UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio De Mesquita Filho” Instituto De Artes – São Paulo Luciana Cristina Ramos Nicolau A PONTE SINESTÉSICA: O espaço metafórico de ligação entre a obra e o indivíduo São Paulo 2022 LUCIANA CRISTINA RAMOS NICOLAU A PONTE SINESTÉSICA: O espaço metafórico de ligação entre a obra e o indivíduo Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, sob a orientação do Prof. Dr. José Paiani Spaniol. São Paulo 2022 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio, convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. N639p Nicolau, Luciana Cristina Ramos, 1991- A Ponte Sinestésica : o espaço metafórico de ligação entre a obra e o indivíduo / Luciana Cristina Ramos Nicolau. - São Paulo, 2022. 130 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Arte. 2. Livros de artistas. 3. Percepção. 4. Sinestesia. 5. Instalações (Arte). I. Spaniol, José Paiani. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 700.19 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 Luciana Cristina Ramos Nicolau A PONTE SINESTÉSICA: O espaço metafórico de ligação entre a obra e o indivíduo Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Unesp, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais. Dissertação aprovada em: 24/11/2021 Banca Examinadora _______________________________________________ Prof. Dr. José Paiani Spaniol (IA/UNESP) Orientador _______________________________________________ Prof. Dr. Agnaldo Aricê Caldas Farias (FAU/USP) Membro avaliador _______________________________________________ Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento (IA/UNESP) Membro avaliador SÃO PAULO 2022 AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. José Spaniol, por me auxiliar nesta complexa empreitada de trilhar os caminhos das minhas ideias. Aos Profs. Drs. Agnaldo Farias e José Leonardo, que também participaram da banca de qualificação, por aceitarem novamente embarcar nestes caminhos de desbravamento e em seus próprios “bosques”. Agradeço também, com especial carinho, a Miguel Alonso e Camila Romano, por se manterem sempre abertos ao diálogo e por todo apoio e incentivo ao longo desses anos. Por fim, agradeço ao apoio da minha família e das minhas amigas, Palloma Fernandes e Aline Moreno. RESUMO O presente trabalho trata da percepção na arte, tendo em vista as relações entre a obra e o indivíduo, com foco na criação metafórica de um espaço de ação, subjetivo e individual, em que a ativação sensorial se aproximaria de uma sinestesia metafórica. É proposto, então, o estabelecimento do que se nomeou Ponte Sinestésica, a qual se apresentaria como um elo temporário e delimitador de troca entre o interator e o objeto artístico, ativando sensorial, espacial e temporalmente sua percepção e sua memória. Nesse sentido, traz certas relações com o conceito de ressonância, desenvolvido por Wassily Kandinsky em seu livro Do Espiritual na Arte (1996), dialogando também com ideias de Rudolf Arnheim, no que se refere à percepção nas artes, em seu livro Arte e Percepção Visual - Uma Psicologia da Visão Criadora (2013). Quanto às relações da obra de arte com o espaço e o espectador, o trabalho faz aproximações com o texto La estetica de la recepcion desde la teoria platonica del arte (1989), de Ricardo Sánchez Ortiz de Urbina, e com os livros Site- specific Art – Performance, place and documentation (2006), de Nick Keye, e Sobre as Ruínas do Museu (2015), de Douglas Crimp, além de construir ligações com as definições de “espaço” e “fronteira” de Michel de Certeau, no livro A Invenção do Cotidiano (1998). Relacionando os conceitos do livro O Inconsciente Estético (2009), de Jacques Rancière, e as reflexões de José Ortega y Gasset no texto “O bosque”, integrante do livro Meditações de Quixote (1967), desenvolvem-se também as características da Ponte Sinestésica. Por fim, são analisadas algumas aproximações entre os livros de artista e as instalações artísticas, conectando-os com a Ponte Sinestésica e levantando as suas possibilidades de interrelação, abordando-se, para isso, quatro obras: Tábula (2015), de Edith Derdyk, e Abismo (2012) de Lucia Mindlin Loeb, ambos livros de artista, e Embutido Recôncavo – Recôncavo Embutido (2003), de Marepe, e Microscópio para São Paulo (2011), de Olafur Eliasson, que se tratam de duas instalações. Palavras-chave: Percepção na Arte. Sinestesia. Ponte Sinestésica. Livro de Artista. Instalação. ABSTRACT The present work deals with perception in art, taking into account the relationship between the work and the individual, focusing on the metaphorical creation of a space of action, subjective and personal, in which sensory activation would be close to a metaphorical synesthesia. It is then proposed the establishment of what was named Synesthetic Bridge, which would present itself as a temporary and delimiting exchange link between the interactor and the artistic object, sensorially, spatially and temporally activating its perception and memory. In this sense, it brings certain relations with the concept of resonance, developed by Wassily Kandinsky in his book The Spiritual in Art (1996), also dialoguing with Rudolf Arnheim's ideas, regarding perception in the arts, in his book Art and Visual Perception – A Psychology of Creative Vision (2013). As for the relations of the work of art with space and the spectator, the work makes approximations with the text La estetica de la recepcion desde la teoria platonica del arte (1989), by Ricardo Sánchez Ortiz de Urbina, and the books Site- specific Art – Performance, place and documentation (2006), by Nick Keye, and About the Ruins of the Museum (2015), by Douglas Crimp, besides building connections with Michel de Certeau's definitions of “space” and “border”, in the book The Practice of Everyday Life (1998). Relating the concepts of the book Aesthetic Unconscious (2009), by Jacques Rancière, and the reflections of José Ortega y Gasset in the text "The Woods", part of the book Meditations on Quixote (1967), the characteristics of the Synesthetic Bridge are also developed. Finally, some approximations between artist's books and art installations are analyzed, connecting them to the Synesthetic Bridge and raising their possibilities of interrelation, addressing four works: Tábula (2015), by Edith Derdyk, and Abismo (2012), by Lucia Mindlin Loeb, both artist's books, and Embutido Recôncavo – Recôncavo Embutido (2003), by Marepe, and Microscópio para São Paulo (2011), by Olafur Eliasson, two installations. Keywords: Perception in Art. Synesthesia. Synesthetic Bridge. Artist’s Books. Installation Art. LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURA 1: Desenhos do período Paleolítico nas paredes da gruta de Lascaux, no sudoeste da França. Fotografia de Cotton Coulson, National Geographic Creative. Retirado de: https://www.natgeo.pt/viagem-e-aventuras/2018/04/descubra-tres- lugares-incriveis-dedicados-arte-rupestre-na-europa, acesso em 20/11/2021. FIGURA 2: Desenho que retrata a estrutura de um Panorama dos séculos XVIII-XIX. Imagem intitulada "Section of the Rotunda, Leicester Square" retirada do fólio "Plans, and views in perspective, with descriptions of buildings erected in England and Scotland; and ... an essay to elucidate the Grecian, Roman and Gothic Architecture. (Plans, descriptions et vues en perspective, etc.), de autoria do arquiteto Robert Mitchell, datada de 1801, Londres, pertencente ao acervo da Biblioteca Britânica. Retirado de: https://www.bl.uk/collection-items/section-of-the-rotunda-leicester- square, acesso em 30/04/2021. FIGURA 3: Panorama Mesdag, 1881, Holanda. O Panorama foi pintado em 1881 por Hendrik Willem Mesdag e encomendado pela sociedade panorâmica, “Société Anonyme du Panorama Maritime de la Haye”, representando a vila de Scheveningen em uma paisagem marítima de 120 metros de circunferência e 14 metros de altura. Foto: Cortesia Panorama Mesdag. Retirado de: https://www.sothebys.com/en/museums/panorama-mesdag, acesso em 15/10/2021. FIGURA 4: Panorama Mesdag, 1881, Holanda. O Panorama foi pintado em 1881 por Hendrik Willem Mesdag e encomendado pela sociedade panorâmica, “Société Anonyme du Panorama Maritime de la Haye”, representando a vila de Scheveningen em uma paisagem marítima de 120 metros de circunferência e 14 metros de altura. Foto: Cortesia Panorama Mesdag. Retirado de: https://www.sothebys.com/en/museums/panorama-mesdag, acesso em 15/10/2021. FIGURA 5: Merzbau de Hannover, Kurt Schwitters. Foto de Wilhelm Redemann, 1933. Retirado de: https://www.moma.org/explore/inside_out/2012/07/09/in-search-of-lost- art-kurt-schwitterss-merzbau/, acesso em 30/04/2021. FIGURA 6: O Sonhar das Mulheres, 1991, Lily Nungaray Hargrave. Imagem retirada do catálogo da Exposição “O tempo dos sonhos – Arte aborígene contemporânea da Austrália”, realizada em 2018, na CAIXA Cultural de Recife, PE. Retirado de: http://www.caixacultural.com.br/cadastrodownloads1/Catalogo_Expo_TempodosSon hos_RE.pdf, acessado em 30/04/2021. FIGURA 7: Yellow-Red-Blue, 1925, Wassily Kandinsky. Obra pertencente ao acervo do Centro Pompidou, MNAM-CCI, Dist. RMN-Grand Palais/Adam Rzepka. Retirado de: https://www.centrepompidou-metz.fr/en/musicircus-masterpieces-centre- pompidou-collection, acesso em 30/04/2021. FIGURA 8: Chromosaturation, 1965, Carlos Cruz-Diez. Exposição “Cruz-Diez: A cor no espaço e no tempo”, 2012, Pinacoteca do Estado de São Paulo, em São Paulo, SP. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 9: Exibição na Green Gallery, New York, Dezembro de 1964 a Janeiro de 1965. Imagem cortesia de Rosalind Krauss e Thomas Krens, no catálogo da exibição “Robert Morris: The Mind/Body Problem”, New York: The Solomon R. Guggenheim Foundation, 1994: 171. Retirado de: https://ifacontemporary.org/robert-morris-in-the- guggenheims-panza-collection/, acesso em 30/04/2021. FIGURA 10: Prancha do álbum Jazz, 1947, Henri Matisse. Imagem retirada do catálogo da Exposição “Henri Matisse – Jazz. Coleção Museus Castro Maya IBRAM/MinC”, realizada em 2017, na CAIXA Cultural de Recife, Fortaleza, e do Rio de Janeiro. Retirado de: http://www.caixacultural.gov.br/cadastrodownloads1/Catalogo_Exp_HenriMatisse_S A.pdf, acesso em 30/09/2021. FIGURA 11: Invenção da Cor, Penetrável Magic Square #5, De Luxe, 1977, Hélio Oiticica. Instituto Inhotim, MG, 2015. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 12: Detalhe da obra Viewing Machine, 2001, Olafur Eliasson. Inhotim, MG, 2015. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 13: Registro de vista no terreno do Schloss Rheydt, em Rheydt, Mönchengladbach. Alemanha, 2018. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 14: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 15: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 16: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 17: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 18: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 19: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 20: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 21: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 22: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 23: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 24: Embutido Recôncavo – Recôncavo Embutido, 2003, Marepe. Coleção particular, Lisboa, Portugal. Exposição “Estranhamente Comum” em 2019, na Estação Pinacoteca, São Paulo, SP. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 25: Embutido Recôncavo – Recôncavo Embutido, 2003, Marepe. Coleção particular, Lisboa, Portugal. Exposição “Estranhamente Comum” em 2019, na Estação Pinacoteca, São Paulo, SP. