R A FA E L SC H U N K F R E I A G O S T IN H O D E J E S U S E A S T R A D IÇ Õ E S D A I M A G IN Á R IA C O L O N IA L B R A S IL E IR A S É C U L O S X V I – X V II “P IA M E N T E S E P O D E IN F E R IR Q U E F R E I A G O S T IN H O D E JE S U S N A G L Ó R IA E S T A R Á A C O M P A N H A N D O A Q U E L E S S A N T O S C U JA S IM A G E N S E X P Ô S N A T E R R A À P Ú B L IC A V E N E R A Ç Ã O .. .” D ie tá ri o d o M os te ir o d e S ã o B en to d o R io d e Ja n ei ro ,1 77 3. FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL BRASILEIRA SÉCULOS XVI - XVII UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – CAMPUS SÃO PAULO “Júlio de Mesquita Filho” INSTITUTO DE ARTES Programa de Pós-Graduação em Artes Mestrado FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL BRASILEIRA – SÉCULOS XVI – XVII Rafael Schunk SÃO PAULO 2012   UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – CAMPUS SÃO PAULO “Júlio de Mesquita Filho” INSTITUTO DE ARTES Programa de Pós-Graduação em Artes Mestrado FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL BRASILEIRA – SÉCULOS XVI – XVII RAFAEL SCHUNK Dissertação submetida à UNESP como requisito parcial exigido pelo programa de Pós-Graduação em Artes, área de concentração em Artes Visuais, linha de pesquisa Abordagens teóricas, históricas e culturais da arte, sob orientação do Prof. Dr. Percival Tirapeli, para a obtenção do título de Mestre em Artes. SÃO PAULO 2012   Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP (Fabiana Colares CRB 8/7779)     S393f Schunk, Rafael, 1979- Frei Agostinho de Jesus e as tradições da imaginária colonial brasileira: séculos XVI-XVII / Rafael Schunk. - São Paulo, 2012. 395 f. ; il. + anexos Orientador: Prof. Dr. Percival Tirapeli Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes, 2012. 1. Arte – Brasil - História. 2. Arte barroca – Brasil. 3. Barroco - Arte. 4. Escultura. I. Frei Agostinho de Jesus. II. Tirapeli, Percival. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título                         CDD – 709.81    SCHUNK, R. Frei Agostinho de Jesus e as Tradições da Imaginária Colonial Brasileira – séculos XVI – XVII. Dissertação (Mestrado). Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2012. Área de conhecimento da titulação do Mestrado, conforme tabela CAPES 8.03.00.00-6 ARTES 8.03.01.00-2 FUNDAMENTOS E CRÍTICA DAS ARTES 8.03.01.02-9 HISTÓRIA DA ARTE   Nome: SCHUNK, Rafael Título: Frei Agostinho de Jesus e as Tradições da Imaginária Colonial Brasileira – séculos XVI – XVII Dissertação submetida à UNESP como requisito parcial exigido pelo programa de Pós-Graduação em Artes, área de concentração em Artes Visuais, linha de pesquisa Abordagens teóricas, históricas e culturais da arte, sob orientação do Prof. Dr. Percival Tirapeli, para a obtenção do título de Mestre em Artes. Aprovado em:____________________ BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Percival Tirapeli Instituição: Universidade Estadual Paulista – Instituto de Artes / São Paulo-SP Julgamento:_____________________ Assinatura:______________________ Prof. Dr. Alcindo Moreira Filho Instituição: Universidade Estadual Paulista – Instituto de Artes / São Paulo-SP Julgamento:_____________________ Assinatura:______________________ Prof. Dra. Elaine da Graça de Paula Caramella Instituição: Universidade Estadual Paulista – Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo / Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação de Bauru-SP Julgamento:_____________________ Assinatura:______________________   FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL BRASILEIRA – SÉCULOS XVI – XVII   DEDICATÓRIA A minha avó Helena Bakk Pereira e aos meus pais Oswaldo e Maria Aparecida Schunk com respeito, carinho e gratidão.   AGRADECIMENTOS Ao meu estimado orientador, o Prof. Dr. Percival Tirapeli e sua esposa Laura Carneiro Pereira Tirapeli, pela incansável dedicação ao resgate do barroco paulista, exemplo e motivação para o desenvolvimento da pesquisa. Agradeço a oportunidade ímpar de estudo, em ter acreditado no projeto, pelos conhecimentos transmitidos nas viagens de pesquisas, livros e montagens de exposições. Reitero minha profunda admiração e respeito pelo mestre, profissional, amigo, ser humano, artista e grande pesquisador da arte brasileira. Estado da Bahia: Salvador – BA Capela de Nossa Senhora do Montesserrate – Salvador – BA A prestimosa atenção de Fabio Souza Mendonça (caseiro da capela). IPHAN – BAHIA À Bruno César Sampaio Tavares (Coordenador Técnico IPHAN, Salvador – BA). Aos funcionários da Casa dos Sete Candeeiros, Pelourinho, Salvador – BA. Mosteiro de São Bento de Salvador Abade Dom Emanuel Ao Dom Ivan da Silva Andrade (Diretor do museu). Ao Dom Rafael Soares de Freitas (Diretor da biblioteca). Lucyana da Silva Nascimento (Bibliotecária). Anderson Magno de Matos (Auxiliar de Biblioteca). Diego Alves Santos (Aprendiz). Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Ao Ilustríssimo Diretor do MASS – UFBA Sr. Francisco de Assis Portugal Guimarães. A prestimosa atenção de Mirna Conceição Brito Dantas (coordenadora do setor de documentação e pesquisa). Paróquia Nossa Senhora da Luz de Pituba – Salvador – BA   Santo Amaro da Purificação – BA A Paróquia Nossa Senhora do Rosário de Santo Amaro da Purificação – BA A prestimosa atenção e acolhimento de Padre Rogério Marcos da Silva. Agradecimentos especiais pela acolhida e confiança dos paroquianos Geraldo Alves e Edira Maria Lima. Estado do Rio de Janeiro: Angra dos Reis – RJ Convento de São Bernardino de Sena e Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis – RJ À confiança de Alonso de Oliveira e Alex Sandro de Lima Wandroski (Divisão de Patrimônio Histórico, Prefeitura Municipal de Angra dos Reis). Cabo Frio – RJ Museu de Arte Religiosa e Tradicional de Cabo Frio – RJ (Convento de Nossa Senhora dos Anjos) À Ilustríssima diretora Dolores Brandão Tavares. Agradecimentos especiais à Sonia Maria Gaudereto Duarte (bibliotecária), João Rabelo e Castro (administrador), Tatiana Batista Bion Dias de Figueiredo (assistente técnica) e Aline Costa Simões Cadaxo (museóloga). Duque de Caxias – RJ Fazenda São Bento de Iguaçu, Igreja de Nossa Senhora do Rosário – Duque de Caxias – RJ À acolhida de Ângelo Marcio da Silva, Tânia Amaro (Secretaria da Cultura de Duque de Caxias) e Edna Maria Bernardo (Casa São Francisco de Assis). Niterói – RJ Igreja de São Lourenço dos Índios – Niterói – RJ Ao acolhimento de José Pereira Ferreira e Ângela Pacheco Ferreira (ministros da igreja).   Paraty – RJ Museu de Arte Sacra de Paraty (IPHAN) – Igreja de Santa Rita – Paraty – RJ Ao Ilustríssimo diretor Júlio Cezar Neto Dantas. Rio de Janeiro – RJ Igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso – Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro – RJ Mosteiro de São Bento da Cidade do Rio de Janeiro – RJ À acolhida de Dom Mauro Fragoso (O.S.B.). Estado de São Paulo: Barueri – SP Aldeia Jesuítica de Barueri À amiga Sônia Maria Teixeira – Secretaria da Cultura. Carapicuíba – SP Aldeia Jesuítica de Carapicuíba À artista plástica e amiga Alaíde di Pietro – Secretaria da Cultura. Guararema – SP A Paróquia de Nossa Senhora da Escada e São Benedito – Matriz de Guararema. Itanhaém – SP Museu do Convento Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém (Instituto Servas de Jesus Sacerdote). Paróquia da Igreja Matriz de Santana, Itanhaém – SP Jundiaí – SP Cúria Diocesana de Jundiaí – SP À confiança do padre Venilton Calheiros.   Mogi das Cruzes – SP Museu das Igrejas do Carmo (MIC) Mogi das Cruzes – SP Ao restaurador Marcos Antonio Siqueira Marques. À amiga Danielle Manoel dos Santos Pereira. Peruíbe – SP Secretaria da Cultura e Administração das Ruínas do Abarebebê, Peruíbe – SP Pindamonhangaba – SP Aos amigos e colecionadores Jorge e Selma Willmam Mendes pelos anos de estrada no Vale do Paraíba e transmissão de ricas vivências sobre a arte sacra paulista. Santana de Parnaíba – SP A amiga artista plástica Eloísa Aparecida Alves do Espírito Santo Consoni. A amiga pesquisadora Izes Bastianon Chaves de Oliveira. A amiga artista plástica Ediméia. Ao amigo pesquisador Emanuel França Barbosa. Aos amigos artistas plásticos Ilo e Luciana Dias de Souza. Ao amigo antiquário George de Araújo Sampaio. Ao amigo escultor Murilo Sá Toledo. CEMIC – Centro de Memória e Integração Cultural – Santana de Parnaíba – SP À amiga e historiadora Agacir Eleutério. Igreja Matriz de Santana – Santana de Parnaíba – SP Ao padre Átila e paroquianos. Santos – SP Diocese de Santos – SP   Ao Pe. José Myalil Paul (Pároco da Catedral e do Santuário de Nossa Senhora do Monte Serrat). Museu de Arte Sacra de Santos – SP A Ilustríssima diretora Marcela Rezek. São Paulo – SP Aos professores Drs. do IA-UNESP. Ao Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento, IA-UNESP. A Prof.ª Dr.ª Lalada Dalglish, IA-UNESP. Ao grande amigo, incentivador e colaborador fundamental, o economista e artista plástico Joaquim Pereira Antunes Filho. A grande amiga Joceli Domingas de Oliveira pela fundamental companhia nas viagens, incentivo e motivação no decorrer das pesquisas. Ao amigo e pesquisador de arte sacra paulista Ailton Santana de Alcântara. Aos amigos colecionadores George Homenco Filho e Ignês Homenco. À colecionadora Izabel Sobral. Ao engenheiro e colecionador Ladi Biezus. Aos amigos colecionadores Cristiane e Ary Casagrande Filho. Ao amigo e colecionador Edgar Clat Gaspar. Ao restaurador Júlio Eduardo Corrêa Dias de Moraes. Ao colecionador Orandi Momesso. Arquivo Público do Estado de São Paulo – SP Aos funcionários do setor iconográfico e documentação. Igreja de São Francisco de Assis e Ordem 3ª da Penitência – São Paulo – SP Ao Frei Roger Brunorio. IPHAN – São Paulo – SP À Tatiana Lopes Salciotto – bibliotecária. À Anita Hirschbruch – fotógrafa.   Mosteiro de São Bento da Cidade de São Paulo – SP À Dom Carlos Eduardo Uchoa Fagundes (O.S.B.). Ao apoio e carisma do Irmão João Batista (O.S.B.). Museu de Arte Sacra de São Paulo – SP A ilustríssima diretora Mari Marino. Ao apoio de Padre José Arnaldo Juliano dos Santos. À coordenadora do corpo técnico Denyse Emerich. À museóloga Rose Santos. Paróquia e Capela de São Miguel Arcanjo – São Miguel Paulista – São Paulo – SP Ao Padre Geraldo Antonio Rodrigues (Presidente da Associação Cultural Beato José de Anchieta). São Roque – SP Sítio e Capela de Santo Antonio – IPHAN – SP À acolhida dos monitores e caseiros. Sorocaba – SP Biblioteca Municipal de Sorocaba Ao historiador José Rubens Incao. Museu Arquidiocesano de Arte Sacra Comendador Luiz Almeida Marins (MADAS-LAM) – Sorocaba – SP À Pedro Benedito Paiva Junior, Rafael José Barbi e Bruna de Oliveira Garcia.   