Suzy M. Faustino Representações do poder em Walden e outros ensaios de Henry Thoreau São José do Rio Preto 2022 Câmpus de São José do Rio Preto Suzy M. Faustino Representações do poder em Walden e outros ensaios de Henry Thoreau Dissertação apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Letras, do Programa de Pós-graduação em Letras, linha de pesquisa Perspectivas Teóricas no Estudo da Literatura, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – campus de São José do Rio Preto. Orientação: Prof. Dr. Nelson L. Ramos Financiadora: CAPES São José do Rio Preto 2022 Suzy M. Faustino Representações do Poder em Walden e outros ensaios de Henry Thoreau Dissertação apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Letras, do Programa de Pós-graduação em Letras, linha de pesquisa Perspectivas Teóricas no Estudo da Literatura, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – campus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Comissão Examinadora Prof. Dr. Nelson Luís Ramos UNESP – Campus de São José do Rio Preto Orientador Profa. Dra. Nilce Maria Pereira UNESP – campus de São José do Rio Preto Profa. Dra. Kenia M. de Almeida Pereira Universidade Federal de Uberlândia São José do Rio Preto 26 de outubro de 2022 Agradecimentos Agradeço ao prof. Nelson Luís Ramos pela bondade e gentileza em aceitar terminar a orientação deste trabalho, da mesma forma que agradeço às professoras Norma Wimmer e Nilce M. Pereira por terem aceito participar da qualificação e terem contribuído com preciosas sugestões sem as quais este trabalho não teria tomado a forma que tomou. Agradeço à banca examinadora – composta, uma vez mais, pela profa. Nilce M. Pereira, e também pela professora Kenia M. de Almeida Pereira – pelas contribuições e sugestões teórico-críticas. Agradeço também aos professores do Programa de Pós-graduação em Letras desta universidade, especialmente ao prof. Pablo Simpson. Um agradecimento a Olavo de Carvalho por ter aberto o mercado editorial, o intelecto, o coração e a imaginação de muitos a intelectuais até então desconhecidos ou ignorados. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – (CAPES) – Código de Financiamento 001, à qual agradeço. My heart leaps up when I behold A rainbow in the sky: So was it when my life began; So is it now I am a man; So be it when I shall grow old, Or let me die! The Child is father of the man; And I could wish my days to be Bound each to each by natural piety. (WORDSWORTH, 1807) Resumo: trata-se de um estudo sobre símbolos, imagens e conceitos relacionados às dimensões dos poderes temporal e espiritual em Walden e A Desobediência Civil, do escritor e ensaísta americano Henry David Thoreau (1817-62). As motivações para a pesquisa devem-se a dois filósofos políticos: Benedict Anderson (1936 – 2015) e Eric Voegelin (1901 – 85), ambos tratam das questões relacionadas à representação do poder por meio de símbolos, assim como por meio da linguagem teórica, que gira em torno dos termos “poder temporal e poder espiritual”. Compõem ainda o pano de fundo teórico as obras de Guénon (s/d; 1995; 2001) e Eliade (1979). Não se trata de comparar as obras de Anderson e Voegelin com a de Thoreau, mas de – inspirando-se nos dois primeiros – buscar-se intersecções entre linguagem teórica e símbolo ou imagem nas obras do terceiro. Trata-se, portanto, de análise e interpretação das representações desses elementos que aparecem tanto simbólico-imagética quanto conceitualmente nas obras de Thoreau. A hipótese trabalhada neste estudo é a de que os dois poderes ou dimensões formam oposições nas obras de Thoreau, que aparecem ou sob a forma de símbolos ou imagens (centro, verticalidade/horizontalidade, caminhada, natureza edênica, sociedade corrupta, decaída), no caso de Walden; ou sob a forma de uma linguagem mais próxima da filosofia política. Esse é o caso d’A desobediência civil. Tais símbolos, sugere-se, dialogam com os conceitos de poder temporal e poder espiritual. Os estudos de Schneider (1995), Buell (1995), Marx (2000), Lane (1960), Cavell (1991), et al., compõem a fortuna crítica com a qual dialogar-se-á sobre a questão simbólico-imagética das obras de Thoreau. Enquanto as obras de Schneider (1995), Bennett (2009) e Turner (2009) serão de auxílio para o diálogo com as leituras de fundo teórico-político do autor. Palavras-chave: Representações do poder temporal e espiritual. Símbolo. Imagem Literária. Thoreau. Abstract: this dissertation aims at analyzing and at interpreting American essayist and author Henry Thoreau’s Walden (1854), Civil Disobedience (1849), Walking (1862), and Life without Principle (1863). The analysis is centered on two concepts of Political Philosophy: the “Temporal and Spiritual powers”, which also includes symbols and images that share correspondence with those theoretical notions. Therefore, our hypothesis can be stated in the following terms: in Thoreau’s selected works it is possible to conceive one main opposition, that is, State, government, society vs. nature and individual, which is expressed in symbolical, imagetic terms – vertical and horizontal lines; the centre; the axis mundi – and also in rhetorical terms: society and government as the corrupted dimension; nature as Eden. The opposition allows us to develop those elements in the conceptual notions alluded above: the spiritual power (nature as Eden) vs. the temporal power (corrupted government, society). Critics as Lane (1960), Cavell (1992), Buell (1995), Schneider (1995), Turner (2009), amongst others, are part of this study. As well as the theoretical works of Voegelin (2002), Guénon (1995; 2001), Eliade (1979), Tocqueville (1988), and Anderson (2006). Keywords: Representations of the temporal and spiritual powers. Symbols. Images. Thoreau. Lista de ilustrações Figura 1. Esquematização das representações das dimensões espiritual e temporal 51 Figura 2. Representação espacial das dimensões espiritual e temporal 52 Figura 3. Representação espacial do lago Walden 81 Figura 4. Yggdrasil, a árvore do mundo 82 Figura 5. A cruz de três dimensões 82 Figura 6. A formação dos símbolos em Walden 86 Figura 7. A cruz de três dimensões e o axis mundi 100 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................11 PARTE I 1. PREÂMBULO TEÓRICO...............................................................................15 1.1 Estado e poder temporal, religião e poder espiritual...................................15 1.2 Imagem e símbolo............................................................................................20 1.2.1 A simbologia da cruz e do axis mundi..................................................21 1.3 A comunidade americana...............................................................................23 1.3.1 A América de Tocqueville....................................................................24 1.3.2 O Puritanismo........................................................................................32 2. THOREAU.........................................................................................................40 PARTE II 3. FORTUNA CRÍTICA E INTERPRETAÇÃO.................................................50 3.1 Walden ................................................................................................................50 3.1.1 Dimensão temporal: a sociedade corrompida..........................................59 3.1.2 Dimensão espiritual: a natureza edênica .................................................64 3.2 Outros ensaios................................................................................................102 3.2.1 Vida sem princípios................................................................................102 3.2.2 Caminhar...............................................................................................105 3.2.3 A desobediência civil ............................................................................110 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................118 REFERÊNCIAS......................................................................................................123 11 Introdução Este trabalho tem por objetivo um estudo sobre como as noções de poder temporal e poder espiritual se configuram e se relacionam nas seguintes obras do escritor americano 1 Henry David Thoreau (1817 – 1862): Walden (1854), Vida sem Princípios (1863), Caminhar (1862) e A Desobediência Civil (1849). Esses três últimos estão na edição de A Desobediência Civil, publicada no Brasil em 2012. Thoreau adquiriu fama mundial póstuma depois de se recusar a pagar um imposto e ir preso em decorrência do ato. Uma das justificativas para essa desobediência foi o fato de que ele se contrapunha à escravidão nos Estados Unidos e à Guerra do México (1846-48). Dessa experiência nasceu o ensaio A Desobediência Civil, que influenciou muitos ativistas políticos desde então. O autor ainda é conhecido pela experiência de dois anos vivendo quase totalmente isolado nos bosques à beira do lago Walden, em Concord, sua cidade natal, no estado americano de Massachussetts, entre os anos de 1845 e 1847. Essa experiência rendeu-lhe o livro Walden, publicado anos depois, em 1854. A hipótese de trabalho configura-se da seguinte forma: nos ensaios de Thoreau, o indivíduo se coloca como aquele que resiste e que se opõe à comunidade e ao Estado, dado o cenário de corrupção de ambos – corrupção dos costumes, da moral e do regime. Essa oposição às vezes aparecerá sob a forma de símbolos e imagens (verticalidade, horizontalidade, centro, caminhada, elementos da natureza), às vezes sob a da linguagem teórica da filosofia política, principalmente na articulação dos conceitos de poder espiritual e poder temporal. Dessa forma, o que se defenderá neste estudo, é uma oposição entre as dimensões temporal – comunidade/sociedade, Estado, e seus símbolos, imagens, conceitos –, e espiritual (ou individual, sugerir-se-á em algum momento) – também com seus respectivos símbolos e imagens. Este trabalho, então, trará uma intersecção entre linguagem e símbolo. Os parágrafos abaixo apresentam as motivações para a escolha dessa temática. A primeira delas está relacionada aos simbolismos levantados por Benedict Anderson em seu livro Imagined Communities (2006). Segundo ele, “as três concepções culturais fundamentais [latim como língua-verdade; sociedade organizada em torno e embaixo de 1 Ao longo deste trabalho, deparar-se-á o leitor com os termos “América” e “americano (a)” referindo-se aos Estados Unidos e seu gentílico, respectivamente. Tal escolha deve-se apenas a uma decisão baseada em critérios estéticos da própria autora que, apesar de adotar os dois vocábulos, reconhece a controvérsia ideológica e histórico-geográfica em torno deles. 