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 26: Embutido Recôncavo – Recôncavo Embutido, 2003, Marepe. Coleção particular, Lisboa, Portugal. Exposição “Estranhamente Comum” em 2019, na Estação Pinacoteca, São Paulo, SP. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 27: Tábula, 2015, Edith Derdyk. Editora Ikrek. Obra pertencente ao acervo da Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP, São Paulo, SP, 2019. Fotografia: Luciana Nicolau FIGURA 28: Embutido Recôncavo – Recôncavo Embutido, 2003, Marepe. Coleção particular, Lisboa, Portugal. Exposição “Estranhamente Comum” em 2019, na Estação Pinacoteca, São Paulo, SP. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 29: Abismo, 2012, Lucia Mindlin Loeb. Obra composta por um livro cortado, impressão offset e encadernação manual, edição de cinco exemplares (numerados e assinados), Editora TIJUANA. Retirado de: https://tijuana.net.br/EDICOES- EDITIONS, acesso em 30/09/2021. FIGURA 30: Abismo, 2012, Lucia Mindlin Loeb. Obra composta por um livro cortado, impressão offset e encadernação manual, edição de cinco exemplares (numerados e assinados), Editora TIJUANA. Retirado de: https://tijuana.net.br/EDICOES- EDITIONS, acesso em 30/09/2021. FIGURA 31: Abismo, 2012, Lucia Mindlin Loeb. Exposição “Tarefas Infinitas”, 2018, no Centro de Pesquisa e Formação do SESC (CPF-SESC), São Paulo, SP. Retirado de: https://jornal.usp.br/cultura/livros-e-seus-varios-modos-de-usar-e-existir/, acesso em 30/09/2021. FIGURA 32: Abismo, 2012, Lucia Mindlin Loeb. Obra composta por um livro cortado, impressão offset e encadernação manual, edição de cinco exemplares (numerados e assinados), Portfólio da artista. Retirado de: http://www.lucialoeb.com/l031.htm, acesso em 30/09/2021. FIGURA 33: Abismo, 2012, Lucia Mindlin Loeb. Obra composta por um livro cortado, impressão offset e encadernação manual, edição de cinco exemplares (numerados e assinados), Portfólio da artista. Retirado de: http://www.lucialoeb.com/l031.htm, acesso em 30/09/2021. FIGURA 34: Abismo, 2012, Lucia Mindlin Loeb. Página do livro “Fotografia na arte brasileira séc. XXI”, 2013, Editora Cobogó, São Paulo. Portfólio da artista. Retirado de: http://www.lucialoeb.com/publicacoes.html, acesso em 30/09/2021. FIGURA 35: Microscópio para São Paulo, 2011, Olafur Eliasson. Exposição “Olafur Eliasson: Seu corpo da obra”, Pinacoteca de São Paulo, São Paulo, SP. Retirado de: https://olafureliasson.net/archive/artwork/WEK107103/microscopio-para-sao-paulo- microscope-for-sao-paulo, acesso em 15/10/2021. FIGURA 36: Microscópio para São Paulo, 2011, Olafur Eliasson. Exposição “Olafur Eliasson: Seu corpo da obra”, Pinacoteca de São Paulo, SP. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 37: Microscópio para São Paulo, 2011, Olafur Eliasson. Exposição “Olafur Eliasson: Seu corpo da obra”, Pinacoteca de São Paulo, São Paulo, SP. Retirado de: https://olafureliasson.net/archive/artwork/WEK107103/microscopio-para-sao-paulo- microscope-for-sao-paulo, acesso em 15/10/2021. FIGURA 38: Abismo, 2012, Lucia Mindlin Loeb. Obra composta por um livro cortado, impressão offset e encadernação manual, edição de cinco exemplares (numerados e assinados), Portfólio da artista. Retirado de: http://www.lucialoeb.com/l031.htm, acesso em 30/09/2021. FIGURA 39: Abismo, 2012, Lucia Mindlin Loeb. Obra composta por um livro cortado, impressão offset e encadernação manual, edição de cinco exemplares (numerados e assinados), Portfólio da artista. Retirado de: http://www.lucialoeb.com/l031.htm, acesso em 30/09/2021. FIGURA 40: Microscópio para São Paulo, 2011, Olafur Eliasson. Exposição “Olafur Eliasson: Seu corpo da obra”, Pinacoteca de São Paulo, SP. Fotografia: Luciana Nicolau. FIGURA 41: Microscópio para São Paulo, 2011, Olafur Eliasson. Exposição “Olafur Eliasson: Seu corpo da obra”, Pinacoteca de São Paulo, SP. Retirado de: https://www.sescsp.org.br/online/edicoes- sesc/124_A+ARTE+COMO+EXPERIENCIA+COMPARTILHADA#/tagcloud=lista, acesso em 15/10/2021. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 12 ARTE E PERCEPÇÃO: SINESTESIA E METÁFORA 15 CAPÍTULO 1 – Ligações gerais 16 1.1) Potencialidades históricas da arte e percepção 16 1.2) Sinestesia e metáfora: conjunturas e associações 29 A RELAÇÃO INDIVÍDUO x OBRA 35 CAPÍTULO 2 – Ligações específicas 36 2.1) A “área de ação” entre observador e obra e a criação desse local de troca 36 2.1.1) Sensorial 47 2.1.2) Tempo 52 2.1.3) Memória 55 2.1.4) Espaço 57 A PONTE SINESTÉSICA 65 CAPÍTULO 3 – A materialização da troca metafórica 66 3.1) Ponte Sinestésica: indivíduo, obra e espaço 66 3.2) Encontros possíveis: O Inconsciente Estético, de Rancière, e o Bosque, de Ortega y Gasset 69 ELOS 76 CAPÍTULO 4 – Instalações e livros de artista 77 4.1) As sobreposições de espaços e a Ponte Sinestésica como fronteira 77 4.2) Tábula (2015), Embutido Recôncavo – Recôncavo Embutido (2003), Abismo (2012) e Microscópio para São Paulo (2011) 81 CONSIDERAÇÕES FINAIS 110 REFERÊNCIAS 121 APÊNDICES 127 12 INTRODUÇÃO Apesar de amplamente abordado, pensar sobre a percepção humana continua se mostrando como um dos assuntos mais profícuos e recônditos, especialmente quando inserido no campo das artes. Este trabalho se debruça sobre o tema, sobretudo no que tange à relação indivíduo-obra-espaço, a fim de discutir a manifestação diferenciada de interação que pode ocorrer entre esses elementos. Além disso, será analisado como se desenvolve o diálogo entre a obra e o sujeito que a presencia, refletindo sobre as potencialidades que esse encontro pode gerar e concebendo, inclusive, a ideia de uma ativação sensorial e subjetiva, capaz de ampliar tal diálogo e delimitar o espaço de ação da obra artística. O texto seguirá por caminhos mais subjetivos e metafóricos, pensando no indivíduo e na obra como dois sujeitos ativos, que se expressam e se respondem. A pesquisa, então, justifica-se como uma tentativa de abordagem da percepção por um viés mais intimista e de caráter mais aproximado da ideia da criação de relações e potencialidades perceptivo-metafóricos entre o interator1 e o objeto artístico, dentro de um espaço em que ambos podem se “reconhecer” e interagir. Tal ligação, de caráter sensorial e aqui nomeada de Ponte Sinestésica, se configuraria na interação capaz de gerar uma percepção reativa e estímulos entre ambos, considerando, assim, a existência de uma ativação apta a criar um “espaço de ação” específico entre os dois sujeitos, partindo da experiência estética e englobando todos os sentidos – em conjunto e em diálogo – com uma alteração perceptiva do espaço-tempo presente e a memória do indivíduo, resultando em uma “ligação” entre aquele que interage, a obra e o espaço em que se colocam. A presente dissertação foi, dessa forma, dividida em quatro partes principais, elaboradas para seguirem uma linha contínua até a conceituação da Ponte Sinestésica e a apresentação da possibilidade de inserção dela a partir de alguns elos, em que estabeleceria relações com dois formatos específicos de obras artísticas: os livros de artista e as instalações. Nesse sentido, foram destacados os livros de artista: Tábula (2015), de Edith Derdyk, e Abismos (2012), de Lucia Mindlin Loeb, nos livros 1 Termo reconhecido no campo artístico e que será utilizado neste trabalho por ter a capacidade de abordar o contexto de interação e de ação do indivíduo em relação à obra. 13 de artista; e Embutido Recôncavo – Recôncavo Embutido (2003) e Microscópio para São Paulo (2011), respectivamente dos artistas Marepe e Olafur Eliasson, como exemplares de instalações artísticas. Na primeira parte, nomeada Arte e Percepção: Sinestesia e Metáfora, temos o capítulo inicial, que busca apresentar algumas ligações gerais entre os quatro elementos que compõem o título. São então apresentadas algumas potencialidades históricas, pensadas como exemplos do estreito relacionamento entre arte e percepção, além da conceituação de sinestesia e de metáfora. Ambos os termos se tornam importantes ao longo do trabalho e serão usados mais amplamente nos capítulos seguintes. Também explicitamos as aproximações entre eles e o porquê de sua escolha conjunta, como palavras e como conceitos, e de que forma pensar a sinestesia e a metáfora são fatores importantes nesta pesquisa. Na segunda parte, nomeada A Relação Indivíduo x Obra, apresentamos ligações mais específicas, com os elementos que formarão, em conjunto, a ativação do que chamamos de Ponte Sinestésica. Concebe-se, assim, a ideia de existência de uma “área de ação”, que seria estabelecida pela obra e que caracterizaria o espaço habitado dessa obra, aquele que se disponibilizaria para o contato subjetivo com o indivíduo. Este indivíduo, então, partindo de uma disponibilidade para tal contato, poderia dialogar com a obra pelo acesso diferenciado de sua percepção, em quatro fatores: o sensorial, a memória, o tempo e o espaço. Esses tópicos são apresentados individualmente neste capítulo, no qual se identifica como eles poderiam atuar para estabelecer, de fato, um elo subjetivo que cria pontos de reflexão quanto às relações entre a obra, a percepção individual e o espaço expositivo. Como referências teóricas, são apresentados conceitos de Rudolf Arnheim (2013), Wassily Kandinsky (1996), Ricardo Sánchez Ortiz de Urbina (1989), Douglas Crimp (2015), Nick Keye (2006), Michel de Certeau (1998) e Robert Morris (1978). Na terceira parte do trabalho, chegamos ao assunto principal do projeto, A Ponte Sinestésica. Aqui, é melhor elaborado como essa relação metafórica entre o indivíduo e a obra pode ser acessada e desenvolvida na “área de ação” subjetiva, íntima desses sujeitos da arte, estimulando sensorialmente esse interator, ativando sua memória e interferindo espaço-temporalmente em sua percepção. Além disso, são apresentados dois paralelos, um com o conceito de “Inconsciente Estético” (2009), presente no livro mesmo nome, de autoria de Jacques Rancière, e outro com 14 o texto “O Bosque”, de José Ortega y Gasset, capítulo integrante da publicação “Meditações de Quixote” (1967). A partir dessas correlações, é possível trazer à ideia da Ponte um caráter também de delimitador, considerando, então, a “territorialidade” da obra de arte em relação à percepção do indivíduo e ao espaço ocupado – o local em que habita essa obra seria delimitado pela capacidade de “fronteira” da Ponte Sinestésica, a partir da definição de Michel de Certeau. Na quarta e última divisão, pretendemos abordar os elos que possibilitariam a reflexão da aplicação da Ponte Sinestésica e como seriam suas potencialidades de ativação em quatro trabalhos artísticos: nos livros de artista Tábula (2015), de Edith Derdyk, e Abismos (2012), de Lucia Mindlin Loeb, e nas instalações Embutido Recôncavo – Recôncavo Embutido (2003), de Marepe, e Microscópio para São Paulo (2011), de Olafur Eliasson. No capítulo, intentamos criar uma análise quanto às características dessas obras artísticas e o que poderia aproximá-las, tornando-as, dessa forma, portadores igualmente capazes de abrigar a criação e desenvolvimento da Ponte Sinestésica e o motivo pelo qual ela seria um importante elemento para a própria definição espacial de tais obras. Tal abordagem será elaborada a partir da reflexão pessoal da autora desta investigação, considerando sua experiência com esses trabalhos – seja como interatora, seja como pesquisadora – refletindo sobre como esse contato possibilitou a formação de algumas das relações aqui elaboradas. Encerramos o trabalho com as considerações finais, apresentando um caminho histórico pessoal da autora, expondo as influências, associações e experiências que resultaram nas ideias, procedimentos e conclusões aqui presentes, a