O Brasil, como as demais nações do mundo, têm também seu berço próprio, que o fez uma grande nação, reconhecida no mundo como um gigante pelas suas dimensões e pela peculiaridade de seu povo de trato ameno, construtivo e improvisador no seu humor e na habilidade com que sabe suportar e contornar os azares da vida. Eduardo Etzel   RESUMO Na história da colonização brasileira, a produção de imagens sagradas representou um importante papel didático no processo de ensino e conversão religiosa do território conquistado, sobretudo incentivado nas oficinas conventuais jesuíticas, beneditinas, franciscanas e carmelitas. No planalto de Piratininga, as pioneiras relações sociais estabelecidas por meio de laços matrimoniais entre tupis e portugueses foram de encontro à secular sociedade paraguaia formada por espanhóis e guaranis, gerando uma mescla de culturas que resultaram na idéia de sertão: local onde a miscigenação e liberdade fugiram de tratados ibéricos e controles metropolitanos. Pelos velhos caminhos indígenas Peabirus, os bandeirantes paulistas avançaram no interior do continente em busca de riquezas, levando consigo suas experiências e retornando com a prata de Potosí e mão de obra missioneira. No meio deste caminho estava Santana de Parnaíba e a arte do primeiro grande artista brasileiro: Frei Agostinho de Jesus. Residindo no Mosteiro dos Beneditinos desta localidade a partir de 1643 transforma o panorama cultural do Brasil, um significativo momento das artes plásticas nacionais. Em Parnaíba, o mestre encontrou uma sociedade original, miscigenada, criando obras-primas, testemunhos da arte sacra paulista, berço da identidade nacional. A série de imagens em terracota desenvolvidas nesta região integra umas das primeiras tradições brasileiras de escultura religiosa somando contribuições de artistas como Frei Agostinho da Piedade, Mestre de Angra dos Reis e entalhadores missioneiros. A partir desse evento forma-se um conjunto de santeiros que seguirão estéticas eruditas e populares formando a Escola Cultural do Vale do Rio Tietê e Paraíba do Sul. Toda essa agitação social irá acompanhar os pioneiros no processo de expansão do país rumo a Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. O retorno desse fluxo humano à Parnaíba produz uma relíquia: a Capela de Nossa Senhora da Conceição do Voturuna, primeiro altar nacional e que reuniu referências platerescas, maneiristas, beneditinas e ornamentos tropicais. Por meio da síntese de influências americanas, européias e orientais nasce à cultura brasileira. Palavras-chave: Frei Agostinho de Jesus; Berço da arte brasileira; barroco; escultura.   ABSTRACT The production of sacred images played important role for the teaching process and religious conversion for the history of the Brazilian colonization. Jesuits, Benedictines, Franciscans and Carmelites, had encouraged the production of sacred images in their handcrafts spaces. At the Piratininga plateau, the first social relationships have been born through marriages between Tupis and Portugueses. The opposite of the secular Paraguayan society, made up of Spanish and Guaranis. These relationships, turned into a mix of cultures resulting in an idea of backwoods: miscegenation and freedom, ran away from Iberic control. The pioneers from São Paulo “paulistas” used the old indigenas ways, looking for wealth. They returned to the silver of Potosi, bringing their experience and missionary labor. Through the middle of the way, in Santana de Parnaíba, was Frar Agostinho de Jesus, the first, and most important Brazilian artist. From 1643, Frar Agostinho living with the Benedictines transformed the culture of Brazil, into a significant moment of national art. In Parnaíba, the master found an original and mixed society, creating masterpieces, standarts of sacred art in São Paulo, birth of national identity. The series of images in terracotta developed in this region includes one of the first Brazilian traditions of religious sculpture by adding contributions from artists such as Frar Agostinho da Piedade, Master of Angra dos Reis and carvers missionaries. This event result in the foundation of the important “The School Culture of the Tietê and Paraíba do Sul River Valley”. All this unrest will follow the pioneers in the expansion of the country towards Minas Gerais, Mato Grosso and Goiás. The return on this human flow to Parnaíba produces a relic: the Chapel of Our Lady Immaculate Concepcion of the Voturuna, the first altar that brought together “platerescas” and benedictines national references. Through the synthesis of American, European and Oriental influences born the Brazilian culture. Key-words: Frar Agostinho de Jesus; Birth of Brazilian Art; Barocco; Sculpture.   SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................18 CAPÍTULO I O ESTILO BARROCO CONSTRUINDO O PRIMEIRO PERÍODO DA ARTE COLONIAL BRASILEIRA (1560 – 1661)..............................................39 1.1 A Herança Barroca.................................................................................39 1.2 As Primeiras Manifestações de Arte Luso-brasileiras: ..........................45 1.3 Mestre de Angra dos Reis – Um Artista Revelado: Imagens e Relicários no Litoral Norte do Rio de Janeiro ao Sul de São Paulo e Planalto.............58 1.3.1 Arte Sacra, Conversão e Síntese.............................................58 1.3.2 Imagens e Relicários na Bahia de Todos os Santos: A Carreira das Índias, Frei Agostinho da Piedade e o Intercâmbio entre Oriente e Ocidente.........................................................................................69 1.3.3 Mestre de Angra dos Reis e a Imaginária Conventual no Sudeste Brasileiro...........................................................................134 1.4 Contexto Histórico de Santana de Parnaíba: Gênese da Cultura Bandeirista.................................................................................................180 1.5 Frei Agostinho de Jesus.......................................................................197 1.6 As Fazendas e Mosteiros Beneditinos Paulistas.................................234 1.7 No Convento Desaparecido, uma Memória Esquecida: a Fundação do Mosteiro dos Beneditinos de Santana de Parnaíba...................................262 CAPÍTULO II A ESCULTURA SACRA NO BRASIL E SEUS DESDOBRAMENTOS..........................................................................................305 2.1 O Berço Cultural do Brasil....................................................................305 2.2 A Escola Cultural do Vale do Rio Tietê................................................320 2.3 A Escola Cultural do Vale do Rio Paraíba do Sul................................341 CAPÍTULO III A IMAGINÁRIA PAULISTA – ORIGENS, ENCONTROS E DESTINOS DA ARTE BARROCA......................................................................349 3.1 Dois Vales Culturais no Planalto Paulista: Reflexões sobre a imaginária erudita e popular........................................................................................349 3.2 Análise formal da imagem de São Pedro Arrependido – Frei Agostinho da Piedade.................................................................................................358 3.3 Análise formal da imagem de São Francisco Recebendo as Chagas do Cristo Seráfico – Mestre de Angra dos Reis..............................................361 3.4 Análise formal de seis imagens de Frei Agostinho de Jesus...............363 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................369 BIBLIOGRAFIA....................................................................................................375 ANEXOS...............................................................................................................388   18 INTRODUÇÃO Acompanhando os caminhos trilhados por missionários, exploradores e viajantes que dilataram a fé cristã pelo mundo quinhentista, as imagens religiosas compõem um extenso legado na história cultural do Brasil. Ao lado dos testemunhos arqueológicos de nossos antepassados indígenas, a produção sacra constitui outro grande berço da arte brasileira, nascida do encontro de civilizações, revelando os rumos percorridos pela sociedade na edificação do caráter singular da pátria, síntese de uma aventura continental marcada pela miscigenação e sincretismo. O litoral brasileiro durante as três primeiras décadas que sucedem à posse do território, dividido pela linha imaginária do Tratado de Tordesilhas (1494) e reclamado à coroa portuguesa, tornou-se um entreposto comercial destinado à extração, estocagem e remessa de produtos tropicais para os mercados consumidores europeus. A divisão das terras em 1534 pelo regime das capitanias hereditárias irá sucumbir em poucos anos pelo descaso de seus donatários, imensidão dos latifúndios e ferocidade de invasores. Das doze feitorias iniciais, apenas Pernambuco e São Vicente progrediram. Em 1549 o modelo será substituído pela centralização administrativa do governo geral de Tomé de Sousa instituindo a primeira capital do país em Salvador. As mais antigas manifestações artísticas do Brasil Colônia ligam-se diretamente a este momento histórico, derivadas do progresso material alcançado sob amparo da metrópole e igreja em complemento à fixação e defesa do continente americano. A estatuária religiosa tornou-se um dos principais testemunhos remanescentes deste processo civilizatório. Influenciadas pelas ordens monásticas da Península Ibérica, aportaram nas colônias como instrumentos de evangelização. Os conhecimentos da escultura românica, somadas as tradições do final da Idade Média, renascença e maneirismo construíram o código visual dos reinos católicos luso-espanhóis e, por conseguinte, embrenharam-se na imaginária sacra dos territórios conquistados de além-mar. Tecnicamente, a ocupação do espaço americano foi tratada como um processo relativamente simples para o europeu no alvorecer da Idade Moderna, acostumado desde a antiguidade erguer fortalezas, cidades ou impérios. Porém,   19 no que tange a religiosidade, o desafio tornou-se uma complexa tarefa de equalizar um território com culturas e símbolos pré-existentes, inserindo-os em uma perspectiva cristã para o futuro, criando mecanismos de assimilação- transição dos significados da religião aos nativos, ofertas de religiosos para assistências e serviços nos vastos territórios conquistados, além de salvaguardar as almas de uma população emigrada da metrópole. Elemento estratégico para a disseminação dos conceitos cristãos foi o translado de relíquias sagradas, relicários e imagens sacras complementando a visualidade do ritual em colônias fundadas nas Américas, África ou Ásia, comunidades ansiosas por símbolos e mártires a consagrar seus territórios. A idealização dos primeiros retábulos e imagens foram coordenadas pelas ações de missionários e aprendizes nas oficinas conventuais, compondo cenários de austeridade e despojamento, incentivando a meditação, piedade, conforto espiritual e comunhão coletiva dos fiéis. Esta produção monástica estendeu-se do litoral ao interior brasileiro, sendo difundida principalmente nos Estados da Paraíba, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo durante os séculos XVI e XVII; padrões que ficaram conhecidos como maneiristas, ou seja, adequações de tratados artísticos à maneira