12 centros elevados; temporalidade simultânea] perderam o domínio axiomático sobre a mentalidade dos homens” (ANDERSON, 2006, p. 36). Neste estudo, sugerir-se-á que uma delas (os centros altos e elevados) talvez não tenha perdido seu “domínio axiomático”, mas que pode ter sido apenas deslocado de um ponto a outro. O outro simbolismo é o da horizontalidade, que é como ele denomina as comunidades nacionais. Anderson (2006), no desenvolvimento de seu livro, preocupa-se muito mais com as transformações materiais da questão, as menções aos símbolos, ao nosso ver, são elementos acidentais em sua análise que, no entanto, inspiraram-nos, como já mencionamos, a investigar o hipotético deslocamento desses símbolos na obra de Thoreau. A segunda das motivações diz respeito aos símbolos levantados pelo também filósofo político, o alemão radicado nos Estados Unidos, Eric Voegelin (1901-85). A ciência, segundo ele, é algo tardio na experiência humana, que já estava anteriormente povoada pelos símbolos míticos das grandes narrativas (VOEGELIN, 1982, p. 33-35). Isso o fez concebê-los como fundamentais em sua análise, articulando tais símbolos – o sol e, posteriormente, o Corpo de Cristo – à linguagem da filosofia política (poder espiritual e poder temporal). Isso ficará mais claro quando formos tratar do assunto já no primeiro capítulo da Parte I. O pressuposto de Voegelin (2002) é que, na estrutura da realidade, articula-se uma esfera do espiritual e uma do temporal, ou em outras palavras, a esfera divina e a esfera da sociedade. * A estrutura dos capítulos segue, de forma análoga, a estrutura de círculos concêntricos, cuja direção parte das periferias – das noções introdutórias e mais gerais de Estado, comunidade, religião, poder espiritual e temporal, conforme vistas por autores que inspiraram a temática deste trabalho, até uma contextualização das mesmas na comunidade americana – para o centro, representado pelos motivos e imagens relacionadas ao indivíduo: o autor de nossos estudos e sua perspectiva sobre esses elementos acima citados. Ou, de outra forma, essa mesma estrutura em uma linha de significado partindo da indistinção entre poder temporal/espiritual (simbolizada pelo sol) até sua distinção e separação (simbolizada pelo corpo de Cristo) e o posterior deslocamento desses poderes: ou para a natureza ou para o indivíduo. 13 Isso posto, na Parte I, “Preâmbulo teórico”, expor-se-ão as teorias que serviram de base para a reflexão e posterior interpretação das obras de Thoreau. O capítulo divide-se em três seções: 1.1: “Estado e poder temporal, religião e poder espiritual”: abordar-se-ão esses elementos e a forma como se articulam entre si. Como mencionamos, exporemos seu caráter problemático de palavra, discurso, e símbolo, respectivamente, as noções de poder espiritual e temporal e os símbolos a eles pertinentes: o sol, o centro, o corpo de Cristo, símbolos notadamente de origem religiosa. Para isso, as obras de Voegelin (2002), Anderson (2006) serão fundamentais. Pretende-se, aqui, fundamentar as bases a partir das quais se refletiu sobre os ensaios de Thoreau: os conceitos de poder espiritual e temporal e seus respectivos símbolos e imagens, ou conceitos. Na seção 1.2, “Imagem e símbolo” que, por sua vez, desdobra-se em 1.2.1: “O simbolismo da cruz”, pretende-se assentar conceitos mais ou menos estáveis a respeito desses dois temas, ou seja, uma breve definição dos conceitos de “imagem” e de “símbolo”, esse último desdobrado no símbolo da cruz, o qual nos foi de auxílio nas interpretações de verticalidade, horizontalidade e centro. As obras de Ceia (2009), Guénon (s/d, 1995; 2001) e Eliade (1979; 1992) compõem o aparato teórico. Na seção 1.3, “A comunidade americana”, “A América de Tocqueville” e “O Puritanismo”, investigar-se-ão as principais características dessa comunidade: ainda um pouco sob os olhos de Voegelin (2002), que mobiliza o símbolo do corpo de Cristo e a noção de likemindedness para descrevê-la, e depois também sob os olhos de Tocqueville (1989) – do qual recortamos os capítulos em que esse autor trata da mentalidade de igualdade democrática, além do forte espírito da religião – pretende-se assentar as hipóteses de leitura simbólica: a comunidade e o símbolo geométrico da horizontalidade. Ademais, esse capítulo ainda exporá minimamente a articulação entre poder espiritual – a religião puritana – e sua influência na sociedade. Tópico também tratado por Tocqueville. Relembremos, pois, que nos capítulos de interpretação dos ensaios, retomaremos certos símbolos e também nos utilizaremos da noção de poder espiritual e temporal, articulando-os. Ademais, esse capítulo fornecerá um certo panorama histórico daquela comunidade. O que se pretende com isso é reforçar a perspectiva política e religiosa sob a qual analisaremos os ensaios de Thoreau. Dessa forma, a Parte I configurar-se-á como capítulos-extensão da Introdução, oferecendo uma contextualização teórica do tema. 14 Direcionando-nos mais para o centro desse círculo, o capítulo 2, “Thoreau”, mostra uma breve biografia do autor, centrada principalmente no elogio fúnebre de seu amigo e mestre Ralph Waldo Emerson (1803-82), e em seu biógrafo Walter Harding (1917-96). Além de mencionar seus livros mais famosos no contexto de sua elaboração e escrita e a presença de Thoreau no círculo dos transcendentalistas. Na Parte II, o capítulo 3, “Fortuna crítica e interpretação”, trata da crítica selecionada e da interpretação das obras selecionadas. Em 3.1., “Walden”, apresentar- se-á a leitura simbólica que faremos. Nesse campo, estaremos amparados pelos estudos de Lyon (1967), Lane (1960), Broderick (1967), Schneider (2004), Paul (1954), Marx (2000), entre outros. O que se propõe, aqui, é uma perspectiva religiosa sobre os escritos de Thoreau. Em outras palavras, pretende-se ler Walden a partir de suas “tensões espirituais”. Ou seja, como uma obra de busca por um poder espiritual. Isso será feito por meio de imagens ou símbolos que, de uma forma ou de outra, sugerir-se-á, expressam essa tensão – a verticalidade, a horizontalidade, o lago, a caminhada, entre outras imagens ligadas à natureza. Tais imagens ou símbolos, sugerir- se-á, estão relacionados à busca por uma realidade “mais real”; e também estariam relacionados à alma individual e a sua busca por ordem, uma vez demonstrada a desordem espiritual em que reina a sociedade, desordem essa denunciada pelo autor no desenrolar de toda a obra. Trataremos, pois, dos motivos, símbolos e imagens ligados à tal tensão espiritual, e também, por vezes, ligados à alma individual em sua relação de rejeição e oposição à sociedade como uma linha que percorre vários dos capítulos de Walden. Pretendemos, com isso, demonstrar o caminho de elevação da alma individual em direção ao poder espiritual. Tal poder, sugerir-se-á, está representado por símbolos de transcendência, embora nem todos remetam-se a ela. Essa seção desdobrar-se-á em “A dimensão temporal: a sociedade corrompida” e “A dimensão espiritual: a natureza edênica”. Na seção 3.2, abordaremos mais três ensaios de Thoreau: Vida sem princípios, Caminhar e A Desobediência Civil. No primeiro, aparecerão as críticas a acusações de Thoreau à sociedade, e ainda símbolos relacionados à verticalidade e à profundidade, em articulação com a crítica e posterior rejeição de Thoreau à comunidade. No segundo ensaio dessa seção, Caminhar, demonstremos como o símbolo do centro mobilizado por Anderson (2006) reaparece em um movimento de deslocamento. O terceiro ensaio, A Desobediência Civil, tratará de uma análise mais teórica que Thoreau faz do Estado e do governo. Não encontraremos os símbolos, mas ainda assim 15 poderemos articular as representações do poder temporal, corroborando a mesma hipótese de oposição entre poder temporal e espiritual – ou mais especificamente nessa seção, poder individual – e a consequente supremacia do último, defendida apelando-se para a desobediência civil. Turner (2009), Bennet (1990) e Cavell (1992) serão de grande auxílio para podermos vislumbrar o estado das questões políticas do autor. Para a análise e interpretação de Walden e dos outros ensaios selecionados de Thoreau, optou-se pelas versões traduzidas das obras, a saber, as traduções de Walden de Denise Bottman e Marina della Vale, de 2011 da editora LPM Pocket, e 2021 da editora Planeta, respectivamente. A tradução dos ensaios Vida sem Princípios, Caminhar e A Desobediência Civil pertencem a José Geraldo Couto, do ano de 2012 da editora Penguin & Companhia das Letras. Para a análise de algumas passagens das citadas obras, optou-se por utilizar o texto original em língua inglesa, destacado nas inserções das notas de rodapé. Poucas obras teóricas ou críticas estão traduzidas para a língua portuguesa. Em razão disso, a expressão “tradução nossa” refere-se às traduções feitas pela autora desta dissertação. PARTE I 1. Preâmbulo teórico 1.1. Estado e poder temporal, religião e poder espiritual Benedict Anderson (2006) argumenta que as comunidades nacionais são imaginadas, pois unem membros que nem sequer se conhecem. Para o citado autor, elas são concebidas como uma “camaradagem horizontal e profunda” (ANDERSON, 2006, p. 5-6) que destoam dos “grandes sistemas culturais” que as precederam na modernidade (ANDERSON, 2006, p. 8). Anderson (2006) sutilmente sugere que as comunidades nacionais da modernidade são herança direta dos dois grandes sistemas da Antiguidade: as comunidades religiosas (as “hierarquias cosmológicas”) e os reinos dinásticos (as hierarquias terrenas) (ANDERSON, 2006, p. 8). No entanto, o autor se utiliza de simbologias de verticalidade, horizontalidade e centro para descrevê-los, já que, segundo ele, os dois sistemas viam-se como centros elevados não limitados por fronteiras (ANDERSON, 2006, p.13). Mas não são unicamente as hierarquias cosmológicas e terrenas que influem na caracterização das comunidades ao longo da história. Para Anderson (2006), ainda há 16 outros fatores na construção de suas imagens, mais relacionados com as transformações materiais do mundo. No entanto, neste estudo, centrar-nos-emos na simbologia utilizada pelo autor, a da “camaradagem horizontal e profunda” e do centro elevado, pois foi esta a motivação deste trabalho. Numa trilha tangente à de Anderson, embora suas obras sejam bem anteriores às desse último, Eric Voegelin (1905-85), em As religiões políticas, publicado pela primeira vez em 1938, afirma que o uso simbólico da língua constrange o estudioso do Estado e da religião, pois, para nossa época, os dois têm seus próprios campos de significado e atuação, jamais se interseccionando. No entanto, segundo o autor, esta pode ser apenas uma impressão ilusória das coisas da seguinte forma: a linguagem pode mudar, mas a estrutura da realidade a que ela se refere pode permanecer a mesma. Falar de religião é falar da instituição igreja, e falar de política é falar do estado. Estas organizações defrontam-se, cristalizadas em unidades distintas e sólidas, e o espírito que impregna esses dois corpos não é do mesmo tipo. O estado e o espírito mundano conquistaram o seu domínio de aplicação na luta encarniçada contra o Santo Império da Idade Média e, nesse combate, formaram-se símbolos linguísticos que não exprimem a realidade como tal, mas que procuram somente manter e defender os antagonismos dessa luta (VOEGELIN, 2002, p. 25). Voegelin (2002) analisa uma definição escolar de Estado que ninguém, até então, suspeitou ter pretensões religiosas. Segundo essa definição, o estado constitui uma união associativa de homens sedentários, dotado de um poder soberano originário. Muitos dos elementos dessa definição dizem manifestadamente respeito a fatos da experiência concreta: homens, associados, sedentários, sobre um território. Contudo, um outro elemento, o poder soberano originário, desperta dúvidas. “Originário” não pode significar senão o fato de o poder não ter outra fonte senão o do próprio estado, que não pode derivar de nenhuma outra parte, que é absoluto. Um olhar sobre a realidade revela que tal afirmação é falsa. Um poder absoluto, originário, é um poder acima de todos os poderes; não há outro poder a seu lado, nem acima dele, e, abaixo dele, somente os poderes que lhe são devotos. Ora, apesar disso, o poder do soberano tem barreiras em seu interior, porque existem coisas que nenhum soberano pode fazer sem ser derrubado, e barreiras para o exterior, face a outros poderes soberanos. Tal pluralismo de poderes leva-nos a repor a questão de sua proveniência (VOEGELIN, 2002, p. 27). O autor segue seu raciocínio buscando as fontes históricas das quais irrompeu a definição acima. Afirma ele que foi Hegel “quem estabeleceu esta tese segundo a qual o povo, enquanto Estado, constituía o Espírito na sua realidade imediata e, 17 consequentemente, o poder absoluto sobre a terra” (VOEGELIN, 2002, p. 28). O estudioso conclui que essa foi uma experiência religiosa expressa por meio de outros símbolos linguísticos. Isso ficará mais claro à medida que avançarmos neste estudo. Ao examinar mais aprofundadamente a linguagem teórica utilizada para se descrever