um Israel sitiado [e] abalado por um ataque- surpresa durante o Yom Kippur” (Yergin, 2014, p. 279). A intenção era forçar a Casa Branca a reduzir seu apoio político, econômico e militar a Israel. Nem mesmo o bom relacionamento de Washington com Riad foi suficiente para a evitar o apoio dos xeiques sauditas ao embargo árabe. Naquele momento a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) representava 50% da produção de petróleo mundial, o que colocava muita pressão sobre as empresas petrolíferas. Em consequência, o preço do barril de petróleo disparou e chegou a quadruplicar no início de 1974. O fornecimento internacional de petróleo entrou em choque. Economicamente, o efeito do embargo da OPEP foi devastador. A estagnação econômica e o sentimento de insegurança começaram a assolar não só a economia americana como a mundial (Jentleson, 2010). No entanto, as consequências do embargo foram muito além de fatores econômicos, foram também políticas. A grande dependência europeia do petróleo árabe induziu os líderes do continente a pressionar Washington para que mudasse sua política em relação ao Oriente Médio. Os Estados Unidos decidiram não negociar com os árabes produtores de petróleo. Ao invés disso, dirigiu seus esforços diplomáticos em prol de um acordo entre Egito, Síria e Israel. Esta iniciativa diplomática resultou, em 1974, nos acordos de Camp David3. Embora esse choque econômico tenha levado os Estados Unidos a negociar um cessar- fogo, o tiro acabou saindo pela culatra da OPEP. O embargo do petróleo desencadeou um movimento em direção a uma maior eficiência energética: países consumidores de petróleo 3 Os Tratados de Camp David, formalizados em 1978 sob a mediação dos Estados Unidos, inauguraram uma era de paz entre Israel e Egito. No âmbito desse acordo, o Egito reivindicou com sucesso a restituição da Península do Sinai, ao passo que concedeu reconhecimento diplomático a Israel, marcando um precedente ao se tornar o primeiro Estado árabe a tomar tal iniciativa. 35 como o Japão começaram a se afastar das indústrias intensivas em petróleo, e nos Estados Unidos, a demanda por carros maiores e menos eficientes em combustível foi reduzida. A crise alimentou um programa nos Estados Unidos para buscar a independência energética, e os preços mais altos do petróleo desencadearam uma busca por fontes alternativas de suprimento de energia não-OPEP, principalmente as localizadas no Mar do Norte, Alasca e na bacia do Cáspio. Há evidências que a manipulação de fluxo transfronteiriço também foi utilizada no caso do gás natural. As polêmicas guerras do gás russo-ucranianas (elementos que serão melhor analisados nos próximos capítulos) têm sido frequentemente interpretadas como exemplos da chamada "arma energética" russa (Graaf & Sovacool, 2020). O envio de gás natural da Rússia para a Ucrânia foi, de fato, cortado em janeiro de 2006, em janeiro de 2009 e em junho de 2014 (Kirby, 2014). O fato de a estatal Gazprom ter o monopólio legal dos fluxos de exportação de gás apenas reforça a visão de que o Kremlin pode decidir abrir ou fechar as torneiras de gás por motivos geopolíticos. Isso gerou vários apelos de políticos europeus no sentido de “desarmar” a arma energética da Rússia (Reuters, 2014). Embora haja poucas dúvidas de que a Rússia, ocasionalmente, utilize sua posição de maior fornecedor de gás do seu “entorno estratégico” como uma ferramenta para ganhar influência política, o exemplo é menos explícito do que o embargo do petróleo árabe (Grigas, 2012). As ameaças de gás da Rússia sempre foram embrulhadas em um discurso de obrigações comerciais e legais - conforme veremos em mais detalhes nos próximos capítulos. Outra oportunidade para interromper os fluxos físicos de energia está no segmento intermediário - isto é, no transporte (Collins, 2017). Os fluxos de energia baseados em rede, como oleodutos e gasodutos, ou linhas de transmissão de eletricidade, oferecem oportunidades para sabotagem ou ataques. Dutos de longa distância, que atravessam outros países, podem ser bloqueados pelos países de trânsito. Embora na maioria das vezes esses dutos operem sem nenhum problema notável, há registros de interrupções por motivos políticos. Um caso em questão é a exportação de gás do Turcomenistão para Europa, via Rússia. Em meados da década de 1990, a Gazprom, como única proprietária dos gasodutos que levam o gás turcomano para a Europa, suspendeu as exportações do país e exigiu um aumento nas taxas de trânsito. Na ocasião o Turcomenistão estava vulnerável e não teve como resistir, visto que não havia