relação entre obra-espaço-interator, as potencialidades da Ponte Sinestésica como elemento desse contato e sua importância como fator na leitura e territorialidade das obras, encontrando, nesses elos, o processo próprio de relacionamento daquela que escreve com as obras de arte. 15 ARTE E PERCEPÇÃO: SINESTESIA E METÁFORA “Toda a percepção é também pensamento, todo o raciocínio é também intuição, toda observação é também invenção.” (ARNHEIM, 2013, p. XVI – Introdução) 16 CAPÍTULO 1 – Ligações gerais 1.1) Potencialidades históricas da arte e percepção O início deste trabalho será focado na reflexão das potencialidades históricas da arte quanto à sua ação nos sentidos e na percepção humana, criando paralelos com alguns exemplos escolhidos para articular essa relação que pode ter seu percurso iniciado na pré-história e que atravessaria toda a existência do ser humano como conhecemos atualmente. Entendendo que a expressividade e subjetividade2 humanas perpassam nossas percepções de mundo, não só pela forma como nossos sentidos absorvem o que nos cerca, como também pela maneira como nós somos capazes de codificar, analisar e, por que não, subjetivar o que recebemos, tendo em vista a afirmação do psicólogo alemão Rudolf Arnheim3, “A percepção realiza ao nível sensório o que no domínio do raciocínio se conhece como entendimento. [...] O ver é compreender”4. A compreensão, portanto, passa continuamente por nossos processos perceptivos e vivemos graças a essa percepção5, sendo por meio dela que podemos criar as intermediações entre nós mesmos e o mundo, o que se transfigura na criação da linguagem, seja ela escrita, falada, de sinais ou externalizada sob forma de uma expressividade artística. [...] mostramos que é a relação entre percepção de si mesmo, estímulo e sensoriamento aquilo que qualifica o “processo perceptivo”. Os aspectos de nossa percepção, obviamente, são importantes para a construção da nossa consciência e, consequentemente, do nosso mundo e entendimento sobre a Arte (LEOTE, 2015, p. 24). 2 O termo “subjetivo” e seus derivantes, como “subjetividade”, “subjetificar” ou “sensação subjetiva”, serão usados neste trabalho para referenciar aquilo que é pertencente ao indivíduo no que concerne à sua interpretação interior e pessoal quanto aos eventos, objetos e ambientes com que interage, considerando as sensações, impressões e percepções particulares que podem ser despertadas em seu íntimo, especialmente em relação ao campo das artes. 3 Rudolf Arnheim (1904-2007), psicólogo alemão, estudioso também da Filosofia e da História da Arte, publicou, em 1954, um dos seus trabalhos mais célebres, o livro Arte e Percepção Visual: uma psicologia da visão criadora. 4 ARNHEIM, 2013, p.39 5 LEOTE, 2015, p.26. 17 As linguagens criadas por essas relações pessoais entre o ser e o meio, por intermédio da percepção, acabam tendo, como parte integrante, as características das informações que foram sentidas e traduzidas em expressividade e que poderiam ser a base para o desenvolvimento da atividade criativa e artística humana6. Nota-se, então, como o elo entre arte e percepção está enraizado em nós e, para além dele, questões como nossa criatividade, linguagem, expressividade e imaginário são outros pontos sensivelmente afetados por esse entrelace. Em 2018, foi publicado o artigo “Transferência de informações entre modalidades: uma hipótese sobre a relação entre pinturas rupestres pré-históricas, pensamento simbólico e o surgimento da linguagem” no periódico Fronteiras em Psicologia7, no qual se apresentou resultados de uma pesquisa cujo objetivo era compreender melhor o desenvolvimento da linguagem humana. Shigeru Miyagawa, pesquisador e professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) foi o líder do projeto, que contou com a participação de dois linguistas: Cora Lesure, também do MIT, e Vitor Augusto Nóbrega, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Em suas pesquisas, foi possível sugerir que as pinturas rupestres seriam, em si, uma modalidade de expressão linguística. Abordando a arte das cavernas e a arqueoacústica8, a investigação possibilitou a descoberta de que, em muitos casos, a arte rupestre está “intimamente conectada às propriedades acústicas das câmaras das cavernas nas quais é encontrada”. Isso sugere que nossos ancestrais conseguiram “detectar a forma como o som reverberava nessas câmaras” e, por causa disso, realizar suas pinturas “em superfícies que eram [...] adequadas para gerar ecos”. A pesquisa trabalhou, assim, com a hipótese de que o local e o conteúdo de tais pinturas estariam “intimamente associados às propriedades acústicas do ambiente em que foram representadas”, exemplificando que algumas pinturas de bisões e touros teriam sido feitas em locais da caverna cujo 6 “[…] o verdadeiro meio de comunicação dos artistas [...] são as representações mentais humanas […] o que nos atrai para uma obra de arte não é apenas a experiência sensitiva do meio de comunicação, mas seu conteúdo emocional e seu vislumbre da condição humana.” (PINKER apud LEOTE, 2015, p.47 e 48). 7 Traduzido do original, em inglês, “Cross-Modality Information Transfer: A Hypothesis about the Relationship among Prehistoric Cave Paintings, Symbolic Thinking, and the Emergence of Language” e periódico “Frontiers in Psychology”. 8 Referente aos estudos e conhecimentos sobre acústica, aplicados aos estudos arqueológicos ou à arqueologia. 18 ecoar se assemelharia aos seus cascos9 (figura 1). A ideia de uma “forma de transferência de informações de modalidades cruzadas”, com sinais acústicos reinterpretados em “representações visuais simbólicas”, seria, para esses pesquisadores, um dos indícios do início da “mente simbólica” do ser humano, que toma forma como uma “linguagem concreta e externalizada” e que, a partir delas, teríamos tido a possibilidade de desenvolver “a linguagem humana, através de fala e sinais”10. FIGURA 1: Desenhos do período Paleolítico nas paredes da gruta de Lascaux, no sudoeste da França. Fotografia de Cotton Coulson, National Geographic Creative. Retirado de: https://www.natgeo.pt/viagem-e- aventuras/2018/04/descubra-tres-lugares-incriveis-dedicados-arte-rupestre-na-europa, acesso em 20/11/2021. A ideia de um desenvolvimento da linguagem associada aos sentidos e à expressividade artística humana é o ponto chave destacado aqui. Ao questionar e imaginar como os desdobramentos da linguagem, mais especificamente da arte, podem ter tido um início estimulado pelo desenvolvimento da percepção humana, cabe refletirmos também sobre o modo como nos relacionamos com nossos próprios 9 Trechos retirados da matéria do Jornal da USP: “Arte rupestre pode ajudar a entender como linguagem humana evoluiu - Estudo com participação da USP sugere que as pinturas rupestres representam uma modalidade de expressão linguística”. Publicado em 21/03/2018. Por Denis Pacheco - Editorias - Ciências Humanas. 10 Ibid. 19 sentidos e o mundo, afinal, como afirmou Jacques Rancière11, “não há coisa alguma que não carregue em si potência da linguagem”12. A linguagem e os sentidos são, então, levados para um território de expansão, como no caso das cavernas, em que o ambiente externo ao corpo do indivíduo é modificado pelo mesmo, tornando-se parte daquilo que o ser humano busca expressar. O ambiente, o entorno, o local, o espaço ao redor, seja qual for a nomenclatura, é passível de compreensão e de expressão daquilo que antes se continha dentro da subjetividade humana. Esse espaço, desse modo, pode ser não somente natural, algo que existe e, posteriormente, recebe a intervenção humana, mas pode também ser construído e projetado de formas cada vez mais elaboradas para enfatizar essa expressividade e subjetividade projetadas. Observando a História, entre os séculos XVIII e XX, o mundo passou por grandes desenvolvimentos científicos, arquitetônicos e sociais, o que, consequentemente, acabou por reverberar no indivíduo e na produção da linguagem e da arte. É nesse período que se constrói um tipo de “ambientação”, a qual Walter Benjamin aborda em alguns de seus textos de seu livro “Passagens” (2007), e que pode ser aqui apresentada como um desdobramento das relações humanas com o espaço, de modo que podemos perceber nela o uso cotidiano da nossa percepção com o entorno e sua ligação com a atividade criativa e expressividade artística humana. Durante o século XVIII, em Paris, tornam-se comuns as construções das chamadas Passages13 – corredores feitos com ferro e teto de vidro, lotados de lojas em ambos os lados, que costumavam cruzar quarteirões inteiros. Em suas extremidades, foram inseridos os chamados Panoramas, espaços de ilusão perceptiva, apresentados em salas gigantes, construídas geralmente no início ou no fim das Passagens e que abrigavam enormes telas pintadas, com estruturas centrais 11 Jacques Rancière, nascido em 1940, na França, é filósofo e professor emérito de Estética e Política da Universidade de Paris VIII - Vincennes/Saint-Denis, onde foi docente de 1969 a 2000. Seu trabalho se concentra, sobretudo, nas áreas de estética e política. 12 RANCIÈRE, 2009, p. 37. 13 Em português, “Passagens”. 20 de observação, específicas para o público (figura 2). A pesquisadora Elena Abreu14, em sua pesquisa “Sobre ver no século XIX: os panoramas e a modernização da visão”, de 2009, nos traz uma descrição mais precisa sobre como eram essas “ambientações”: Os panoramas consistiam em grandes painéis circulares pintados de forma contínua e iluminados artificialmente, fixados nas paredes de uma rotunda. O observador ocupava uma plataforma central elevada, de onde podia ver, sob efeito da ilusão de ótica (iluminação, profundidade), um grande quadro que abarcava todo o seu horizonte. As mudanças na iluminação utilizada davam a impressão do decorrer do dia. Eram cenários de efeito de realidade, os quais simulavam a visão da natureza como uma representação fiel da cidade, em que o observador mergulhava em uma ilusão. Foram exemplos de sistemas de representação da natureza e da história mais monumentais do século XIX, sendo, muitas vezes, construídos em rotundas equivalentes a dois ou três andares (ABREU, 2009, p. 4). Tais espaços se tornaram muito populares nesse período, quando se iniciava a indústria de entretenimento – antecipando os cinemas. Além disso, pela forma como eram montados, traziam ao observador a possibilidade de apreciar um vislumbre da “natureza” em meio às cidades e às grandes aglomerações, criando uma impressão ilusória de deslocamento que impressionava e cativava. FIGURA 2: Desenho que retrata a estrutura de um Panorama dos séculos XVIII-XIX. Imagem intitulada "Section 14 Elena Abreu, possui doutorado em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente, é docente da Universidade Federal do Cariri (UFCA) e desenvolve pesquisa voltada para a estética e imagem da comunicação. 