1 UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - CAMPUS DE RIO CLARO INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Do Significado da Escrita da Matemática na Prática de Ensinar e no Processo de Aprendizagem a Partir do Discurso de Professores Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação Matemática, Área de Concentração em Ensino e Aprendizagem da Matemática e seus Fundamentos Filosóficos - Científicos, para a conclusão do curso de Doutorado em Educação Matemática. Antônio Pádua Machado Orientadora: Profa. Dra. Maria Aparecida Viggiani Bicudo Rio Claro 2003 2 Resumo Este texto é referente à investigação que realizamos norteados pela interrogação "O que é isto, a escrita da Matemática?", na qual, por uma abordagem de pesquisa qualitativa proximamente preceituada pela fenomenologia husserliana, buscamos pelo significado da escrita da Matemática na prática de ensinar e no processo de aprendizagem, a partir das experiências vividas por professores, nos oferecidas por meio de seus depoimentos sobre o objeto interrogado. As análises qualitativas da pesquisa nos revelaram o fenômeno interrogado numa estrutura significativa em três grandes categorias de significados, que as interpretamos mediante obras de autores estudados nos domínios da interrogação e os discursos dos sujeitos entrevistados: "Realização da linguagem na Matemática", compreendida como o esforço construtivo de buscar significados matemáticos por meio do suporte da escrita; "Letramento matemático", compreendido como o desenvolvimento de um conjunto multidimensional de condições, indo das primeiras manifestações gráficas a quaisquer aspectos ligados às atividades letradas da Matemática, e "Aparecimento da Matemática para o aluno", como o visado feito prático que o sujeito experimenta ao encontrar nas elaborações sintáticas da escrita da Matemática as noções ou objetos de referências abstratas, no que o professor pensa e trabalha com seu aluno. 3 Abstract This study was guided by the question, "What is 'writing' in mathematics?" A qualitative approach closely based on Husserlian phenomenology was used, in which we sought to understand the meaning of "writing" in the pratice of teaching mathematics as well as in process of learning, based on the lived-experiences of the teacher, offered to us in the way of depositions on the subject of inquiry. The qualitative analyses revealed the phenomenon to us in a meaningful estructure in three broad categories of meaning, which we interpreted aided by the writings of authors we studied pertaining to the domains of the research question and the discours of the subjects interviewed: "Realization of the language in mathematics", understood as a construtive effort to seek mathematical meanings with the aid of writing; "Mathematical literacy", understood as the development of a multi-dimensional set of conditions, ranging from the first graphic manifestations to any aspects related to reading and writing in mathematics; and "Emergence of mathematics of the student", such as the practical, desired accomplishment that the subject experience upon encountering, in the syntatic elaborations of mathematical writing, the notions or objects of abstract reference that the teacher uses to think and work with his/her student. 4 SUMÁRIO Capítulo I Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 A interrogação e a sua abordagem ...................................................... 1 Leituras e compreensões iniciais ......................................................... 6 Capítulo II Do significado da escrita da Matemática em autores da Educação Matemática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 1. Na alfabetização Matemática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 A percepção das crianças .................................................................... 21 O que, o como e o porquê as crianças escrevem.................................. 24 O signo numérico ................................................................................. 28 2. No discurso pedagógico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 No texto ............................................................................................... 39 Na prova .............................................................................................. 45 Na sala de aula ................................................................................... 49 Capítulo III Do significado da escrita da Matemática nas significações convergentes entre sujeitos professores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72 CONVERGÊNCIA 1 .......................................................................... 73 CONVERGÊNCIA 2 .......................................................................... 75 CONVERGÊNCIA 3 .......................................................................... 77 CONVERGÊNCIA 4 .......................................................................... 79 CONVERGÊNCIA 5 .......................................................................... 81 CONVERGÊNCIA 6 .......................................................................... 83 CONVERGÊNCIA 7 .......................................................................... 85 CONVERGÊNCIA 8 .......................................................................... 87 CONVERGÊNCIA 9 .......................................................................... 90 5 CONVERGÊNCIA 10 ........................................................................ 92 CONVERGÊNCIA 11 ........................................................................ 94 CONVERGÊNCIA 12 ........................................................................ 96 CONVERGÊNCIA 13 ........................................................................ 98 Capítulo IV Do significado da escrita da Matemática na interpretação das grandes convergências ou categorias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 As grandes convergências ..................................................................... 103 Categoria 1. Realização da linguagem na Matemática ...................... 105 Categoria 2. Letramento matemático ................................................ 124 Categoria 3. Aparecimento da Matemática para o aluno ................... 153 Capítulo V À guisa de uma síntese compreensiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 Dos autores consultados ....................................................................... 210 Da análise dos depoimentos ................................................................. 181 Na realização da linguagem na Matemática ......................................... 182 No letramento matemático .................................................................... 185 No aparecimento da Matemática para o aluno ..................................... 187 No nosso entendimento ........................................................................ 190 Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 Anexo Do significado da escrita da Matemática no discurso dos sujeitos da pesquisa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 DEPOIMENTO 1 ............................................................................... 210 DEPOIMENTO 2 ............................................................................... 220 DEPOIMENTO 3 ............................................................................... 234 DEPOIMENTO 4 ............................................................................... 245 DEPOIMENTO 5 ............................................................................... 260 DEPOIMENTO 6 ............................................................................... 271 DEPOIMENTO 7 ............................................................................... 279 6 Capítulo I Introdução A interrogação e a sua abordagem Este trabalho é uma investigação qualitativa cuja abordagem persegue os preceitos da fenomenologia husserliana, e uma compreensão inicial dessa alternativa, é que não temos um problema a resolver, mas uma interrogação1 a explicitar e a responder, não sobre um fato que podemos controlar após sua definição, mas sobre um fenômeno que nos vem a ser desvelado em si mesmo, em sua situação quanto aos aspectos alcançados pela própria abordagem que empreendemos norteados pela interrogação. "O que é isto, a escrita da Matemática?" é a nossa interrogação, que nos conduz na trajetória da pesquisa. Portanto, neste trabalho buscamos pelo significado da escrita da Matemática no ensino e na aprendizagem, o que realizamos mediante depoimentos de professores que vivenciam o interrogado nas suas práticas de ensinar Matemática e nas suas experiências de estar com o aluno, orientando-o em seu processo de aprendizagem. Para essa abordagem, V. S. Kluth2 explicita o sentido da interrogação e a caracteriza como a unidade da historicidade do sujeito, posta em um só ato de perplexidade, onde já inicia o trabalho na parte noética, do investigador reflexivo, e que a autora diz ser o lado mais "frutífero" da investigação. Conforme Bicudo3, a interrogação é o ponto mais importante nessa modalidade de pesquisa, porque, ao ser dirigida, indica a trajetória da 1 Martins, Joel. A fenomenologia como alternativa metodológica para pesquisa - algumas considerações. In: Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos, caderno 1, 1990, pp. 33-46. 2 Kluth, V. S. Do Significado da Interrogação para a Investigação em Educação Matemática. In: BOLEMA 15, Rio Claro: UNESP, 2001, pp. 69-82 (74). 7 investigação, definindo procedimentos, definindo sujeitos e orienta a direção das análises dos dados. A historicidade do investigador, que Kluth diz haver na interrogação, a percebemos em nossa atentividade. Perguntamos: "O que é isso, a escrita da Matemática?", inteiramente movidos por um passado de experiências que construíram nossa inquietação e que apresentamos nos termos dessa interrogação. Percebíamos como aluno, como professor, e percebíamos em nossos alunos, que nosso envolvimento com a escrita da Matemática era intenso e perplexo. A Matemática nunca acontecia como um assunto espontâneo, de ser falado oralmente com comunicabilidade. Eram atividades realizadas estritamente como tarefas didáticas obrigatórias, no plano do escrito. Daquele jogo gráfico originavam-se todos os sobressaltos da experiência matemática. Pudemos perceber que, sem essa transferência da construção intuitiva para a construção gráfica na escrita, não haveria a atividade matemática que estávamos a realizar. Pudemos supor que haveria aspectos variados nesse fazer que necessitávamos trazer ao conhecimento e, então, adequar nossas experiências a tais conhecimentos. Buscamos orientação e formulamos a interrogação. Com ela já, como parte integrante da pesquisa, conforme prevê Kluth, passamos a buscar aquele desejado conhecimento sobre aspectos do interrogado, e realizamos a investigação que aqui trazemos. Vivemos o presente ainda apegados à nossa interrogação, mas, exatamente, dando a ela as respostas que alcançamos com a investigação realizada. É um presente tenso, de olhar para os resultados, para a interrogação, para o passado, e de perguntar: é isto , a escrita da Matemática?. Olhamos atentamente para o trabalho, para a trajetória percorrida, e vemos que chegamos a pontos próprios da trajetória, e que o fenômeno psicológico, que Kluth4 estudou em Husserl como sendo o fenômeno da vivência particular, dá lugar ao fenômeno, como o que se mostra para a comunidade de sujeitos que o vivenciam. A escrita da Matemática, exercitada na educação escolar, veio se 3 Bicudo, M. A. V. Fenomenologia - confrontos e avanços. Cortez: São Paulo, 2000, p. 81. 