dos renascentistas ou conforme a criatividade de cada autor. Muito além de convenções estabelecidas e em consonância com o pensamento do arquiteto e pintor italiano Giorgio Vasari (1511-1574), o maneirismo tornou-se sinônimo de graça e elegância; movimento que rompeu com a linearidade do passado clássico e valorizou o estilo pessoal dos artistas, encontro de diferentes tradições posteriormente incorporadas as correntes estéticas do movimento barroco. Estas manifestações no Brasil caracterizaram-se por elementos de cunho híbrido e abrangiam desde influências provenientes da cultura mouro-judaica vivenciadas em séculos de ocupação na Península Ibérica enraizadas no universo artístico do colonizador português, passando pelo convívio de europeus com técnicas ameríndias, experiências no exotismo da terra, e associando-se as formas asiáticas provindas da arte sacra desenvolvida no Extremo Oriente. Numerosas ermidas foram construídas utilizando recursos provenientes de associações leigas, ordens terceiras e irmandades. Os diversos ciclos econômicos de nossa história possibilitaram adaptações de materiais, técnicas e dimensões,   20 transpondo os santos dos altares para as residências, integrando o cotidiano da sociedade. Mediante a crescente demanda de encomendas eclesiásticas e particulares, as esculturas passaram a ser produzidas concomitantemente em ateliês laicos. O estilo barroco tornou-se elemento fundamental da Contra-reforma Católica diante dos desafios surgidos a partir dos avanços protestantes e mudanças sociais no decorrer do século XVI na Europa, integrando ações a serviço das monarquias absolutistas e suas respectivas colônias nas Américas, África e Extremo Oriente. O transplante da cultura barroca no Brasil irá influenciar os primeiros núcleos coloniais ao longo da costa atlântica e será fundamental nas origens da vida urbana, dos traçados arquitetônicos, arte sacra, vida política e privada, comportamentos, cortejos e religiosidade. Este trabalho se baseia em uma extensa pesquisa de campo por instituições públicas, coleções particulares, bibliotecas, livros de tombo, museus, fundações e igrejas, a partir da Bahia de Todos os Santos e no eixo Rio de Janeiro – São Paulo. Foram medidas e fotografadas imagens. No Nordeste coletamos informações históricas e material iconográfico em Salvador, Santo Amaro da Purificação, Cachoeira, Maragogipe e Ilhéus. Na região Sudeste nos deslocamos para São Sebastião, Santos, São Vicente, Itanhaém, Peruíbe, Guararema, Mogi das Cruzes, São Miguel Paulista, São Paulo, Santana de Parnaíba, São Roque, Jundiaí, Sorocaba, Itu, Carapicuíba, Barueri e cidades do Vale do Paraíba. No Rio de Janeiro concentramos os levantamentos da imaginária na capital, Duque de Caxias, Niterói, Cabo Frio, Angra dos Reis e Parati, antigos centros de veneração religiosa no país nascente. Sob esta perspectiva foi fundamental observar os desdobramentos políticos e econômicos da então Capitania de São Vicente nos séculos XVI-XVII um dos primeiros espaços de ocupação colonial no território americano, processo social subsidiado pelas entradas e bandeiras, conquista territorial e expansão da fé católica. As pesquisas que resultaram nesta dissertação foram iniciadas no final dos anos 90 por meio de contatos a exposições, livros e acervos envoltos na temática barroca. Heranças que apontam o Estado de São Paulo como um dos locais precursores da cultura nacional, pela antiguidade e originalidade de suas obras   21 sacras remanescentes. Viajando e garimpando por antiquários, sítios e feiras nas cidades do interior paulista, reuni testemunhos de nossa produção religiosa, compondo uma coleção de arte colonial que se tornou fonte de referência e conhecimento. Os estudos na faculdade de arquitetura e urbanismo da Uni-FMU em São Paulo ampliaram os horizontes por meio das orientações acadêmicas, despertando o interesse pela riqueza da casa bandeirista e suas tradições. Esta singular produção estética envolveu técnicas construtivas, usos, costumes, instrumentos e religiosidade, imbuídos por uma atmosfera despojada, contemplativa e penitente de uma original civilização, dividida entre a aventura e devoção. No caminhar das investigações centradas no estudo da arte sacra paulista, a partir de 2009 participei dos cursos de extensão universitária da UNESP, Barroco Memória Viva, liderados pelo Prof. Dr. Percival Tirapeli, nos quais versavam conhecimentos multidisciplinares entorno da produção colonial de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Neste percurso atestamos à necessidade de investigações voltadas ao resgate das origens históricas e culturais do país, fatos contemplados posteriormente na escolha do tema e recorte da dissertação. O desenvolvimento da pesquisa seguiu uma metodologia sistemática exigindo um processo racional de organização. A investigação seguiu um caráter empírico analítico: reunião de material quantitativo, estatístico e documental, estabelecendo reflexão dialética do sujeito humano e o objeto de estudo: procedimentos que resultaram na interpretação dos dados históricos e sociais coletados, estabelecendo comparações, fenômenos e variáveis; integrando racionalismo e empirismo. Acerca destas observações, vamos contemplar uma análise auxiliada pela teoria da psicologia Gestalt, termo que significa investigar a percepção visual da forma e estrutura. De acordo com esta corrente de pensamento, a arte se funda no princípio da pregnância da forma, lei básica que consiste analisar fatores como equilíbrio, clareza, simplicidade e harmonia visual das obras, elementos imprescindíveis para a compreensão humana. Segundo este critério, quanto melhor for à organização visual em relação à compreensão e rapidez da leitura dos objetos, maior será o grau de pregnância e conjunto. O estudo simbólico das imagens complementa descrições técnicas, históricas, iconográficas e culturais,   22 auxiliando na interpretação estética. Neste contexto, a soma das partes individuais proporciona um sentido de unidade ao observador. Por meio deste raciocínio iremos descrever as imagens dos séculos XVI e XVII destacando aspectos biográficos, técnicos, perceptivos, estéticos e formais, privilegiando uma abordagem simplificada para obter interpretações elucidativas e que irão desvendar as considerações finais da pesquisa. Do ponto de vista conceitual e estilístico, o movimento barroco passou a ser documentado de forma sistemática a partir dos séculos XIX e XX nos pensamentos de estetas como Heinrich Wölfflin, Arnold Hauser e José Antonio Maravall, referências bibliográficas e reflexivas no estudo do período histórico. Teorias e pensamentos contemplados nos primeiros capítulos da dissertação. O discurso crítico do suíco Heinrich Wölfflin (1864-1945), um dos maiores historiadores da arte ocidental conceituou a época barroca como movimento artístico em pioneiros estudos no final do século XIX. Em seus conceitos adotou o “método formalista” para análise de obras, partindo da teoria centrada na “pura- visualidade” e opostos: unidade e plural, forma fechada e aberta, clareza e obscuridade, linear e pictórico, plano e profundidade. Elementos presentes em seus consagrados livros: A Arte Clássica, Conceitos Fundamentais da História da Arte e Renascença e Barroco. Estudo sobre a essência do estilo barroco e sua origem na Itália (publicado no Brasil em 1989). A obra do escritor Arnold Hauser (1892-1978) foi permeada pelas influências da sociologia e marxismo florescente na extinta União Soviética. Pesquisador de literatura e história da Arte freqüentou distintos círculos acadêmicos na Europa, passando pelas universidades de Budapeste, Viena, Berlin e Paris. O seu livro mais relevante é História Social da Literatura e da Arte (1950), projeto que lhe custou dez anos de pesquisas e causou polêmica na época da publicação por enfatizar tendências ideológicas de esquerda em uma época que excluíam esta vertente do pensamento na crítica de arte. O historiador e ensaísta espanhol José Antonio Maravall Casesnoves (1911-1986), estudou filosofia, letras e direito na Universidade de Murcia e Ciências Políticas e Econômicas na Universidade Complutense de Madri. Professor na Espanha e em outros países exerceu grande influência em numerosas correntes de cientistas sociais e setores especializados na história,   23 economia e, em matérias como sociologia, psicologia e ciências políticas. Segundo Maravall, a história era uma construção do homem e deveria aproximar- se de metodologias e conceitos científicos. Seus trabalhos mais expressivos abrangem pesquisas no campo do pensamento político do renascimento, cultura barroca, militar e utopias. Em sua obra fundamental A Cultura Barroca (publicada pela EDUSP em 1997), o autor descreve as origens do período como resposta a uma sociedade em crise, fragilizada por revoltas, misérias e lutas de uma burguesia ascendente perante Estados arcaicos e feudais. Segundo seus pensamentos, as atividades exercidas naquele momento histórico eram dirigidas, massificadas, predominantemente urbanas e conservadoras. As primeiras catalogações da imaginária brasileira foram realizadas no século XVIII pelo frei português Agostinho de Santa Maria (1642–1728). Entre fins do século XIX e início do XX o pintor e historiador itanhaense Benedito Calixto de Jesus (1853-1927) desenvolve pioneiros ensaios históricos a respeito das primeiras imagens vicentinas. Levando em consideração a abrangência dos conceitos, cabe reverenciar a opinião de importantes especialistas no assunto, precursores e contemporâneos, auxiliando nas respostas aos questionamentos propostos na discussão da pesquisa. Desta maneira destacamos, para fundamentação teórica, dentre muitos autores que irão surgir no decorrer das investigações, as publicações do monge beneditino dom Clemente Maria da Silva-Nigra, Stanislaw Herstal, os estudos desenvolvidos pelo médico e colecionador de arte sacra Eduardo Etzel e João Marino. Os livros e artigos do saudoso professor Wolfgang Pfeiffer (ECA-USP), da historiadora Aracy Amaral (ECA-USP), dos professores Drs. Carlos Alberto Cerqueira Lemos (FAU-USP) e Percival Tirapeli (IA-UNESP) destacaram a importância da Capitania de São Vicente como precursora no nascimento da arte colonial brasileira. O crítico de arte francês Germain Bazin foi autor de numerosas publicações acerca do barroco brasileiro divulgando-as no exterior. O período sócio-cultural estudado abrange os séculos XVI e XVII; época de grandes deslocamentos humanos pelo continente americano. O natural cruzamento entre o colonizador europeu e nativo gerou o mameluco bandeirante adaptado ao ambiente rústico, estirpe que reuniu audácia e destemor na conquista do sertão brasileiro. Os primeiros estudos sobre o período bandeirista foram   24 realizados por genealogistas coloniais como Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1714-1777) e sua Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica, reeditada pela USP em 1980. No início do XX temos a fundamental contribuição do historiador Affonso de