Estado e religião, o autor os conecta por meio do estudo dos símbolos das antigas religiões políticas (Egito), e também do Cristianismo. Ele usa o termo “religiões políticas” em contraste com as religiões transcendentais. Essas, explicando de forma bem simplificada, guardam seu sentido último em um tempo fora da história. Já as primeiras são religiões imanentes dentro do nosso tempo histórico. Além disso, as religiões políticas articulam poder temporal e espiritual em uma só pessoa ou instituição (VOEGELIN, 2002, p. 35). Para o autor, um desses símbolos é o sol, grande símbolo da irradiação do poder. A partir dele, que é o centro, o poder se irradia para todas as direções. O início dessa simbologia se deu no Egito e era denominado “Akhenaton”. Lá, organizou-se toda uma estrutura hierárquica desde o deus-sol até o faraó como manifestação divina, para então se irradiar em direção aos sacerdotes e à comunidade como um todo (VOEGELIN, 2002, p. 36-44). Voegelin (2002) ainda afirma que o símbolo do sol como a irradiação de poder é fundamental para o entendimento dos Estados antigos e modernos, pois ele permanece ao longo da história e chega à Europa cristã em doutrinas com as de Jean Bodin (1530- 96), que “racionalizou o símbolo da hierarquia sagrada. O mais alto poder do mundo e de Deus; Ele é senhor dos príncipes, que não são mais do que seus vassalos” (VOEGELIN, 2002, p. 47). É dessa forma que se configura a mesma experiência religiosa, porém sob a forma de outros signos linguísticos. Além disso, o sol ainda aparecerá nas religiões políticas que surgiram na modernidade, mas, como já se mencionou, camuflado sob outra linguagem. Seguindo esse raciocínio, Voegelin (2002) faz uma análise do Leviatã, de Hobbes, publicado pela primeira vez em 1651, para demonstrar como a estrutura da irradiação de poder ainda é o símbolo que subjaz nesse último, ao lado do símbolo cristão do Corpo Místico de Cristo, ou ecclesia (igreja), a comunidade espiritual, o corpo cuja cabeça é Cristo. Para Voegelin (2002), Hobbes, conscientemente ou não, transformou o símbolo da ecclesia, a comunidade espiritual e universal, em uma comunidade em nível histórico, mundano e local articulando Estado e comunidade. A teoria a respeito dos 18 símbolos do Corpo Místico de Cristo e da ecclesia cristã remonta a São Paulo Apóstolo. De forma simplificada, a comunidade terrena, o que inclui povo e soberano (rei), é o Corpo de Cristo na terra, enquanto a cabeça é o próprio Cristo no céu, ou seja, não mais na ordem temporal da realidade, mas na espiritual, representada na dimensão temporal pela figura do papa. Segundo Voegelin (2002), o símbolo do corpo pode ser articulado por meio da linguagem científica dos Escolásticos: poder temporal e poder espiritual que, nesse caso, estão separados. Já o sol é o símbolo da concentração de poder: uma pessoa ou instituição detém ambos os poderes temporal e espiritual, como no caso do “Akhenaton” egípcio. O autor conclui, com isso, que a separação entre esses dois poderes só foi possível na civilização cristã. Retomaremos essa questão na análise dos ensaios de Thoreau. O mesmo autor ainda defende que a ecclesia, em Hobbes, não é mais a comunidade – temporal e espiritual – dos cristãos do mundo todo, mas se dilui em Estados-nação particulares, o commonwealth, na linguagem hobbesiana. O mundano- político e o sagrado passam a se interpenetrar: [Hobbes] concebeu o símbolo do Leviatã, do estado situado imediatamente abaixo de deus e onipotente aos olhos de seus súditos, porque representante do poder divino [...] A multidão informe de homens não escolhe um soberano, antes liga a sua pluralidade à unidade de uma pessoa. A multidão torna-se na unidade do commonwealth, instituindo-se um portador de sua personalidade; o commonwealth, e não o soberano eleito, é a personalidade que doravante se impõe como o ator da história. [...] A hierarquia deixa de descer até as pessoas para descer até a comunidade enquanto pessoa coletiva. O soberano é o portador da personalidade do commonwealth (VOEGELIN, 2002, p. 60-61). Para Voegelin (2002), há uma espécie de atravessamento de dois símbolos: o soberano não é a cabeça de Cristo, mas uma espécie de faraó egípcio que recebe o poder diretamente de um deus. Foi assim que o Estado se transformou em uma personalidade histórica, pois ele seria, na pessoa do soberano, a unidade e a personalidade da multidão, a “comunidade como pessoa coletiva”, por mais contraditório que pareça. Um exemplo disso é a Inglaterra sob o governo de Henrique VIII, que era o chefe de Estado e o fundador e chefe da igreja nacional inglesa, a Igreja Anglicana. É exatamente nesse ponto que o autor aproxima-se do conceito de representação. Voegelin (2002) segue o mesmo raciocínio ao tratar do regime nazista que, para ele, é uma das religiões políticas “intramundanas” modernas. A articulação da religião 19 nazista é semelhante à de Hobbes, com uma diferença fundamental: a ordem espiritual foi decapitada e a fonte do poder não pertence mais a um deus: o führer é o único que conhece e interpreta o volksgeist, o espírito do povo, que passa a ser uma espécie de deus, de onde irradia, através do intermédio do já citado führer, o poder. O mesmo autor estabelece, por meio de suas análises linguísticas e ontológicas, semelhanças entre as articulações dos símbolos das religiões políticas antigas, como a egípcia, e as formações modernas, que tem por base o Leviatã (VOEGELIN, 2002, p. 75-79) e se mesclaram nas diversas ideologias políticas desde então. Conclui-se, pois, que Voegelin (2002) iguala os conceitos de poder temporal e espiritual ao símbolo do Corpo de Cristo. O que é relevante, aqui, para as análises subsequentes, é a igualdade em si, não seu conteúdo. Em outras palavras, estabelecer- se-á uma identidade entre o poder espiritual/temporal não necessariamente em relação ao Corpo de Cristo, mas a outros símbolos ou imagens que Thoreau eventualmente constrói. O que, por sua vez, deixará entrever uma tensão entre as dualidades de transcendência e imanência, configurando, pois, o caráter ou político ou religioso de suas obras. Uma segunda motivação deve-se à obra Spiritual Authority and temporal power, escrita em 1929 pelo metafísico e estudioso de símbolos René Guénon (1886-1951). Nessa obra, Guénon (2001) afirma que, ao longo da história, há exemplos de oposição entre as representações – ou entres os representantes – do poder temporal e da autoridade espiritual: segundo ele, na Europa Medieval, por exemplo, os poderes espiritual e temporal eram representados pelo sacerdócio e pela realeza, respectivamente. Já na tradição Hindu, a oposição se forma entre a casta dos “brahmins” (sacerdotes), representantes do poder espiritual, e a dos “kshatriyas” (guerreiros), o poder temporal. (GUÉNON, 2001, p. 7-9). A disputa entre os dois paira, então, sobre a relação hierárquica que há entre eles, pois, anteriormente submissos à autoridade espiritual dos “brahmins”, os “kshatriyas” se insubordinaram contra eles e declararam- se independentes de qualquer autoridade espiritual, histórica e tradicionalmente superior em hierarquia: [...] tendo estado, anteriormente, submissos à autoridade espiritual, os guerreiros, representantes do poder temporal, revoltam-se contra sua autoridade e declaram-se independentes de todo poder superior, e ainda tentam subordinar a autoridade espiritual – a qual, 20 anteriormente, haviam reconhecido como a fonte de seu próprio poder – a si mesmos. (GUÉNON, 2001, p. 16, tradução nossa) 2 Já sob a forma simbólica, afirma Guénon (2001), os dois poderes eram representados, dessa vez na tradição céltica, pelo javali e o urso em combate, que simbolizam, respectivamente, a autoridade espiritual e o poder temporal; em outras palavras, os druidas (sacerdotes) e os cavaleiros/guerreiros. De acordo com o autor, o javali e o urso também são representações ligadas à lenda do Mago Merlin e do rei Arthur, respectivamente. (GUÉNON, 1995, p. 120; 2001, p. 10-11). Ainda de acordo com o autor, as ordens espiritual e temporal nunca estiveram tão fundidas uma na outra quanto nos tempos atuais (GUÉNON, 2001, p. 13). Guénon (2001, p. 22) complementa seu raciocínio ao argumentar que, na mitologia romana, Janus representava a fonte de ambos os poderes, espiritual e temporal. Já São Pedro representa “a encarnação do poder sacerdotal”. Para o autor, o poder temporal é aquele que é suscetível à esfera ou dimensão das mudanças e sucessões. Esse poder seria inconcebível se afastado de um princípio ordenador imutável, ou seja, se afastado do poder espiritual (GUÉNON, 2001, p.24). 1.2 Imagem e símbolo De acordo com o dicionário de termos literários de Carlos Ceia (2009), o conceito de imagem literária pode ser definido como uma representação mental de uma realidade sensível que funciona como um recurso linguístico em textos literários quando se faz a associação inconsciente ou indirecta de dois mundos ou realidades separadas no tempo e no espaço (CEIA, 2009). Da mesma forma que o símbolo, a imagem remete-nos a uma visualidade. Ceia (2009) continua seu raciocínio, afirmando que a imagem exige uma identificação simbólica entre dois objetos, “a água é como um cristal”, “a água cristalina”. Neste caso, ‘água’ e ‘cristal’ podem ser entendidos com símbolos que nos remetem à outra esfera. Esses símbolos, segundo o autor, guardam significados superiores em relação à imagem da água cristalina que, por sua vez, pode ser identificada como uma imagem direta “presa à sensibilidade imediata das coisas” (CEIA, 2009). 2 Do original: “[…] having first been subject to the spiritual authority, warriors, the holders of the temporal power, revolt against this authority and declare themselves independent of all superior power, even trying to subordinate to themselves the spiritual authority that they had originally recognized as the source of their own power, […].” 21 Ao tratar também do símbolo, Silva (2009) defende que ele exige interpretação, pois “só atua quando sua estructura é interpretada” (SILVA, 2009). E é durante, ou depois, dessa mesma interpretação que o símbolo se mostra em seus significados. A autora ainda defende que todo símbolo é um signo, pois “visa algo para além de si mesmo” (SILVA, 2009); a autora ainda reforça que nem todo signo é símbolo, para o ser, o significado precisa ser opaco, ou seja, ele realmente exige a interpretação. Definir-se-á, também, o conceito de símbolo na perspectiva metafísico-teológica de Guénon (1995) e Eliade (1992). Para o primeiro, símbolo e palavra se entrecruzam e se superpõem: a palavra, por um lado, é analítica e discursiva. O símbolo, por sua vez, é essencialmente sintético. No entanto, defende o autor que, “cada expressão, cada formulação, qualquer que seja, é um símbolo do pensamento expresso exteriormente por ele” (GUÉNON, 1995, p. 13, tradução nossa) 3 . O autor ainda afirma que todo símbolo está fundado em analogias: “todo símbolo deve ser a expressão de uma analogia” (GUÉNON, 1995, p. 217). Segundo ele, tal definição pode não ser assim tão precisa, pois o simbolismo, na verdade, estaria fundado “nas correspondências que existem entre as diferentes ordens da realidade” (GUÉNON, 1995, p. 217). O que significa dizer, uma realidade física apreendida pelos sentidos, e uma outra oculta, para além dela. Dessa forma, símbolo carrega consigo a capacidade de transmitir de modo mais simples e profundo a ‘verdade’ que pretende expressar. Guénon (1995, p. 14) ainda afirma que o símbolo possui muitas camadas de significado, alguns contingentes, outros mais profundos e “eternos”. Em outras palavras, os adjetivos “eterno” e “profundo” referem-se à camada metafísica ‘oculta’, o que pode ser mais facilmente expressa por meio de um exemplo: o do “simbolismo metafísico da cruz” (GUÉNON, 1995, p. 18- 21). 