21 of the Rotunda, Leicester Square" retirada do fólio "Plans, and views in perspective, with descriptions of buildings erected in England and Scotland; and ... an essay to elucidate the Grecian, Roman and Gothic Architecture. (Plans, descriptions et vues en perspective, etc.), de autoria do arquiteto Robert Mitchell, datada de 1801, Londres, pertencente ao acervo da Biblioteca Britânica. Retirado de: https://www.bl.uk/collection-items/section-of- the-rotunda-leicester-square, acesso em 30/04/2021. Percebemos, nesse caso, a criação de uma nova relação perceptiva com o mundo: o desenvolvimento de espaços irreais, ou talvez “virtuais”15, em que a ideia era enganar a percepção do indivíduo, levando-o a um ambiente estético ilusório, mas que se apresentava como uma forma de diálogo entre os anseios “internos” e uma possibilidade de intervenção no que é “externo” ao indivíduo, mostrando-se, aqui, a arte como uma forma de criação de novos espaços e de uma ativação sensorial diferenciada, permitindo novos diálogos com o espaço ao redor. Walter Benjamin, no livro “Passagens” (2007), nos traz o texto “Paris, a capital do século XIX – Exposé de 1935”, no qual aborda pessoas e pontos-chave da história da capital francesa do século XIX, fazendo breves análises e reflexões sobre a cidade e a sociedade do período. Entre esses estudos, ele apresenta as seguintes observações quanto aos Panoramas: O apogeu da difusão dos Panoramas coincide com o surgimento das Passagens. Foi incansável o esforço de tornar os Panoramas, por meio de artifícios técnicos, locais de uma imitação perfeita da natureza. Procurava-se reproduzir na paisagem as mudanças da luz do dia, o nascer da lua, o murmurar das cascatas. [...] Ao tentar reproduzir na natureza representada, as transformações de maneira enganosamente similar, os Panoramas abrem caminho, para além da fotografia, ao cinema mudo e ao cinema sonoro. [...] Os Panoramas que anunciam uma revolução nas relações da arte com a técnica, são ao mesmo tempo expressão de um novo sentimento de vida. [...] Nos Panoramas, a cidade amplia-se, transformando-se em paisagem [...] (BENJAMIN, 2009, p. 42). Dessa fala, podemos depreender que a busca da época em tornar os Panoramas “locais de uma imitação perfeita” revela o objetivo de criar uma “ambientação”, um local que pudesse enganar a percepção do observador, levando- o a se sentir em um campo irreal, mas cuja existência ele anseia e o interessa subjetivamente, como uma forma de deleite pessoal – o alcance da natureza, em refúgio à cidade. Além disso, Benjamin também nos mostra que os Panoramas 15 O termo “virtual” é aqui empregado para referenciar a possibilidade de criação de um espaço existente como possibilidade, que teria a capacidade de existir de forma não matérica, real, mas, sim, de certa forma, como ambiente subjetivo e imaginário daquele indivíduo. 22 apresentam o desenvolvimento técnico humano com enfoque na comunicação e nos aparatos do campo artístico, que, como o estudioso cita, influenciaram a fotografia e o cinema posteriormente. Finalizando com a ideia de que as “relações da arte com a técnica” eram “expressão de um novo sentimento” e de uma cidade que se “transforma em paisagem”, Walter Benjamin nos mostra uma sociedade que evidencia sua expressão subjetiva de um “sentimento” conjunto de transposição, de espacialidade e de evolução na busca por uma percepção que, apesar de irreal, é subjetivamente requisitada e agradável. Percebemos, também, que o meio social entra como fator de diálogo com o ambiente e influencia, de maneira impactante, o desenvolvimento da linguagem, comunicando entre os indivíduos de um grupo e podendo aproximar sensações e percepções de forma que a arte vire ferramenta para o alcance de tais contextos. Transpondo a linguagem artística, chega-se ao anseio subjetivo de encontrar uma nova espacialidade, um local diverso do real e que se apresente com uma capacidade de virtualizar nossa percepção e sentidos, para, assim, interagir com esse ambiente novo e desconhecido. Dessa forma, os Panoramas extrapolaram o meio de arte e o círculo culto, propagando-se através do meio social como fator fundamental para estabelecer um diálogo com o público e o ambiente cultural. Esse contato influenciou, de maneira impactante, o desenvolvimento de um vocabulário plástico específico, tendo em vista que os Panoramas estabeleceram um padrão capaz de aproximar sensações e percepções entre indivíduos de um mesmo grupo. A linguagem torna-se ferramenta de persuasão para o alcance de tais contextos. Segundo Elena Abreu, a sociedade, em busca de uma ilusão espacial e perceptiva, anseia pela apropriação “da visão do mundo por meio de técnicas óticas que propiciem imagens mais próximas da visão total e que eliminem distâncias entre real e ilusão”, representando, assim, ser esse um desejo do observador desde antes do século XIX, “por meio por exemplo, da câmara escura”. Entretanto, quando analisa os aparelhos óticos (como o estereoscópio, o panorama, o diorama etc.), a estudiosa nos revela, a partir da ideia de Jonathan Crary em seu livro Técnicas do Observador, de 1992, a existência de “um novo observador, que rompe com a visão estática e posicionada do mundo.” 23 O olhar, a partir de então, deixa de ser o olho direto e passa a ser o das práticas visuais, ganhando uma mobilidade antes não experienciada. E neste sentido, destacamos a prática visual dos Panoramas, no intuito de discutir não só o artefato técnico, mas os seus efeitos e inter-relações com o espaço das Passagens (ABREU, 2009, p. 2-3). Ao dizer que “O olhar, a partir de então, deixa de ser o olho direto e passa a ser o das práticas visuais”, Elena Abreu nos revela a questão de que os sentidos humanos, mais do que utilizados, são invocados e extrapolados pelas práticas – não só técnicas, mas também artísticas – que o ser humano vivencia visualmente. Obviamente, ao abordar a visualidade, devemos lembrar que a ideia dos Panoramas era maior do que isso. Neles, o uso do próprio espaço, com suas telas gigantes, o público nas plataformas centrais e a busca da visão ampliada e aparente “de um horizonte”, levava a um espaço imersivo e virtual, em que tal posicionamento provavelmente permitia uma percepção diferenciada e subjetiva para cada um, tornando possível reconhecer um jogo entre o espaço real e o virtual (figura 3). Diferentemente das grandes telas do século XIX, por exemplo, em que, apesar de articuladas como prolongamento do espaço real, como janelas, as composições eram independentes do espaço onde estavam inseridas, separadas dele por molduras douradas e sóbrias, a virtualidade, no caso dos Panoramas, ocorria mediada pelo espaço real, oferecendo uma experiência interposta entre essas duas dimensões. Ainda considerando o uso do espaço, também podemos abordar como esses locais criavam ambientes quase que cenográficos. A importância de pensarmos sobre isso é pela possibilidade reflexiva que esse fato nos coloca, aproximando, então, os Panoramas de uma outra forma de linguagem humana, o teatro. 24 FIGURA 3: Panorama Mesdag, 1881, Holanda. Foto: Cortesia Panorama Mesdag. Retirado de: https://www.sothebys.com/en/museums/panorama-mesdag, acesso em 15/10/2021. Lisbeth Rebollo Gonçalves16, em seu livro Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX, apresenta algumas características que aproximam as exposições contemporâneas dos projetos de cenografia, além de trazer relações entre espaço, curadoria, cenografia e obra de arte. Para a pesquisadora, apesar da cenografia ter como característica inicial apenas a observação do público, ao longo dos anos, sua ampliação assumiu um caráter mais abrangente, com uma ocupação espacial saindo da área do palco e atingindo todo o ambiente do teatro, o que traz a imersão do público, que quase “adentra a cena”. Logo, pensando nos Panoramas, suas aproximações com a cenografia podem ser consideradas não só pela presença de um fundo técnico – com a iluminação, sonoplastia e pintura semelhantes aos usados pela cenotécnica teatral –, como também pela forma como o observador se relaciona com o todo que lhe é apresentado. No texto de Elaine Abreu, é apresentado o autor André Parente17, o qual faz algumas relações entre os Panoramas e cenografias de espetáculos em seu texto, A arte do observador, de 1999. Parente afirma que tal relação poderia ser um dos motivos da ampla difusão e aceitação dos Panoramas em Paris, podendo, talvez, ser também “a forma de interação” oferecida pelos Panoramas “a melhor explicação psicológica para tamanha popularidade dele e de suas variantes”, uma vez que seria “muito parecida com o modo pelo qual somos habituados a perceber o mundo (como se nos encontrássemos em seu centro)”18. 16 Mestra e doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, graduada em Ciências Sociais (USP), Lisbeth Rebollo Gonçalves é docente do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA/USP) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam/USP). Já atuou como diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP (1994 a 1998 e de 2006 a 2010), foi presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte, a ABCA (2000 a 2006 e de 2010 a 2016) e vice-presidente da Associação Internacional de Críticos de Arte, a AICA (2006 a 2008 e de 2010 a 2012). Desde 2017, atua como presidente da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA). 17 André de Souza Parente é pesquisador de novas mídias e artista visual, graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre e doutor em Comunicação pela Université Paris 8, de Saint-Denis, França. 18 PARENTE,1999, p.127 e 128. 25 De volta ao trabalho de Abreu, a autora ressalta que tal ideia de “autopercepção” a partir do centro” não implicaria “dizer que o espectador está sendo visto no centro”. O espectador ainda é plateia; ele teria, contudo, a “sensação de ver o espetáculo a partir de seu próprio centro, abarcado pelo espetáculo ilusório”, eliminando-se, assim, a “distância entre o observador e o objeto representado” – a natureza, no caso dos Panoramas –, tornando-o um elemento ao “alcance do tato”19, sendo esse o outro possível motivo da grande aceitação dos Panoramas. Parente afirma, ainda, que “com o panorama, o espectador sofre esta tensão constante entre se deixar levar pela ilusão e se distanciar dela por meio de um movimento que o leva a situar a experiência visual em seu próprio corpo, autônomo”. Tal tensão levaria o espectador a uma vivência dupla da imagem, a “imagem da pintura” e a “imagem do corpo” que se relacionariam, se transformariam, se hibridizariam, juntas, “em um movimento paradoxal”20 (figura 4). FIGURA 4: Panorama Mesdag, 1881, Holanda. Foto: Cortesia Panorama Mesdag. Retirado de: https://www.sothebys.com/en/museums/panorama-mesdag, acesso em 15/10/2021. Nessas falas de Abreu e Parente, destaca-se a ideia de que a forma de interação com os Panoramas aproxima-se do modo como estamos “habituados a perceber o mundo”, em uma “autopercepção” na qual o espectador, apesar de ser 19 ABREU, 2009, p.2 e 3. 20 PARENTE,1999, p.127 e 128. 26 “plateia” nesse ambiente, passa por uma “eliminação de distância”, em que o observador sente um “aparente realismo”, e o objeto representado passa a estar “ao alcance do tato”. Compreendemos, então, as implicações da percepção e suas relações com um “ambiente artístico” ilusório dessa criação. A convergência entre corpo e espaço e a transformação do local em que o indivíduo está, pelo ambiente “cenográfico” e virtual em que ele se “vê”, trazem em si a ideia de uma percepção subjetiva, que é influenciada pelo espaço da obra. Há, também, a simulação de um local que não está lá fisicamente, no espaço e no tempo, mas que leva o observador a ser enganado e a se sentir em um outro ambiente. Um novo mundo é criado e o espectador é posicionado ali, criando uma interação real com o universo virtual daquele espaço criado artisticamente. Como afirma Benjamin, “A utilização dos elementos do sonho no despertar é o caso exemplar do pensamento dialético”21. E na dialética dos nossos sentidos e da nossa percepção com o mundo, é possível estabelecer casos como o do Panorama, em que somos – e nos deixamos ser – enganados, a fim de desenvolvermos novas experiências, retiradas de nossos anseios subjetivos e interiores. Nas artes, encontramos a oportunidade de elaborar tais experiências, diálogos com um meio “sonhado” que não seriam possíveis caso não estivéssemos em uma criação, uma “ambientação” artística ou em contato com objetos artísticos. É na possibilidade expressiva e subjetiva da arte que nossa percepção tem a liberdade de se criar e se reinventar com o meio, seja pelos ecos e pela construção de imagens nas paredes das cavernas, seja nas pinturas e ambientes criados pelos Panoramas. Ao abordamos a potencialidade histórica da arte quanto às suas influências nas relações internas da percepção humana, deparamo-nos com a oportunidade de dar prosseguimento a esse viés, considerando, para isso, o desenvolvimento específico das relações entre o sensorial e o espaço. Voltando-se para o espaço expositivo como o conhecemos hoje, ele foi se adaptando, cada vez mais, para criar um ambiente focado não só na forma de apresentação das obras de arte, como também, para ser fator de destaque na forma de interação do público com tais obras. Desde os “microcosmos” dos gabinetes de curiosidades, passando pelas “janelas” imaginárias, ou conceitos de uma falsa 21 BENJAMIN, 2009, p.51. 