4 Kluth, op. cit. p. 79. 8 mostrando em três faces ou categorias: "Realização da linguagem na Matemática", "Letramento matemático" e "Aparecimento da Matemática para o aluno", com os desdobramentos e explicitações que a investigação traz mediante estudos que realizamos em autores, a documentação dos depoimentos e de suas análises, e as interpretações temáticas que realizamos dessas três categorias de significados, que ficam, por essa investigação, estabelecidas como a estrutura eidética do fenômeno. No futuro, a interrogação continuará lá. Agora com o objeto interrogado modificado, já tendo faces à mostra e uma trajetória de pesquisa percorrida. Nesse "viveremos", as verdades da pesquisa estão sempre sendo interrogadas, pois, conforme Martins5, não são verdades absolutas; estarão sempre sendo interrogadas e haverá múltiplas verdades para mostrar o fenômeno em múltiplas perspectivas, nunca atingindo a objetividade pura, mas em progresso. O fundo que destaca essa compreensão é que, para o pensamento da fenomenologia, conforme Bicudo6 e Bogdan & Biklen7, a realidade é socialmente construída, não sendo mais que o significado das nossas experiências, e, ainda conforme Bicudo, a construção do conhecimento e a construção da realidade constituem um mesmo movimento. A fenomenologia emprega uma forma de reflexão que permite ao sujeito olhar as coisas como elas mesmas se mostram e, conforme Matins8, é uma alternativa que Husserl propôs entre o discurso especulativo da metafísica e o raciocínio das ciências positivas, que, como experienciamos neste trabalho, vai em busca das essências do fenômeno mediante as manifestações de características invariantes cujos procedimentos preceituais as revelam ao sujeito que se encontra intencionalmente dirigido para a busca. Um conceito característico dessa alternativa husserliana, que define o estado do sujeito pesquisador por toda a investigação, é o da intencionalidade 5 Martins (1990), op. cit. p. 41. 6 Bicudo (2000), op. cit. p. 65. 7 Bogdan, R; Biklen, S. Investigação Qualitativa em Educação. Porto (Portugal): Porto Editora, 1999, pp. 53-57 (54). 8 Martins (1990), op. cit. p. 37. 9 da consciência9, que é a condição do investigador estar atentamente voltado para a interrogação e para os preceitos da atitude fenomenológica, no que reside o rigor do trabalho a se refletir nos resultados obtidos. Conforme Martins10, no entender que concebe a fenomenologia, não há a consciência humana que surja de si para si própria. Essa concepção existencial tem que a consciência é sempre consciência de alguma coisa e não há fenômeno que não seja para uma consciência. Esse é o modo com que, nesse presente que vivemos o fechamento do círculo da nossa investigação, devemos dizer que a escrita da Matemática é um fenômeno para nós. Nossa intencionalidade a colocou em suspensão mediante a interrogação e a descrevemos com o exercício dos demais procedimentos. Diz Martins11 que esse é o pensar que define a fenomenologia como "ciência descritiva das essências da consciência e de seus atos". Outra característica fundamental da abordagem husserliana, inerente ao preceito de que o pesquisador não explora princípios explicativos, mas descritivos, é que, então, não há teorias definitórias do fenômeno a-priori12, para o pesquisador. Ele apenas interroga. Outros conhecimentos só têm lugar na investigação como argumentos do pesquisador na interpretação de resultados obtidos, se assim prover, como efetivamente realizamos no desenvolvimento do Capítulo V, da interpretação das categorias, ao construir a compreensão sobre as categorias de significados que alcançamos. Antes que se estabeleça uma inteligibilidade do fenômeno, quanto a ele o pesquisador vive no seu pré-reflexivo. Portanto, ao se conduzir pelos preceitos fenomenológicos, antes que os possíveis aspectos do fenômeno venham a lhe dar uma estrutura eidética, é necessário que o pesquisador evite as influências das teorias explicativas sobre ele. Essa é uma exigência da redução fenomenológica para o encontro fenômeno-pesquisador. 9 Idem. 10 Ibidem, p. 38. 11 Idem. 12 Ibidem, p. 40. 10 Em nosso trabalho, como é preceituado13, após situado o fenômeno percorremos uma sucessão de passos. Inicialmente, realizamos as entrevistas, que foram registradas em fita magnética. Depois transcrevemos os depoimentos e assumimos essas transcrições como descrições das experiências dos nossos sujeitos. Em seguida, realizamos a análise individual em cada descrição, por atentas leituras e releituras, apreendendo as unidades de significados, que são unidades da descrição, que nos fizeram sentido a partir da interrogação14, e que deixamos destacadas nas transcrições dos depoimentos e expostas no Capítulo III. No terceiro passo, retomamos as unidades, ainda uma a uma, e destacamos o significado contido em cada uma delas. No quarto passo, buscamos as convergências, sintetizando as unidades com significados comuns, construindo os chamados conjuntos de invariantes. Por último, ainda reexaminando as unidades de significados que julgamos centrais em cada convergência, buscamos articular os conjuntos de invariantes que evocam um mesmo tema, e assim obtivemos as nossas três grandes categorias de significados. Para a fenomenologia, essas categorias não são formas apriorísticas do pensamento, mas são entendidas como um conjunto de significados que revelam a forma do ser15, que, para nós, então, são conjuntos de significados que nos revelam a forma do ser da escrita da Matemática, às quais apresentamos nossa interpretação mediante a construção do Capítulo V. Quanto aos sujeitos da pesquisa, são professores de Matemática em atividade nas suas carreiras há vários anos; vêm atuando no Ensino Fundamental, no Ensino Médio e no Ensino Superior em cursos de formação de professores. São profissionais que escolhemos pelo envolvimento que já experienciaram no ensino da Matemática, nas diferentes formas da escrita aparecer. A eles, visando à nossa interrogação norteadora, apresentamos a única pergunta: 13 Ibidem, pp. 43, 44. 14 Bicudo (2000), p. 81. 15 Hessen, J. Teoria do Conhecimento. Coimbra (Portugal): Coleção Stvdivm (1925), 1960, pp. 163, 164. 11 Como você vê o significado da escrita da Matemática na sua prática de ensinar Matemática , e como você entende o significado da escrita da Matemática no processo de aprendizagem do seu aluno? Responderam-nos oralmente a essa única pergunta, mediante discursos livres de qualquer formalidade. Gravamos os depoimentos, como já mencionamos, transcrevemos literalmente e obtivemos os textos escritos, constituindo-se nos dados, que viemos a analisar. Tendo em vista suas experiências e engajamentos no ensino, os sujeitos vieram a nos auxiliar com seus depoimentos, bem pronunciados e carregados de significados, como podemos lê-los na íntegra, no Capítulo III. Lá deixamos destacadas, como já dissemos, as falas significativas que elegemos como unidades de significados. Estas unidades são partes da transcrição do depoimento, que distinguimos em sentenças curtas ou mais longas, cujos temas evocam a atenção como pesquisador por possuirem sentido de resposta à interrogação formulada. Leituras e compreensões iniciais Realizamos estudos sobre a escrita nos domínios da lingüistica e da filosofia da linguagem desde que nos pusemos a trabalhar com nossa interrogação, não para construir qualquer sustentação teórica, mas para conhecer conceitos e compreensões que possamos levar aos domínios da escrita da Matemática, para o sentido da nossa investigação. O conhecimento do significado da escrita da Matemática, na prática de ensinar do professor, e no processo de aprendizagem do aluno, é uma busca que estamos assumindo por vislumbrarmos que tal conhecimento virá em prol do ensino e da aprendizagem da Matemática, quanto à distinção das diferentes entidades, a escrita da Matemática e a Matemática. Para ilustrar o modo como vemos a presença das duas entidades, a escrita da Matemática e a Matemática conceitual, e a importância da nossa investigação quanto ao significado da primeira sobre as práticas de ensino e 12 aprendizagem da segunda, tomamos uma questão posta por J. G. Frege16, no início da introdução de sua obra, “Os Fundamentos da Aritmética”: o que é o número um? ou ainda, o que significa o sinal 1? Naquela parte, o autor apenas quer discutir o conceito de número tendo como preocupação que, sem apreender acuradamente os conceitos, mesmos os mais simples, o rigor é ilusório. Não toca de propósito em fatos da escrita, mas, ao colocar a questão do conceito de número, indagando-se sobre o significado do sinal gráfico do número um, nos atinge no âmago da investigação: em que medida o significado da escrita comunga com o que é o referente? Entendemos que a investigação trará resultados quanto a uma contribuição na organização discursiva do professor sobre os objetos simbólicos/abstratos e os significados referenciais da Matemática; quanto à obtenção de diretrizes para orientar atividades que trabalhem com a linguagem, com a linguagem simbólica, com esquemas próprios dos alunos etc., por onde podemos explorar os aspectos sintáticos e semânticos dos conteúdos a serem abordados; quanto a possíveis subsídios para orientação de procedimentos didáticos e de ações pedagógicas no ensino de Matemática. Citando aspectos encontrados na literatura, que combinam com a noção de aprendizagem, Ana Teberosky17, ao tratar da comunicação por escrito no contexto da alfabetização, cita três entendimentos: a escrita como a confluência de um instrumento e o exercício de uma capacidade intelectual; nas principais línguas antigas, a escrita tem a etimologia do ato de escrever e, numa primeira definição, a escrita são marcas gráficas no lugar de algo, mas não todo tipo de marca nem no lugar de qualquer algo. Nesses entendimentos de Teberosky sobre a escrita, podemos articular idéias e verbalizar a importância que asseveramos ter o desenvolvimento desse trabalho para a aprendizagem Matemática. Ao 16 FREGE, Johann Gottlob. “Os fundamentos da aritmética: uma investigação lógico-matemática sobre o conceito de número (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1974, pp. 203-211. 17 TEBEROSKY, A. “Para que aprender a escrever?”