Escragnolle Taunay nas obras: Historia Antiga da Abbadia de S. Paulo (1598-1772), publicado em 1927, Historia Geral das Bandeiras Paulistas (1928), Com um Estudo sobre a obra de Pedro Taques, (s.d.) e São Paulo nos primeiros anos: ensaio de reconstituição social (reeditado em 2003). Historiadores como Sergio Buarque de Holanda e seu livro fundamental Raízes do Brasil (1936) e mais recentemente o escritor Jorge Caldeira com o Banqueiro do Sertão (2006) realizaram profílica reflexão a respeito do ciclo das bandeiras paulistas. O método de organização das informações bibliográficas, pesquisas de campo e análises foram baseadas na obra de Silvio Zamboni, A pesquisa em Arte: Um paralelo entre Arte e Ciência, (3ª ed., 2006). Uma das mais antigas obras impressas a respeito da imaginária nacional está contida no livro Santuário Mariano, publicado por frei português Agostinho de Santa Maria (1642–1728) na Cidade de Lisboa entre os anos de 1722 e 1723; inventário que reúne os principais centros de veneração do Brasil antigo e invocações de Nossa Senhora cultuadas na costa e interior do país. A obra completa é dividida em dez partes, configurando-se em: Tomos I ao VII (publicados entre 1707 a 1721), santuários e imagens da Corte Portuguesa, Arcebispado de Lisboa, Bispados da Guarda, Lamego, Leiria, Porto Alegre, Priorado de Crato, Prelazia de Tomar, Arcebispado de Braga, Bispado de Coimbra, Porto, Vizeu, Miranda, Arcebispado de Évora, Bispados do Algarve e Elvas. O Tomo VIII, impresso em 1720, relata santuários e ícones da Índia Ocidental, Ásia Insular, África e Filipinas. O tomo IX, de 1722, descreve 194 santuários do Brasil e suas respectivas virgens, sendo 132 do Arcebispado da Bahia, 45 no Bispado de Olinda e Recife, 08 no Bispado do Maranhão e 09 no Bispado do Grão-Pará. Por último, o Tomo X, publicado em 1723, refere-se a 146 locais de veneração e suas imagens, sendo 83 na Capitania do Rio de Janeiro, 40 em São Paulo, 13 em Minas Gerais, 05 no Espírito Santo, 04 no Sul (Paraná e Santa Catarina) e 01 na Colônia do Sacramento.   25 Agostinho de Santa Maria, cujo nome de batismo era Manuel Gomes Freire, nascido na vila de Estremoz em 28 de agosto de 1642 e falecido na Cidade de Lisboa em 03 de abril de 1728, ingressou na Congregação dos Agostinianos Descalços aos 23 anos, desenvolvendo funções de cronista, Prior do Convento de Évora, Secretário da Província, Definidor-Geral e Vigário-Geral desta Congregação em Portugal. Além do antológico Santuário Mariano, publicou 18 obras, destacando-se História da Fundação do Real Convento de Santa Mônica, da cidade de Goa, (impresso em 1699) e Rosas do Japão e da Conchinchina, Cândidas Açucenas e Ramalhete de Fragrantes e Peregrinas Flores, Colhidas no Jardim da Igreja do Japão sem que os Espíritos da Infidelidade e da Idolatria as Possam Murchar, divididos em dois volumes publicados no ano de 1709 sobre o Japão e em 1724 a parte da Conchinchina. Curiosamente este pesquisador jamais esteve no Brasil. Para escrever o tomo IX e X de Santuário Mariano, referente às imagens brasileiras, valeu-se de informações minuciosas colhidas por Frei Miguel de São Francisco, nascido no Rio de Janeiro em meados do século XVII e falecido nesta cidade em 1734. Alguns dos textos foram transcritos literalmente, fatos que levam muitos historiadores a considerar Frei Miguel o seu verdadeiro autor. Este religioso foi membro da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil e Vigário Provincial, exercendo diversas atividades nos conventos de Santo Antônio do Rio de Janeiro, São Bernardino de Sena em Angra dos Reis e São Boaventura de Macacu. As primeiras anotações registradas por Frei Miguel para Santuário Mariano foram destruídas em 1711 na época da invasão dos franceses ao Rio de Janeiro, reescritas entre 1712 a 1714, fase que aprimorou algumas informações antes de enviar para Portugal. Santuário Mariano foi reeditado com ilustrações no Rio de Janeiro em 2007 pelo INEPAC. Um dos precursores no registro da imaginária paulista foi o pintor, professor, historiador e ensaísta Benedito Calixto de Jesus (1853-1927). Detentor de amplo conhecimento sobre o litoral, atuou como retratista iconográfico e cartógrafo. Realizou ensaios de mapas da costa e resgatou da tradição oral caiçara as histórias dos primeiros ícones venerados nas cidades do litoral vicentino. Mediante investigações históricas sabemos que as mais antigas imagens em terracota elaboradas no país são atribuídas ao mestre português João Gonçalo Fernandes, escultor atuante na região em meados do século XVI:   26 Nossa Senhora da Conceição, preservada no Museu de Arte Sacra em Santos, Nossa Senhora do Rosário, venerada no convento franciscano de Itanhaém e Santo Antonio, antigo orago de uma fazenda na ilha de Santo Amaro, atual município do Guarujá. A feitura destes ícones remonta 1560 e coincide com a finalização da Matriz de São Vicente (1559) e elevação de Itanhaém a categoria de vila (1561). Passadas muitas gerações, a importância de nossa arte sacra colonial foi retomada no começo do século XX; processo de reconhecimento liderado pelo grupo de intelectuais que idealizaram a Semana de Arte Moderna em 1922. Ao mesmo tempo em que os pensadores e seus manifestos buscaram novas possibilidades estéticas, dedicaram-se também ao resgate das raízes históricas do país, lançando os fundamentos da conservação dos bens culturais brasileiros. A partir destas alianças, o governo do presidente Getúlio Vargas institui em 1937 o antigo SPHAN, atual IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Arquitetos, escritores e artistas contribuíram para a salvaguarda e tombamentos de bens. A tarefa de implantar o Serviço do Patrimônio, órgão vinculado ao Ministério da Cultura foi confiado a Rodrigo Melo Franco. Com a colaboração de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Afonso Arinos, Lúcio Costa e Carlos Drummond de Andrade foram preparados técnicos para assegurar a permanência, restauração e revitalização do acervo documental, etnográfico, artístico, arquitetônico, paisagístico e urbanístico do país. Nossa herança colonial foi aos poucos catalogada e compreendida por historiadores e colecionadores. Na monumental obra do historiador beneditino Dom Clemente Maria da Silva-Nigra, considerado um dos maiores pesquisadores de nossa arte sacra, encontramos as referências fundamentais para o desenvolvimento desta dissertação. Acerca dos livros Construtores e Artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro (1950) e Os dois escultores frei Agostinho da Piedade – frei Agostinho de Jesus e o arquiteto frei Macário de São João (1971) temos um minucioso estudo sobre a produção das primeiras oficinas monásticas fixadas do litoral nordestino ao planalto paulista. Entre tantas atividades exercidas como pesquisador, curador de exposições e diretor do Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia foi responsável pela redescoberta de grandes   27 nomes da escultura colonial brasileira, como o monge português Frei Agostinho da Piedade (c.1580-1661), seu discípulo brasileiro Frei Agostinho de Jesus (1600/10- 1661) e do escultor franciscano Mestre de Angra dos Reis (século XVII). Frei Agostinho da Piedade foi responsável pela introdução no Brasil da escultura erudita ibérica. Por ter assinado e datado algumas peças, mantendo os mesmos valores estéticos ao longo da carreira, possibilitou Dom Clemente identificar o conjunto da sua obra. Frei Agostinho de Jesus produz as primeiras imagens cristãs brasileiras e o Mestre de Angra foi autor dos mais antigos relicários paulistas e cariocas. Dos inúmeros discípulos orientados por Agostinho da Piedade, destacamos o primeiro grande artista brasileiro, Frei Agostinho de Jesus, nascido por volta de 1600-10 na Cidade do Rio de Janeiro, local onde também faleceu em 1661. Este patriarca das artes divulgou por quase todo o país a técnica da escultura em terracota, deixando numerosos trabalhos na região Nordeste e Sudeste. Estudou no Mosteiro da Bahia e ordenou-se em Portugal. Trabalhou em Santana de Parnaíba, São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, locais de antigas chácaras e recolhimentos beneditinos. Principalmente no interior paulista temos o encontro de um grande escultor com uma cultura singular e que irão contribuir na construção da identidade brasileira. Contemporâneo aos modeladores beneditinos foi o santeiro franciscano denominado Mestre de Angra dos Reis, artista de grande mérito, autor de profícua obra catalogada neste trabalho e localizada entre a costa fluminense e o planalto de São Paulo. As imagens retabulares, bustos relicários e fragmentos arqueológicos atribuídos a este grande artista compõem um extenso e inédito acervo remanescente nos conventos capuchinhos, patrimônio histórico em processo de reconhecimento e valorização. Em 1956 o pesquisador Stanislaw Herstal publica um pioneiro estudo de arte sacra: Imagens Religiosas do Brasil. Corajoso documento dedicado às pequenas e humildes faturas coloniais, como os santos amuletos nó-de-pinho e modestas peças anônimas remanescentes do passado rural, reconhecendo genuínas manifestações herdadas da cultura indígena, negra e popular. A divulgação internacional da escultura colonial brasileira foi liderada pelo notável crítico de arte francês e ex-diretor do Museu do Louvre, Germain Bazin, produzindo extensa obra documental sobre o barroco remanescente entre a costa   28 litorânea e as serras mineiras, consagrando internacionalmente a obra de Antonio Francisco Lisboa, “O Aleijadinho”; herança reconhecida como patrimônio cultural da humanidade. Pesquisas publicadas nos livros O Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil (1971) e Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, 2 volumes (1983). Eduardo Etzel foi autor de numerosas publicações a respeito da imaginária paulista, com destaque para os patuás em nó-de-pinho, vinculados aos escravos negros e os santos paulistinhas, imagens cônicas confeccionadas em barro cozido e policromado em pequenas dimensões ligadas à devoção rural, reminiscências de um barroco tardio sobreviventes em pleno ciclo cafeeiro do século XIX. Etzel reconheceu nas manifestações da arte sacra conventual e laica a raiz sócio- cultural que articulou o país moderno. Depoimentos encontrados nos livros: Imagens Religiosas de São Paulo (1971); O Barroco no Brasil (1974); Arte Sacra Popular Brasileira (1975); e Arte Sacra Berço da Arte Brasileira (1984). Das infindáveis influências hispânicas, tão bem documentadas pela historiadora Aracy Amaral em seu livro A Hispanidade em São Paulo (1981), herdamos alpendres, imagens, altares e muxarabis de influência mouro- espanhola, plateresca, andina e missioneira, oriundas do fluxo de paulistas pelas fronteiras castelhanas, tornando-se elementos emblemáticos da identidade bandeirante, gênese de uma sociedade que se tornou vanguarda na formação do povo brasileiro e, por conseguinte, gênese da cultura no país. Convém destacar na obra de Carlos Lemos uma ampliação das reflexões levantadas