27 “neutralidade” como o cubo branco, chegando em instalações e ambientes virtualizados pelo processamento de computadores, o espaço expositivo se distingue por ser pensado como local onde a arte se apresenta; a partir disso, pode se tornar irrestrito, uma vez que não necessariamente precisa se prender a uma sala de museu ou a algum local fechado. Os Panoramas envolveriam, então, o observador em seu ambiente, semelhante ao que ocorre atualmente nas instalações contemporâneas. A atuação da percepção, para além da produção da linguagem das artes, atinge esse espaço expositivo. O envolvimento entre o indivíduo e a sua ativação sensória entram em contanto com esse ambiente, pensado agora como exclusivo desse relacionamento entre o visitante e a obra de arte. É preciso dar destaque à importância das vanguardas artísticas no contexto das exposições de arte, na exploração da percepção do público e na utilização do espaço expositivo no início do século XX. O Construtivismo, a Bauhaus, o Suprematismo, o Surrealismo e o Dadaísmo foram alguns movimentos-chave para repensar como as obras deveriam ser apresentadas ao público, valorizando, de forma inédita, o pensamento sobre como as obras e o espaço deveriam interagir e a ideia não mais de visitantes passivos, observadores, mas sim de visitantes que atuassem e que respondessem ativa, presencial e sensorialmente ao que estava exposto. Nomes como Kasemir Malevich, Vladimir Tátlin, El Lissitsky, Laszlo Moholy-Nagy, Frederick Kiesler, Kurt Schwitters e Marcel Duchamp tiveram forte atuação nesse contexto. No caso de Kurt Schwitters, por exemplo, a obra Merzbau (1927-1937), pode ser aqui usada para exemplificar esse pioneirismo de ocupação espacial por uma produção artística, não somente porque o trabalho invadiu o espaço pessoal do artista – sendo criada e instalada na casa do próprio Schwitters, ao invés de ser levada ou construída em um espaço expositivo externo ou museológico –, como também pelo seu modo de “crescimento”, desenvolvendo-se de tal forma que o edifício acabou quase sendo “sobreposto” e a sua função passou a ser o corpo próprio da obra. Quem visitava tal espaço podia passar pela experiência de adentrar não só uma obra, mas sim um ambiente praticamente “vivo”, capaz de crescer e de se modificar, tomando maior força e vitalidade conforme isso acontecia (figura 5). 28 FIGURA 5: Merzbau, de Hannover, Kurt Schwitters. Foto de Wilhelm Redemann, 1933. Retirado de: https://www.moma.org/explore/inside_out/2012/07/09/in-search-of-lost-art-kurt-schwitterss-merzbau/, acesso em 30/04/2021. Na contemporaneidade, vemos os reflexos dessas inovações nas instalações artísticas, as quais apresentam-se como uma das criações mais importantes, atualmente, no que concerne os processos de desenvolvimento na ocupação do espaço expositivo artístico, e são um dos exemplos de arte como uma força de ação sobre a percepção do indivíduo e o espaço. O visitante, antes observador, é agora alocado no espaço como ser ativo e que contribui para a obra. Como afirmou Robert Morris22, importante teórico e artista, “o melhor trabalho atual tira as relações da obra e as torna uma função do espaço, da luz e do campo de visão do expectador”23. 22 Robert Morris nasceu em 1931, nos EUA, e faleceu em 2018, também nos EUA. Foi um importante artista e escritor e ficou conhecido por suas contribuições escultóricas, sendo alocado por estudiosos nos movimentos da Land Art e do Minimalismo, apesar de nunca ter concordado com este último. 23 BATCHLOR, 2001, p. 23. 29 Nota-se que os entrelaçamentos entre arte – considerada, aqui, como uma das formas principais de expressão e de linguagem humana –, percepção, espaço e ativação sensorial do indivíduo tanto sempre existiu e se complementa, quanto, ao longo dos anos, foi cada vez mais explorada e utilizada como um meio de aproximação entre a subjetividade do indivíduo, a produção artística e o ambiente no qual os dois se encontram. Os processos de compreensão dessas relações ainda não estão completamente esclarecidos, mas temos como fato que seus diálogos sempre estiveram presentes na história da arte e no desenvolvimento perceptivo humano. 1.2) Sinestesia e metáfora: conjunturas e associações Considerando, ainda, a linguagem humana e suas relações com a percepção, voltamo-nos agora para dois termos: sinestesia e metáfora. Ao buscar por “sinestesia”, encontramos como possíveis definições da palavra a “relação estabelecida de forma espontânea entre sensações de caráter diferente, na qual um estímulo, além de provocar a sensação habitual e normalmente localizada, origina uma sensação subjetiva de caráter e localização diferentes”, tais como “um perfume evocando uma cor, um sabor evocando uma imagem etc.”, ou que o termo classifica a “associação de palavras ou expressões em que há combinação de sensações diferentes numa única impressão, como em ‘um som áspero cortou a noite’ (audição e tato)”24. Nota-se, então, que, nesse primeiro contato, partimos da ideia de que a raiz da palavra se encontra no acesso às coisas a partir dos sentidos humanos. Como já sabemos, os seres humanos possuem cinco sentidos que lhes proporcionam a capacidade de interagir e apreender o mundo ao seu redor, sendo eles: a visão, a audição, o olfato, o tato e o paladar, cada um possuidor de especificações e propriedades únicas, mas todos convergindo para uma efetiva percepção do mundo. Ainda hoje, suas minúcias são estudadas pela ciência, em busca da sua compreensão total, ou seja, como são recebidos, processados e respondidos por nosso corpo e órgãos sensórios. Quando consideramos apenas a dimensão biológica, o termo “sinestesia” é aplicado para classificar uma característica neurológica que alguns humanos 24 Dicionário Michaelis online, acessado em 20/03/2020. 30 possuem, em que um sentido determinado, quando recebe um estímulo, provoca uma reação receptiva e automática em outro sentido, diferente do primeiro, ativando ambos mutuamente25. Assim, internamente, é possível a essa pessoa estabelecer uma relação específica de dois ou mais sentidos, ativando-os ao mesmo tempo e criando, então, um elo recorrente e específico entre um som e uma cor, ou entre um gosto e uma cor, por exemplo. Essas pessoas, conhecidas como sinestetas, podem, muitas vezes, não notar que possuem uma característica diferenciada, uma vez que é natural para elas essa reação ao mundo e parte constante de sua realidade. Dentro deste trabalho, utilizaremos especificamente o termo “sinestesia” alocado em um ponto mais próximo do metafórico, voltando-se, portanto, para a ideia de que sua existência como característica seria possível em um campo que se aproximará mais da subjetividade do próprio indivíduo26 do que da ciência. Ao pensar a presença dessa “metáfora sinestésica” como parte integrante no campo da arte, assunto-chave aqui, partimos do princípio de que, no momento em que nosso pensamento se volta para a interação com a obra, todos nossos sentidos se mostram ativados por esse contato. É interessante notarmos que essa conjuntura de sentidos pode ser um conceito passível de aplicação histórica, como apresentado no capítulo anterior, já que “a arte é a capacidade de criar, expressar ou transmitir sensações”; por isso, em todos os seus formatos, poderíamos ter a inserção do conceito da sinestesia sendo possivelmente utilizado, mesmo que talvez de uma maneira passiva e “de uma forma inconsciente”27. Nossos sentidos são parte de nós e de como nos relacionamos com o mundo. Partindo desse pensamento, o projeto seguirá uma linha de raciocínio que, por vezes, versará sobre os caminhos metafóricos de diálogos entre a percepção, a experiência estética e a arte. Reafirmamos, aqui, o uso da palavra “sinestesia” não como termo de designação de um conjunto de fatores biológicos e neurológicos gerados internamente 25 PRESA, 2008, p. 12. 26 Fica destacado, então, que a sinestesia associada à subjetividade seria uma forma de experiência que se enquadraria no campo metafórico do próprio ser, diferenciando-se, portanto, do exemplo dos sinestetas, citados anteriormente, uma vez que as reações nomeadas destes se encontram mais no campo neurológico ou biológico específico ao indivíduo. A subjetividade também é alcançada pelos sinestetas, possibilitando a estes os “dois formatos” de sinestesia, biológico e metafórico. Entretanto, neste trabalho, priorizaremos o contexto mais generalizado e possível a todos, o da sinestesia metafórica. 27 PRESA, op. cit., p. 85. 31 em certos indivíduos, mas como um termo mais metafórico, referente a uma ativação sensória aglutinante dos vários sentidos do ser humano, pensado, então, para o campo da arte e no contato indivíduo-obra. Neste trabalho, “sinestesia” ou “sinestésico” serão termos utilizados para expressar a possibilidade de uma ativação sensorial do público, por meio de mais de um sentido, em diálogo direto com a obra de arte e com o espaço expositivo em que ela está alocada. Além disso, retornaremos a sua designação como “associação de palavras ou expressões que combinam sensações diferentes numa única impressão”, aproximando-nos, portanto, de uma possibilidade de que, até certo ponto, a sinestesia poderá confundir-se com a própria metáfora. Trazemos, dessa forma, o segundo termo para análise, uma vez que “metáfora” se apresenta como essa “figura de linguagem em que uma palavra que denota um tipo de objeto ou ação é usada em lugar de outra, de modo a sugerir uma semelhança ou analogia entre elas”28, caracterizada como uma espécie de movimento de “translação” ou “símbolo”, no qual “por metáfora se diz que uma pessoa bela e delicada é uma flor, que uma cor capaz de gerar impressões fortes é quente, ou que algo capaz de abrir caminhos é a chave do problema”29. Logo, podemos compreender a ideia de metáfora como uma forma de criação de relações, estabelecidas, muitas vezes, quanto a entendimentos sensoriais e perceptivos que compreendemos como seres humanos. A linguagem e as relações humanas se constituíram e evoluíram ao longo dos séculos, e as nossas relações com o nosso entorno foram um dos importantes fatores para tal desenvolvimento. A metáfora acessa diretamente essa percepção do mundo porque, para a utilizarmos, acessamos de modo natural aquilo que compreendemos com nossos sentidos. Podemos entender as diferenças de uma “cor quente” e uma “voz doce”, porque tais expressões nos remetem a sensações básicas do nosso corpo (de visão, tato, olfato, audição e paladar). A metáfora é criada usando nossa percepção sensorial do mundo, para que possamos descrever em palavras aquilo que sentimos e percebemos. 28 Dicionário Michaelis online, acessado em 20/03/2020. 