. In: Ana Teberosky e Liliana Tolchinsky (org), 13 assumirmos o primeiro entendimento da autora sobre a escrita, a aprendizagem Matemática fica por nós compreendida como o exercício de uma capacidade intelectual sobre a construção de conceitos, numa atividade estruturante de conhecimento, do nosso sistema cognitivo. Seria tão somente isso se nos referíssemos apenas à construção introspectiva do conhecimento. Mas, nosso modo de estar-no-mundo nos propõe uma “linguagem de ação”, que como a compreendemos nos dizeres de Condillac18, é, nos termos colocados por Teberosky, ao explicitar os três entendimentos anteriores, um “instrumento” de nossa intersubjetivação, o que completa nossa compreensão de aprendizagem Matemática. Estar-no-mundo é a expressão que estamos utilizando ao compreender a “meta-base” de todo conhecimento, afirmada por Bicudo19, segundo a atitude fenomenológica explicitada por Edmund Husserl, como a do conhecimento ser subjetivo/intersubjetivo/objetivo . Ou seja, segundo essa atitude, o conhecimento não está circunscrito somente à vida subjetiva do sujeito, mas ao seu mundo-vida, onde o outro é co-presente. Compreendemos que, na aprendizagem Matemática, a escrita é a linguagem de ação que vem cumprir a confluência de um instrumento com a capacidade intelectual de construir conhecimento. A partir do nível subjetivo, quando exercemos nossa “razão gráfica”20, especialmente nas possibilidades interditadas ao exercício simplesmente oral da linguagem, passando pelo estado intersubjetivo e indo ao conhecimento objetivo, a escrita da Matemática, conforme a vemos, cumpre suas funções, que nos tornam com conhecimento no mundo. Essa particular compreensão é parte do que nos constitui como sujeito voltado para nossa interrogação. Além da alfabetização. São Paulo: Ed. Ática, 1996, pp. 19-34. 18 CONDILLAC, Étienne Bonnot de, “A língua dos cálculos”, col. Os pensadores, Ed. N. Cultural, Vol 27, 1974, pp. 143-145. Condillac é um filósofo francês do século XVIII, que teorizou uma lógica que não é uma teoria das proposições, mas uma arte da análise e do bem pensar; afirma que a álgebra é uma língua bem feita, pois na qual nada parece arbitrário. 19 BICUDO, M. A. V. “A contribuição da fenomenologia à educação”, in Fenomenologia, uma visão abrangente da educação, Maria Aparecida Viggiani Bicudo e Issabel Franchi Cappelletti (orgs), Ed. Olho d’Água, 1999, pp. 24, 48. 20 Auroux, S. Filosofia da linguagem. São Paulo: Ed. UNICAMP, 2000, pp. 73, 74. 14 No cotidiano do ambiente escolar, se o sujeito não escreve o que se pôs a aprender, então é considerado que não aprendeu. Mas o significado da escrita da Matemática, que esta investigação pretende expor, pode explicitar a relação que possa existir entre “o ser capaz de escrever” e “o conhecer o que deve ser escrito”. Isso converge para o terceiro entendimento de Teberosky, que afirma que escrever em Matemática é produzir marcas gráficas na superfície plana, marcas que estarão no lugar de objetos puramente abstratos que habitam a mente do sujeito. Se escrevemos um polinômio algébrico, segundo a língua da álgebra21, ali estão presentes marcas gráficas no lugar de algo. Então, há duas entidades aparentemente distintas, o polinômio algébrico e as marcas gráficas em seu lugar, que utilizamos como linguagem de ação sobre o ente Matemática. Esse trabalho caminha para a clareza de que a aprendizagem Matemática é um conceito a ser desdobrado. Há a construção dos significados referenciais, ou seja, o entendimento conceitual puro, e algo mais, necessário a completar a significação, a escrita. Os significados referenciais compreendemos ser objetos da Filosofia da Matemática; a escrita a estamos concebendo até aqui como realizadora da língua, o que julgamos ser do campo de estudos da aprendizagem. Como expõe Sylvain Auroux22, em sua obra “A filosofia da linguagem”, nossa tradição lingüística utiliza a técnica intelectual da escrita para representar, para construir, para transmitir o saber. A importância da presente pesquisa para a Aprendizagem da Matemática é, também, ser um trabalho que estará trazendo preenchimento para a conceituação do “ensinar Matemática” e do “aprender Matemática”, uma vez que, qualquer que seja o significado de escrita da Matemática que venha a ser revelado no final da investigação, será um significado construído sobre estudos e vivências da linguagem realizada pela escrita, o que estará trazendo ao professor uma sugestão que pode ampliar ou diversificar o seu 21 CONDILLAC, op. cit. p. 144. 22 Auroux, op. cit. p. 83. 15 entendimento sobre o que seja ensinar Matemática pelo seu lado, e o que seja aprender Matemática pelo lado do aluno. Auroux expõe que a escrita não é qualquer manifestação gráfica, mas só vem a ser empregada a partir de quando se atribui o objetivo de representar a linguagem. Nesse sentido, o disciplinamento lingüístico que procuramos trazer a este trabalho, quanto à compreensão sobre linguagem, língua e escrita, na seqüência de realização dessas entidades, é o discernimento que entendemos ser valioso para a condução da aprendizagem. As atividades de Ensino e aprendizagem da Matemática dão-se, conforme o que já podemos sintetizar das leituras realizadas, numa trama construída na língua, fixada pela escrita. Ou seja, ensinar e aprender são atividades que se reúnem nas expressões gráficas, que dão “realidade” à língua, que é o lugar, como afirma Condillac23, onde se realizam as “analogias” levadas a efeito pelas linguagens de ação, que é onde se manifesta o conhecimento efetivamente construído pelo sujeito. Segundo F. de Saussure24, a língua é um produto social depositado no cérebro de cada um; a escrita é um processo estranho ao sistema interno da língua, mas a representa inteiramente. Ora, entendemos que a aprendizagem é um processo de desenvolvimento de aptidão, como distingue Castro Rocha25, que se dá principalmente sobre as manifestações, por meio da língua. Se esta se faz representar, assim, tão inteiramente pela escrita, então nossa interrogação se preenche de sentido e, nesse preenchimento, já vislumbramos ganhos para as atividades discursivas do ensino, aquelas que daqui podem surgir acerca dos aspectos em torno da atenção e do uso da escrita como meio de tanger os referentes matemáticos. Apesar do desdobramento que vimos realizando sobre as vantagens deste trabalho para o Ensino e a Aprendizagem da Matemática, julgamos que tais vantagens, neste momento do trabalho, podem ser reduzidas a uma só, a 23 CONDILLAC, op. cit. p. 43. 24 SAUSSURE, F. “Curso de lingüística Geral”, Ed. Cultrix, 1987, p. 33. 25 Castro Rocha, M. A. Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos, caderno 2, São Paulo: SE&PQ, 1991, pp. 113-121. 16 de estarmos dirigindo a atenção a um aspecto que, na nossa compreensão, é, ao mesmo tempo, um dos mais visíveis e um dos menos percebidos. Não são fartas as considerações, em trabalhos próprios da Educação Matemática, que distinguem a escrita da Matemática do que seja a própria Matemática. Nos trabalhos sobre o uso ordinário da língua, a distinção entre a língua e o universo de conceitos é usual. Nesse campo é que encontramos a definição de Teberosky, que considera a escrita como marcas gráficas no lugar de algo. Dado o modo genérico com que a autora se pronuncia, e os termos em que o faz, assumimos essa distinção como aquela que queremos atribuir entre escrita da Matemática e Matemática. O “algo” dito pela autora, assumimos em Matemática como sendo os conceitos ou os referentes matemáticos. Imagem acústica e conceito são as duas entidades saussureanas, definidas pelo lingüista como as componentes do signo, que é a unidade da significação. Neste trabalho, iremos considerá-las como imagem gráfica e conceito, tendo em vista nossa consideração de que na Matemática é com a escrita que realizamos a língua e, por conseguinte, a linguagem. A abordagem lingüística que encontramos da significação26 é outro ponto que consideramos relevante nas vantagens que trará esse trabalho, quando intentamos situar na escrita da Matemática o significante saussureano, que compõe com o significado a unidade signo lingüístico, que é unidade da significação. O texto não o é sem o significado27. Nesse contexto, R. C. Lins28, expondo sobre sua teoria dos campos semânticos, afirma que quem pode dizer se algo é ou não um texto é o leitor, na medida em que produz um significado para ele. Em pensamentos filosóficos sobre o signo, Merleau- 26 Ducrot, O. e Todorov, T. Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2001, pp. 101-105(102). 27 Devemos entender “significado” assim empregado, como a representação do significante na linguagem, e não puramente como a “acepção da palavra”. 28 LINS, R. C. “Por que discutir teoria do conhecimento é relevante para a Educação Matemática”, in Pesquisa em Educação Matemática: Concepções & Perspectivas, Maria Aparecida Vigiani Bicudo (org), Ed. UNESP, 1999, pp. 75-94. 17 Ponty29 afirma que “a significação anima as palavras como o mundo anima nosso corpo”. Associando a significação à nossa interrogação acerca da escrita da Matemática, buscamos tratá-la por meio dos conceitos da lingüística moderna, por ser o nível normativo da língua na realização da linguagem, mas também nos apoiamos nos pensamentos clássicos da filosofia da linguagem, que têm a linguagem nas concepções existencialistas sobre Ser. Ainda procurando constituir-nos como sujeito pesquisador com a interrogação que aportamos, realizamos uma revisão em relação aos autores da Educação Matemática, procurando conhecer trabalhos que de alguma forma tocam em aspectos da escrita da Matemática, e trazemos no Capítulo II (seguinte) breves considerações sobre o significado da escrita sobre aspectos da "Alfabetização Matemática", o letramento das crianças, e do significado da Matemática no "discurso pedagógico", em acontecimentos como o texto, a prova e a sala de aula. Capítulo II Do significado da Escrita da Matemática em autores da Educação Matemática Os autores da Educação Matemática, por quem buscamos nos guiar na preparação deste capítulo, foram selecionados pela relevância dos seus trabalhos e pelo desenvolvimento de temas que tratam da Escrita da Matemática, importantes para situar o objeto desta investigação. A seguir, 29 MERLEU-PONTY, M. “Signos”, Ed. Martins Fontes, 1991, p. 95. 18 apresentaremos os autores escolhidos e o motivo que nos levou a escolhê-los, e nos itens que seguem essa introdução, o significado da Escrita da Matemática na alfabetização matemática, e no discurso pedagógico, exporemos e comentaremos mais detalhadamente suas idéias. Bicudo30, desde logo, percebeu no educando um ser que enfrenta diferentes situações que lhe cobram locomover-se num plano simbólico de representações e relações abstratas, que exige, como diz a autora31, que se expresse adequadamente pela fala e pela escrita para entender e operar essas relações nas suas atividades curriculares. Percebemos claramente, nos dizeres da educadora, a premência da linguagem realizada pela fala e pela escrita nos afazeres do educando. O sinal e o símbolo, trazidos das obras de Ernest Cassirer, são por ela considerados elementos-chave para a representação das atividades mentais, por onde o homem cria o seu mundo. A autora expõe suas idéias no contexto escolar, onde se dá o sentido da nossa investigação, que inquire sobre a Educação Matemática, e em vários de seus trabalhos, ela realça o papel da escrita. Sua visão se mostra como que essa prática intelectual transforma o modo de ser dos objetos históricos e socialmente ideais. Além dos benefícios que provêm das leituras de seus trabalhos, nesse capítulo especializamos o aproveitamento de suas considerações quanto ao emprego da escrita sobre os objetos da Geometria. A educadora Matemática O. S. Daniluk32 é outra autora cujos trabalhos utilizamos no desenvolvimento deste capítulo. Ela tematiza a Escrita da Matemática no contexto da alfabetização, a partir das primeiras produções gráficas e de significados construídos pela criança. A autora pesquisou a “alfabetização Matemática” junto a um grupo de pré-escolares, em que interrogou o ato de registrar a compreensão do “discurso matemático” e adotou no seu inquérito a abordagem fenomenológica. O “o que”, “o como” e “o porquê” as crianças escrevem foram as grandes categorias qualitativas 30 BICUDO, M. A. V. “Fundamentos de orientação educacional”, Ed. Saraiva, 1978. 