por Silva-Nigra, Etzel e Aracy Amaral, hipóteses desenvolvidas a partir das múltiplas correntes aportadas na Colônia; tipologias estudadas por meio dos primeiros retábulos maneiristas jesuíticos adaptados ao ambiente rural paulista. É mérito do historiador a identificação de escolas regionais e catalogação de escultores anônimos, tais como, o Mestre de Itu, vinculado às tradições beneditinas e o Mestre-do-Cabelinho-em-Xadrez, artista ligado às influências orientais. Conhecimentos disseminados nos seguintes trabalhos: Escultura Colonial Brasileira (1979); Arte no Brasil (1980); e A Imaginária Paulista (1999). Nas publicações de Percival Tirapeli encontramos uma apurada visão estético-histórica sobre arte e arquitetura antiga, com enfoque no resgate dos ornamentos e artífices das igrejas paulistas, inserindo-os no contexto do barroco   29 nacional. As pesquisas sobre altares peregrinos provenientes de ermidas demolidas, reconstituição de retábulos bandeiristas e apresentação dos fragmentos vicentinos aprofundaram as investigações dedicadas às origens da escultura brasileira a partir do Estado de São Paulo, como podemos averiguar nas obras: A Construção Religiosa no Contexto Urbano do Vale do Paraíba – Estado de São Paulo (1983); Arte Sacra Colonial: Barroco Memória Viva (2001); Igrejas Paulistas barroco e rococó (2003); Festas de Fé (2003); Arte Sacra: gênese da fé no novo mundo: coleção de arte no acervo dos palácios de São Paulo (2007); e Igrejas Barrocas do Brasil (2008). A obra de Jorge Caldeira, mestre em sociologia e doutor em ciência política pela USP contribuiu de forma significativa para a compreensão do período histórico estudado, resgatando, sob vários ângulos, a saga de bandeirantes, índios e jesuítas, seus dilemas e contradições. Embora o cultivo da cana-de- açúcar fosse o alicerce da Capitania de São Vicente nos primeiros tempos, não prosperou como em outras regiões da Colônia, decorrentes dos obstáculos geográficos e climáticos da proximidade com a Serra do Mar, “muralha” natural que impedia a expansão agrícola, incentivando a população aventurar-se pelas matas em busca de riquezas. Conquistando os campos de Piratininga a partir da fundação do Colégio de São Paulo em 1554, os povoadores paulistas construíram um núcleo todo particular no panorama nacional dos séculos XVI e XVII, estruturando sua economia do planalto por meio das entradas e bandeiras que se embrenhavam pelo interior do continente em busca de riquezas minerais e apresamento indígena para utilização na agricultura de subsistência. Conflitos religiosos e sociais foram constantes nesta parte renegada do país. Pelos isolados caminhos do interior, oratórios, capelas e ermidas reuniam os fiéis em raros espaços comunitários. A população era composta por cidadãos de várias etnias e nacionalidades: cristãos novos, índios, espanhóis, portugueses, degredados. Por meio do sincretismo cultivaram afinidades devocionais, estimulando a produção imaginária de cunho erudito e popular. Depois da elevação de São Paulo à condição de vila (1560), seguida por Mogi das Cruzes (1611) o povoado de Santana de Parnaíba conquista autonomia política em 1625, fato que permitiu deter as principais rotas comerciais que interligavam a capitania aos aldeamentos do lado castelhano, de Assunção a Potosí. Jorge Caldeira nos lembra que, sob a   30 liderança dos sertanistas de Piratininga e Parnaíba, as entradas e bandeiras paulistas seguem rumo às lendas e riquezas de Potosí, importante centro minerador de prata no Peru. Ao longo deste caminho foram encontradas aldeias paraguaias, missões religiosas e artífices guaranis, compondo um território heterogêneo marcado por grandes deslocamentos humanos e trocas culturais. Contexto político-social encontrado nos livros O banqueiro do sertão: Mulheres no Caminho da Prata e o resgate da biografia do Padre Guilherme Pompeu de Almeida (2006), um dos maiores capitalistas do século XVII no Brasil. O pesquisador Silvio Zamboni foi o responsável pela criação da área de artes no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 1984, constribuindo para articular uma metodologia neste campo do conhecimento. Fundou e presidiu a Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). Professor doutor formado em artes pela ECA-USP leciona no Instituto de Artes da Universidade de Brasília desde 1978. Seus ensinamentos nos auxiliaram na divisão das atividades, identificação de problemas, levantamento bibliográfico, hipóteses, observação, processo de trabalho, resultado e interpretação. Referencial encontrado no livro: A pesquisa em Arte: Um paralelo entre Arte e Ciência (3ª ed., 2006). O recorte desta dissertação exigiu um resgate da saga bandeirante no século XVII, período áureo da imaginária paulista construída sob os fundamentos das ordens religiosas, especialmente jesuítas, beneditinos, franciscanos e carmelitas. No decorrer das primeiras décadas de ocupação foi possível que exemplares de imaginária arcaica ou mesmo medieval tenham alcançado os campos de Piratininga, trabalhos de veneração flamenga, marfins de Goa ou Macau, vindas nas bagagens de colonos contratados por Martim Afonso para o fabrico do açúcar em São Vicente ou importadas da carreira das Índias. Os primeiros modelos eruditos puderam ser recompostos abundantemente pelas mãos de santeiros populares com forte contribuição nativa, mestiça ou hispânica, demonstrando traços regionais diferenciados dos demais existentes na Colônia. As esculturas desta época difundiram várias tendências estilísticas, contendo referências orientais, gótico-renascentistas, maneiristas e barrocas, caracterizando heterogeneidade, fusão de um mundo miscigenado e espartano   31 construído mediante relações comerciais com a América Espanhola, garimpo e tráfico indígena. À medida que o movimento bandeirista se expande pelo oeste em direção ao centro do continente, novos aldeamentos vão prosperando entre o Alto e Médio Tietê, rotas de velhos caminhos Peabirus. A partir do remanso de Porto Feliz as monções partiam rumo ao desconhecido. Desciam a bacia do rio Paraná até as reduções do Iguaçu. Conflitos de ordem moral, religiosa e econômica entre padres inacianos e bandeirantes foram elementos constantes nesta efervescente região do país. Com o aumento da população e diversificação da economia, são capturados e expedidos escravos guaranis das missões paraguaias e região do Guairá para as fazendas paulistas e nordestinas. Este povo contribui ativamente na construção da complexa cultura seiscentista. Dos muitos migrantes, não faltaram entalhadores e carpinteiros nativos qualificados nas oficinas jesuítas castelhanas e que participaram na edificação dos primeiros altares de cunho nacional, citados pelo arquiteto Lúcio Costa e o professor Carlos Lemos como autênticas jóias guardadas no interior do Estado de São Paulo. Este período de grandes deslocamentos populacionais coincide com o florescimento de retábulos maneiristas-platerescos no planalto paulista, talha que emoldura as principais imagens da produção de Frei Agostinho de Jesus e seus discípulos, a exemplo do Mosteiro de Parnaíba, da Capela do Voturuna e Sítio de Santo Antonio, arte síntese na confluência do mundo luso-espanhol, tupi-guarani, inaciano e beneditino. Reconhecida esta autêntica produção vernacular, delimitamos os séculos XVI e XVII como o período de estudos das primeiras imagens brasileiras e faremos um percurso que se inicia em São Vicente, passando pelo Recôncavo Bahiano, Litoral Fluminense e findando-se nos desdobramentos da arte sacra no planalto paulista; caminhos percorridos por nossos religiosos na árdua missão edificadora da fé. A arte desenvolvida nos conventos foi aos poucos multiplicada nos meandros da devoção bandeirista. O artífice conventual detinha um perfil erudito, centrado nos conhecimentos da perspectiva e representação formal, cânones que atendiam exigências rigorosas das ordens recém instaladas. Os escultores religiosos participaram das   32 primeiras encomendas retabulares, unindo devoção e técnica, postura que transitava entre questionamentos temporais e estilísticos inerentes ao período. Numerosos santeiros permaneceram séculos no anonimato por não deixarem assinaturas em seus trabalhos, sinais de um respeito devocional que transcendia o orgulho pessoal do artista. No processo de identificação autoral, utilizaremos o método de atribuição desenvolvido em fins do século XIX pelo pesquisador Giovanni Morelli; analisando criteriosamente soluções estilísticas, tais como traços físicos, panejamentos, técnicas de feitura e policromia, reconhecendo soluções e particularidades na catalogação dos artistas. Por meio da veneração aos santos foram estabelecidas relações de cunho afetivo, envolvendo os fiéis em uma atmosfera de introspecção e penitência. Criaram-se cerimoniais, romarias, danças, cânticos, comidas, ampliando o calendário de festas, enriquecendo o extenso cardápio folclórico e estimulando as relações sociais, que perpetuaram, por gerações, a devoção aos ícones sagrados. As principais características desta imaginária conventual e bandeirista são:  postura hierática, panejamento contido e predominância frontal;  esculturas fixadas em peanha com base poligonal, facetada, oval, retangular ou ornamentada por volutas, flores, nuvens e anjos;  simplificação pictórica e detalhes em ouro, seguindo as orientações da representação iconográfica de cada santo;  encontráveis em barro cozido, ressequido, madeiras cítricas, cedros e lenhos extraídos da Mata Atlântica, domínio florestal que abrangia parte da costa colonial e o planalto paulista;  peças em terracota apresentam orifício cônico interno que vai da base à metade da escultura e perfurações que auxiliavam na uniformidade do cozimento. A condição instável, economia de guerra, carência de homens e alimentos foram inquietações freqüentes na história da Capitania de São Vicente dos séculos XVI e XVII. Situação apenas amenizada pela audácia do bandeirante embrenhado nas monções em busca de ouro, prata e braço escravo. No ambiente sertanista, a cobiça dividia espaço com questões espirituais. Capelas, oratórios e imagens foram elementos constantes nas velhas moradas caboclas, sobressaindo-se a criatividade e improviso.   33 O barro tornou-se símbolo de integração cultural, presente na herança utilitária indígena e tradição escultórica européia, definindo a face da arte no Estado de São Paulo, síntese de povos em constante transformação. Como resultado, este território foi um dos que mais produziu imaginária em terracota no país; legado dos primórdios da vida nativa, experimentações de Frei Agostinho de Jesus e seus sucessores até princípios do século XX. Acreditamos que as imagens maneiristas produzidas no planalto paulista sob regras conventuais estabelecidas por Frei Agostinho da Piedade, Agostinho de Jesus e o Mestre de Angra dos Reis, nos remetem a conhecimentos que extrapolam o caráter sagrado, estético ou histórico, formando uma autêntica escola de tradições que construíram a identidade brasileira acompanhando a expansão do país nos meandros da colonização. Compreendendo as imagens antigas é possível encontrar referências étnicas, composições inusitadas, contribuições culturais, usos, costumes de um país antigo e em especial do universo bandeirante. Neste percurso reflexivo e perante os argumentos citados anteriormente, formulamos as seguintes indagações:  O que poderíamos esperar da São Paulo colonial, quando muitos, por gerações, apenas reverenciaram as maravilhas barrocas do Nordeste açucareiro e Minas Gerais?  