1.2.1 A simbologia da cruz e do axis mundi Segundo Guénon, as linhas horizontal e vertical articuladas entre si por um ângulo de 90 graus expressam, em um primeiro plano, os símbolos das direções no espaço – norte, sul, leste, oeste (linhas horizontais), e zênite, nadir (linha vertical) –; no entanto, em uma análise metafísica, os significados das linhas vertical e horizontal são expressos pelos termos “essência” e “substância”, respectivamente (GUÉNON, 2004, p. 11-2); ou mesmo espírito e matéria (GUÉNON, s/d, p. 36); ou, em termos simbólicos, polo ativo, ou polo masculino, e polo passivo, ou polo feminino, espírito e superfície 3 “Fundamentally, every formulation, every expression, whatever it may be, is a symbol of the thought which it expresses outwardly”. 22 das águas; em outra camada, a cruz representa, em sua linha vertical, a totalidade do ser e, na horizontal, a sucessão de estados do mesmo; ou mesmo a “dimensão espiritual”, ou a “Vontade do céu”, o “Raio celeste” (GUÉNON, s/d, p.116 e p. 121) e a “dimensão física e temporal” (GUÉNON, s/d, p. 22-3). E mais livremente, imobilidade (linha vertical) e movimento (linha horizontal). O centro – o ponto onde as linhas vertical e horizontal se intersectam – representa, nos termos de Guénon (s/d, p. 26-7), a “origem”, o lugar do qual parte toda a “manifestação”, o “palácio interior”, o “centro do espaço e do tempo”, a “união de opostos”, etc. Isso posto, pode-se concluir mais livremente que, a partir de e em analogia à imagem – categoria visível, acessível ao sentido da visão – expressa-se e representa-se aquela realidade metafísica, ou seja, aquilo que não está acessível ao olho nu. Para este estudo, a camada de significado que mais interessa é a que expressa contingência, ou história, a mudança, o devir, o movimento, ou seja, a linha horizontal, por um lado; e a eternidade, o imutável, a imobilidade, a linha vertical, por outro. Adicione-se a isso o fato de que, para Guénon (2001; s/d), a linha vertical, expressa o mundo superior e o inferior, o imutável, o estático, expressa o princípio divino, espiritual; enquanto que a linha horizontal expressa a natureza e as sociedades e comunidades humanas ao longo da história, aquilo que está submetido à multiplicidade e à mudança. (GUÉNON, s/d, p. 39; 2001, p. 56). Em outras palavras, a linha vertical expressará a dimensão espiritual e a linha horizontal expressará a dimensão temporal. No entanto, no caso das obras de Thoreau, a verticalidade e a horizontalidade não aparecerão o tempo todo articuladas em torno do centro em comum de ambas, mas isoladamente. A primeira será relacionada à altura e à profundidade, às imagens de céu, terra, leito do lago, etc. A segunda, por sua vez, relacionar-se-á à ausência dessas duas características, configurando-se, pois, como uma linha sem quaisquer pontos acima ou abaixo dela, ou seja, a superfície da terra. Ademais, a horizontalidade pode, neste estudo, simplesmente ser interpretada como ausência de pontos superiores ou inferiores, ou seja, uma linha reta sugerindo o termo “igualdade”. As noções ‘dimensão temporal/dimensão espiritual’ ‘poder temporal/poder espiritual’ serão utilizadas para se interpretar a obra selecionada de Thoreau de modo a que os dois últimos estejam circunscritos e submetidos aos dois 23 primeiros, ou seja, o poder temporal pertence à dimensão temporal, enquanto o poder espiritual pertence à dimensão espiritual. Ainda a respeito do simbolismo da cruz, o estudioso das Religiões Comparadas Mircea Eliade (1979, p. 37-46) trata do axis mundi que, de modo similar a ela, define-se como um centro – geralmente um local na superfície da terra – no qual encontram-se os mundo inferior e superior, o “céu” e o “inferno”, se utilizarmos a terminologia cristã. O axis mundi aparecerá neste estudo quando formos tratar mais especificamente do lago Walden, pois, como sugere um dos estudiosos da obra de Thoreau, o lago é uma espécie de axis mundi. Nesse caso, as linhas horizontal e vertical articular-se-ão em seu centro em comum, o eixo, que sempre se localiza em algum ponto da superfície terrestre. 1.3. A comunidade americana A partir daqui, passaremos a analisar a comunidade americana e continuaremos com o auxílio de Voegelin (2002), por isso seguiremos a mesma trilha onde se articulam religião, comunidade e Estado, ou os poderes temporal e espiritual. Voegelin (2002), em Religiões Políticas, ainda trata brevemente da formação da comunidade da Nova Inglaterra utilizando novamente o termo ecclesia para se referir a ela, que era composta de puritanos e peregrinos – denominações dissidentes da Igreja da Inglaterra – que fugiram de perseguição em razão de seus credos reformistas e separatistas. O termo likemindedness, “a partilha do mesmo estado de espírito”, é a chave para a compreensão da formação dessa comunidade. Afirma Voegelin que “a ideia de igualdade se viu aprofundada na ideia de que só poderiam ser inteiramente membros da comunidade aqueles que também fossem iguais no espírito” (VOEGELIN, 2002, p. 50- 52). Likemindedness, diz o autor, é a tradução para a língua inglesa do termo homonoia, encontrado no Novo Testamento (VOEGELIN, 2008, p. 57). Diz-se que os colonos da Nova Inglaterra não conceberam a unidade da multidão – a “pessoa coletiva” – na personalidade de seu representante ou soberano, mas antes se uniram os de mentalidade semelhante. Para Voegelin (2002), a ecclesia terrena, o símbolo do corpo de Cristo, ainda está presente. Pode-se concluir que a ecclesia particular americana se articula em torno do likemindedness. 24 1.3.1 A América de Tocqueville A partir daqui, abandonaremos temporariamente a terminologia de Voegelin para nos aprofundarmos mais na configuração do estado de igualdade da comunidade americana com o auxílio de A Democracia na América, estudo feito pelo cientista político francês Alexis de Tocqueville, publicado originalmente em 1835. Em sua viagem pela América no século XIX, o que mais assombrou Tocqueville foi a igualdade de condições que ele observou lá. Essa afirmação está na introdução de A democracia na América. A partir daqui, os recortes e citações utilizados pertencem a esse livro. De início, Tocqueville (1989) afirma que as colônias do norte ficaram conhecidas como Nova Inglaterra. Lá, segundo ele, aportaram imigrantes que pertenciam às classes mais abastadas no país de origem. Além disso, eram pessoas de educação acima da média. Afirma Tocqueville que nem a necessidade nem a ambição nem o espírito de aventura forçaram-nos para fora de seu país. Eles o deixaram impulsionados por uma ideia, “em obediência a um anseio intelectual”. (TOCQUEVILLE, 1988, p. 37-38). Os hábitos e crenças austeros desses imigrantes levaram-nos a ser chamados de ‘puritanos’ em sua terra natal. Para Tocqueville, a doutrina puritana não era apenas uma doutrina religiosa, mas também compartilhava teorias democráticas e republicanas, o que despertou seus mais perigosos adversários. Os puritanos, depois de perseguidos pelo governo inglês e ultrajados pelos costumes e hábitos da sociedade em que viviam, mudaram-se para uma “terra tão bárbara e ignorada pelo mundo” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 36) onde poderiam viver com a liberdade que lhes conviesse. Ao citar o espírito religioso que impregnava as primeiras colônias, Tocqueville cita Nathaniel Morton, historiador dos primeiros anos da Nova Inglaterra. Diz o primeiro que, aos nossos olhos e aos de Morton, “os imigrantes não são apenas alguns aventureiros correndo atrás da sorte do outro lado do oceano; é a dispersão da semente de um grande povo que Deus está plantando em uma terra predestinada” (TOCQUEVILLE, 1988, p.37). Os primeiros imigrantes contavam 150 pessoas, incluindo mulheres e crianças, ou seja, famílias. Como afirma Tocqueville em um de seus conceitos mais famosos, as leis nascem dos costumes e hábitos de um povo. Costumes, moeurs, no original, não se referem apenas “aos hábitos do coração, mas também às diferentes noções que os homens têm, às várias opiniões entre eles, e a somatória de ideias que modelam hábitos mentais”. 25 Ele, então, usa o termo para “cobrir o estado moral e intelectual de um povo” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 287). Essa comunidade era tão profundamente religiosa que uma das primeiras influências para a concepção de legislação criminal foi tirada dos livros do Deuterônimo, Levítico e Êxodo, ou seja, incluíam-se penas de morte em diversos casos. No entanto, o fato de esta comunidade educada ter-se inspirado nos códigos de um povo “rude” e “semi-civilizado” inutilizou-os quase que totalmente (TOCQUEVILLE, 1988, p. 42). O autor afirma que, quando se estuda detalhadamente as leis promulgadas pelos primeiros colonos, espanta-nos o entendimento dos problemas do governo e as teorias avançadas dos legisladores. Tocqueville segue com um exemplo a respeito das leis que provêm para as necessidades sociais, especialmente para a educação: o código de leis diz que, se for um projeto do demônio afastar o homem do entendimento das escrituras, como nos velhos tempos, agora, ele deve ser persuadido sobre o uso da língua. Em razão disso, estabeleceram-se escolas em todas as cidades e obrigaram-se os habitantes a mantê-las, sob pesadas multas. De forma semelhante, high schools foram criadas nos distritos mais populosos. Se os pais se recusassem a mandar os filhos para a escola, pesadas multas ser-lhes-iam impostas. Tocqueville termina o parágrafo afirmando que, na América, “a religião conduz à iluminação e a observância das leis divinas conduz os homens à liberdade” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 44-45). O autor defende que a América foi o produto de dois elementos perfeitamente distintos que, em qualquer outro lugar, estiveram em guerra um contra o outro, mas que na América, de alguma forma, foi possível incorporá-los um ao outro em uma combinação formidável. Eu falo sobre o espírito da religião e o espírito da liberdade. Os fundadores da Nova Inglaterra eram ardentes e inovadores. Ao mesmo tempo em que se confinavam a limites estritos em suas crenças religiosas, estavam livres de preconceitos políticos. Logo, duas tendências distintas, porém não contraditórias mostram suas faces em todo lugar, nos costumes e nas leis (TOCQUEVILLE, 1988, p.47). No capítulo 9 da parte II de seu livro, Tocqueville argumenta que a maioria dos colonos, rebelando-se contra a autoridade papal, não reconheceu nenhuma outra supremacia religiosa. Eles trouxeram para o novo mundo um cristianismo democrático e republicano; “esse fato favoreceu o estabelecimento de uma democracia e uma república temporais” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 288). O autor relata que, um dia, foi 26 convidado para uma reunião com fins políticos e, quando chegou, um sacerdote de hábito começou o discurso. Afirma o estudioso que, dentre as inúmeras seitas na América, há diferenças quanto às formas de adoração a Deus, mas há concordâncias quanto às obrigações entre os homens. Para a sociedade, não importa qual fé se siga, mas para o homem importa que se siga uma fé. Dessa forma, a religião cristã é soberana na alma dos homens, o que faz com que este país seja o “mais iluminado e o mais livre” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 291). Logo, a religião governa a alma, a democracia e a república governam a sociedade: não se pode dizer que a religião influencie detalhadamente as leis, mas realmente influencia os costumes, e ao regular a vida doméstica, ela ajuda a regular o estado. [...] Enquanto o europeu tenta escapar de seus pesares em casa causando problemas à sociedade, o americano traz do lar aquele amor pela ordem que ele leva para as questões do estado (TOCQUEVILLE, 1988, p. 291-292). Tocqueville explica que a religião cristã impõe um limite saudável às ambições que pudessem aparecer: até agora nos Estados Unidos ninguém ousou professar a máxima de que tudo é permitido para os interesses da sociedade, uma máxima ímpia, provavelmente inventada na idade da liberdade a fim de legitimar um futuro tirano. [...] Eu não sei se todos os americanos têm fé em sua religião – pois quem pode ler os segredos do coração? – mas estou certo de que consideram-na necessária para a manutenção das instituições republicanas. Essa não é a visão de uma classe ou partido, mas de toda a nação. [...] Para os americanos, as ideias do cristianismo e da liberdade estão tão juntas, que é impossível fazer com que concebam uma sem a outra (TOCQUEVILLE, 1988, p. 292-293). Ao continuar em seus argumentos, Tocqueville diz que o fato de a igreja e o Estado estarem completamente separados explica o sucesso da influência da religião naquela nação. O clérigo, segundo o autor, abstém-se da participação política (TOCQUEVILLE, 1988, p. 296). Tocqueville se pergunta como, ao aparentemente diminuir-se o poder da religião, na verdade se está aumentando seu real poder: sozinho entre todas as criaturas, o homem apresenta uma aversão natural à existência e um imenso desejo de existir; ele desdenha a vida e teme a aniquilação. Esses diferentes instintos direcionam sua alma para a contemplação de outro mundo, e é a religião que o guia até lá. A religião [...] é tão natural ao ser humano como a esperança. É por um tipo de aberração intelectual e, de certa forma, violentando sua própria natureza, que o homem desprende-se das crenças religiosas; uma inclinação invencível os traz de volta (TOCQUEVLLE, 1988, p. 296-297). 