alternativas de exportação viáveis na época (Vasánczki, 2011). Em relação ao petróleo, os riscos de transporte estão principalmente associados aos chamados “pontos de estrangulamento” - ou seja, vias navegáveis estreitas por onde passa um número significativo de petroleiros diariamente. As apreensões recentes de petroleiros internacionais pelo Irã, no verão de 2019, revelam a importância estratégica destes pontos. O 36 Estreito de Ormuz, que liga os produtores de petróleo do Oriente Médio aos principais mercados globais é a artéria de petróleo mais importante do mundo. Em seu ponto mais estreito, tem apenas 21 milhas de largura e a faixa de navegação tem tão somente 2 milhas de largura em todas as direções (Ver Figura 4). A cada dia, cerca de 30 por cento de todo o petróleo bruto comercializado por via marítima passa por ele, bem como um volume significativo de GNL (Friedman, 2012). O Irã ameaçou várias vezes interromper o fluxo de energia através de Ormuz, muitas vezes em resposta às sanções dos Estados Unidos. No verão de 2019, por exemplo, vários petroleiros foram apreendidos pelo Irã em Ormuz, levando vários países ocidentais a enviar navios de guerra para a região (BBC, 2019). Em Pequim, os estrategistas chineses estão preocupados com o domínio naval dos Estados Unidos no Golfo Pérsico, no qual poderia ser explorado para bloquear as exportações de petróleo para o Leste, em caso de um potencial conflito entre Washington e Pequim (Carr, 2020). Figura 4 - Estreito De Ormuz Fonte: Marimón (2019). Não são apenas os exportadores ou os países de trânsito que conseguem empunhar a "arma da energia". Os importadores também podem fazer uso dessa ferramenta através do embargo. Em meados da década de 1980, por exemplo, a Europa e os Estados Unidos uniram- se aos esforços de vários países em desenvolvimento para embargar o envio de petróleo à África do Sul, em um sinal de repúdio ao Apartheid (Crawford, 1999). Outro caso que merece destaque são as sanções sobre a indústria de petróleo do Irã. Há décadas o país sofre restrições por parte dos Estados Unidos e da União Europeia, que pune severamente empresas que investem e negociam com agentes do setor energético iraniano. Em 2015, Teerã chegou a firmar um acordo 37 histórico com seis potências mundiais, onde aceitou negociar restrições em seu programa nuclear em troca de alívio dessas sanções. Em 2018, no entanto, os Estados Unidos sob a presidência de Donald Trump, desistiu do acordo e as sanções passaram a vigorar novamente. O impacto dessas restrições sobre as exportações de petróleo é gigantesco. A título de exemplo, entre 2011 e 2013, as exportações de petróleo iranianas despencaram de 2,5 milhões (bpd) para 1,2 milhão de (bpd) (Sharafedin & Nasralla, 2021). Alguns tipos sanções não objetivam restringir as exportações de energia de um país produtor, afinal, dependendo do peso do país alvo, tal ação elevaria os preços globais do produto e acabaria impactando negativamente também nas receitas do país importador. Em vez disso, algumas sanções têm como função impedir o investimento e o comércio, afetando assim o crescimento futuro da indústria de energia do país alvo (Graaf, Sovacool, et al., 2016). Essa abordagem serviu de base para as sanções impostas sobre a Rússia em 2014 - uma resposta de países ocidentais e do Japão à anexação da Crimeia (Takenaka, 2016). Naquele momento, bloquear as exportações da Rússia significava retirar do mercado mundial de petróleo cerca de 10 milhões (bpd). O cálculo estratégico apontava ser impraticável e perigoso para a economia global. De igual modo, bloquear cerca de 160 bilhões de metros cúbicos de gás natural russo para a Europa prejudicaria as economias europeias, e não só a russa. Portanto, as sanções de energia aplicadas sobre a Rússia após 2014 acabaram se restringindo ao petróleo, e foram projetadas apenas para limitar o crescimento futuro da produção provinda de reservas localizadas no Ártico, em águas profundas ou das reservas de xisto (Kirchner, 2019). Para além das sanções e embargos visando restringir as exportações de energia de um país rival, às vezes os atores políticos buscam exercer influência geopolítica, não retendo o fornecimento de petróleo e gás, mas fazendo exatamente o oposto: inundando o mercado (Graaf & Sovacool, 2020). Depois que os preços do petróleo caíram drasticamente em 2014, por exemplo, a OPEP decidiu não cortar a sua produção porque preferia manter sua participação de mercado em face da crescente produção de xisto nos Estados Unidos (The Economist, 2014). Não está claro se esse movimento