31 BICUDO (1978), op. cit. p. 15. 32 DANILUK (1998), op. cit. 19 encontradas pela autora, de cuja descrição obtivemos elementos e fartas explicitações acerca da nossa interrogação. M. O. de Moura33 realizou estudos sobre os processos de construção do signo numérico pelas crianças em situação de ensino, envolvendo as com atividades que estimulam o senso da quantidade. Para tanto, buscou o suporte de pesquisas que revelam a ontogênese e a filogênese do número e sua escrita. Seu trabalho é relevante para nossa pesquisa por explicitar aspectos da escrita nascente na criança, quando vem constituir o significante “saussureano”, para se juntar ao significado e formar o signo como uma entidade “científica” do objeto número. Com isso pudemos compreender, no particular caso do número, o momento em que a escrita muda o caráter do conhecimento, de social para científico. A noção de registro, o reconhecimento de símbolos escritos e a prática do escrever são elementos visados por nossa investigação e que, explícita ou implicitamente, está presente no trabalho de Moura. N. J. Machado34 aponta uma ausência de interação entre o ensino da Matemática e o ensino da língua materna, apesar de constatar que as formas de abordagem dos conteúdos matemáticos, usualmente tratados nos currículos escolares, revelam uma impregnação entre as duas disciplinas quanto aos seus aspectos lingüísticos. No desenvolvimento das suas questões o autor trata de variados aspectos da inserção da Matemática no currículo escolar e da relação da disciplina com a língua materna, de tal modo que suas explicitações vêm compor nossa compreensão do escrever a Matemática. R. C. Geromel Meneghette35, ao abordar uma contradição que afirma encontrar nos tratamentos dados aos conceitos de números cardinais e ordinais, na chamada “transposição didática”, ou seja, quanto ao saber científico e ao saber construído mediante o ensino na escola, produz um texto 33 MOURA (1992), op. cit. 34 MACHADO, N. J. “Matemática e Língua Materna: análise de uma impregnação mútua”, Ed. Cortez, 1990. 35 MENEGHETTI, R. C. Geromel, “A Transposição Didática dos Cardinais e Ordinais: Relação Ensino e Ciência”, artigo in BOLEMA 13, 1999, pp. 12-29. 20 onde encontramos elementos de ligação entre o que se compreende do conceito e o que se escreve acerca do número. S. Hariki36 realiza análise de discursos, discernindo “discurso dos matemáticos”, “discurso pedagógico da Matemática” e “discursos dos autores dos livros textos de Matemática”. Não visa ao conteúdo matemático que se estabelece pela escrita ou à função da escrita para o professor e para o aluno, mas visa à comunicação, assumindo-a como “discurso”, definindo-o como “interação social de mensagens negociadas”. O autor explicita a presença de “conflitos” na lógica do discurso dos livros-texto de Matemática: lógica versus heurística, lógica versus retórica e lógica versus intuição, os quais associamos às diferentes formas de apresentação escrita dos textos. A. V. M. Garnica37, como pesquisador em Educação Matemática, considera que este campo de estudo se estabelece por conta do chamado “paradigma holístico”, emergente, pelo qual há a volta da discussão do homem, em resposta à abordagem tecnicista da realidade. Pelos seus dizeres, as questões epistemológicas das ciências ganham atenção nesse paradigma, no qual coloca seu trabalho com foco na linguagem. Em outro trabalho, o autor38 refere-se às formas de nossa manifestação no mundo e coloca a escrita como primordial no texto e na sala de aula. Numa de suas primeiras pesquisas39, com foco também na linguagem, Garnica estuda a “prova rigorosa” na formação do professor de Matemática, onde obtém duas categorias qualitativas para a prova, uma que desvela a “prova” de natureza técnica, unicamente como um 36 HARIKI, Seiji. “Analysis of Mathematical Discurse: Multiple Perspectives”, tese de doutorado, University of Southampton, Inglaterra, 1992. 37 GARNICA, A. V. M. “Educação, Matemática, paradigmas, prova rigorosa e formação de professores”, in Fenomenologia – uma visão abrangente de educação, M. A. V. Bicudo & I. F. Capelletti (orgs.), Ed. Olho d’Água, 1999. pp. 105-154. 38 GARNICA, A. V. M. É necessário ser preciso? É preciso ser exato? – “Um estudo sobre argumen- tação Matemática” ou “Uma investigação sobre a possibilidade de investigação”, in Formação de Profesores de Matemática: uma visão multifacetada, H.N.Cury(org), EDIPUCRS/RS, 2001, pp. 49- 87. 39 GARNICA, A. V. M. “Fascínio da técnica, declínio da crítica: um estudo sobre a prova rigorosa na 21 cálculo formal, sem tematização, e outra que mostra a “prova” de natureza crítica na formação do professor, onde podem se incorporar, além do aspecto formal, outras formas de rigor. Focando sua abordagem da “prova”, pudemos extrair, para nossa investigação, elementos relacionados ao uso da Escrita da Matemática que são, na nossa compreensão, envolvidos na trama do seu trabalho. M. T. C. Soares40 expõe sua investigação acerca da articulação que professores de Matemática do ensino fundamental realizam entre o “discurso científico” e o “discurso pedagógico”, na prática cotidiana do ensinar. A esses diferentes discursos, a autora adota os conceitos trazidos por Hariki, que é do nosso rol de autores estudados. Na busca de explicitações de como os professores transformam o saber científico em saber escolar na sala de aula, pudemos compreender eventos de emprego da Escrita da Matemática no fazer do ensino e da aprendizagem na sala de aula. E. M. Zuffi41 estudou a utilização da linguagem Matemática, como ela afirma, por professores do ensino médio. Seu trabalho é restrito ao tema “funções”, mas, por ser um tema central no campo dos estudos analíticos da Matemática, onde a construção lingüística e a sintaxe dos símbolo escritos são as formas de construir e operar o conhecimento, seu trabalho é farto em elementos ligados à Escrita da Matemática, que de variadas formas pudemos destacar como elementos esclarecedores à nossa investigação. A. K. Stehney42 apresenta um ensaio no qual trata genericamente a escrita como uma atribuição de todos, ressaltando que estudantes de Matemática, ao contrário de como agem, devem engajar-se na sua prática. Atribui aos professores de Matemática a responsabilidade de condicionar seus alunos ao uso deliberado da escrita, como também aos demais membros da formação do professor de Matemática”, tese de doutorado, UNESP/Rio Claro, 1995. 40 SOARES, Maria T. C. “Matemática escolar: a tensão entre o discurso científico e o pedagógico na ação do professor”, tese de doutorado, USP, 1995. 41 ZUFFI, E. M. O tema “funções” e a linguagem Matemática de professores do ensino médio: por uma aprendizagem de significados, tese de doutorado, USP, 1999. 42 STEHNEY, Ann K. “Mathematicians Write; Mathematics Students Should Too”, in Using Writing 22 orientação educacional. A autora explicita variados pontos de feitos matemáticos, em que a prática da escrita se liga ao desempenho dos alunos e adverte sobre o quanto é pernicioso desenvolver uma carreira apenas técnica nessa disciplina. Essa é uma orientação que coaduna com o âmago da nossa interrogação. M. B. Burton43, como Stehney, é pesquisadora americana em Educação Matemática e apresenta um trabalho pelo qual pesquisou o esforço de estudantes no início do curso universitário, no aprendizado da Matemática, por sua “linguagem sem sentido”. Constatou a autora que, para esses estudantes, os símbolos algébricos constituem uma linguagem sem sentido e que eles admiram que “matemáticos possam conversar sobre o que essa língua diz”. A autora aborda questão semântica e sintática das sentenças algébricas, cuja forma de aparecer é a escrita, o que é do pleno interesse da nossa investigação. L. Burton & C. Morgan também expõem seus estudos sobre as dificuldades que apresenta a escrita simbólica da Matemática para estudantes e pesquisadores iniciantes, especialmente a escrita condensada que aparece nos artigos sobre temas especializados da Matemática, para o que também atentamos no nosso trabalho. Este capítulo, como já adiantamos, traz nossa interpretação do modo como a escrita é considerada ou tratada por esses autores da Educação Matemática. Da análise efetuada, orientada pela nossa pergunta diretriz: “O que é isto, a Escrita da Matemática?”, destacamos temas relevantes encontrados em vários dos textos lidos ligados, direta ou indiretamente, ao uso da Escrita da Matemática ou ao uso da escrita na Matemática. Organizamos esses temas em duas “categorias” para facilitar a exposição das idéias daqueles autores, visando ao esclarecimento da pergunta por nós perseguida. A primeira categoria intitulamos: Na alfabetização Matemática, ou seja, trataremos nessa seção do significado da Escrita da Matemática por autores da to Teach Mathematics, Andrew Sterrett(editor), USA, 1992, pp. 26-29. 43 BURTON, Martha B. “Attemptiing Mathematics in a Meaningless Language”, in Using Writing to Teach Mathematics, Andrew Sterrett(editor) USA, 1992, pp. 57-62. 23 Educação Matemática, na alfabetização Matemática, e faremos em três partes: A percepção das crianças; O que, o como e o porquê, e O signo numérico. A segunda categoria intitulamos: No discurso pedagógico, ou seja, trataremos nessa seção do significado da Escrita da Matemática por autores da Educação Matemática, no discurso pedagógico, e também faremos em três partes: No texto, Na prova e Na sala de aula. Essa organização em que desenvolvemos os conteúdos dessas categorias se deu pela estrutura que ganhou nosso texto a partir das compreensões que obtemos das leituras realizadas. 3.1 Na alfabetização Matemática No léxico comum44, a primeira designação da palavra alfabeto é para o “conjunto das letras de um sistema de escrita, dispostas em ordem convencionalmente estabelecida”, o que nos remete ao alfabeto da língua ordinária. Outra designação, dos mesmos autores, é para o “conjunto finito de símbolos que representam os elementos de uma língua”. Nesse sentido, não que pareça próprio falar em um alfabeto de toda a Matemática, mas em cada categoria Matemática podemos reconhecer um sistema de sinais a que poderíamos assim chamar, como alfabeto da aritmética, alfabeto da geometria, alfabeto da teoria dos conjuntos, e outros. Segundo os mesmos autores, a lingüística designa como alfabeto o “conjunto de signos usados para representar graficamente os sons da fala”, por fonemas ou sílabas. E queremos observar que, na primeira designação que mencionamos da palavra “alfabeto”, há a relação direta do termo a um “sistema de escrita”; depois, como grifamos, o alfabeto é usado para representar graficamente. Seguindo na lista de significados do termo, explicitam os autores que o alfabeto grego tem 24 caracteres, tomados originalmente do alfabeto fenício, e que o alfabeto latino é um conjunto de caracteres que os romanos tiraram do alfabeto estrusco e, especialmente, do alfabeto grego para a grafia da língua latina. 