29 Ibid. 32 Não diferentemente, na arte, a metáfora se apresenta como integrante desse campo, trazendo até nós a possibilidade de criação de novos meios de descrever aquilo com que temos contato. Como afirma o psicólogo, teórico e professor Rudolf Arnheim, “Qualquer descrição adequada de obras de arte está carregada de palavras dinâmicas […] A linguagem é metafórica. Ela descreve as forças visuais como se fossem mecânicas agindo sobre a matéria física”30. Retornando às questões da percepção, é possível notarmos a existência dessa proximidade entre o que os termos “sinestesia” e “metáfora” abordam, compreendendo que a metáfora pode ser ligada à sinestesia porque ambas nos trazem a possibilidade de descrever e dialogar sobre o mundo em que habitamos e no qual, historicamente, nos relacionamos, criando, modificando e percebendo suas nuances. Os conceitos são, por isso, duas importantes chaves para a criação e desenvolvimento da linguagem e da comunicação, além da própria arte. Se considerarmos, ainda, ambos os termos sendo utilizados no campo das figuras de linguagem, na “sinestesia” temos uma associação de palavras ou expressões em que se combinam diferentes sensações em uma expressão, nas quais temos uma relação estabelecida entre o deslocamento de ativação de um sentido para o outro, em diálogo. Já no termo “metáfora”, temos como significado uma mudança, uma transposição ou transporte entre lugares, ou seja, um deslocamento de uma coisa para outra, ou de um lugar para o outro31. Notadamente, em ambas, as questões de ligações e de deslocamento estão fortemente atreladas às suas origens. O estabelecimento de diálogo entre duas coisas que se aproximam, seja pelas características, seja pela interpretação, também se apresenta como característica comum a elas. É por meio desse deslocamento, que traz um diálogo e cria um elo entre coisas, que podemos pensar em ambos os termos como expressões de algo que classifica a possibilidade de utilizar nossos sentidos para apreender, compreender e elucidar 30 ARNHEIM, 2013, p.406. 31 Quanto às suas etimologias: a palavra sinestesia tem origem no grego synaísthesis, que quer dizer “sentir junto”. O termo é resultado da combinação de syn, que significa “união”, “junto”, “ao mesmo tempo”, e esthesia, que quer dizer “sensação”, correspondendo à “sensação ou percepção simultânea”. Já a palavra metáfora tem origem no grego, vem de metaphora, que significa “transferência”. Por sua vez, metaphora é derivada de metapherein, palavra que significa “trocar de lugar” e é composta por meta (“sobre” ou “além”) e pherein (“levar”, “transportar”). (Informações retiradas dos sites: https://www.figurasdelinguagem.com/metafora/ e do dicionário do Google, acessados entre 18 e 20/03/2020). 33 aquilo que está no mundo. Se entendermos esse raciocínio no âmbito da nossa percepção, é possível levantar a afirmação de que nossa troca com o mundo, entre o que percebemos e o que há para ser percebido, é um dos meios mais potentes que temos de compreender o que nos cerca. Nossa relação com os objetos artísticos pode, então, tornar-se “metafórica”, no sentido que é a partir desse diálogo e dessa transposição de sentidos e sensações que conseguimos elaborar uma linguagem que possa ser palpável e que possa, em parte, carregar as descrições necessárias para – tentar – transmitir aos outros o que, por vezes, podemos perceber e sentir ao entramos em contato com as obras. Entretanto, pensar nessa transmissão do que é percebido, nessa adaptação das sensações para conceitos e ideias escritos ou falados, pode ser problemático. Como nos diz Arnheim: Acontece com frequência vermos e sentirmos certas qualidades numa obra de arte sem poder expressá-las com palavras. A razão de nosso fracasso não está no fato de se usar uma linguagem, mas sim porque não se conseguiu ainda fundir essas qualidades percebidas em categorias adequadas. A linguagem não pode executar a tarefa diretamente porque não é via direta para o contato sensório com a realidade; serve apenas para nomear o que vemos, ouvimos e pensamos. De algum modo, é um veículo estranho, inadequado para coisas perceptivas; ao contrário, refere-se apenas a experiências perceptivas. Estas experiências, contudo, antes de receberem um nome, devem ser codificadas por análise perceptiva. Felizmente, a análise perceptiva é muito sútil e pode ir além. Ela aguça a visão para a tarefa de penetrar uma obra de arte até os limites mais impenetráveis (ARNHEIM, 2013, p. XIV- introdução). Torna-se, assim, necessário compreender que o alcance entre o perceber e o expressar verbalmente o que se percebe é limitado. Há barreiras entre o que as palavras podem exprimir e o que realmente sentimos. Apesar de algumas línguas possuírem palavras características para sentimentos e expressões, como é o caso do alemão – que quando traduzidas para o português, podem se apresentar como uma frase completa –, dar nomenclaturas muito estritas dificilmente poderão abarcar tudo o que a arte pode apresentar para o indivíduo. Damos nomes ao que presenciamos e percebemos em relação às obras de arte, por questões de estudos, discussões, pensamentos, reflexões, ou como uma forma de tentar externalizar aquilo que sentimos e presenciamos. Entretanto, tais nomenclaturas podem facilmente ser transpassadas e, por esses caminhos, novos vocabulários podem surgir, terminologias antigas podem ser deixadas de lado ou, até mesmo, associadas a 34 novas. O autor Ulises Carrión32, em seu livro A nova arte de fazer livros, publicado em 1975, afirma que “o livro mais bonito e perfeito do mundo é um livro com as páginas em branco, assim como a linguagem mais completa é aquela que se encontra além de tudo que as palavras de um homem podem dizer”33, remetendo, assim, à capacidade limitada das palavras de exprimirem o que realmente estamos sentindo, sendo, então, em nossa leitura perceptiva que consiste a “verdadeira leitura”, a captura total daquilo que nos deparamos e que chamamos de objeto artístico. Portanto, a potencialidade de pensar a nossa percepção perante a arte reside, parcialmente, em uma abertura que pode extrapolar as nomenclaturas já criadas, desenvolvendo novas tentativas de abarcar o assunto abordado mais à frente. Por essa razão, manteremos este trabalho próximo ao subjetivo, considerando, então, um espaço de “abertura” nos pensamentos e diálogos abordados e relembrando que o “nome” ou “termo” escolhido pode, muitas vezes, não conseguir alcançar totalmente o que se percebe. É por isso que a sinestesia e a metáfora são, neste estudo, subjetividades, expressões que se referem a possíveis interações entre público, obra e espaço, usadas como tentativas de externalizar e interpretar a potencialidade do que será abordado a partir do próximo capítulo, considerando os elementos que nos levarão ao conceito da Ponte Sinestésica. 32 Ulises Carrión foi editor, poeta, artista, bibliotecário e crítico de arte, além de organizador de exposições e catálogos. Frequentou o curso de Filosofia e Literatura na Universidade Sorbonne e na Universidade Nacional do México, e foi reconhecido por seus textos e publicações relacionados aos livros de artista. 33 CARRIÓN, 2011, p.45. 35 A RELAÇÃO INDIVÍDUO x OBRA “A eficácia das obras de arte é de outra ordem, afetam ao ‘sujeito’ quando o incluem em seu ‘sistema’ ao serem recebidas” (URBINA, 1989, p. 38) 36 CAPÍTULO 2 – Ligações específicas 2.1) A “área de ação” entre observador e obra e a criação desse local de troca Partindo do duo obra e observador, podemos abordar, como base, a potencialidade de criação de um diálogo entre eles. Este diálogo será intermediado pela percepção daquele que interage com a obra, uma vez que, como abordado anteriormente, a percepção é elemento fundamental para o relacionamento entre o ser humano e o mundo. E falar de percepção é, também, falar de criação e fruição na arte, já que ela é um dos mecanismos que a humanidade utiliza para se expressar e para se relacionar com o seu entorno e com aqueles que nele habitam. É importante lembrarmos que o estabelecimento de um diálogo necessita que ambas as partes forneçam algo uma para a outra, que haja uma troca, em que um responda ao outro. O observador, então, poderá interagir com a obra, partindo de uma ação, uma intenção inicial de abertura, e a obra o recepcionará neste movimento de intenção, respondendo à ação do interator. Por causa dessa ideia dupla de ações – a intenção de interação do indivíduo e o recebimento responsivo da obra –, utilizarei, neste estudo, o termo “área de ação”, designando esse local de diálogo que é criado pela interação indivíduo-obra, localizado, metaforicamente, como um espaço que os envolverá. Pensar nessa “área de ação”, nesse novo espaço, é compreender que estamos falando de um ambiente dinâmico de interação e recepção, no qual somos dependentes de nossa abertura perceptiva para dialogar, apreender e compreender a obra de arte, e que a experiência de cada um sempre será individual e específica. Assim, nossa fruição é diretamente afetada por esses elementos perceptivos, criando uma situação de envio e recebimento de sinais, sensações, subjetividade e fruição. Como nos diz Arnheim, “a dinâmica é a própria essência da experiência perceptiva”34, e é durante esse momento de experienciar o objeto artístico, a partir de nossa abertura, que podemos encontrar tal local de troca. O que será abordado neste segundo capítulo do trabalho vai ao encontro de algumas questões, como a experiência estética e a ideia do interator ter uma atitude 34 ARNHEIM, 2013, p. 409. 37 ativa em relação àquilo a que presencia. Considera-se, então, a experiência que esse indivíduo traz em si, pelas vivências anteriores e pelas memórias que ele guarda, juntamente com a ideia da estética como a percepção de mundo através do uso dos sentidos, como aquilo que pode ser experienciado, refletido e compreendido pelo próprio indivíduo na arte, abordando alguns elementos que serão fundamentais no acesso ao diálogo com a obra. Ao nos voltarmos para esse sujeito-interator, mostra-se necessária uma primeira disposição interior para que seja criada uma situação com a obra, partindo da criação de uma abertura receptiva em si mesmo, com a qual esse indivíduo se mostra propício a perceber e receber os estímulos externos a ele, buscando, dessa forma, uma reflexão, um desenvolvimento de pensamentos e ativação de memórias, ideias e sentidos para que seja possível o diálogo com o objeto de arte. Como afirma a artista e pesquisadora Rosangella Leote35, “nem mesmo uma piscina pode ser tratada como imersiva [...] ela é IMERSÍVEL, algo que aceita imersão. Há que haver predisposição do indivíduo à imersão”36. Devemos considerar, portanto, que essa abertura poderá ser variável, entrando em estados de maior ou menor recepção, dependendo de como está o “estado perceptivo”37 do observador no momento da interação. Também devemos considerar que a ação inicial de abertura pode se apresentar, em um primeiro momento, de uma forma bem sutil, como um olhar mais demorado, uma aproximação corporal, uma curiosidade pelo objeto, ou algo do tipo. É importante, ademais, levar em consideração que a capacidade de criar tal tipo de abertura está diretamente ligada às questões culturais e sociais desse indivíduo. Ambos os contextos estão atrelados ao que caracteriza o próprio ser humano, uma vez que somos seres sociais, que se agrupam e, para além disso, somos seres diversos e plurais, sendo também nossas culturas e sociedades – e, portanto, nossas percepções – diversas. Esse é um assunto muito amplo e que envolve, por si só, linhas de pesquisa 35 Rosangella da Silva Leote é artista e pesquisadora multimídia. Pós- doutora em Media Arte pela Universidade Aberta de Lisboa, realizou o doutorado na Universidade de São Paulo, em Ciências da Comunicação Rádio e Televisão. Atualmente, é docente na graduação e pós-graduação do curso de Artes Visuais do Instituto de Artes da UNESP/SP e é líder do Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia (GIIP). 