Sob quais circunstâncias o diálogo travado entre a imaginária conventual desenvolvida na Bahia e as complexas experiências articuladas em terras paulistas construíram uma legítima arte brasileira? Diante de vários dilemas históricos e para justificar nossos questionamentos, testemunhamos à carência de documentos, fontes primárias e artigos sobre as origens da formação cultural no Brasil. Frente ao contexto, acreditamos na relevância desta pesquisa científica como instrumento de resgate das raízes nacionais, destacando por meio da arte sacra produzida em Salvador e São Paulo tradições que revelam aspectos da vida cultural, religiosa e política do país antigo. Em virtude de encontrarmos poucas pesquisas dedicadas a esta temática, nos despertou o interesse em compreender o período maneirista-barroco sob diferentes aspectos: questões sagradas, profanas e cotidianas que permeiam a   34 formação estética brasileira. Ficou evidente a necessidade de formular uma investigação sistemática com o objetivo de documentar as articulações que propiciaram, em território paulista, o florescimento de um conjunto ímpar de esculturas sagradas. O objeto central da dissertação constitui no resgate da arte sacra como elemento gênese na formação da cultura colonial. Para sustentação desta teoria, nos baseamos em três fatos históricos relevantes: o pioneirismo da sociedade paulista, fruto da miscigenação e encontro de vários povos prenunciando um país mestiço e sincrético no alvorecer do século XVII; a obra de Frei Agostinho de Jesus (c.1600/10-1661), considerado pelos historiadores o primeiro grande artista brasileiro; e a chegada deste mestre ao Mosteiro dos Beneditinos de Santana de Parnaíba-SP; local onde irá produzir suas esculturas mais relevantes, deixando como legado as primeiras manifestações de imaginária brasileira documentadas na história da colonização. A atuação deste mestre no Mosteiro de Parnaíba-SP marca o início da escultura brasileira, um prelúdio da arte nacional, pois nesta localidade, distante das influências externas do barroco português vigente no litoral, irá idealizar uma escultura com características próprias, produzindo obras-primas, símbolo de integração entre povos. Santana de Parnaíba revela-se um grande Centro Cultural do Brasil Antigo, a partir de meados do século XVII favorecendo o surgimento da imaginária nacional. Tornou-se vanguarda por agregar diferentes fusões de culturas, síntese de civilizações, anunciando a sociedade mestiça, criativa, inventiva, sertaneja e original que os bandeirantes irão semear, séculos depois, no barroco Centro- Oeste e Mineiro; um sentido de nação preconizado e que só se afirmará após a independência. A série de imagens executadas por Frei Agostinho de Jesus e discípulos nesta localidade serão precursoras de uma das mais antigas escolas de escultura religiosa remanescentes no país, núcleo de tradições. A partir deste evento histórico serão formadas as bases teóricas para identificação de escolas culturais paulistas e que convencionamos em batizar de: Escola Cultural do Vale do Tietê, (região entre o Alto e Médio Rio Tietê) de influências predominantemente eruditas, fruto da atuação de grandes artistas beneditinos e transmissão de conhecimentos empíricos a numerosos seguidores,   35 influenciando a arte nos primeiros arraiais do Centro-Oeste brasileiro; e a Escola Cultural do Vale do Paraíba, região que abrange a Serra do Mar e Mantiqueira, entre São Paulo e Rio de Janeiro, de tradições predominantemente populares. Os bandeirantes desta região, principalmente oriundos de Taubaté-SP serão pioneiros na edificação do barroco mineiro, experiências transportadas do interior paulista para as Serras Gerais. Com o intuito de uma maior compreensão desta dissertação, distribuímos os rumos da pesquisa em três grandes capítulos. No capítulo 1 – O ESTILO BARROCO CONSTRUINDO O PRIMEIRO PERÍODO DA ARTE COLONIAL BRASILEIRA (1560 – 1661), partiremos das transformações ocorridas na Europa em fins do século XV e que desencadearam o surgimento do período que viria a ser conhecido como maneirista-barroco; dogmas e manifestações artísticas que prontamente embarcaram no ciclo das grandes navegações, participando do processo de edificação das vilas e cidades coloniais ultramares; territórios, riquezas e civilizações disputadas por reinos católicos luso-espanhóis. A partir de São Vicente vamos encontrar as mais antigas imagens e retábulos remanescentes do país, conjunto que remonta 1560, resultado da presença de oficinas jesuíticas e do legado deixado pelo mestre português João Gonçalo Fernandes. A arte sacra conventual representava uma forma de catequese e persuasão a nativos e colonos, percorrendo uma longa trajetória a partir da erudita Bahia de Todos os Santos, cuja primeira capital do país, Salvador, ergueu edifícios públicos, monumentos, igrejas e obras artísticas de vulto transplantadas da velha Lisboa para a América do Sul, tornando-se arquétipos transformados posteriormente no Sudeste brasileiro. O contato do luso- americano com as sociedades hispânicas no interior de São Paulo produzem uma mescla de culturas que se distanciaram dos padrões europeus. No planalto paulista temos o nascimento de uma singular arquitetura urbano-rural, técnicas, ferramentas, língua, mobiliário, religiosidade e artes. Esta confluência de correntes estéticas oriundas da Europa, Ásia e América representam as bases de numerosas manifestações culturais transplantadas para o interior do país, acompanhando o colonizador até os sertões de Minas Gerais (1681), Mato Grosso (1719) e Goiás (1724).   36 Iremos investigar as primeiras imagens produzidas por escultores anônimos e outros reconhecidos, procedentes de ateliês conventuais instalados na costa, sobretudo artífices oriundos das ordens beneditinas e franciscanas, santeiros de grande mérito, orientados por padrões retóricos e estéticos ligados ao Concílio de Trento, empregando apuradas técnicas a serviço da propaganda cristã. Elementos que serviram de inspiração para os primeiros artífices do planalto de São Paulo modelar originais manifestações de arte integradas ao contexto geográfico e social local. Este período áureo inicia em meados do século XVI e se estende até a morte dos grandes figulus statuarius beneditinos em 1661. A partir dos ensinamentos deixados pelo Mestre de Angra dos Reis e Frei Agostinho de Jesus, a arte religiosa bandeirista transforma-se em autêntica manifestação de sinergia entre o mundo europeu e americano, tradições que compõem as origens da imaginária no Brasil. No capítulo 2 – A ESCULTURA SACRA NO BRASIL E SEUS DESDOBRAMENTOS, resgata a importância da imaginária produzida no planalto paulista, classificando e atribuindo significativas correntes estéticas. A partir da obra de Frei Agostinho de Jesus, um dos nossos primeiros grandes artistas conhecidos, a arte erudita foi somada às numerosas correntes estéticas do sertão paulista formando um celeiro de novas experimentações estéticas; o encontro deste mestre com a liberdade criativa do Planalto de São Paulo marca o surgimento da arte nacional. A instalação do Mosteiro dos Beneditinos em Santana de Parnaíba a partir de 1643 representou um marco fundamental na formação da escultura brasileira, um significativo momento das artes plásticas nacionais. Os monges enviaram de Salvador importantes ícones de Frei Agostinho da Piedade, contribuindo para o desenvolvimento técnico da arte sacra no Sudeste; transplante de uma cultura erudita gerada na Bahia e transformada no planalto paulista. Agostinho de Jesus residiu na região por muitos anos, produzindo um extenso conjunto de imagens retabulares que representam as primeiras obras-primas da arte colonial. Estes dois figulus statuarius tornaram-se os mais importantes mestres da imaginária no Brasil do século XVII. As esculturas lavradas por Frei Agostinho de Jesus reuniram originais formas mestiças, agregando conhecimentos vivenciados no pioneiro Mosteiro da   37 Bahia, na velha Lisboa e efervescente Santana de Parnaíba das bandeiras. Este excepcional escultor trabalhou em São Paulo por volta de 1650, exercendo uma fundamental contribuição artística no distante meio cultural de Piratininga, influenciando gerações de figuristas, compondo escolas de tradições perpetuadas nos Vales do Rio Tietê e Paraíba do Sul. As últimas obras do artista compreendem peças encomendadas para altares de fazendas e igrejas no entorno da baía de Guanabara, entre as cidades de Duque de Caxias e Rio de Janeiro. Principalmente a série de imagens em barro produzidas na Parnaíba integra umas das primeiras escolas brasileiras de escultura religiosa em que podemos documentar. A partir deste evento forma-se um conjunto de discípulos que seguirão suas técnicas até os princípios do século XVIII, diluindo-se nos arcaísmos dos séculos XIX e XX. Estas tradições eruditas formam a Escola Cultural do Vale do Rio Tietê e irá acompanhar a saga de exploradores até os confins de Mato Grosso e Goiás, servindo de base para a formação do barroco na região Centro-Oeste do país. Paralelamente, a Escola Cultural do Vale do Rio Paraíba, de padrões, em sua maioria, populares, seguirão os caminhos das bandeiras acompanhando a expansão do país rumo às Minas Gerais, compondo a gênese do primeiro período da escultura e arquitetura em território mineiro. A classificação destas manifestações de padrão maneirista-barroco em dois grandes blocos tradicionais, com suas exceções, exotismos, grupos artísticos, mestres e anônimos propõe contribuir para a valorização da arte colonial paulista, célula-mater da cultura no país. E finalmente no capítulo 3 – A IMAGINÁRIA PAULISTA – ORIGENS, ENCONTROS E DESTINOS DA ARTE BARROCA, conduz ao leitor refletir sobre os conceitos desenvolvidos nos capítulos anteriores, destacando pensamentos entorno da imaginária de caráter erudito-popular dos séculos XVI – XVII e suas ramificações no mundo sertanista, rural ou caipira. Contemplaremos análises formais de escolas e atribuições. Sob a singela postura dos santos paulistas encontramos uma autêntica representação estética mameluca, lições derivadas dos conventos e abrigadas nas velhas choupanas do interior. Arte cotidiana, mestiça, hierática, espartana, às vezes sincrética, formal ou rústica, remanescente de épocas remotas, porém   38 atendeu plenamente as necessidades devocionais nos primórdios da ocupação. São testemunhos silenciosos de nossa história. O despojamento da produção sacra nos primeiros tempos de Brasil Colônia caracterizou um período único na representação artística do país. Mediante considerações apontadas conduzimos a pesquisa para um diálogo reflexivo, resgatando do passado a significância da arte maneirista surgida em São Paulo como fundadora de numerosas manifestações culturais transportadas para o sertão brasileiro. Os pensamentos de relevantes autores internacionais, tais como, Heinrich Wölfflin, José Antônio Maravall e Arnold Hauser compõem os conceitos gerais sobre o movimento barroco. O material bibliográfico brasileiro que fundamenta as bases da pesquisa está contido em livros, artigos e documentos procedentes dos Estados da Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, especialmente encontrados em manuscritos de arquivos históricos e trabalhos de renomados autores nacionais. Vamos reunir textos de pesquisadores que dedicaram suas vidas acadêmicas na divulgação do período sócio-cultural estudado; ensinamentos de autores como: Affonso de Escragnolle Taunay, Sérgio Buarque de Holanda, Dom Clemente Maria da Silva-Nigra, Eduardo Etzel, Aracy Amaral, Darcy Ribeiro, Carlos A. C. Lemos, Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Percival Tirapeli e Jorge Caldeira, entre muitos que contribuíram com seus pensamentos para a compreensão de nossa sociedade, do movimento barroco e bandeirista.   