44 HOUAISS, A; VILLAR, M. S e FRANCO, F. M. M. “Dicionário da língua portuguesa”, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro/RJ, 1ª. edição, 2001, p. 150 24 Queremos mostrar com nossa ênfase nos termos símbolos, graficamente, caracteres, grafia, que grifamos em cada designação dada ao termo “alfabeto”, e outros termos que poderíamos continuar arrolando dos demais significados que os autores apresentam para o termo, que este substantivo está sempre associado à realização da escrita. Compreendemos, portanto, na expressão “alfabetização Matemática”, referência a um processo de aprendizagem da Matemática, porém a Matemática cujos conteúdos se apresentam em formas escritas. Ou seja, por essa hermenêutica, “alfabetização Matemática” se nos mostra como um processo de aprendizagem da Matemática, que tem a escrita como prática presente. Vislumbramos nessa compreensão que a escrita cumpre papéis nos problemas ontológico, epistemológico e também pragmático da Matemática e que cumpre a nós tratá-los na Educação Matemática. Daniluky45 interrogou: “O que é alfabetização Matemática”, e em suas pesquisas tematizou a escrita em Matemática, evidenciando o ato de escrever a “linguagem Matemática”. Nesse intento, a autora adotou a expressão “alfabetização Matemática” em desígnio de “atos de aprender a ler e escrever a linguagem Matemática”, usada nas séries iniciais da escolarização, e que tais atos, segundo a autora, desenvolvem a compreensão, a interpretação e a comunicação dos conteúdos matemáticos iniciais ensinados na escola, importantes para a seqüência das atividades de construção do conhecimento matemático. Nessas considerações, Daniluk se aproxima de Auroux, do qual expomos na introdução o que chama “razão gráfica”, como propriedade do escrever. Por um lado, no que compreendemos, a autora firma os atos de aprender a ler e escrever em Matemática como feitos que desenvolvem a cognição e a comunicação dos conteúdos matemáticos; por outro, o autor distingue a razão gráfica com status de “razão”, que operamos no espaço plano. Ainda nesse alinhamento, Auroux define a razão gráfica como um 45 DANILUK, op. cit. p. 20. 25 “suporte transposto” da fala humana, ou seja, o ato de escrever como um meio de exercitar a fala, e Daniluk46 considera que ser alfabetizado em Matemática é compreender o que se lê e poder escrever sobre o que se compreende das primeiras noções de Lógica, de Aritmética, de Geometria, e deixa firmado que a escrita e a leitura das primeiras idéias Matemáticas se incluem no processo de alfabetização. Pelo que designam Daniluk, como “alfabetização Matemática”, e Aroux, como “razão gráfica”, ambos mostram uma aproximação com nosso entendimento de Cassirer47. Considera esse que por mais consolidada que pareça a auto-suficiência do pensamento “puro”, e por mais que se renuncie aos auxílios da sensibilidade ou da intuição, o pensamento ainda parece preso à linguagem e à formação lingüística dos conceitos. Diz ainda esse autor que tal aparência é evidente no desenvolvimento lógico e lingüístico dos conceitos numéricos, onde ela adquire sua expressão mais característica. Somente a conformação do número em um signo lingüístico, afirma Cassirer, permite compreender a sua natureza conceitual pura. Assumimos que a atitude gráfica e o aprendizado para tal são o que pronunciam Aroux e Daniluk, como a razão gráfica e a alfabetização. E no exposto por Cassirer, entendemos que um dos aspectos da “alfabetização Matemática” refere-se à “conformação” lingüística convencional aos números e aos demais conceitos iniciais da Matemática. Esta alfabetização vem a ser o estabelecimento da “razão gráfica”, pronunciada por Auroux, para fins do pensamento abstrativo, que sucede na construção da Matemática. Ao voltarmos a nossa pergunta: O que é isto, a escrita da Matemática?, com a compreensão até aqui desenvolvida, entendemos que aspectos importantes e constitutivos da escrita da Matemática concernem à elaboração gráfica da conformação lingüística. 46 Ibidem. 47 CASSIRER, E. “Filosofia das formas simbólicas”, Ed. Martins Fontes, 2001, p. 259. 26 A percepção das crianças Com sua interrogação, O que é alfabetização em Matemática, visando a compreender como a criança entra no mundo da escrita da linguagem Matemática, Ocsana Daniluk realizou intervenções pedagógicas em um jardim de infância com crianças entre 4 e 5 anos, de um centro comunitário municipal, fora ainda de uma situação propriamente escolar. Ali, a autora realizou seu trabalho valendo-se das manifestações espontâneas das crianças e de seus conhecimentos pré-predicativos48, construídos na vivência social e familiar. As manifestações das crianças deram-se junto à ação da autora pesquisadora, quando expressaram também o conteúdo de aspectos matemáticos. Daniluk conduziu sua pesquisa pelos tratamentos qualitativos, em abordagem fenomenológica, que não a levou a nenhuma explicação posta em termos de causa e efeitos, sobre qualquer fato observado, pois não é o que propõe esse modelo de abordagem, mas a conduziu às descrições rigorosas de aspectos revelados à sua atentividade, evidenciando as convergências de aspectos essenciais da alfabetização Matemática, para O que, O como e O porquê as crianças escrevem, pontos aos quais voltaremos a focar na próxima parte dessa seção. Descreve a autora49 que, em suas brincadeiras, as crianças reproduzem episódios familiares e utilizam a expressão gestual para explicitar uma compreensão de número e de tamanho. Quando ainda trocam letras de palavras, ao pronunciá-las, também confundem tamanho com altura. Nessa idade, de 4 a 5 anos, constata a autora50 que as crianças sabem que há entre elas mais amiguinhos de cinco anos do que com quatro; mostram com isso ter a idéia de quantidade e de relação de ordem. Relacionam o tempo com o real vivido por elas, do qual já fazem parte as convenções sociais num nível de 48 Pré-predicativo significa, na obra fenomenológica, preponderantemente na de Merleau-Ponty, o conhecimento ainda não tematizado e posto em uma forma predicativa em que as afirmações já encontram suporte no conhecimento analítico. 49 DANILUK, op. cit. p. 79. 50 Ibidem, pp. 80, 81. 27 compreensão que já diferenciam números de letras, cujos reconhecimentos se mostraram relacionados a seus nomes e idades. Descreve a autora51 que as crianças mostram conhecer a forma das letras e dos números, porém não se interessam pela quantidade que representam suas idades. Quanto à escrita de seus nomes, mostram repetir o que alguém lhes ensinaram. Mostram também não saber escrever outras palavras e, além disso, sabem a escrita de alguns números fora de suas idades. Não reconhecem ainda o desenho como uma atividade diferente de escrita e não usam a palavra “escrever”, mas apenas dizem “fazer”. As crianças souberam apontar o início e o final de uma fila, mas o meio só foi admitido numa fila de três elementos. Usaram a decomposição para aferir uma quantidade de palitos, e a escrita surge como registro mostrando o resultado de um jogo. Aquilo que é registrado, descreve a autora52, tem significado para si e para o outro; é uma informação. O registro das crianças é o desenho do objeto que possuem. Algumas crianças usam o algarismo seguido do desenho do objeto para expressar a quantidade de unidades daquele objeto. A quantidade três ou quatro, descreve Daniluk53, é de fácil percepção para as crianças, trata-se de pouco, mas não dominam ainda e não conseguem dizer o número total dessas quantidades; para afirmar quantos possuem, necessitam contar para dizer o total. Para denotar a quantidade, muitas vezes escrevem o número acompanhado do desenho do objeto a que se referem, como já mencionamos. Mas demonstram possuir o conhecimento de que as palavras são escritas com letras e não com algarismos. Segundo a autora54, as crianças, muitas vezes, criam sinais que julgam convenientes para representar suas idéias, e o sinal de igualdade pode ser utilizado entre medidas diferentes. 51 Ibidem, p. 82. 52 Ibidem, p. 95. 53 Ibidem, p. 96. 54 Ibidem, p. 108. 28 As explicitações de Daniluk se alinham também com a proposta exposta de Tolchinsky55, que consiste em descobrir o que as crianças conhecem da escrita e como elas aprendem fora da escola, e aproveitar esse conhecimento para incentivá-las na escola. Uma orientação que Tolchinsky56 proporciona é que o professor deve projetar situações nas quais as crianças necessitem e queiram escrever, embora sejam pequenas e ninguém tenha se dedicado formalmente a lhes ensinar as letras. E uma constatação que essa pesquisadora57 nos traz é que para parte das crianças a notação de quantidades pela grafia de numerais não é o mesmo que escrever. Porém, segundo ela, não há em francês e espanhol, como também não conhecemos em português, um verbo especial para a ação de “fazer números sobre uma superfície plana”. É utilizado o mesmo verbo usado para a escrita. Mas para um adulto, diz ela, a distinção fica clara quando se diz “escreva números”. Detoni58, investigando acerca do espaço e da Geometria que ocorrem no pré-reflexivo 59, também realiza intervenções num grupo de crianças de 5 a 6 anos. O autor pesquisador levou as crianças, entre outras atividades, a construírem figuras geométricas, demarcando os pontos chaves com “corpo- próprio”. Assim, por exemplo, executaram o “triângulo equilátero” com um barbante atrelado nas pontas, envolvendo três amiguinhos. Dali, passaram para a sala de aula, e no espaço plano da lousa puseram-se a construir os desenhos que vieram a servir de fundo para as discussões sobre as construções realizadas com o barbante. Esse uso do espaço plano para produção de representações na bidimensionalidade daquilo que em outra forma já fora percebido, diremos ser 55 TOLCHINSKY, L. Aprendizagem da língua escrita: processos evolutivos e implicações didáticas. São Paulo: Ática, 1998, p. 16. 56 Ibidem, p. 17. 57 Ibidem, p. 208. 58 DETONI, Adlai R. Investigações acerca do espaço como modo da existência e da geometria que ocorre no pré-reflexivo, tese de doutorado em Educação Matemática, UESP/RC, 2000, p. 106. 59 Pré-reflexivo é um termo em fenomenologia, que designa o conjunto de noções básicas, adquirido com a vivência coletiva e informal, mas que condiciona o indivíduo para reflexões mais elaboradas. 29 uma passagem vital do processo de alfabetização, no que concerne à escrita. Conforme afirma Detoni, o desenho não é tido como uma imagem do que ocorrera na experiência vivida pelas crianças, pois o objeto já se faz presente na compreensão de todos. Porém, ir à lousa, segundo ele60, é um conjunto de ações com amplitude maior que representar graficamente. Ali, as crianças manifestam suas percepções expressando suas compreensões em linguagem gráfica. O que, o como e o porquê O que escrevem, o como e o porquê são três grandes categorias para onde convergiu a maioria das unidades de significados encontradas por Daniluk61 em sua pesquisa, que busca o significado da Alfabetização Matemática. Quantidade, relação de ordem, retenção do todo, contagem e correspondência são percepções que, nos dizeres da autora, impulsionam as crianças ao registro gráfico, e o que escrevem na alfabetização são, diremos, suas expressões acerca dessas percepções. O sentido da quantidade, diz a autora62, aparece desde o início da sua intervenção, quando por gestos as crianças já buscam indicar o número que se associa às suas idades. Não sabem dizer o nome do número, mas conseguem mostrar espontaneamente a quantidade através dos dedos das mãos. Por gestos variados estabelecendo comparações, indicam também tamanho e altura de objetos. Esse sentido da quantidade que a criança revela possuir é apontado por Piaget & Szeminska(apud Moura)63 como a presença da noção de número, que segundo esses autores, não é fruto direto da experiência empírica, mas uma construção interna do indivíduo. Ou seja, na distinção piagetiana, não é o número um conhecimento social ou físico, mas é uma noção construída 60 DETONI, op. cit. p. 176. 