36 LEOTE, 2015, p.57. 37 Ibid., p. 57. 38 que não poderiam ser desenvolvidas de forma plena juntamente à pesquisa deste trabalho, assim, o assunto não poderá ser aprofundado. Entretanto, para a compreensão do presente capítulo, mostra-se necessário levantar algumas reflexões quanto a interferência desses contextos na interação individuo-obra. A arte sempre esteve atrelada ao social e ao cultural, seja em sua criação, seja em seus entendimentos e interpretações, seja quanto às suas reinvindicações e afirmações. Levando-se em consideração a diversidade de sociedades e culturas às quais o interator pode pertencer, e considerando como o social dialoga na interação do indivíduo com a obra de arte, partiremos de um elemento específico, a nomenclatura das cores, para pensar o quanto os contextos socioculturais poderiam ser chaves ou empecilhos para o estabelecimento do diálogo obra-indivíduo. Para tal reflexão, gostaria de trazer o livro A Cor na Arte, 2006, de John Gage38. Em seu texto, Gage faz uma extensa análise sobre o uso e nomenclatura das cores e sua presença na história e na arte, partindo dos próprios artistas e como eles se relacionaram e utilizaram tais elementos em suas obras. No capítulo “Linguagens da Cor”, Gage nos traz algumas relações das cores com suas nomenclaturas, criando uma análise histórica de intermédios entre a linguagem, as cores e alguns contextos culturais, além de apresentar algumas observações que relacionam as diferenças nos termos de designação das cores com seus usos nos diferentes contextos sociais. Dessa forma, abordando expressões de diferentes períodos e sociedades, Gage nos mostra as variações quanto às compreensões, usos e denominações das cores, seja na Europa, citando a existência de uma única palavra na França medieval que poderia representar ao mesmo tempo o “verde” ou o “vermelho” (sinople)39, assim como exemplos em outras culturas, asiáticas e africanas, que consideram o verde uma derivação do vermelho; seja na valoração do púrpura na Antiguidade, classificado, então, como um tipo de vermelho, e usado como símbolo de realeza40; ou na Austrália, considerando o kriol41, na qual o termo que designa “azul” (blu) é entendido como cognato de “preto” (blek), sendo o segundo costumeiramente mais 38 John Gage (1938-2012) foi historiador da arte e ex-chefe do Departamento de História da Arte da Universidade de Cambridge, especialista na obra do artista J.M.W Turner, sendo também amplamente reconhecido pelas suas pesquisas sobre as cores na arte. 39 GAGE, 2012, p. 124. 40 Ibid., p. 134. 41 Língua crioula falada amplamente no norte da Austrália. 39 “usado para descrever objetos azuis”42. Gage procura expor a existência de um forte “deslocamento linguístico” no que concerne às diferenças das relações com as cores entre as culturas “letradas” e as “culturas desprovidas de literatura” – que dependiam “profundamente das tradições orais”43, como a pintura aborígine australiana –, sugerindo que a “terminologia cromática e a utilização prática das cores”44 se torna variável e definida pelo ambiente social e cultural daqueles indivíduos (figura 6). Gage esclarece ainda que: O problema tem sido, fundamentalmente, um embate entre línguas diversas. Os observadores dessas pinturas [aborígines australianas] costumam vê-las através do véu do inglês – ou do francês, alemão, italiano etc. – mas seus criadores pensam nelas em termos de suas próprias línguas nativas, que dividem o espaço cromático de maneiras diversas, geralmente mais restritas. Já vimos que o mesmo problema tem ocorrido em muitas línguas antigas e modernas, como o egípcio antigo, que subordinava o “azul” a um termo usado para o “verde” [...] (GAGE, 2012, p. 129). Portanto, o autor nos leva a refletir não só sobre a variação linguística de cada local, como também quanto às tradições orais, culturais e influências locais e sociais que levam a nomenclaturas características de objetos e elementos presentes no cotidiano de cada grupo de indivíduos. 42 GAGE, op. cit., p. 131. 43 GAGE, 2012, p. 129. 44 Ibid., p. 127 e 129. 40 FIGURA 6: O Sonhar das Mulheres, 1991, Lily Nungaray Hargrave. Imagem retirada do catálogo da Exposição “O tempo dos sonhos - Arte aborígene contemporânea da Austrália”, realizada em 2018, na CAIXA Cultural de Recife, PE. Retirado de: http://www.caixacultural.com.br/cadastrodownloads1/Catalogo_Expo_TempodosSonhos_RE.pdf, acessado em 30/04/2021. Assim, é relevante considerar que os nomes das cores podem ser pensados como resultantes de um fator social, influenciados pela história, pelos materiais, pelas tecnologias ou pelas raízes linguísticas das culturas, nas quais a interpretação do grupo e a designação específica das coisas se apresentam de forma variável, associadas à linguagem de um grupo específico. É importante, entretanto, destacar que a inexistência de palavras e designações para certos tipos de cores em algumas sociedades não significa a inexistência das próprias cores. Essa subordinação ou aglutinação de termos para cores diferentes nos apresenta que, no espectro sociocultural de alguns povos, algumas cores eram interpretadas de formas diversas, seja pela sua escassez no ambiente, seja por características de obtenção e manufatura, seja por contextos históricos, entre outros. Pensar então a relação “humano-cor” pode ser uma forma de criar um paralelo para pensar na interação “humano-obra de arte”, considerando-se a analogia entre o fato de as diferentes percepções históricas, sociais e culturais interferirem diretamente sobre a linguagem e as diferentes interpretações das cores, além da própria interação entre os seres humanos e o objeto artístico com que têm contato. Assim, apesar de tais contextos interferirem diretamente nas nomenclaturas, preferências e interpretações do que se vê, no caso das cores, elas ainda existem enquanto matéria ou luz. Ou seja, as nomenclaturas não são inexistentes necessariamente pela ausência de certas cores, mas, sim, porque o grupo social- étnico-cultural, de acordo com os seus contextos específicos, decidiu subordinar tais nomenclaturas a partir dessas mesmas interpretações e preferências específicas de cada grupo e linguagem. A cor matéria ou a cor luz, portanto, não estavam ausentes em tais contextos, mas os indivíduos, por meio de suas percepções e influências contextuais de cultura e sociedade, criavam um contato limitado, filtrado pelas interpretações. O que, possivelmente, também ocorre com o objeto artístico. 41 Partindo de tais expostos, considerando suas relações análogas e retornando ao assunto inicial deste capítulo, é possível trazermos a afirmação de que o âmbito social pode, sim, gerar uma interferência na interação do indivíduo com a obra artística, inclusive na sua compreensão. Entretanto, apesar de possivelmente limitante, tal característica poderia não ser um elemento que impediria completamente a interação. Incidindo de maneira direta sobre o potencial de abertura do indivíduo, ela seria um fator restritivo que, até certo ponto, não permitiria um desenvolvimento ou avanço no que concerne ao diálogo com a obra, talvez criando um tipo de “véu”, no qual o contato fica limitado a uma camada translúcida e fina de separação entre as partes, nas quais o toque entre ambos seria intercalado por esse elemento que dificulta o contato direto, mas que ainda poderia ser removido, no caso de existir um maior interesse do sujeito – quase como uma poltrona que está coberta por um lençol, em que podemos distinguir seus formatos, mas não sabemos exatamente como ela é, como é ao toque, qual a sua maciez e sua real aparência, a não ser que retiremos esse pano e tenhamos um contato direto com ela. Assim, o contato entre indivíduo e obra pode sempre acontecer, mas suas interações serão sempre diferenciadas, baseadas em contextos específicos de abertura do indivíduo, filtrados e, por vezes, limitados pelas suas influências socioculturais. Retornando, então, às questões sobre o diálogo indivíduo-obra e assumindo- os como algo existente e passível de acontecer, saindo do interator e seguindo para a parte da obra em tal diálogo, a obra seria inserida nesse contexto com uma espécie de “intenção responsiva”. Quando o artista cria algo, ele não está somente externando pensamentos e sensações próprias, mas também está em busca de uma fala, de trazer a reflexão e alcançar o público para qual a sua obra é apresentada. Tais intenções alcançam o objeto de arte e o impregnam dessas características, as quais, aqui, poderiam caracterizar uma chave de acesso para as portas da percepção e interação com o público. Além disso, há, na obra, uma espécie de “campo de força de ocupação”, que se refere ao espaço de alcance em que essa obra habita e que pode ser percebida e se tornar alvo da atenção e recepção do interator. Esse espaço não se refere às medidas exatas do objeto, mas, sim, ao seu “poder de ocupação” do espaço, ou seja, sua territorialidade, que será melhor abordada mais à frente neste trabalho. 42 Portanto, o objeto criado, infiltrado pelo desejo inicial “vazado” do artista, apresenta-se como uma potencialidade transformadora do ambiente, uma ocupação espacial na qual a “ação” da obra – essa potencialidade responsiva que habita esse local e pode criar um vínculo entre o objeto artístico e o indivíduo fruidor – impulsiona uma resposta desse espectador, estimulando-o a agir e, consequentemente, respondendo com a sua percepção ativada. Podemos compreender tais características de criação de relações como partes do “ser-obra” de uma obra de arte - como afirma o filósofo Martin Heidegger45, “Levantando-se em si mesma, a obra abre um mundo e mantém-no numa permanência que domina. Ser obra quer dizer: instalar um mundo”46. Para abordar essas possíveis trocas e aberturas, trazemos algumas falas de Ricardo Sanchez Ortiz de Urbina47, e seu texto A estética da recepção a partir da teoria platônica da arte48, lançado em 1989. Quando Urbina comenta sobre a obra de arte, que ele nomeia como “construção artística”, afirma que a obra fica “fechada” em si mesma, sem saber a quem se dirigir e incapaz de uma defesa ou de uma “assistência a si mesma”. Entretanto, a partir do “ato da recepção” – e somente neste momento – a obra se anima, e percebe-se que “a tal efeito estava condicionada sua organização”49. Além disso, segundo ele, é em direção a essa “recepção” que as construções artísticas se encaminham e nela se justificariam todas as suas dimensões de “obra (nomeada como) arte”. Apoiando-se em Hegel, Urbina conclui esse raciocínio citando que a obra revelaria seu “propósito de existir” para o espectador, mas “não por conta própria”, já que o sujeito que interage com ela “está na obra desde o princípio, é contado com ela, e a obra só existe para esse ponto, para essa captação individual sua”50. É bastante pertinente, então, a ideia da relação de diálogo que uma obra de arte possa estabelecer com o indivíduo a quem ela se dirige. E, ainda mais importante, 45 Martin Heidegger (1889-1976), nasceu na Alemanha e se formou em Teologia e Filosofia na Universidade de Friburgo, onde trabalhou ao lado de Edmund Husserl. Atuou como filósofo, escritor e professor, sendo reconhecido por suas reflexões que se tornariam a base da filosofia existencialista. 46 HEIDEGGER, 2005, p. 34. 