27 Ao continuar o raciocínio, Tocqueville diz que houve religiões ligadas a governos terrenos que “dominavam as almas dos homens pela fé ou pelo terror” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 297), eis as consequências: quando a religião busca encontrar sua influência apenas no anseio pela imortalidade que atormenta cada coração humano, ela pode aspirar à universalidade, mas quando se trata de unir-se a um governo, ela deve adotar máximas que se aplicam apenas a certas nações. [...]. Enquanto ela se apoia apenas nos sentimentos os quais são a consolação das aflições, ela pode guiar o coração dos homens para ela mesma. Quando ela está misturada às amargas paixões deste mundo, ela às vezes é coagida a defender aliados que estão lá por interesse e não por amor, tem que repelir, como se fossem adversários, homens que ainda amam a religião, embora estejam lutando contra os aliados dela. Logo, a religião não pode compartilhar a força material dos governantes sem ficar carregada com a animosidade que os cerca (TOCQUEVILLE, 1988, p. 297). É assim que o autor explica a força da religião na América. Se ela deriva sua força de sentimentos, instintos e paixões que renascem em todos os períodos da história, ela pode fazer face aos ataques do tempo. [...] Sozinha, pode esperar pela imortalidade; ligada a poderes efêmeros, ela segue a sorte deles e frequentemente cai juntamente às paixões que os sustentaram (TOCQUEVILLE, 1988, p. 298). O que se pode concluir da análise de Toqueville, tendo-se em mente a análise de Voegelin a respeito das religiões políticas, é que a religião da América não é uma delas. O poder religioso é separado do temporal, embora as leis do poder temporal tenham sido derivadas a partir da religião. O que fica bem claro também é o governo da religião apenas sobre a alma do indivíduo. Isso posto, podemos, preliminarmente, concluir que o símbolo do sol, mesmo que oculto pela linguagem, poderá não aparecer. De volta a seu capítulo 3, Tocqueville defende que “o traço mais surpreendente das condições sociais dos anglo-americanos é que ele é essencialmente democrático”; esse é o traço que domina todos os outros. Na Europa, a aristocracia está fortemente ligada à terra, à propriedade. Ser nobre é possuir muitas terras e passá-las de geração em geração. A ausência de uma aristocracia mais vultuosa na Nova Inglaterra se deve à mudança na lei sobre a herança. A lei inglesa prescrevia que apenas os filhos primogênitos herdassem as propriedades. Os colonos, no entanto, adotaram a partilha igualitária entre os herdeiros. Tocqueville defende que a partilha igualitária não afeta apenas o destino da propriedade, mas a alma do proprietário e “coloca suas paixões em jogo” (TOCQUEVILLE, 1988, p.53): 28 nas nações nas quais a lei da herança é baseada na primogenitura, as propriedades passam, indivisíveis, de geração em geração. Consequentemente, os sentimentos de família encontram uma espécie de expressão física na terra. A família representa a terra, e a terra a família, perpetuando seu nome, origem, glória, poder e virtude. É uma testemunha imperecível do passado e sincera quanto ao futuro. Quando a lei ordena a partilha igualitária, ela quebra a íntima conexão entre o sentimento familiar e a preservação da terra; a terra não mais representa a família, pois, como ela está fadada a ser dividida até o fim de uma ou duas gerações, está claro que continuará a ser dividida até a completa desaparição (TOCQUEVILLE, 1988, p. 53). O autor defende que, uma vez instaurada a partilha igualitária, o egoísmo é confundido com o sentimento familiar: “a família é sentida como uma concepção vaga, incerta, indeterminada, cada homem se concentra no que é mais imediatamente conveniente” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 53). A primeira geração passou e, consigo, a terra, que começou a ser dividida até que os filhos de alguns grandes proprietários imiscuíram-se nas massas. Tocqueville diz que foi isso que aconteceu no estado de Nova York: “os filhos desses cidadãos prósperos são agora comerciantes, advogados, médicos. Os últimos traços de hereditariedade e distinção foram destruídos” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 54). Tocqueville também defende que esse estado de igualdade se refere também às capacidades intelectuais. Confessa nunca ter visto um país em que haja tão poucos ignorantes e tão poucos eruditos, pois lá “não há classes nas quais o gosto pelo prazer intelectual é hereditário” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 56). Como resultado, encontra-se uma vastidão de pessoas com as “mesmas ideias sobre religião, história, ciência, economia política...” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 56). Ao concluir o parágrafo, o autor diz que “o estado social na América é um fenômeno muito estranho. Os homens estão muito próximos na igualdade intelectual e econômica, ou em outras palavras, praticamente iguais no poder” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 56). No fim do capítulo, Tocqueville afirma que é muito fácil concluir quais sejam as consequências políticas desse estado de igualdade. Nesse estado, o americano ama ainda mais a igualdade do que a própria liberdade (TOCQUEVILLE, 1988, p. 57). No entanto, a partir daqui, partiremos para o livro 2 de A Democracia na América a fim de compreendermos como se configura essa mentalidade de igualdade nos capítulos de 1 a 3, e 5, que o autor intitula, respectivamente: “A abordagem filosófica dos americanos”; “As principais fontes de crenças dos povos democráticos”; 29 “Por que os americanos demonstram mais aptidão e gosto por ideias gerais”; e “Como a religião faz uso dos instintos democráticos”. Demonstraremos, pois, como se configura a mentalidade democrática americana e como ela está intimamente ligada ao individualismo. No capítulo 1, Tocqueville descreve o que para ele é o método filosófico americano: escapar dos sistemas impostos, do jugo do hábito, de máximas familiares, de preconceitos de classe, e, em certa extensão, de preconceitos nacionais também; tratar a tradição como válida apenas para informação e aceitar fatos existentes como apenas um esboço útil de como as coisas poderiam ser feitas diferentemente e melhor; procurar a única razão das coisas por si mesmos e em si mesmos, procurando por resultados sem ficar emaranhados nos meios e olhando através das formas para a base das coisas [...]. Eu diria que, em cada operação mental, cada americano depende do esforço e julgamento individuais (TOCQUEVILLE, 1988, p. 429). O autor completa o seu raciocínio argumentando que a América é o lugar onde Descartes é mais seguido e menos lido. Isso ocorre porque o estado social desse povo assim os condiciona. Tais condições fazem com que os homens percam o elo com as gerações passadas, além de não basearem suas opiniões nas classes a que pertencem, pois elas se apresentam como efêmeras, mutantes, e, “como corpo, não podem exercer poder sobre seus membros” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 429-430). A influência de um homem sobre outro também é restrita, já que, sendo todos iguais, não se reconhecem traços de “grandeza e superioridade” em seus pares. Os homens são “continuamente trazidos de volta aos seus próprios julgamentos como se eles fossem os mais aparentes e acessíveis testes da verdade” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 430). Tocqueville continua: “então cada homem está estritamente fechado em si, e dessa base pretende julgar o mundo”. Ao verem que podem resolver questões menores com facilidade, aplicam essa noção para todas as coisas, e creem que “nada passa dos limites da inteligência”. Eles “não precisaram de livros para ensinar-lhes o método filosófico, encontrando-o em si mesmos” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 430). Tocqueville começa a traçar a trajetória moderna da recusa da superioridade da tradição religiosa. Segundo ele, reformadores do século XVI e XVII não mais sujeitavam certos dogmas à tradição, mas à razão individual. Bacon, Descartes, Lutero, entre outros, destruíram o domínio da tradição. Esse princípio se tornou regra geral e o exame do objeto passou inteiramente à razão individual. 30 Por outro lado, na América, o Cristianismo, cujos dogmas são a fundação inquestionável das colônias, guarda uma fonte de verdades gerais, crenças “indiscutíveis”. Apesar de haver um número incontável de seitas, os americanos aceitam certas crenças gerais “sem questionamentos”. A democracia americana é diferente da democracia conquistada por meios revolucionários, por rupturas de regimes. Nessas rupturas, antigas crenças são destruídas e o homem é deixado ao léu consigo mesmo. Além disso, segundo Tocqueville, afrouxam-se os laços entre os homens. O autor reforça que há uma diferença entre as liberdades intelectuais trazidas pela igualdade e outras trazidas pela anarquia de uma revolução (TOCQUEVILLE, 1988, p. 432-433). A partir desse ponto, Toqueville explica a fonte de crenças em uma sociedade democrática. Defende ele que, para um corpo social existir, é necessário que seus membros tenham crenças e ideias em comum, de mesma fonte, já que, se todos sujeitassem a si mesmos ao exame individual de todas as questões, nunca chegariam a acordo nenhum. Em razão disso, a maioria das respostas das questões vem de uma fonte de autoridade intelectual, que Tocqueville diz existir em uma sociedade democrática. Seu objetivo não é questioná-la, mas encontrá-la. O autor diz que o estado de igualdade faz o homem duvidar do sobrenatural e dar a si uma “concepção exagerada da razão humana”: assim, o homem que vive em tempos de igualdade acha difícil colocar a autoridade intelectual à qual ele se submete acima e fora da humanidade. Falando de modo geral, eles olham para si mesmos ou em seus pares para encontrar as fontes da verdade. [...] Eles vão querer encontrar o juiz supremo de suas crenças dentro, e não além, dos limites de seu próprio tipo (TOCQUEVILLE, 1988, p. 435). Tocqueville segue dizendo que, em sociedades igualitárias, quanto mais próximos os homens estão de um nível comum de igualdade, menos inclinados estão a acreditar cegamente em qualquer homem ou classe. Mas eles estão prontos para acreditar na massa, e a opinião pública se torna mais e mais a dona do mundo. Não apenas a opinião pública é o único guia para o julgamento privado, mas seu poder é infinitamente maior em democracias do que em qualquer outro lugar. (TOCQUEVILLE, 1988, p. 435). Em tempos de igualdade, o homem, sendo tão igual a todos os outros, não tem confiança nos outros, mas essa mesma semelhança o guia a colocar uma confiança ilimitada no julgamento da multidão. Pois eles pensam que não é incoerente que, todos tendo os meios de conhecimento, a verdade será encontrada do lado da maioria (TOCQUEVILLE, 1988, p. 435). 