61 DANILUK, op. cit. p. 169. 62 Ibidem, p. 191. 63 MOURA (1992), op. cit. pp. 26, 27. 30 progressivamente pelo sujeito cognoscente, como conhecimento lógico- matemático64, pelo chamado “processo de abstração reflexiva”, conceito chave da teoria cognitiva de Piaget. Ferreiro65 distingue os dois sistemas, o de representação dos números e o sistema de representação da linguagem ordinária, e diz que nos dois casos a criança tem dificuldades conceituais no início da alfabetização. Considera essa autora que nos dois casos a criança reinventa o sistema e ela compreende que o número, para a criança, é um conhecimento em movimento. Moura assume que “a aquisição do signo numérico” é uma síntese de conhecimento social e conhecimento lógico-matemático; social como conteúdo e lógico- matemático por necessitar de uma estrutura cognocitiva. A noção de quantidade que as crianças apresentam, tal como exposto por Daniluk, é, desde o início, assistida pelo grafismo; a passagem do gesto para a elaboração gráfica no espaço plano se dá espontaneamente, no que julgamos tratar do movimento simbólico do “eu penso” para o “eu falo”. Neste caso, tomamos a escrita, como já o fizemos, como um modo de produção da fala e, o que as crianças escrevem, consideramos como tudo o que adquire uma estrutura em seu pensamento e que possa deslocar-se para o “eu falo”. Os números, que dão forma à noção de quantidade, instalam-se adequadamente, como constata Daniluk, no “eu falo” das crianças, e aí diremos que a força das convenções sociais de uma determinada grafia as levam à elaboração gráfica do que querem expressar. Temos um apoio em Ricoeur66, para quem o que acontece na escrita é a plena manifestação do que está num estado virtual, incoativo, ou seja, está 64 KAMII, C. & DECLARK, G. Reinventando a Aritmética: implicações da teoria de Piaget. Ed. Papirus, 1986, p. 29. Tal conhecimento, na teoria cognitiva de Piaget, consiste de relações feitas por cada indivíduo, como é a diferença entre dois objetos; a diferença não está nem num nem noutro objeto, está na relação estabelecida pelo sujeito. Sem tal relação, a diferença não existe. 65 FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização, Ed. Cortez, 1985, p. 13. 66 RICOEUR, P. Teoria da Interpretação: o discurso e o excesso de significação, edições 70, 1987: 37. 31 principiante na fala, mas que difere desta por separar a significação do evento. Um modo gráfico, diremos, de produzir significantes. A noção de quantidade abrange o senso de comparação entre quantidades diferentes e as crianças, segundo Daniluk, não que já tenham atingido a “seriação”, designada por Piaget como a operação pela qual se chega ao controle da transitividade da ordem, mas já ordenam pequenas coleções. Após dez encontros de Daniluk com as crianças, a contagem e a retenção do todo apareceram como habilidades do desenvolvimento intelectual, mas para o uso de símbolos gráficos na expressão dessa produção intelectual, são necessários, o que a autora expõe, o aprendizado e a vivência social. Um exemplo constatado pela autora67, é a expressão inadequada da igualdade entre medidas iguais, que representamos pela igualdade de dois pequenos segmentos paralelos, pelo sinal “=”, usado convencionalmente na Matemática; a criança se mostra conhecedora da sua existência, porém o utilizou incorretamente entre as notações de medidas diferentes, exemplificando que, de fato, o significado do que se escreve é social e necessita de aprendizado. Como realizam a escrita, ou como as crianças chegam à escrita, é outra grande categoria obtida por Daniluk68, que também tem na socialização e na experiência vivida entre seus companheiros sustentação da prática do escrever. A diferença funcional entre letras e números é reconhecida pelos pequenos, e tal condição lhes dá as primeiras noções com as quais distinguem grafemas de palavras e de números. Tudo indica que o aprendizado que os leva ao escrever inicia-se na experiência em família, o que mostra ser uma etapa epistemicamente valiosa. Nos gestos estão os primeiros sinais desse aprendizado, que, segundo Daniluk, explicitam a compreensão da forma de escrever os algarismos e a compreensão da quantidade. O desenho, afirma a autora, é o meio imediato que têm para expressar graficamente idéias além de 67 DANILUK, op. cit. p. 199. 68 Ibidem, p. 170. 32 seus nomes e idades; em geral, tentam copiar fielmente o objeto. Se envolve a quantidade, como já abordamos, tentam compor a expressão com o número e o desenho, que pode ser uma cópia do objeto ou tratar-se de sinal criado. Há uma fase desse desenvolvimento em que o registro de uma quantidade, como constata Daniluk, pode ser realizado por uma função de acumulação, como uma contagem que prossegue acumulando um a um, até atingir a totalização. O porquê as crianças escrevem é a última das três categorias que vamos abordar, a que chegou Daniluk na convergência das suas unidades de significados, obtidas da análise fenomenológica, dos dados obtidos de seu grupo de sujeitos. Quando Pâmila69, ao dizer que era preciso “botar num papelzinho” o número de palitos que cada criança recebera numa bricadeira, ela revela uma necessidade que seria atendida com a escrita. Daniluk70 descreve essa necessidade como de todos, a de manter a memória sobre tal quantidade. É uma forma de comunicação e, para Ricouer71, esse problema do “botar num palpelzinho” é idêntico ao da fixação do discurso em qualquer suporte exterior, seja a pedra, o papiro ou o papel, que é, segundo o filósofo, diferente da voz humana. A inscrição que substitui a expressão vocal imediata, fisionômica ou gestual, é em si mesma, segundo Ricoeur72, uma gigantesca realização cultural. E convenhamos que a pequena Pâmila necessitou “botar num papelzinho” por já estar experienciando tal revolução cultural. Sustentada por pesquisas que tem realizado na América latina por duas décadas, Teberosky73 afirma que a relação entre o ensino institucional e o desenvolvimento do conhecimento da criança é de influência e não de determinação. Diz ela que há várias razões e cita duas. Uma, porque a escrita é um objeto social cuja presença e funções são extra-escolar, o que afirma como 69 Pâmila é uma das crianças do grupo de sujeitos da pesquisa de Daniluk. 70 Ibidem, p. 217. 71 RICOEUR, op. cit. p. 38. 72 Idem. 73 TEBEROSKY (2000), pp. 65, 66. 33 fato inquestionável; outra, porque a criança é um sujeito ativo e construtivo do seu próprio conhecimento. Esta segunda razão, afirma Teberosky, não é tão evidente, e escreve um capítulo do seu livro mostrando o desenvolvimento pré-escolar e escolar da escrita na criança. Como meio de identificação, no registro do nome e idade, como meio de lembrança, de informação, de solicitude, são porquês, encontrados por Daniluk, de as crianças realizarem a escrita. A “razão gráfica”, identificada por Auroux, ou o “auxílio à razão”, como considera Cassirer, na descoberta da ciência, são outros “porquês” que também compreendemos estar presentes na experiência da escrita. Halliday (apud Tolchinsky)74, poeticamente, afirma que “A escrita ... cria um novo tipo de conhecimento: o conhecimento científico; e uma nova forma de aprendizagem, chamada ensino”. Não com menor efeito, Vigotsky (apud Kato)75 afirma, a partir dos trabalhos que realizou com crianças, que “para aprender a escrever, a criança precisa fazer uma descoberta básica – a saber, que ela pode desenhar não apenas coisas, mas também a própria fala”. O signo numérico Somente por meio da veiculação das intuições de espaços, de tempo e de número, afirma Cassirer76, é que a linguagem pode realizar a sua função essencialmente lógica, que é a de transformar impressões em representações. Passando, progressivamente, da representação do espaço para a do tempo e, desta para a representação do número, diz o autor77, aparentemente completa- se o círculo da intuição. Mas, segundo ele, sempre nos afastamos deste círculo, porque o transcendemos, e em lugar das formas perceptíveis e tangíveis surgem princípios intelectuais. Nesse sentido, afirma Cassirer78, é que o ser do número é determinado pelos pitagóricos, seus verdadeiros descobridores, como objetos livres dos afazeres empíricos, para gozar dos 74 TOLCHINSKY, op. cit. p. 15. 75 KATO, Mary A. “No mundo da escrita – uma perspectiva psicolingüística”, Ed. Ática, 1990, p. 16. 76 CASSIRER(2001b), op. cit. p. 208. 77 Ibidem, p. 256. 34 princípios imateriais, dedutivamente válidos, como também ocorreu com a Geometria. Com a mediação de Platão, Descartes e Leibniz, a Matemática científica dos primeiros autores se reflete na Matemática Moderna. E mais que a Matemática antiga, afirma Cassirer, sua concepção moderna, ao tentar organizar a Geometria e a análise, é remetida ao conceito de número como o seu verdadeiro centro. Todo o trabalho de fundamentação intelectual, segundo o autor, volta-se para o número como esse ponto central, tanto que na Matemática do século XX generaliza-se o esforço para se chegar a uma configuração lógico-autônoma do conceito de número. Essa centralização no número transfere à Matemática sua classificação como ciência exata. Esse caráter “exato”, como analisa Machado79, não poderia vir da demonstrabilidade das proposições, dado que em qualquer área de conhecimento se pode pretender fazer demonstrações. A expressão em número é, segundo esse autor, uma base de fundamentação para a exatidão Matemática. Sua análise considera duas compreensões sobre o número, a platônica e a aristotélica; a primeira, que é a trilhada por Frege, que não vê o número como algo abstraído dos objetos do mundo físico, mas como um objeto especial, regido por leis próprias, que seriam juízos analíticos e, conseqüentemente, exatos a priori; a segunda é a trilha de Newton, que compreende os números originando-se nos processos de contagens ou de medidas. Dedekind, Russell, Frege, Husserl e Hilbert, cada qual pelo seu próprio caminho, construiram a Matemática do século XX com importantes estudos sobre o conceito de número. Russell80 os toma como constantes puramente lógicas; Frege os tem como atributos de conceitos puros; Dedekind rejeita toda e qualquer relação intuitiva e intromissão de grandezas mensuráveis, e o conceito de número não deve ser, para ele, construído sobre a intuição do 78 Ibidem, p. 257. 79 MACHADO (1994), op. cit. pp. 39, 40. 80 Ibidem, p. 258. 