39 CAPÍTULO I O ESTILO BARROCO CONSTRUINDO O PRIMEIRO PERÍODO DA ARTE COLONIAL BRASILEIRA (1560 – 1661) 1.1 A Herança Barroca No limiar do século XV a humanidade foi construindo gradativamente um novo período estético e tecnológico. Após as cruzadas, a Europa entrou em contato com os territórios asiáticos e suas riquezas, incluindo a seda, o papel, tapeçarias, perfumes, cerâmicas e especiarias (pimenta, açafrão, noz-moscada, erva-doce, menta ou cravo), apreciadas na conservação e tempero de alimentos, fermentação de bebidas e preparo de medicamentos comercializados em cidades Italianas como Veneza ou Gênova, que prosperavam por meio das relações mercantis e navais estabelecidas no Mediterrâneo. A invasão dos turcos à Constantinopla em 1453, antiga capital do império bizantino, finaliza simbolicamente as últimas tradições remanescentes do passado romano e da antiguidade sobreviventes até o início da era moderna, desestruturando o comércio cristão. Por meio das navegações, o homem ocidental expandiu suas fronteiras comerciais e culturais. Em busca de novas rotas para o Oriente, via mar, espanhóis e portugueses encontraram sociedades sofisticadas e nômades, uma natureza exuberante, tropical, gerando conflitos que culminaram na conquista dos territórios americanos e exploração de suas riquezas. No meio deste caminho estava o Brasil e o florescimento da cultura barroca no mundo.1 As crônicas de navegadores, missionários e comerciantes pelo caminho ______________________ 1 Etimologicamente, o termo barroco designa uma pérola irregular, imperfeita, procedente das Ilhas Molucas. O termo é sugestivo, pois nos remete a algo valioso e deformado. E é isto que a escola artística e literária propôs: fundir elementos contraditórios, respeitando os ideais renascentistas de prazer, valor da razão e beleza, integrando a uma espiritualidade medieval, destacando o caráter passageiro da existência. Arte de contrastes, o pormenor se une ao grandioso, onde assuntos religiosos mesclam-se a pensamentos políticos e humanos. A ânsia de aproveitar a vida se curva perante o caráter efêmero da existência. O barroco chegará assim a formulações extremas: o belo e o feio, o cômico e o trágico e suas antíteses – teatralidades, alegorias e expressões que o desespero do homem no período viverá em toda sua intensidade, resultado das preocupações psicológicas desse momento.   40 das Índias e sua difícil rota atlântica abriram possibilidades a fantasias e exotismos, como o mito bíblico da terra prometida ou do eldorado americano, estimulados no fervor cultural que o Renascimento renovou, expandindo no transcorrer do maneirismo. Se por um lado a cultura renascentista representou, no primeiro momento, a base técnica, racional e metódica para as explorações dos territórios de além-mar, a sua efetiva conquista e fixação por meio do Estado e Igreja deu-se pelo espírito do período barroco. Na Europa, a sociedade em que irá formar o sentimento barroco é marcada por muitas instabilidades sociais. O processo de urbanização intensificado na época do Renascimento, provocou despovoamento das áreas rurais, com conseqüências sentidas na queda da produção agrícola e encarecimento do custo de vida. Apesar dos avanços da ciência e tecnologia, persistia a ausência de condições de higiene nas cidades em desenvolvimento. O barroco compõe uma cultura predominantemente urbana; mais que um estilo, será conceito de período, multiplicando e integrando ações, como nos assevera José Antonio Maravall (1911-1986): Na cidade barroca, levantam-se templos e palácios, organizam-se festas e montam-se deslumbrantes espetáculos pirotécnicos. Os arcos de triunfo, os catafalcos para honras fúnebres, os cortejos espetaculares, onde mais poderiam ser contemplados senão na grande cidade? Nela existem academias, celebram-se certames, circulam folhetos, pasquins, libelos, que são escritos contra o poder ou que o poder inspira. (MARAVALL, 1975, p. 215). No campo, a miséria provocava sucessões de pestes e epidemias, crescendo entre as populações camponesas e menos cultas um apelo sempre maior às seitas secretas. A peste e magia caminhavam com a cabala e alquimia, vencendo até os grossos muros dos conventos, onde padres cobiçavam a obtenção de ouro. Esse clima de caos e profunda inquietação social serão bem captados pelos pintores Hieronymus Bosch (c.1450-1516) e Pieter Bruegel (c.1525-1569). Foi justamente esta situação sócio-econômica instável é que servirá de cenário para Martinho Lutero (c.1483-1546) em 1517 iniciar sua luta contra o papado; renovação espiritual defendida por João Calvino (1509-1564) e seus seguidores. A reforma protestante preconizava um retorno às fontes do   41 cristianismo primitivo, exaltando a Bíblia e a comunhão, em contraponto as opiniões dos doutores e à missa, lutando contra a intercessão de santos e mártires (estabelecendo na arquitetura um despojamento de ornamentos e imagens); subjacentes a isso reivindicavam melhores condições de vida. Os ideais de Lutero ressoaram amplamente nas populações à margem do poder. Em oposição às idéias dos protestantes surge a Contra-Reforma, elemento importante na gênese social do barroco. Estabelecendo um plano de ação capaz de conter os avanços reformistas na Europa e, ao mesmo tempo, estabelecer normas de atuação do catolicismo nos territórios virgens revelados pela aventura marítima, foi realizado entre 1545 a 1563 o Concílio de Trento. As normas estabelecidas pela Igreja Católica sediada em Roma, tiveram larga aplicação e profunda influência na arte religiosa, servindo como instrumentos da propaganda cristã, controlada sob as normas da Inquisição. Forma-se a Companhia de Jesus (Societas Iesu – 1540), verdadeiro “exército” religioso, uma ordem na qual se depositaram as esperanças na conquista de novos cristãos. Seu primeiro geral foi um espanhol, Inácio de Loyola (1491-1556). A principal igreja da Companhia de Jesus em Roma, Il Gesù (iniciada em 1568), projetada pelos arquitetos Vignola e Giacomo della Porta, torna-se o arquétipo da arquitetura religiosa barroca, resumindo os ideais de fervor cristão, esplendor retórico, energia dinâmica e habilidade ilusionista. Os jesuítas posicionaram-se na linha de frente em recuperar o projeto cultural humanista católico; época em que o poder estava ameaçado pelo avanço luterano. Instrumento da Contra-reforma, o movimento barroco apresenta um repertório de contradições dominantes entre o maneirismo e rococó, presentes na Europa aproximadamente no final do século XVI ao final do século XVIII, estendendo-se nas colônias e países da América Latina até as primeiras décadas do século XIX. Do estilo maneirista, o barroco herdou o movimento e a explosiva emoção; do Renascimento, a solidez e grandeza, fundindo as duas influências em um conjunto novo e dinâmico. A estes elementos somaram-se uma espiritualidade de caráter medieval. Heinrich Wölfflin, historiador e esteta alemão, reconheceu o período como um momento artístico a partir do final do século XIX. Em seus precursores estudos sobre a essência barroca o pesquisador nos assinala:   42 Quer dominar-nos com o poder da emoção de modo imediato e avassalador. O que traz não é uma animação regular, mas excitação, êxtase, ebriedade. Visa produzir a impressão do momento: [...] é um mundo que gostaríamos de jamais deixar. (WÖLFFLIN, 1989, p. 48). Na pintura, dois grandes artistas italianos lideraram a tradição barroca: Miguelangelo Merisi Caravaggio (1573-1610) e Annibale Carracci (1560-1609). Na arquitetura e escultura, as figuras mais destacadas na criação do barroco romano foram Carlo Maderno (1556-1629) e Gianlorenzo Bernini (1598-1680), imprimindo em suas obras intenso movimento, resultando grande impacto emocional. Um dos exemplos mais conhecidos é O Êxtase de Santa Teresa (1645), de Bernini; ao envolver o mármore num impulso religioso, espiritualizou a matéria, imprimindo na pedra animação e movimento, de monumental beleza mística. A partir de Roma, o barroco firmou raízes mais fortes em outros países católicos como Alemanha, França, Espanha, Portugal e suas colônias americanas, vinculando-se na promoção dos estados absolutistas. No interior das igrejas e palácios, formas atetônicas e decorativas duplicaram-se entre paredes e abóbadas; as tramas fictícias das artes aplicadas, pintadas ou esculpidas fundiram-se com elementos arquitetônicos; estrutura e forma se integraram para provocar instabilidade e ilusão, do particular ao infinito, efeitos que envolvem o espectador, incentivando o caminhar e a descoberta. Em várias cidades da Europa Central, antigas igrejas medievais são reformadas, recebendo uma profusão decorativa que não modifica, de modo geral, a estrutura dos edifícios, movimentando-os em seus espaços internos. A partir das descobertas de Nicolau Copérnico (1473-1543) considerado o fundador da astronomia moderna, somadas as experiências de Galileu Galilei (1564-1642), uma nova concepção científica mudou a visão do homem sobre o mundo, natureza e arte, despertando inclusive uma feroz oposição religiosa e que se apoiava na tradição ptolomaica da Terra antropocêntrica, como nos enfatiza Arnold Hauser (1892-1978): A teoria de que a Terra se move em volta do Sol, em vez do Universo a mover-se em torno da Terra, como antes se supunha, mudou, para todo o sempre, o velho lugar designado ao Homem, no Universo, pela Providência. Agora, a Terra já não podia ser considerada como o centro do Universo, nem o Homem podia ser considerado como o fim e propósito da Criação. [...] o receio de um   43 juízo universal é excedido pelo ‘frisson métaphysique’, pela expressão de angústia do ‘silence éternel des espaces infinis’ de Pascal, e pela impressão esmagadora de uma continuidade que informa o cosmos. Toda