31 Do mesmo modo que o homem olha para outro e o sente como seu igual, ele olha para a multidão e se sente “sobrecarregado” por um sentimento de “insignificância” e “fraqueza”. Ele se sente “indefeso ante a força da maioria”. A opinião pública não usa de persuasão, mas, “por alguma poderosa pressão de todos sobre a inteligência de cada um, ela impõe suas ideias e as faz penetrar na própria alma do homem” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 435). Se se olha mais aprofundadamente a questão, afirma Tocqueville, pode-se concluir que até a religião é menos matéria de revelação do que de opinião comum. Isso ocorre em razão da igualdade mesma como fonte dessa onipotência “intelectual” da maioria – o “domínio intelectual do maior número” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 436) –, pois aquela, disse o autor em um outro momento, ainda é mais amada que a própria liberdade. Tocqueville argumenta que é fácil “prever a confiança na opinião comum como uma espécie de religião, com a maioria como seu profeta” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 436). Ele defende duas tendências com relação à igualdade: “uma chama a atenção do homem para novos pensamentos, enquanto outra o induz a absolutamente não pensar”. A mesma democracia que criou o livre pensamento, extingui-lo-á: “o espírito humano pode atar-se aos grilhões da vontade geral do maior número” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 436). Ao voltar à questão das generalizações, das opiniões em comum e do por que elas são comuns onde a igualdade impera, Tocqueville diz que, quando os padrões estão bem longe da igualdade, os homens têm uma consciência aguda das diferenças e peculiaridades dos seres humanos e dos objetos do mundo e de que não podem reduzi- los a uma igualdade ou simplificação quaisquer. Já nas democracias, ocorre o oposto: “o cidadão da democracia não vê nada além de pessoas mais ou menos iguais a ele. [...] Verdades aplicáveis a ele parecem igualmente aplicáveis, mutatis mutandis, a toda a humanidade” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 439). Descobrir regras comuns para tudo – “incluir um grande número de objetos sob a mesma fórmula, explicar um grupo de fatos por meio de uma única causa” – torna-se uma “paixão cega do espírito humano” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 439). Sendo impossível encontrar a vontade de um único homem a direcionar as multidões, os homens de uma sociedade democrática, ao contrário, buscam por “grandes causas que, agindo da mesma forma em cada um deles, lidera-os pelo mesmo caminho” 32 (p. 439). Para Tocqueville, esse fato também os faz conceber generalizações e opiniões em comum. Por outro lado, as generalizações sobre questões religiosas podem ser salutares para o espírito humano e para a sociedade. Para o autor, essa é uma grande verdade em sociedades democráticas, pois, quando a religião de um povo é destruída, a dúvida invade as faculdades superiores da mente e parcialmente paralisa as outras. Os homens não têm nada além de noções efêmeras e confusas sobre as matérias importantes para eles e seus pares. [...] em desespero para resolverem, sozinhos, os grandes problemas do destino humano, os homens desistem de pensar. Tal estado, inevitavelmente, enfraquece a alma e, ao afrouxar as nascentes da vontade, prepara o homem para a servidão. Eles não apenas deixam que lhes tirem a liberdade, mas eles próprios a entregam (TOCQUEVILLE, 1988, p. 444). Para Tocqueville, a religião é o que há de mais útil para os povos igualitários, pois ela limita instintos perigosos que podem dele emergir. Os povos religiosos são “fortes precisamente onde os povos democráticos são fracos” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 445). Ele finaliza o argumento dizendo, ou prevendo, que a cristandade – que “lida apenas com as relações entre o homem e Deus e homem e homem” e não fornece “máximas políticas, leis civis e criminais” – é capaz de sobreviver aos tempos democráticos. 1.3.2 Puritanismo Depois do olhar de Tocqueville sobre a articulação entre os elementos de nosso estudo, sentir-se-á a necessidade de adentrar-se um pouco mais na configuração religiosa dessa comunidade. Em Youngs (1998, p. 40), as crenças puritanas se caracterizavam pela noção de que os puritanos eram os “eleitos”, ou seja, a salvação não vinha por meio de obras, mas pela graça de Deus unicamente. O cristão, no entanto, poderia se autolapidar com o intuito de se tornar mais “perfeito”. Em Bremer (2009, p. 14), a palavra “puritano” é normalmente associada aos termos “sexualmente reprimido”, “pudico”, “proibicionista”: a imagem dos puritanos como teocratas, regicidas, aqueles que queimam bruxas, assassinos de índios, e fanáticos caçadores de heresias está há muito consolidada na cultura popular. A maioria delas 33 é distorção, quando não completas falsidades” (BREMER, 2009, p. 14, tradução nossa). 4 Bremer (2009) diz que os puritanos nunca tiveram uma religião institucionalizada com credos e igrejas locais e que a forma mais simples de se defini- los é como aqueles que, fervorosamente, procuraram reformar a si mesmos e à sociedade em que viviam, purificando a igreja do Catolicismo Romano. Eles também queriam que os praticantes individuais tivessem acesso à Bíblia em sua língua materna. Além disso, acreditavam que a Igreja da Inglaterra devesse se opor politicamente à Igreja Romana (BREMER, 2009, p. 15). No coração do puritanismo estava a tentativa de transformar a sociedade, primeiramente, usando a graça para fazer da vontade de Deus a dela própria. Ao assim fazer, o indivíduo conduziria uma vida exemplar e persuadiria os outros – família, amigos e a comunidade em geral – a seguir o caminho da crença e do comportamento retos. [...]. O entendimento deles sobre a vontade de Deus os conduziu a promover a educação, redefinir o casamento e outras instituições e a adotar formas participativas de governo (BREMER, 2009, p. 17, tradução nossa). 5 Segundo o autor, o movimento puritano teve início na Inglaterra em meados dos 1600 e sua principal característica era a firme crença que esses homens e mulheres tinham sobre viverem suas vidas na terra em completa concordância com a vontade de Deus. Desde o reinado de Elizabeth I os puritanos dentro da Igreja da Inglaterra haviam tentado a reforma. Alguns bispos puritanos chegaram mesmo a ser suspensos por atos de desobediência. No entanto, alguns deles não estavam tão dispostos a esperar pelas reformas e começaram a separar-se da Igreja Anglicana e a sediarem suas próprias reuniões. (BREMER, 2009, p. 24-25) Com a entronização de Carlos I (1625-49), que procurou reverter a influência puritana, os puritanos teriam de desenvolver novas estratégias se quisessem instaurar o reino de Deus na Inglaterra (BREMER, 2009, p. 26). Essa situação levou muitos deles a migrarem para a Nova Inglaterra, onde eles certamente fundariam seu reino de Deus. 4 Do original: “The image of the puritans as theocrats, regicides, witch-burners, Indian killers, and bigoted heresy hunters has long been entrenched in popular culture. Most of these are distortions, if not absolute falsehoods.” 5 Do original:”At the heart of puritanism was the attempt to transform society by first using grace to make God’s will one’s own. By doing so the individual would lead an exemplary life that would persuade others – family, friends, and the broader community – to follow the path of right belief and behavior. […] Their understanding of God’s will led them to promote education, to redefine marriage, and other institutions, and to adopt participatory forms of government.” 34 Essas divisões entre o rei e os puritanos contribuíram para a eclosão da Guerra Civil Inglesa (1642-51) e cercearam ainda mais as atividades desses últimos. Por volta de 1630, a imigração de colonos para a Nova Inglaterra se intensificou: John Winthrop liderou os primeiros navios de grande imigração para a Nova Inglaterra. Em seu sermão direcionado àqueles que embarcavam, “Um modelo de caridade cristã”. Ele almejou unir os que vieram de diferentes partes do país e de diferentes experiências puritanas para formarem uma única comunidade. Dizia que eles haviam entrado em uma aliança com seus companheiros e com Deus. Era-lhes exigido que sacrificassem suas aspirações individuais em nome do bem comum, que vivessem vidas exemplares, cuidando uns dos outros e se esforçassem para que, conjuntamente, criassem formas adequadas de vida civil e espiritual. Se mantivessem esse compromisso com Deus e com seus pares, Deus os recompensaria com paz e prosperidade. Da mesma forma que indivíduos vivendo suas vidas de modo exemplar provocaria outros a assim agir, a Nova Inglaterra seria a cidade sobre a colina que outros buscariam imitar (BREMER, 2009, p. 31-32, tradução nossa) 6 . Mesmo depois de abandonarem a Inglaterra e se estabelecerem nas colônias, os puritanos ainda enfrentavam dissidências internas. Esse fato foi responsável pela configuração e estabelecimento de outras seitas e pelo avanço da colonização no interior do território (BREMER, 2009, p. 35). Ainda segundo Bremer (2009, p. 47-48), o “núcleo do puritanismo era o entendimento de Deus e do relacionamento entre ele e o indivíduo.” E a principal forma de se entendê-lo era através das Sagradas Escrituras. Uma das crenças puritanas concerne à natureza da relação Deus-homem. O homem foi criado como um ser de vontade livre, mas corrompido pela desobediência e punido com a queda. Homens e mulheres, a partir daí, começaram a buscar satisfação nos sentidos e transgrediam as leis de Deus. Os homens eram “não apenas pecadores, mas viciados no pecado”, e nada mudaria isso (BREMER, 2009, p. 51). Era hábito característico dos puritanos sujeitarem-se a um intenso auto-exame para que aceitassem essa situação. Eles registravam tudo em diários e “narrativas de conversão”. 6 Do original: “John Winthrop led the first of the great migration to New England. In his lay sermon to those who were embarking on this expedition with him, “A model of Christian charity”, Winthrop sought to unite those who came from different parts of England and different puritan experiences to form a single community. He told them that they had entered into a covenant with each other and with God. They were require to sacrifice their individual aspirations for the common good., to live exemplary Christian lives, caring for one another and struggling alongside each other to create due forms of civil and spiritual life. If the maintained this commitment to God and to one another, God would reward them with peace and prosperity. Just as godly individuals living exemplary lives stirred others to follow them, so New England would be as a city upon the hill, which others would seek to emulate”. 