deve ser interpretado como uma estratégia de negócios vinculada à lucratividade ou como um movimento estratégico de política externa, por exemplo, para impor danos ao rival geopolítico da Arábia Saudita - o Irã. Em 1986, a Arábia Saudita já havia aberto as torneiras de petróleo para recuperar a fatia de mercado que havia perdido, em parte, para seus colegas membros da OPEP, muitos dos quais não cumpriram sua cota (The New York Times, 1986). Mais recentemente, durante os primeiros meses da pandemia de COVID-19, em 2020, houve uma queda abrupta da demanda internacional do petróleo. O preço do barril de Brent, 38 referência global para preços de petróleo, que se aproximava dos US$ 70 em janeiro, sofreu uma depreciação acentuada, atingindo cerca de US$ 50 apenas dois meses depois. Diante deste cenário, a OPEP+, composta pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo e seus aliados, incluindo a Rússia, convocou uma reunião em Viena com o intuito de estabelecer estratégias para estabilizar os preços. Contrariando as expectativas e as orientações sauditas para cortes mais profundos na produção, a Rússia optou pela recusa, desencadeando uma guerra de preços com a Arábia Saudita. Na prática, a recusa russa tinha por objetivo evitar novos cortes na produção, e determinar que as restrições já existentes deixassem de vigorar (Blas, Wardany, & Smith, 2020). Para o Kremlin, a implementação de novos cortes na produção abriria um vácuo de mercado que beneficiaria a indústria de xisto dos Estados Unidos, cuja capacidade produtiva poderia ser incrementada em até 1 milhão de barris por dia. A Rússia estava ciente do alto custo de produção associado ao petróleo de xisto, e sua recusa visava, portanto, mitigar a expansão norte-americana no mercado petrolífero global. Por outro lado, Riad reagiu com vigor. Em poucas horas, anunciou a redução no preço de venda de petróleo para a China, que passou a ser vendido com descontos de até US$ 7 por barril. Mais do que isso, a monarquia saudita elevou sua produção diária em 2 milhões de barris, encharcando o mercado internacional (Lemos, 2020). A resposta de Riad à Rússia teve como principal objetivo manter os preços baixos, garantir uma maior participação de mercado, principalmente sobre clientes russos e, assim, dar um forte recado político para Moscou. 2.4.2 Manipulação de Preços A manipulação dos preços da energia é uma estratégia utilizadas pelos governos quando o objetivo é influenciar indiretamente nos fluxos físicos de energia (Graaf, Sovacool, Ghosh et al., 2016). No início da década de 1970, por exemplo, os países produtores de petróleo conseguiram capturar das grandes empresas privadas o controle sobre o preço do petróleo. Assim, entre outubro e dezembro de 1973, a OPEP aumentou unilateralmente o preço do barril do petróleo leve que custava $3,65 para $11,65 (International Monetary Fund, 2000). No entanto, o sistema de preços administrado pela OPEP entrou em colapso em meados da década de 1980, sendo substituído por um novo sistema de preços baseado no mercado. Mesmo assim, os países petrolíferos muitas vezes vendem petróleo a preços subsidiados a países considerados aliados ou aliados em potencial (Graaf & Sovacool, 2020). Em 2010, membros da Comunidade de Estados Independentes – CEI (grupo formado pela Rússia e pelos Estados pós-soviéticos) podiam comprar petróleo da Rússia por um valor 39 em média 35 por cento menor do que os demais países. O objetivo de Moscou era manter os Estados da região dentro de sua esfera de influência através de estímulos e parcerias de ordem econômica (Larsson, 2006). Nesse sentido, a Federação Russa oferecia aos países aliados gás natural com preços abaixo dos acordados com a Europa Ocidental (que serve como padrão nas negociações), enquanto países hostis aos interesses de Moscou pagaram mais caro pela mesma energia. Ao longo de toda a década de 1990 e nos primeiros anos deste século, este era um comportamento padrão da Rússia. No entanto, entre 2004-2005, Moscou decidiu acabar com esta prática e começou a elevar os preços para a maioria dos seus clientes se aproximando do padrão europeu. O objetivo oficial era ter um preço padrão para todos os clientes até 2011 (Orttung e Overland, 2011). Na América Latina, a Venezuela iniciou em 2005 um programa que permitia a venda de derivados de petróleo refinados em condições preferenciais para nações caribenhas. A iniciativa ficou conhecida como Petrocaribe (Jácome, 2011). Essa estratégia de política externa almejava transformar o Caribe e a América Central em um bloco de negociação