47 Ricardo Sánchez Ortiz de Urbina é professor de Filosofia, nascido em Salamanca, em 1930. Doutor pela Universidade de Salamanca, é autor do livro La Fenomenología de la verdad: Husserl, lançado em 1984 pela editora Pentalfa, além de diversas outras publicações. 48 No original: La estetica de la recepcion desde la teoria platonica del arte. 49 URBINA, 1989, p.40. 50 HEGEL apud URBINA, 1989, p.40. 43 essa possibilidade de a própria obra trazer elementos que impulsionam, respondem e incentivam tal troca. Quando falamos desses elementos da obra, que saem dela em direção ao observador em busca de uma conexão, também não podemos deixar de lembrar de Arnheim, em seu livro A Percepção Visual: uma psicologia da visão criadora, de 2013. Enquanto aborda questões sobre a dinâmica visual e desenvolve seus próprios pensamentos, o autor expõe uma das ideias de Wassily Kandinsky51, que pode ser relacionada ao que se apresenta aqui quanto às obras de arte. Arnheim afirma que Kandinsky, durante a análise das propriedades do ponto, da linha e da superfície, teria declarado que substituiria o conceito de “movimento”, aceito universalmente, pelo conceito de “tensão”, que seria referente à “força inerente ao elemento” e, como tal, se apresentaria apenas como um “componente do movimento ativo”, ao qual seria necessário acrescentar uma direção52 (figura 7). Nessa fala, Kandinsky estaria se referindo a uma movimentação inerente aos elementos, também resultado da interação deles, ao serem inseridos na pintura, o que poderia criar aproximações ou oposições entre os elementos estruturais da pintura abstrata, nesse caso. Tais movimentos entre os elementos, ou melhor, tais “tensões” seriam criadoras de interferências ou possíveis meios de acesso para a obra se comunicar com o observador, que também sentiria as ações dessas tensões, sendo, então, facilitada ou dificultada sua fruição com a obra. Para Kandinsky, a importância dessa movimentação e da compreensão dessas relações é a chave para alcançar a abstração plena e, com ela, alcançar a “alma”, o âmago do observador. Porém, para Arnheim, tais tensões são apresentadas como exemplos do que pode ocorrer na dinâmica visual entre o observador e a obra de arte. 51 Wassily Kandinsky (1866-1944), artista plástico nascido na Rússia, foi professor da Bauhaus e responsável pela introdução do Abstracionismo nas Artes Plásticas. 52 ARNHEIM, 2013, p.409. 44 FIGURA 7: Yellow-Red-Blue, 1925, Wassily Kandinsky. Obra pertencente ao acervo do Centro Pompidou, MNAM-CCI, Dist. RMN-Grand Palais/Adam Rzepka. Retirado de: https://www.centrepompidou- metz.fr/en/musicircus-masterpieces-centre-pompidou-collection, acesso em 30/04/2021. Neste trabalho, considerar essa ideia de “tensões”, ou seja, esse movimento que sai da obra em direção ao observador, é uma forma de trazer mais um elemento de reflexão para se pensar como os objetos artísticos podem se apresentar como interlocutores do contato com o espectador. Na dinâmica visual, Arnheim fala dessa “tensão dirigida” como uma propriedade inerente às formas, cores e locomoção do espectador53. Se considerarmos que tais características não são exclusivas da pintura, podemos imaginar suas funcionalidades – e sua própria existência – como algo palpável de outros formatos artísticos. Cremos que a ideia de uma tensão que parte da obra, direcionada ao espectador, dialoga potencialmente com a ideia de Urbina a respeito da necessidade da obra de existir para “ser obra”, para ser vista. Assim como em Heidegger o “ser-obra”54 , capaz de instalar um mundo, pode se estender para além, tornando a obra um ser “atuante”, ativo quando em contato com o interator. É imprescindível, entretanto, relembrar que apesar de todas as possibilidades de estímulos cedidos pelas obras de arte, ela se encontra “fechada em si”, como nos disse Urbina. A obra demanda do “ato de recepção” do observador, e essa resposta 53 ARNHEIM, 2013, p. 409. 54 HEIDEGGER, 2005, p. 34. 45 dependerá profundamente do quanto o indivíduo está disposto a aceitar tais estímulos. Prever como será o feedback do público a uma obra é impossível, pois o artista pode tentar criar algo com uma ideia ou objetivo de como será desenvolvido e recebido, mas essa mesma ideia pode nunca ser alcançada ou, ao contrário, poderá ser ultrapassada, extrapolada pelo contato com o público. Não devemos ignorar o fato de que os objetos têm interesse em si, nem que o artista embutiu esses interesses no objeto intencionalmente. Mas é claro que a maneira como enxergamos o objeto tem um enorme potencial de produzir significados. Em última instância, é esse olhar que coproduz aquilo que vemos. [...] para criar diálogos (ELIASSON in VOLZ, 2011, p.387). O papel da subjetividade acaba se apresentando como uma das variáveis presentes em nosso contato com as obras artísticas. A “locomoção”, citada anteriormente em Arnheim, estaria na perspectiva daquele que interage e seria iniciada por ele, viria do movimento corporal do próprio interator – fato que pode se apresentar como um dos caminhos da abertura perceptiva, uma vez que nos aproximamos daquilo que nos interessa e do qual queremos saber mais, compreender. Também é pertinente pensar que, na experiência com a obra, a ação do movimento, do corpo que se aproxima ou se afasta, dessa relação espaço-corpo- objeto, caracteriza-se como importante ato no diálogo aqui abordado, intensificando tais “tensões” e estimulando a ideia da experiência estética como aquilo que alcançará os sentidos e sentimentos subjetivos do observador. Retornando ao observador, seu contato com o objeto de arte será um gatilho para ativar sua percepção. Essa ativação, que aciona os mecanismos sensoriais para poder interagir e compreender a obra, pode remeter ao que Arnheim nomeou de “conceitos perceptivos”, no qual o uso do termo “conceito” foi escolhido para sugerir uma aproximação entre os “mecanismos que operam no nível perceptivo e os mecanismos que operam no nível intelectual”, com uma similaridade entre as “atividades elementares dos sentidos e as mais elevadas [atividades] do pensamento ou do raciocínio”55, sugerindo-se, então, que a experiência ativada da percepção, em 55 “[...] a percepção consiste na formação de ‘conceitos perceptivos’. Conforme os padrões tradicionais esta terminologia é incômoda, porque se supõe que os sentidos se limitam ao concreto, enquanto os conceitos tratam do abstrato. [...] O uso da palavra ‘conceito’ não pretende de modo algum sugerir que a percepção seja uma operação intelectivo. [...] o termo conceito tem a intenção de sugerir uma similaridade notável entre as atividades elementares dos sentidos e as mais elevadas do pensamento 46 relação à obra de arte, caberia não só como recepção, mas, também, como reflexão do ato e da presença perante a obra. Ao abordar essa relação entre o sensorial e o raciocínio, Arnheim coloca ambas em um mesmo patamar de importância, inclusive em uma relação de reciprocidade, no qual uma interfere na outra, trazendo-nos mais uma afirmação quanto à importância dos sentidos em nosso ver e estar no mundo e no raciocínio, no pensamento e na compreensão daquilo que presenciamos. A “área de ação”, então, apresenta-se como esse conjunto metafórico de “tensões dirigidas”, presente nesse local habitado pela obra de arte, em que as ações de abertura do indivíduo entram em contato com a interação responsiva ativada da obra, tornando-se ponto de encontro, em que a possibilidade de estabelecimento do diálogo obra-interator pode se mostrar iniciada, descobrindo-se, em certo ponto, como um movimento primário da experiência estética na arte. Considerando a abertura da recepção perceptiva do observador, ela poderá se expandir ou se retrair, e, assim, a recepção da intenção responsiva da obra de arte será, mais ou menos, captada, estando sempre presente – independentemente se a interação for mínima. Um modo de pesar o quanto fomos receptivos ou não à obra, pode estar no fato de o quanto nos lembramos dela, como essa memória se instalou dentro de nós e como a acessamos – de uma forma mais impactante, mais forte, talvez até com uma carga emotiva, ou se ela se mostra evanescida e pouco clara. Em conjunto, nossas sensações, não só corporais, como também de percepção temporal e espacial, podem ser registros memoriais que nos apresentam a informação de receptividade de nossas aberturas. Esses elementos serão melhor abordados nos próximos capítulos, para podermos refletir sobre como se estruturam nesse ambiente metafórico. É, portanto, na área de ação que se torna possível o diálogo intimista entre obra e observador e, daqui em diante, veremos os elementos que serão fundamentais para essa ativação mais profunda, possibilitando a criação de um meio de acesso a essa experiência estética. ou do raciocínio. [...] Parece agora que os mesmos mecanismos operam tanto ao nível perceptivo como ao nível intelectual, de modo que termos como conceito, julgamento, lógica, abstração, conclusão, computação são necessários para descrever o trabalho dos sentidos.” (ARNHEIM, 2013, p. 39) 47 2.1.1) Sensorial O primeiro elemento que abordaremos é um participante fundamental na criação da área de ação descrita acima, sendo parte integrante da percepção e da experiência estética: o sensorial. Estamos, portanto, pensando no momento em que se coloca em uso os conhecidos cinco sentidos humanos, já citados anteriormente: a visão, o olfato, o tato, o paladar e a audição. Entretanto, quanto ao sistema auditivo, é necessário fazer, aqui, um acréscimo mais específico, ou seja, o sistema vestibular, responsável pelo equilíbrio e pela orientação espacial básica do ser humano. Aliado a ele, podemos acrescentar, ainda, um outro elemento, citado por diversos autores, como importante fator no desenvolvimento de nossa relação com o espaço e com o entorno: o nosso movimento corporal, mais especificamente chamado de cinestesia56. Arnheim, por exemplo, aponta que “cinestesicamente” cria-se um outro “esquema de [coordenadas e] referência de orientação espacial”, além do que é reconhecido visualmente, desenvolvido “pelas sensações musculares do corpo e do órgão de equilíbrio do ouvido interno”57. Todos esses elementos estão presentes em nosso cotidiano e são fatores primordiais de relacionamento com outras pessoas e com o ambiente. Quando em presença de uma obra de arte, não seria diferente, já que tais elementos se configurariam como ativações corporais de compreensão e interação. Esse processo de ativação sensorial cotidiana não é algo que ocorre individualmente, ou seja, um sentido por vez, mas, sim, em conjunto. Todos nossos sentidos estão em constante movimento; não desligamos qualquer um deles propositalmente, eles trabalham em conjunto e, quando necessário, pode surgir uma certa “priorização da percepção” de um ou mais deles. Neste caso, um sentido que recebe um estímulo maior capta nossa atenção, atrai nosso foco e pode gerar uma certa sobreposição em relação aos outros, o que contribui para uma aparente individualização desse sentido, dando a falsa impressão de que os demais estão “inativos”. Isso pode ocorrer quando buscamos um “olhar” mais apurado, quando 56 O termo cinestesia se refere à “percepção dos movimentos musculares, peso e posição dos membros, por meio de estímulos próprios”. (Dicionário Michaelis online). 57 ARNHEIM, 2013, p. 93. 48 procuramos e nos focamos em algo específico, ou quando algo nos chama a atenção pela surpresa com que aparece e é necessário tal enfoque para nos dar a compreensão do que está sendo vivenciado. Essa forma de ativação e sobreposição é comum em nosso cotidiano, e tal percepção sensorial também se apresenta quando a levamos para o ambiente artístico, naquele em que nos deparamos “mais formalmente”