35 Eles seguiam os ensinamentos de Calvino, Santo Agostinho e Lutero, que professavam a doutrina da predestinação: “alguns homens e mulheres estavam destinados a ir para o céu ou para o inferno e nada que uma pessoa fizesse mudaria isso” (BREMER, 2009, p. 52). Atraídos pelo pecado, qualquer um poder-se-ia desviar dos mandamentos de Deus. Logo todos mereceriam a punição e a danação. Em razão de sua natureza decaída, nenhum homem ou mulher merece a salvação. Essa é uma crença central do puritanismo, que se poderia confirmar por meio da observação do comportamento dos outros, mas ainda mais pelo conhecimento dos impulsos de sua própria alma (BREMER, 2009, p. 54-55). No entanto, dada a benevolência de Deus, uma segunda chance de redenção era dada apenas aos eleitos. Alguns criam que esse era o momento de sua conversão, que se daria por meio de certas situações, ou de “passos discerníveis”. Bremer (2009) cita uma carta de Anne Bradstreet, em que ela narra seu “processo” de conversão. Os puritanos também acreditavam que, por terem sido eleitos, Deus os havia concedido a graça de entender Sua vontade e, assim, agir de acordo com ela, o que explicaria a ênfase no bom comportamento e na vida exemplar. Quando eles duvidavam da própria salvação, asseguravam-se dela novamente ao observarem seu bom comportamento. Eles estavam “comprometidos a seguir o caminho da retidão, a serem filhos da luz em meio à escuridão. Se a perfeição era impossível, era-se chamado a empenhar-se nela” (BREMER, 2009, p. 62). “O pecado não entrou no mundo por se usar o que Deus deixou disponível, mas por se abusar disso” (BREMER, 2009, p.62). É assim que Bremer define a noção puritana de pecado: aquilo que estava relacionado a excessos. O clero estimulava os puritanos a sujeitarem-se a uma disciplina diária projetada para assisti-los ao fazerem escolhas adequadas para, assim, servirem a Deus (BREMER, 2009, p. 67). O autor diz que a “piedade agostiniana” era uma das marcas essenciais e “manuais e diários estão cheios dessa evidência”. Eram práticas de “exercícios espirituais matutinos”. Segundo ele, o dia começava com uma oração e reflexão sobre a própria vida logo que a manhã despontava, leitura das escrituras e, às vezes, incluía-se meditação e o hábito de escrever em diários, “que eles consultariam mais tarde como um meio de traçar o progresso espiritual” (BREMER, 2009, p. 67). No fim do dia, ainda deveriam refletir sobre seu 36 comportamento, “indagando-se a si mesmo o quão bem se tinha cumprido as obrigações do dia” (BREMER, 2009, p. 68) 7 . “Tendo, primeiramente, colocado sua vida pessoal sob o comando de Deus, o puritano se empenhava em uma transformação na qual sua família tornar-se-ia um reino de Deus, sua paróquia, uma paróquia divina, e a sociedade como um todo, um reino divino” (BRMER, 2009, p. 74, tradução nossa) 8 . É assim que Bremer (2009) começa a descrever a relação do indivíduo puritano com aqueles que estão a sua volta: alinhar a si mesmo, sua família e seus amigos à vontade de Deus era o primeiro passo do objetivo dos puritanos de remodelar o mundo a sua volta. Sua visão de uma sociedade adequada era a de um organismo vivo no qual cada pessoa tinha seu papel distinto porém complementar. John Winthrop falava de uma sociedade como um corpo e seus membros como as várias partes que devessem estar vinculadas pelo elo do amor cristão. [...] Ao assim proceder eles não estavam sendo originais, mas se aproveitando de uma herança medieval que muitos outros ingleses também aderiram, particularmente a tradição de republicanismo cristão, que foi influente em tempos elizabetanos (BREMER, 2009, p. 87, tradução nossa) 9 . O autor diz que, ao se definir, a sociedade impõe um conjunto de valores que as pessoas devem seguir. Elas podem segui-los ou não. No primeiro caso, elas estão plenamente integradas na sociedade. No segundo, não, sendo mesmo uma ameaça a ela. Bremer reforça que esse foi o caso da Inglaterra elizabetana (BREMER, 2009, p. 88): os puritanos não aceitavam a igreja da forma que ela era e tentaram reformá-la, tornando- 7 “Direções para a vida diária: 1. Que mantenhamos uma estreita vigília contínua sobre nossos corações, palavras e ações. 2. Que com todo cuidado o tempo seja redimido, aquele que foi gasto ociosamente e sem proveito. 3. Que pelo menos uma vez ao dia ore-se e medite-se. 4. Que nossa família seja governada, assistida e instruída com diligencia e consideração. 5. Que incitemo-nos à generosidade dos santos. 6. Que não demos rédeas às afeiçoes e luxúrias efêmeras. 7. Que concedamos algum tempo não apenas para enlutarmo-nos pelos nossos pecados, mas pelos pecados do tempo e da era em que vivemos. 8. Que leiamos diariamente um pouco das sagradas escrituras”. (ROGERS apud BREMER: Seven treatises containing such direction as is gathered out of the Holy Scriptures, 1610; p. 68, tradução nossa). 8 Do original: “Having first brought his personal life under the rule of God, the puritan then strove to influence a progressive transformation whereby his family would become a godly realm, his parish a godly parish, and then the society as a whole as a godly kingdom”. 9 Do original: “Aligning themselves, their families, and their friends with God’s will was preliminary to the puritan goal of reshaping the world around them. Their view of a proper society was that of a living organism in which each person has his or her distinct but complementary role. John Winthrop spoke of society as a body and its members as the various parts that were to be bound together by the ligaments of Christian love. […] In doing so, they were not being original, but drawing on a medieval heritage that many Englishmen adhered to, particularly the tradition of Christian republicanism that was influential in Elizabethan times.” 37 se uma ameaça à sociedade, não apenas pelas doutrinas reformistas religiosas, mas pelas teorias políticas que as acompanhavam, como já afirmou Tocqueville (1988) mais atrás. A Nova Inglaterra sofreu com a mesma rejeição a certas doutrinas por parte de alguns, o que fez com que esses se afastassem de suas comunidades originais e fundassem outras: [os] puritanos em meados do século XVII clamavam pela estrita observância do Sabbath, elevavam suas vozes contra o teatro e os esportes sangrentos e instavam pela importância das devoções em família e pelas reuniões de devotos. Ao desenharem uma acentuada distinção entre a vida piedosa e a vida dos mundanos, eles produziram uma contra-reação daqueles que não estavam dispostos a negarem a si atividades tradicionais e prazeres. [...] Nas áreas em que os devotos eram minoria, os puritanos estavam provavelmente sujeitos a abusos. Em resposta, erigiam cercas para claramente distinguirem-se dos mundanos e terem o mínimo possível de interação com os vizinhos (BREMER, 2009, p. 88-89, tradução nossa) 10 . A escatologia cristã era parte fundamental das crenças puritanas daquela época. Bremer diz que os puritanos se identificavam como os santos que reinariam na terra, juntamente com Cristo. Muitos, inclusive, identificaram a revolução puritana de 1642- 60 como a vinda do anticristo. Ela atiçou o fogo da espera do milênio na Inglaterra. [...] Opor-se ao rei e, então, executá-lo era justificado como parte do plano de Deus para estabelecer seu reino na terra. O movimento para readmitir os judeus na Inglaterra era outra consequência das crenças milenares. Para aqueles que viram como seu objetivo o estabelecimento da quinta monarquia e o governo direto de Jesus, o protetorado de Oliver Cromwell era um pouco melhor do que o governo do rei Charles I. [...] a tentativa [dos puritanos] de trazer o milenar reinado dos santos para perto deles influenciou a forma como eles ordenariam as sociedades e suas igrejas (BREMER, 2009, p. 90, tradução nossa) 11 . A título de curiosidade, Voegelin (1982, p. 107-123) atribui ao puritanismo o nascimento da mentalidade revolucionária. Segundo ele, a linguagem mudou desde 10 Do original: “Puritans in the early seventeenth century called for stricter observance of the Sabbath, raised their voices against theater and blood sports, and urged the importance of family devotions and godly conferencing. In drawing a shaper distinction between the godly life and that of the ungodly, these clergy produced a counterreaction from those who were unwilling to deny themselves traditional social activities and pleasures. […] In areas where the godly were a minority, puritans were likely to be subjected to abuse. In response, they erected a perimeter fence to clearly distinguish themselves from the ungodly and sought to have as little as possible to do with those neighbors.” 11 Do original: “the puritan revolution (1642-60) fanned the fires of millennial expectation in England. […] Opposing and then executing the king was justified as part of God’s plan to establish his kingdom on earth. The move to readmit the jews in England was another consequence of millennial beliefs. For those who saw their goal as establishment of the fifth monarchy and the direct rule of king Jesus, the protectorate of Oliver Cromwell was little better than the rule of king Charles. […] the attempt to bring themselves closer to the thousand-year rule of the saints did influence how puritans ordered their societies and their churches.” 38 aquela época, mas a simbologia e o impulso escatológicos permanecem; a primeira, escondida por trás da linguagem; o segundo, às claras. Alguns dos habitantes da Nova Inglaterra viram seu empreendimento de fundação dessa comunidade como a criação da Nova Jerusalém: “a busca por pureza foi reforçada por essas crenças do milênio” (BREMER, 2009, p. 90). Esses, muito mais que seus compatriotas ingleses, sentiram mais ardentemente a responsabilidade de fundar a “sociedade devota” (BREMER, 2009, p. 91). Na Nova Inglaterra, o estado era visto como o guardião da fé, “mas esforços foram feitos para que se criasse separação entre eles” (BREMER, 2009, p. 93). Alguns colonos queriam que se adotasse a lei mosaica em Massachussetts. No entanto, a proposta foi rejeitada em favor da English Commom Law (BREMER, 2009, p. 94). A relação entre o civil e o religioso era, então, de “apoio mútuo”: “o projeto da faculdade de Harvard em 1636 foi concebido para preparar a juventude para o serviço da igreja e do estado” (BREMER, 2009, p. 95). * A partir daqui, vê-se de modo razoavelmente claro que falar de religião é falar de política e falar de política é falar de religião: por um lado, há uma comunidade fundada por princípios cristãos; por outro, um poder temporal cujas leis foram derivadas desses mesmos princípios. Os atravessamentos entre os dois, nessa comunidade especifica, configuram-se de modo a submeter o poder temporal ao poder espiritual denunciando uma sua especificidade: o primeiro, restrito a algumas poucas questões no âmbito do governo da sociedade; o segundo, incumbido do governo da alma. Esse movimento peculiar entre as duas esferas continuará quando chegarmos à análise dos ensaios de Thoreau. Decidimos, inspirados pela análise linguística de Voegelin (2002), alterar o vocabulário apresentado no primeiro capítulo desta dissertação. O “Estado” e a “religião” serão tratados, respectivamente, pelos termos “poder temporal” e “poder espiritual”. Esta será, pois, juntamente à linguagem do próprio Thoreau – ele, diga-se de passagem, não se utiliza desses dois termos –, a camada ligada ao discurso teórico deste trabalho. Como relembra-nos Voegelin (2002), a comunidade americana passa pela transformação do símbolo do corpo de Cristo: de espiritual e universal para terreno, histórico e local. Ou seja, a comunidade americana pode ser representada pelo Corpo de Cristo, sendo seus compostos pelos escolhidos para redimir o mundo. O corpo de 39 Cristo, como vimos, simboliza o poder temporal. A cabeça, o poder espiritual, situado em um plano superior, não mais na sociedade. Notamos, aqui, a separação dos dois poderes se contrapormos o Corpo de Cristo com o simbolismo do sol, que representa a junção dos poderes espiritual e temporal em uma só pessoa ou instituição. A América, portanto, não é uma religião política. O poder espiritual pertence ao próprio Cristo: no entanto, esse é o Cristo como interpretado pelos puritanos. Tocqueville (1988), como vimos, reforça, em linguagem puramente teórica, a análise simbólica de Voegelin (2002) quando trata da questão do poder espiritual, do regime democrático e da fonte do poder nos Estados Unidos: aquela comunidade é religiosa e a partir de seus costumes conformaram-se as leis e o regime democrático. Esse regime só se poderia consolidar em uma sociedade cristã como aquela, uma sociedade que desobedecera espiritual e temporalmente o regime “solar” inglês e instaurara a comunidade do Corpo de Cristo. O símbolo do corpo e da cabeça de Cristo, originalmente pertencente a São Paulo Apóstolo, é doutrina puramente cristã; não a encontramos em qualquer outro regime ao longo da história. A desobediência dos puritanos permitiu que houvesse liberdade em seu seio: a liberdade espiritual. Tocqueville não se cansa de admirar a paixão pela liberdade, pela igualdade e pela religião entre os americanos, e a forma como esses elementos se complementam. O comentário seguinte é livre: o fato de essa comunidade ser um corpo permitiu que se vissem como iguais. Afinal todas as partes do corpo têm uma importância quase totalmente igualitária. Uma vez que a comunidade atribui a si mesma a tarefa de redimir-se através de uma vida de acordo com os preceitos de Deus, a necessidade das restrições do poder temporal ficam cada vez mais mínimas, pois os membros do corpo obedecem à cabeça, que é Cristo – ou quem quer que interpretem como sendo o Cristo. O espírito daquele povo é verdadeiramente livre em razão de a pequenez do poder temporal ter deixado espaço para que a alma buscasse seu próprio caminho. Retomaremos esses motivos de alma individual, da desobediência e das dimensões de poder ao tratarmos dos ensaios de Thoreau. Como dissemos na Introdução, discutiremos a oposição poder espiritual x poder temporal nos ensaios de Thoreau por meio de alguns simbolismos lá presentes, mas não apenas deles. Já que a reflexão estará permeada também pelo discurso da filosofia política. 