unificado junto a Caracas, que atuaria como uma ponte para o estabelecimento de alianças estratégicas intragrupo e com outros parceiros – como Rússia e China. Devido a problemas econômicos de grande magnitude, o regime de Maduro teve que reduzir significativamente suas contribuições para o programa, reduzindo em muito seu potencial (Graaf & Sovacool, 2020). Por fim, importante salientar que o comércio de gás natural é mais susceptível à manipulação de preços para fins políticos do que o petróleo. Especialmente no caso de quando ele é enviado por meio de dutos (e não em navios-tanque de GNL) (Graaf & Sovacool, 2020). Os atributos fixos dos dutos transfronteiriços atrelam relacionamentos de forma muito efetivas, criando profunda dependência entre fornecedores, países trânsito e Estados clientes. Desta forma, cria-se oportunidades para a politização do comércio de gás, já que o país consumidor muitas vezes não tem opção, em um curto espaço de tempo, de recorrer a outros fornecedores. A instrumentalização da infraestrutura energética para fins geopolíticos será o tema da próxima seção. 2.4.3 Manipulação de Infraestrutura Os sistemas de infraestrutura energética também são alvos de disputas geopolíticas. Afinal, comandar as rotas de transporte por onde esses recursos fluem é requisito valioso para o uso da “arma energética”. O comércio de trânsito é um fator chave para uma vantagem econômica relativa competitiva, especialmente quando rotas alternativas de trânsito não são 40 viáveis por razões geográficas, técnicas ou contratuais (Grigas, 2017). Ademais, esse tipo de controle é essencial para o uso de interrupções no fornecimento de energia em países alvos da arma energética (Stegen, 2011). Neste contexto, a geopolítica dos dutos eurasiana merece um importante destaque. Na Ásia Central, a Rússia mantém uma série de vantagens geopolíticas que fortalecem sua posição mesmo após a dissolução da URSS. Sobretudo a infraestrutura física construída durante a era soviética, em especial os gasodutos e oleodutos. No entanto, o fim da URSS e o surgimento de novos Estados independentes acabou por fragmentar o controle político sobre essa infraestrutura, fato que tornou a Rússia dependente de dutos estrangeiros para fazer chegar seus recursos energéticos aos mercados da Europa Central e Ocidental (Orttung e Perovic, 2009). O principal destino da energia russa é o mercado europeu, e as rotas para esse mercado acabam passando por territórios de países que, por vezes, têm posições políticas diferentes dos interesses de Moscou. Uma vez que as receitas de petróleo e gás representam mais da metade do orçamento federal russo e mais de 70% do total das exportações do país, qualquer risco para o seu o sistema de transporte de energia é visto pelo Kremlin como uma questão de interesse nacional (Collins, 2017). Essa realidade tem provocado uma interferência política direta do Kremlin nos Estados trânsito – como no caso da Ucrânia (Ghaleb, 2011). Assim, a dependência russa em relação aos países trânsito e a conseguinte busca por autonomia do Kremlin tem fomentado uma relação instável com muitos de seus vizinhos (Balmaceda, 2013). No entanto, a disputa pelo controle dos dutos eurasianos não se restringe aos países do espaço pós-soviético. Por mais de uma década a União Europeia apoiou a construção de rotas alternativas de gás natural vindas do Sul do continente. O objetivo era reduzir sua dependência do gás russo e romper os laços de vulnerabilidade que os países membros da OTAN possuem com Moscou. Por outro lado, a Rússia tem se aliado a outros países europeus e desenvolvido rotas de gás alternativas, como o Nord Stream 1e 2. Objetivo é contornar os territórios de países hostis e assim garantir o monopólio sobre o abastecimento do mercado europeu. Enquanto o gasoduto Nord Stream 1 ainda era construído, Moscou já avançava para a construção do Nord Stream 2 (Ver Figura 5), um segundo gasoduto que interligará Rússia e Alemanha através do Mar Báltico. A divulgação deste projeto dividiu a Europa e provocou grande oposição dos Estados Unidos, que temem que o gasoduto possa comprometer a segurança da Europa. Em 2019, o senado dos Estados Unidos aprovou um projeto de lei impondo sanções às empresas envolvidas na construção do Nord Stream 2 (DW, 2019). Dentre outras coisas, as sanções revogam os vistos e chegam a bloquear a propriedade em território americano de todos aqueles que estejam envolvidos no projeto. 41 Figura 5 - Rotas dos Gasodutos Nord Stream 1 e 2 Fonte: Umbach (2020). Nesses termos, o papel estratégico e geopolítico da