35 espaço e do tempo, devendo sim, emanar das leis puras do pensamento, e desse modo, nos capacitar para a obtenção de conceitos rigorosos e precisos do espaço e do tempo. Porém, afirma Cassirer81, por mais que esteja consolidada a suficiência do pensamento “puro”, científico, e por mais que renuncie aos meios auxiliares da sensibilidade ou da intuição, o pensamento ainda parece preso à linguagem e à formação lingüística dos conceitos. Essa ligação entre linguagem e pensamento, segundo o autor, adquire uma expressão muito clara e característica no desenvolvimento lógico e lingüístico dos conceitos numéricos e, como ainda afirma, somente a conformação do número em um signo lingüístio permite compreender a sua natureza conceitual pura. Essa conformação em um signo lingüístico para que possamos atingir com nossa compreensão, é uma condição que se nos apresenta como básica para a idealidade82 dos objetos matemáticos, como de todos os demais objetos. Trata-se de trazer o objeto ao nível da objetividade cultural e histórica. Mas, pelo que diz Merleau-Ponty83, essa conformação lingüística deve estar além do simples uso da palavra como “invólucro” da fala, pois apropriamo-nos do objeto não apenas como falantes, mas como sujeitos pensantes. Justificam-se o conceito e a imagem acústica que compõe a estrutura do signo em Saussure, para se referir ao caráter arbitrário do signo84, o significado e o significante. Na união dessas duas entidades psíquicas, diremos, dá-se a conformação lingüística necessária à nossa compreensão do objeto. A escrita, como modo de exercitar a fala visualmente, materializa o significante, e pudemos constatar esse efeito na construção do signo numérico, em pesquisa que visa a esse conhecimento, como veremos a seguir. 81 CASSIRER(2001b), op. cit. p. 259. 82 Trata-se da idealidade entendida na fenomenologia husserliana, que diz respeito à objetividade histórica e social a que chega objetos, nocão que contrapõe à idealidade imaginária do pensamento platônico. 83 MERLEU-PONTY (1996), op. cit, pp. 240, 241. 84 SAUSSURE, op. cit. p. 81. 36 Numa turma de pré-escolares, Moura85 realizou investigação epistemológica acerca da “construção do signo numérico” pela criança. O autor assumiu pressupostos da teoria piagetiana da cognição e procurou construir conhecimentos sobre o processo pelo qual as crianças se utilizam de seus conhecimentos pré-escolares da Aritmética para avançar no uso da simbolização escrita, no da atribuição de significados e na interpretação dos símbolos gráficos dos números. Afirma o autor que sua abordagem do signo numérico o remete à busca de semelhanças entre a iniciação Matemática na escola e a alfabetização na língua escrita. Moura se refere a signo numérico sem se ater ao conceito de signo, mas afirma ter detectado diferentes estratégias utilizadas pelas crianças na construção da relação significado/significante86 quando têm de comunicar sobre quantidades. Devemos frisar que o autor não cogitou outro conceito para número, que não seja ligado à quantidade ou medida. Sua investigação sobre o processo de construção da idéia de número e do signo numérico, conforme pressupostos construtivistas, revelou aspectos da prática do escrever para as crianças iniciantes na Aritmética a que queremos aludir. No conceito saussureano de signo87 lingüístico, que se dá a partir de dois entes psíquicos, o conceito e a imagem acústica, o primeiro refere-se à representação do objeto pelo pensamento, e o segundo diz da palavra que o representa. Em Moura, o signo numérico, a nosso ver, necessitaria ser explicitado segundo essa estrutura, como a união do conceito de número e a sua imagem acústica antes de vê-lo como a junção entre significante e significado, para que essas entidades viessem revestidas de mais “personalidade” quando fossem pronunciadas. Conforme nossa compreensão, a ênfase de Moura se dá no conceito e na simbolização escrita do número, ou seja, ele busca focar na criança a construção do significado do objeto “número” e a associação do 85 MOURA, M. O. A. "Construção do signo numérico em situação de ensino". São Paulo: USP, 1992. Tese de Doutorado. 86 MOURA, op. cit. p. III. 37 significado a um significante gráfico. Portanto, a prática do escrever atrai, renitentemente, o foco da investigação do autor. Moura promoveu episódios por meio de encenações de histórias infantis e jogos variados que suscitaram, nas crianças o senso da quantidade. Na completude dos episódios, orientou atividades que aguçou-lhes a prática notacional escrita. Levou os pré-escolares a exercitarem o uso da numeração egípcia, da numeração maia e da nossa numeração indo-arábica. Ficou evidente, em sua pesquisa, que as crianças, nas primeiras atividades aritméticas, não reúnem plenamente o total de unidades a ser expresso por um numeral; a contagem um a um é necessária para a coordenação da criança, e o modelo egípcio de numeração, por “imitar” a repetição das unidades, mostrou-se adequado para iniciar a criança na contagem por agrupamento. O valor da notação como “numeral” não se dá de imediato, mas o esforço coletivo surte efeito, e a associação quantidade/numeral se estabelece no grupo de crianças. E o que compreendemos, nesse momento da aprendizagem infantil, é o advento do signo numérico como signo lingüístico, segundo o conceito de Saussure. Quanto ao conceito de número, ou seja, aquele que é um dos componentes do signo numérico, há considerações específicas. O educador matemático N. J. Machado88 considera que mesmo antes do ingresso na escola a criança aprende o alfabeto e os números simultaneamente, num misto simbólico, sem a necessidade de distinguir diferenças, e as fronteiras entre Matemática e língua materna se estabelecem naturalmente. Os números, segundo esse autor, nascem associados a classificações e contagem; a idéia de ordem, que diz ser fundamental para a construção da noção de número, surge, segundo ele, em situações variadas, como na organização do alfabeto e das seriações numéricas da coordenação intelectual do indivíduo. 87 SAUSSURE, op, cit. p. 79. 88 MACHADO, N. J., op. cit. p. 97. 38 O grupo de crianças a que Moura89 se refere pertence à faixa etária entre cinco anos e meio e sete anos, e os resultados obtidos são coerentes com seu suporte teórico, a teoria piagetiana do desenvolvimento cognitivo . Nessa faixa etária, segundo Piaget (apud Araújo)90, a criança já está passando ao chamado estágio pré-operatório; já pode construir o chamado conhecimento lógico-matemático, necessário, diremos, para que se dê a associação significante/significado e a construção do signo. Construído o signo numérico, o número deixa de ser apenas uma entidade lingüística do conhecimento social, como aquele “quatro” que a criança aprende a responder como sua idade, e passa a ser a entidade “signo” que carrega o significado da quantidade ou da medida. Com a numeração maia, que usou a base vinte, escrevendo os números até dezenove por pontos e barras, e que, até quatro os grupos de pontos . . . . . . . . . . são as formas escrita dos numerais, diz Moura91 não há diferença notável quanto à recepção ou produção pelas crianças, com respeito à numeração egípcia de base dez. O uso do nosso modelo indo-arábico, apesar de não ser uma “imitação” da quantidade de unidades do objeto, exceto com relação à unidade, mostrou ser de maior fluência entre as crianças, fato que se explica por dois fatores, o conhecimento social da grafia dos numerais que a criança experiencia desde cedo, e por terem sido essas as últimas atividades orientadas com esse sistema, quando as crianças já haviam desenvolvido várias habilidades. Devemos ressaltar, porém, que o conhecimento social a que nos referimos liga-se apenas à vivência com a grafia dos caracteres matemático dos numerais. O conceito puro de número, segundo Piaget, e 89 MOURA, op. cit. pp. 26-111. 90 ARAÚJO, R. M. O. “O lógico-matemático e a expressão verbal em atividade do PROEPE”, in “Fazendo e aprendendo pesquisa qualitativa em educação”, Roberto Alves Monteiro (org.), Ed. UFJF, 1998, p. 217. 91 MOURA, OP. CIT. pp. 26-111 39 estudado por Moura92, é fruto do movimento geral da variação das quantidades, que é um conhecimento lógico-matemático, o que permite estabelecer a relação lógica entre a representação do signo numérico, a saber, a grafia do número, e o seu referente. Consideramos nessa explicitação a grafia, ou a escrita, e não a imagem acústica, dado que visamos à escrita, além de estarmos tratando, nesta seção, do significado da escrita da Matemática na alfabetização Matemática, que faz parte do letramento na Matemática, este que, como assumimos com Teberosky93, implica ler e escrever com compreensão, o que é a condição de vida experiente na cultura letrada. Examinando o quadro geral das atividades orientadas por Moura94, junto aos pré-escolares, que visam à relação quantidade/número/numeral, no âmbito da construção do signo numérico, constatamos que a prática do escrever, ou do reconhecer a escrita dos objetos aritméticos, é determinante na construção do signo numérico durante o processo de alfabetização Matemática. Na estrutura saussureana, há a noção de arbitrariedade do signo lingüístico95, quanto ao laço que une o significante ao significado. Do mesmo modo que o significante “mar” não é por nada ligado à idéia de mar, a sonoridade de “vinte” também por nada se liga às duas dezenas; “dezenove” não é um significante arbitrário, pois se liga ao número resultante de dez e nove. Olhando o signo escrito pelos caracteres do sistema de numeração, a arbitrariedade do “20” deixa de existir, pois o sistema diz que temos a escrita de duas dezenas e zero unidade. Os grafemas “0”, “2”, “3”, “4”, “5”, “6”, “7”, “8” e “9” não têm, aparentemente, nada que os ligue às idéias a que os associamos, ou seja, são significantes arbitrários, pois não há laços que os unam às suas idéias de número. Mas são apenas esses grafemas; acima de “9” os numerais são determinados pelo sistema posicional. Diremos que o sinal 92 Idem p. 27. 93 TEBEROSKI (1996), op. cit. pp. 7-34. 94 MOURA, op. cit. pp. 133-140. 40 “1” se assemelha à grafia do mesmo significante na numeração egípcia, que é mais antiga, e isso desfaz a arbitrariedade do laço que une “1” à unidade. O sistema posicional do nosso sistema indo-arábico oferece a vantagem de ter os numerais “10”, “11”, “12”, “359”, etc. como significantes não arbitrários, e, com isso, o usuário, mesmo recém alfabetizado, escreve o significante 3571 devidamente ligado ao seu significado, como efeito da efetiva construção do signo numérico. Mas ainda há lacunas importantes quanto ao conceito de número. Meneghetti96 encontra uma contradição nas concepções de número cardinal e número ordinal. Há, afirma ela, uma identificação dos dois conceitos na Matemática, mas são tratados distintamente no ensino elementar e no conhecimento erudito. A autora encontrou em suas referências, como em Piaget, que os dois conceitos são psicologicamente distintos, porém há matemáticos que os consideram idênticos. Meneghetti interrogou como essa contradição repercute no ensino. Será que, no ensino fundamental, ?º33 = , perguntou ela97. Atentando para a igualdade que escreve Meneghetti, recobramos o rigor que o sinal “=” suscita na Matemática. Os membros 3 e 3º ou são iguais, ou são diferentes, ou nem mesmo cabe uma dessas duas relações entre ambos. Se são iguais, então 3º pode ser substituído por 3, pois trata-se aquela igualdade da mesma verdade que 3 = 3; se são diferentes, então escrevemos a relação por º33 ≠ , mas, mesmo assim, além de 3º não poder ser substituído por 3, fica subtendido que esses números são entidades de mesma natureza. Compreendemos que o sinal “≠ ” é sempre empregado para designar a diferença entre duas entidades de mesma natureza, como entre números cardinais diferentes, entre pontos diferentes, entre conjuntos diferentes, etc. Vamos lembrar que a inscrição 3º é a abreviação da palavra “terceiro”, indicada como numeral ordinal. A inscrição ou caracter 3 não é 95 SAUSSURE, op. cit. pp. 81, 152. 96 MENEGHETTI (1999), op. cit. pp. 12-27. 97 MENEGHETTI, op. cit. p. 13. 