40 Anderson (2006), ao dizer que as comunidades são imaginadas, utiliza os símbolos da profundidade e da horizontalidade – uma “camaradagem horizontal e profunda” (ANDERSON, 2006, p. 32) –, o que é bem curioso, pois esses dois símbolos, a princípio, excluem-se mutuamente: a profundidade juntamente à altura sugerem verticalidade, ou seja, o céu e o mundo inferior. Esse último, em muitas culturas, está localizado abaixo da superfície terrestre. O que faremos a partir do capítulo 3 é, em um primeiro momento, admitir o símbolo do corpo histórico e terreno de Cristo para a comunidade americana e a articulação dele em torno da partilha do mesmo estado de espírito entre os “eleitos” por Deus. Em segundo lugar, admitiremos o simbolismo da horizontalidade, sugerido pela igualdade de condições dos colonos e por sua “escolha” pelo regime democrático. Em razão do exposto, a comunidade americana, sugerir-se-á, é claramente horizontal, pois existem vários tipos de igualdade entre seus membros. Talvez em razão dessa última afirmação, o likemindedness, os “valores”, a visão de mundo, dessa comunidade, sejam questionados pelo indivíduo Henry David Thoreau. Algumas vezes aparecerão os simbolismos de profundidade e de altura no tratamento que Thoreau dá ao indivíduo. No entanto, eles nem sempre aparecerão. 2 Thoreau Antes de analisarmos os ensaios tendo em perspectiva o que foi exposto até agora, faremos um breve percurso por caminhos que nos levarão a conhecer um pouco mais de seu autor. O primeiro e fundamental – em nossa perspectiva – é o ensaio fúnebre de Emerson, além de outros textos biográficos de estudiosos constantemente citados. O elogio fúnebre que o mestre, amigo, e também ensaísta Ralph Waldo Emerson (1803 – 82) faz de Thoreau em 1962 se inicia com esse último mencionando uma curta árvore genealógica do autor: era “o último descendente masculino de um antepassado francês que chegou a este país vindo da ilha de Guersney”. Em seguida, Emerson já deixa bem claro o tom de sua narrativa: o Thoreau rebelde e inconformado que acabou ficando na história. Esse Thoreau era um “iconoclasta em literatura”, que “não agradecia os préstimos das faculdades em sua formação” e “tinha-as em baixa estima”. Thoreau 41 associou-se ao irmão no intuito de fundarem uma escola, mas desistiu logo depois. Ele resolveu trabalhar um tempo na fábrica de lápis da família, empenhando-se em manufaturar o melhor lápis que podia, mas logo desistiu e “retomou seus passeios intermináveis e sua miscelânia de estudos”. No entanto, sendo “indiferente à técnica e à ciência dos livros” (THOREAU, 2011, p. 315-316). Emerson segue no mesmo tom, afirmando que, enquanto todos os rapazes daquela idade pensavam em se estabilizar em uma profissão, Thoreau encontrava forças para “rejeitar todos os caminhos ja trilhados e desapontar as expectativas da família e dos amigos” (THOREAU, 2011, p. 316). Ele “questionava todos os costumes e queria assentar sua prática sobre um fundamento ideal” (THOREAU, 2011, p. 317). Era um “protestante nato”, “um protestante à l’outrance”. Viveu uma vida de renúncias: “sua escolha, certamente sábia para ele, foi ser o cavaleiro solitário a serviço da natureza e da mente” (THOREAU, 2011, p.317). Para Emerson, Thoreau não tinha talento para a riqueza e que as maneiras elegantes, os luxos, os requintes da sociedade, as “conversas com as pessoas altamente cultivadas não significavam nada para ele” (THOREAU, 2011, p. 317). Não gostava dos jantares caros, preferia conversar com índios, preferia andar a pé a tomar o trem: “havia algo de militar em sua natureza, que não se dobrava, sempre viril e capaz, raramente terno, como se só se sentisse autêntico estando em oposição”. Emerson diz que ele não encontrava muitas restrições em dizer “não”. Isso, certamente, esfriava as relações sociais e “nenhum companheiro parcial mantinha relações afetuosas com alguém tão puro e franco” (THOREAU, 2011, p. 318). O autor ainda afirma que ele sempre estava em “situações críticas” por causa disso. Ele era um “orador nato”: certa vez ele foi à biblioteca da universidade para pegar alguns livros. O bibliotecário não quis fazer o empréstimo. Thoreau foi até o reitor, o qual lhe explicou as regras e normas que permitiam o empréstimo de livros [...] em um raio de 16 quilômetros em torno da universidade. Thoreau explicou ao reitor que a estrada de ferro tinha destruído a antiga escala de distâncias – e que nos termos daquelas suas regras aquela biblioteca era inútil [...]; que o único benefício que ele reconhecia à universidade era sua biblioteca; [...] e lhe assegurou que era ele, Thoreau, e não o bibliotecário, o guardião adequado dos livros. Em suma, o reitor considerou o requerente tão convincente, e as regras começaram a parecer tão ridículas, que lhe acabou concedendo o privilégio [...] (EMERSON, 2011, p. 320). 42 Emerson segue tecendo comentários sobre as destrezas físicas de Thoreau: tinha “um corpo extremamente adaptado”, “sentidos aguçados”, uma “estrutura sólida e compacta”, uma “maravilhosa adequação entre corpo e mente”: ele podia medir oitenta metros com seus passos com um grau de precisão maior do que qualquer outra pessoa com metro e trena. E dizia que encontrava seu caminho nas matas à noite mais pelos pés do que pela visão. Conseguia calcular muito bem a olho a medida de uma árvore; e calculava o peso de um porco ou de um bezerro como um comerciante. [...] Nadava, corria, patinava e remava bem, e provavelmente era capaz de percorrer a pé, num dia de jornada, uma distância maior do que a maioria de seus conterrâneos. [...] O ritmo de suas caminhadas dava o ritmo de suas palavras escritas. Fechado em casa, não escrevia uma única linha (EMERSON, 2011, p.321-322). Não faltava a Thoreau “bom senso”: ele resolvia problemas da vida prática sempre com um “novo recurso”, sabia “projetar uma casa, um jardim, um celeiro” (THOREAU, 2011, p. 322). Ele “vivia o dia de hoje e a memória não o mortificava nem obstruía”. Ele administrava seu tempo com maestria. E esse bom senso era aliado a uma “extrema sabedoria própria de uma rara classe de homens, que lhe mostrava o mundo material como meio e símbolo” (THOREAU, 2011, p. 323). Emerson diz que Thoreau era capaz de conhecer a fundo as pessoas e avaliar- lhes o espírito. Seu olhar era extremamente perspicaz para enxergar as “limitações e a pobreza de seus interlocutores” (THOREAU, 2011, p. 323). Em razão disso, ele reunia em torno de si jovens e admiradores de quem deixava na dúvida quanto a ir no “caminhar com eles”. O Thoreau de Emerson amava seu quinhão natal, as florestas, as águas, os campos, com “um amor tão incondicional, que se tornaram conhecidos e se fizeram interessantes a todos os leitores americanos e pessoas no exterior” (THOREAU, 2011, p. 324). Emerson diz que era “um prazer e um privilégio caminhar com Thoreau”: conhecia a região como uma raposa ou uma ave, e percorria os locais livremente em veredas próprias dele. Conhecia cada trilha na neve ou no solo e sabia que criatura tinha passado por ali antes dele. [...] Sob o braço levava um velho livro de partituras para coletar plantas; no bolso, o diário e um lápis, um binóculo para os pássaros, microscópio, canivete e barbante. Usava um chapéu de palha, sapatos sólidos, calças cinzentas resistentes, para enfrentar as moitas de carvalhos e esmílaces, e para subir numa árvore por causa de algum ninho de gavião ou esquilo (EMERSON, 2011, p. 326). Emerson relata que Thoreau anotava a época do florescimento das plantas e sabia o dia exato da ocorrência, assim como seus respectivos nomes. Conhecia também 43 os cantos dos pássaros. Esse interesse tinha “raízes muito fundas em seu espírito”. Ele, como tudo pareceria indicar, não os estudava com um interesse de cientista que um dia iria apresentar os dados para a “sociedade de história natural”. Sua “dedicação à história natural era orgânica”: “Thoreau admitia que, às vezes, sentia-se um sabujo ou uma pantera, e que se tivesse nascido entre os índios teria sido um caçador feroz”. O Thoreau de Emerson sabia melhor do que ninguém “que não é o fato que importa, mas a impressão ou o efeito do fato em nossa mente” (THOREAU, 2911, p. 327). Essa mente aguçada e perspicaz permitiu a Thoreau inferir uma “mesma lei para toda a natureza”, uma lei universal a partir de um fato. Apesar de seu talento, Emerson, prestando homenagem ou reconhecendo seriamente às aptidões de Thoreau, diz que nenhuma faculdade “jamais ofereceu-lhe diploma ou cátedra” (THOREAU, 2011, p. 328). E, se assim fosse, essas instituições sofreriam com “suas atitudes satíricas”, já que Thoreau “não tinha o menor pingo de respeito pelas opiniões de qualquer pessoa ou grupo de pessoas e prestava homenagem exclusivamente à verdade” (THOREAU, 2011, p. 329). Os talentos do autor de Walden não terminam aqui, Emerson segue informando- nos acerca da poesia de Thoreau. Ele “tinha em si a fonte da poesia, em sua percepção espiritual”, apesar de os “versos de sua lavra serem toscos e falhos” (THOREAU, 2011, p. 329-330). Era como se o lirismo fosse algo inato nele, pois sabia como “lançar um véu poético sobre sua experiência”. Nessa esteira, Emerson também nos fala de Thoreau como um homem de “religiosidade absoluta, incapaz de qualquer profanação”. No entanto, “o mesmo isolamento que fazia parte de sua maneira original de pensar e viver também o apartava de todas as formas religiosas sociais” (THOREAU, 2011, p. 321). Paul (2004), ao tratar das vocações de Thoreau, coloca a questão da seguinte forma: “Thoreau escolheu escrever porque, para ser útil socialmente, a vida transcendental tinha que ser expressa, manifestada, e porque a escrita permitia a ele viver a vida transcendental que era ‘agradável a sua imaginação’” (THOREAU, 2011, p. 110, tradução nossa) 12 . O problema da vocação, segundo Paul (2004), estava intrinsecamente ligado à noção emersoniana do Self-reliance, o repúdio às instituições 12 Do original: “Thoreau had chosen writing because to be socially useful the transcendental life had to be expressed and because writing permitted him to live the transcendental life that was ‘agreeable to his imagination’”. 44 sociais tradicionais da cultura. A vocação era vista com única, “definitivamente a própria índole de alguém” (PAUL, 2004, p. 108). O próprio Emerson, continua Paul (2004), mandou Thoreau para Staten Island, onde seu irmão servir-lhe-ia como tutor. O intuito de Emerson era que Thoreau continuasse escrevendo artigos – ele já começara a escrever para o The Dial – e seguisse seus passos (2004, p. 109). Infelizmente, atesta Paul, o empreendimento falhou. Thoreau não c