41 uma abreviação da palavra “três”, dita numeral cardinal, mas é o caracter aritmético que indica esse numeral. Nesse sentido, a frase simbólica escrita por 3 = 3º não guarda nenhum significado. Mas, nos servindo da escrita, a mesma que permitiu Meneghetti grafar essa igualdade tomamo-la e adicionamos um mesmo número, o próprio 3, lado a lado: 3 + 3 = 3º + 3. Do lado esquerdo, obtemos 6 e do lado direito obtemos algo a ser reconhecido. E não podemos reconhecer terceiro mais três como seis. O conjunto dos números naturais, munido da operação adição, constitui um monóide, onde permite esse tratamento, ou seja, realizamos essa soma lado a lado da igualdade sem alterá-la. Mas, no que tentamos fazer, o grafema 3º não é operado como um número natural. Numa seqüência de termos escritos por 1n , 2n , 3n , . . . há um parco sentido na pronúncia oral “terceiro mais três igual a sexto”, se se considerar que “três” são o quarto, o quinto e o sexto termos. Porém, a grafia 3º + 3 = 6º não é usualmente utilizada. Segundo Meneghetti98, professores a quem ela entrevistou, ou de quem presenciou aulas, não dedicam ensinamentos específicos sobre a construção do conceito de número ou sobre a distinção entre números cardinais e números ordinais; usufruem do conhecimento erudito das crianças e consideram que são conceitos obtidos naturalmente, o que coaduna com as considerações que trouxemos de N. J. Machado recentemente. Constatou também que, nas propostas curriculares oficiais, as sugestões a respeito do conceito de número aparecem implicitamente entre os conteúdos do ensino fundamental e ausentes do ensino médio. Nas análises de livros didáticos que a autora realizou, constatou que a maioria deles, antes da apresentação do número, abordam implicitamente os conceitos de ordem e quantidade através de atividades de classificação e seriação. No entanto, o número aparece invariavelmente ligado à idéia de quantidade, portanto, conforme a visão aristotélica. Ainda nesses livros, afirma Meneghetti, o número ordinal aparece em tópicos distintos daqueles que tratam, de modo limitado, o conceito cardinal de número. Isso, 98 Ibidem, p. 23. 42 segundo ela, discrepa da orientação de educadores matemáticos, como a do holandês Freudenthal, para quem a abordagem do número apenas como cardinal é didaticamente inadequada e matematicamente insuficiente. A transcendência do estado cardinal do número, como podemos inferir, se dá na construção do signo numérico, que consiste em obter, além do seu conceito puro, um significante lingüístico, o que fazemos com o auxílio da escrita. Foi necessário ao homem, segundo Moura99, um objeto concreto para corresponder a outro objeto concreto. Pedras, dedos da mão e marcas na madeira, nos dizeres de Moura, foram numerais que passaram do físico para o cérebro do homem, diremos para o simbolismo, que aprendeu o “escrever”. Escreveu quantidade concreta com quantidade concreta, com pedras ou com os tracinhos dos numerais egípcios, que evoluíram para os sinais modernos do nosso sistema, que desenhamos no espaço plano. Essa artimanha do escrever do homem, segundo Ifrah (apud Moura)100, não proporciona somente um sistema de comparação entre agrupamentos; permite englobar vários números sem, no entanto, ter que nomear ou relacioná-los às quantidades implicadas. 3.2 No discurso pedagógico Para o educador matemático R. C. Lins101, que estuda a construção de significados em Matemática segundo os "Campos Semânticos", o aspecto central de toda a aprendizagem, ou de toda a cognição humana, é a produção de significados. E, convenhamos, esta atividade102 se dá num processo de 99 MOURA, op. cit. p. 35. 100 Idem. Essa artimanha do homem, do “escrever”, dita por Ifrah, alinha-se com as consideraçõe dos filósofos Heidegger, sobre a linguagem, e Cassirer, sobre o ser simbólico, que abordamos nesse trabalho. 101 LINS (1999), op. cit. pp. 75-94. 102 Para Lins (op. cit. p. 89), significado, segundo nossa interpretação, é aquilo que diz do significante, ou o que o significante é, sem que esse seja o essencial do significante, mas o que o significante é para o sujeito dentro de um campo de significação, ou dentro de um “campo semântico”. Diz que 43 significação, o que Ricoeur103 entende como a síntese de duas funções, que a nomeia como a identificação e a predicação, cuja combinação é o que se chama discurso, este que, pela distinção saussureana104 entre langue, social, e parole, individual, é um evento105 de linguagem. Conforme Husserl106, a significação se dá na compreensão da expressão, quando temos a consciência atual do seu sentido. Para Ducrot & Todorov, a significação se dá no nascimento do signo, como a relação existente entre significante e significado; o segundo é ausente do primeiro, mas inexistente sem o seu par. E, voltando a Ricoeur107, diz ele que não é o evento transitório que nos interessa, mas a sua significação duradoura, que se dá na combinação do nome e do verbo, ou seja, na identificação e na predicação. Segundo esse autor108, tal combinação é uma abstração a partir da frase como evento concreto. Porém, diz ainda que, enquanto evento, o discurso esvanece-se109; devemos fixá-lo. Aí a escrita encontra seu papel. Para empregar essa noção de discurso à Matemática e às questões didáticas, vamos analisar o pensamento de outro educador matemático, N. J. Machado, para quem, enquanto concebida como uma linguagem formal, a Matemática não comporta a oralidade, “caracterizando-se como um sistema simbólico exclusivamente escrito”. Segundo esse educador, o exame de sua afirmação necessita que seja considerado que as linguagens formais se delinearam da pressuposição de imperfeições das linguagens naturais. A partir dessas hipóteses, diz N. J. Machado que filósofos como Leibniz, Descartes, para a criança, 2 + 3 = 5 porque é isso que acontece com os dedos da mão, enquanto, para o matemático, isso é verdade porque é demonstrável pelos axiomas de Peano. Alinha-se com o que diz Ricoeur (1987, op. cit. p. 24) para quem significar é o que o falante intenta dizer e o que a frase denota. Para Wittgenstein (apud Hintikka & Hintikka, 1994, p. 112), o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem. 103 RICOEUR, op. cit. p. 23. 104 Ibidem, p. 20. 105 Ibidem, p. 24. Um evento de linguagem, para Ricoeur, é alguém falando. 106 Husserl, Edmund. Investigaçiones logicas 1. Madrid: Aliznza Editorial, 1982, p. 352. 107 Idem. 108 Ibidem, p. 23. 44 Condillac e outros desejaram uma língua adequada para o exercício da razão; uma linguagem dos “cálculos”, cuja gramática teria características plenamente lógicas, com expressões precisas. Por essa linguagem seriam resolvidas questões inapropriadas ou confusas à língua natural. Tais linguagens formais, apesar de precisas, revelaram ser, afirma N. J. Machado110, distantes da experiência e de uso restrito a operações sintáticas sobre seus próprios símbolos. As linguagens naturais, segundo o autor, vieram se firmando; seus supostos defeitos já são reconhecidos como características que terminam por dar uma rica variedade de expressões, que ampliam os recursos da atividade lingüística. Wittgenstein, filósofo analítico do século XX, defendendo a inefabilidade da semântica, com sua visão da linguagem como meio universal111, contrapõe, em certos momentos, a língua, abstraída das suas funções semânticas, às línguas formais, e revela uma concepção puramente formal da lógica. No Tractatus, obra da sua filosofia inicial, como cita N. J. Machado112, Wittgenstein dispensa o uso de linguagens formais e utiliza apenas a linguagem natural para formular suas questões lógico-filosóficas, quando considera a linguagem como “instrumento para pensar o mundo”. É um testemunho que ameniza a forte idéia da linguagem formal na Matemática e que reflete contra a escrita como sua única forma de realização da linguagem na Matemática. Expondo sobre a Origem da Geometria, segundo considerações fenomenológicas, em obra de Edmund Husserl, Bicudo113, afirma que pela escrita a estrutura dos objetos ideais114, como os objetos da Geometria e dos demais setores da Matemática, torna-se sedimentada. Esses termos apenas 109 Ibidem, pp. 38, 39. 110 N. J. MACHADO, op. cit. p. 105. 111 HINTIKKA & HINTIKKA, op. cit, p. 31. 112 N. J. MACHADO, op. cit. p. 106. 113 BICDO, sobre a “Origem da geometria”, in Sociedade de estudos e pesquisa qualitativos, caderno 1 1990, pp. 49-72. 114 Sobre objetos ideais, a autora não se refere à idealidade platônica, imaginária, mas à idealidade 45 nomeiam certos benefícios trazidos por meio da escrita. Ao ser expresso em sinais escritos, há uma transformação do modo original de ser da estrutura- significado. Esses sinais, segundo a autora115, são passíveis de ser experienciados sensível e diretamente em sua corporeidade física, podendo, assim, despertar sensível e passivamente os significados para o leitor, como os sons vocálicos despertam. Afirma, também, a educadora, mencionando Husserl e alinhada com Ricoeur, que por meio dos sinais escritos, o leitor, mediante um trabalho de interpretação, pode reativar a auto-evidência dessas estruturas-significado, mantendo sua capacidade mental ativa. Compreendemos esse entendimento de Bicudo como que conferindo ao texto escrito o caráter de condição para a permanência histórico-cultural dos objetos e do conhecimento matemático. No texto O registro por caracteres gráficos, diz Garnica116, é um elemento recente na história da humanidade, não podendo responder por todo o processo comunicativo. Ainda, segundo ele, a nossa experiência plena é intransferível, mas aí há a atividade da linguagem, que rompe essa incomunicabilidade e algo da experiência de cada um é comunicado ao outro. Paul Ricoeur (apud Garnica)117 precisa que “A experiência experienciada, como vivida, permanece privada, mas o seu sentido, a sua significação, torna-se público”. Podemos dizer, então, que a escrita veio ampliar os modos de realização da linguagem; entre outras funções, veio como meio de tornar pública a experiência individual. A Matemática, comunicada pelos textos de Matemática que temos disponíveis, representa o que a escrita ali realizada pode proporcionar à comunicação da experiência Matemática vivenciada até então. Davis & Hersh118 argumentam que a criação e o uso da Matemática existiram ao longo de toda a civilização, porém os mais antigos tabletes matemáticos entendida na fenomenologia husserliana, que se dá historicamente, na intersubjetividade. 115 BICUDO, op. cit. p. 60. 116 GARNICA (2001), op. cit. p. 51 117 GARNICA (1999), op. cit. p. 118. 46 conhecidos datam de 2400 da era antiga, o que combina com a própria história da escrita. Como se vê, a escrita nem sempre existiu. Hoje, ela nos presenteia com uma facilidade por tornar disponíveis os textos escritos existentes, e uma dificuldade para o educando, na disciplina Matemática, para compreender as experiências ali comunicadas. A linguagem ali realizada pela escrita é, nos dizeres de Garnica119, uma cápsula que protege a Matemática pensada como prática científica na privacidade dos grupos restritos de seus mentores, em formas específicas e “cifradas”. O texto didático procura desvanecer essa linguagem “cifrada” e se põe procurando socializar a experiência científica que já foi privada aos seus criadores. O chamado discurso pedagógico que, segundo Hariki, como já citamos, é por onde professores e alunos se comunicam, se dá, segundo Garnica120, nas inúmeras e divergentes situações de ensino e aprendizage