a arte do barroco está cheia deste horror, cheia do eco dos espaços infinitos e da inter-relação de todo o ser. A obra de arte, na sua totalidade, torna-se símbolo do Universo, como um organismo uniforme, vivo em todas as suas partes. Cada uma destas partes revela, como os corpos celestes, uma continuidade infinita e insuperável; cada parte contém a lei que governa o todo e em cada uma age o mesmo poder e o mesmo espírito. As impetuosas diagonais, os súbitos escorços, as luzes exageradas, os efeitos de sombra, tudo isto é a expressão de um infinito avassalador, inquietante e inextinguível. (HAUSER, 1982, p. 564 e 566). Considerado um dos primeiros movimentos internacionais, o barroco sofreu modificações em cada país que aportou, encontrando gostos, panoramas e realidades diversificadas, mesclando tradições locais na conversão do gentio. Em algumas regiões tornou-se mais extravagante (como na Espanha, Portugal e colônias americanas), desenvolvendo um estilo luxuriante de decoração arquitetônica chamado de churrigueresco2, e na pintura de grotesco3; em outras localidades foi atenuado por gostos mais conservadores e despojados. Na França, o barroco foi utilizado na promoção do estado absolutista ao invés da Igreja. No reinado de Luiz XIV, a arte teve papel fundamental na propaganda do poder monárquico. Charles Lebrun, conselheiro em assuntos artísticos, conduziu um grandioso “exército” de artistas e decoradores na concepção do palácio de Versalhes. A união de paisagismo, arquitetura, escultura, pintura e decoração representam uma das mais significativas fusões do período, criando um conjunto de beleza monumental. Dentre as diversas ordens religiosas, os jesuítas foram os primeiros a intensificar suas ações no Oriente, África e América Latina, caracterizando sua produção barroca pela sobriedade inicial e adaptando-se a cada situação regional. Depois de instalada a igreja nos novos territórios, passado a primeira fase de ______________________ 2 Estilo arquitetônico formado na Espanha do séc. XVI e transplantado principalmente para o México e Peru, uniu formas goticistas a elementos barrocos e platerescos. Tributários deste padrão foram as tradições mouriscas vivenciadas na Península Ibérica e influências da cultura pré- colombiana nas Américas com seu universo mítico-ornamental. 3 Decoração pictórica entre o renascimento tardio e o barroco é formado por elementos fitomórficos e fantásticos entrelaçados. O nome provém de alguns afrescos remanescentes das ruínas das termas de Tito em Roma, admirados como grutas.   44 catequese, é que a cultura se manifestou em formas variadas, uma “espiritualidade de júbilo” ou “gosto pela suntuosidade”. No Oriente, por exemplo, o estilo barroco empregado pelos jesuítas encontrou séculos de história, sociedades e religiões altamente sofisticadas, gerando conflitos e resistências que culminaram em martírios de missionários, como o assassinato de Francisco Xavier (1506-1552) na China, religioso que ficou conhecido como “Apóstolo das Índias”. Por outro lado os inacianos encontraram uma mão-de-obra qualificada para sua empreitada no além-mar. Como resultados, surgiram os famosos marfins de Goa e Macau, a imaginária no Damão, Diu e do Arquipélago das Filipinas. Santos vestindo roupagens indianas, posturas budistas, rostos e olhares orientais exportados para todo o mundo cristão; elementos que serão uma tipologia presente no universo barroco americano adotado como modelo exótico, padrão a ser seguido. Subsistem em território goês, na Índia, igrejas jesuíticas portuguesas contendo altares e anjos atlantes inspirados nos templos e deuses hindus daquela região, sinais da necessidade de adaptação da arte sacra para uma maior aceitação. O arquiteto e historiador Prof. Dr. Carlos Lemos fez um balanço preciso da influência oriental na formação da arte americana colonial em seus primórdios, inclusive no Brasil: [...] o inevitável aconteceu: a iconografia budista e até soluções laicas foram emprestadas à imaginária católica. Principalmente o Menino Jesus foi representado com a postura deitada ou sentada de Buda. Existem centenas de Nossas Senhoras envergando o sari indiano, com seus cabelos repartidos ao meio deixando as orelhas à mostra. O interessante é que essa imaginária oriental, chegada também ao Brasil, passou a inspirar nossos santeiros que, assim, absorviam modelos já reinventados fora de Portugal. Foi o início da globalização das influências artísticas. (LEMOS, 1999, p. 125). Dentro deste contexto, muitas regiões do mundo tornaram-se Estados. Articuladas sob a égide barroca, colonial e mercantil, aldeias e cidades, reconstruídas ou idealizadas, cruzaram informações, recebendo conhecimentos de diversos povos, que acabaram determinando a identidade de vários países. Devemos ressaltar mais do que em qualquer outro movimento artístico, no período barroco coexistiram tendências e correntes menos e mais avançadas, tradicionalismos e vanguardas. O movimento buscou a novidade revendo o passado, um amor pelo infinito, apelando para o instinto, sentidos e fantasias. Uma diversidade de conflitos irá resultar em vertentes nacionalizadas. No solo   45 brasileiro o estilo barroco recebeu contribuições de elementos goticistas, medievalismos, orientalismos e chinesices. Estas correntes híbridas vão percorrer vários períodos da história da arte, transformando-se em expressão. Os padrões iniciais introduzidos pelas ordens religiosas serão interpretados segundo uma realidade local, popular ou erudita, do particular ao universal, formando originais recriações de autêntico sabor sincrético, autóctone, grande gênese de tradições. 1.2 As Primeiras Manifestações de Arte Luso-brasileiras O primeiro século de Brasil Colônia decorre como um dos períodos mais incógnitos da história oficial, pois foram poucos os vestígios mantidos íntegros até a atualidade. Numerosos testemunhos do início da civilização brasileira se perderam ao longo dos tempos por conter um caráter provisório, pelo desgaste ou ausência de documentação. As mais antigas lembranças materiais compreendem um dos marcos padrões da posse portuguesa, hoje cravado na Praça da Cidade Alta em Porto Seguro-BA e a Cruz Cabrália4, uma das peças de ferro que Pedro Álvares Cabral trouxe ao país, conservada no Museu de Bertioga, litoral paulista. É conhecida a vinda de uma imagem em pedra de Nossa Senhora da Esperança acompanhando a esquadra dos desbravadores em 1500, medindo 1,10m de altura e atualmente exposta na Quinta de Belmonte, Portugal. As primeiras ermidas provisórias foram derrubadas ou reformadas, altares mudaram de lugar. As primeiras imagens trazidas nas expedições eram de boa qualidade e materiais diversificados, marcando uma sobriedade fisionômica característica da tradição lusitana, como salienta as pertinentes palavras da pesquisadora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira: Com os primeiros colonizadores aportam no Brasil as primeiras imagens religiosas. Não poderia ter sido de outra forma, tendo-se em vista o profundo fervor religioso dos portugueses, cujas raízes medievais se confundem com a própria nacionalidade do país. (OLIVEIRA, 2000, p. 47, In: ALCÂNTARA, 2008, p. 32). ______________________ 4 A Cruz de Cabrália foi um dos primeiros grandes achados do antiquário paulista José Claudino da Nóbrega (1909-1995), peça posteriormente adquirida pelo colecionador Sr. Hermínio Lunardelli e doada ao Museu Histórico de Bertioga-SP.   46 No território batizado, a princípio, como Ilha de Vera Cruz e depois Terra de Santa Cruz, os estrangeiros observaram os costumes nativos. Perceberam que os índios extraíam tinta vermelha de uma árvore com cerne dura, a caesalpinia echinata, conhecida como pau-brasil, nome que batiza nosso país originando a primeira atividade econômica que se tem notícia. No período de 1503 a 1535 a extração deste material gerou um comércio expressivo, inclusive cobiçado por corsários franceses; contrabandistas que retiravam a madeira sem pagar tributos à coroa portuguesa. As constantes invasões e real necessidade de ocupação do território conquistado obrigam a metrópole dividi-la em extensas áreas denominadas Capitanias Hereditárias delegando sua exploração a nobres portugueses. Por meio do “sistema das sesmarias”, o Estado acelerava a colonização, permitindo aos colonos o cultivo das terras, embora não detinham direitos legais sobre elas. A respeito desta fase fixamos as pertinentes observações do pesquisador Ailton Santana de Alcântara: Um das capitanias hereditárias que mais recebeu incentivo foi a capitania de São Vicente, doada por D. João III, o então Rei de Portugal, para Martim Afonso de Souza, em 1532. A colonização da capitania de São Vicente não foi próspera, o solo era impróprio para o cultivo, mas, mesmo assim, o plantio de cana-de-açúcar estimulou a construção, em 1533, do Engenho dos Erasmos, à base de energia hidráulica e considerado o ponto de partida para a indústria açucareira no Brasil. Depois houve interesse em deslocar esse cultivo para o Nordeste para a capitania de Pernambuco sob governo do donatário Duarte Coelho Pereira, em Olinda. Neste contexto é que aparecem os primeiros religiosos na capitania de São Vicente, cuja missão era converter os aborígenes e, para isso, era necessário o uso de imagens com temáticas religiosas, algumas trazidas por eles e outras produzidas com barro. Deste modo, surgem as primeiras imagens sacras com características maneiristas, em terras de São Paulo, que exaltavam as personalidades consagradas. (ALCÂNTARA, 2008, p. 33 e 34). Em 1549 a administração da Colônia será centralizada no governo geral de Tomé de Sousa, instituindo a primeira capital do país em Salvador-BA. De acordo com a tradição, nos idos de 1550 o rei D. João III ofertou uma escultura de Nossa Senhora das Maravilhas à Cidade do São Salvador, estátua posteriormente revestida de prata e venerada na Antiga Sé Primacial do Brasil, acervo da Catedral Basílica em exposição permanente no Museu de Arte Sacra da   47 Universidade Federal da Bahia.5 Figura 1. “Planta da Cidade do Salvador...”. Cópia manuscrita, incluída no códice “Livro que dá Razão...”, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ca. 1605 (ca. 1626). p. 309. In: REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial, 2000, p. 18. Figura 2. Diógenes Rebouças: portada nobre da Sé Primacial do Brasil (antiga Sé da Bahia). Igreja demolida no século XX. Pintura a óleo sobre tela, 63 x 80 cm. Acervo do Mosteiro de São Bento, Salvador-BA. Foto Rafael Schunk (2010). ______________________ 5 DUTZMANN, Maria Olímpia Mendes. A Imaginária de Barro em São Paulo nos séculos XVI e XVII. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 1990, p. 07.   48 Figura 3. Par de fragmentos da antiga Sé da Bahia (séc. XVI). Acervo MAS – UFBA. Figura 4. Nossa Senhora das Maravilhas venerada na antiga Sé Primacial do Brasil. Peça de madeira revestida em prata (séc. XVI). Imagem salva da invasão holandesa em 1624 pelo bispo D. Marcos Teixeira que a levou para a Vila de Abrantes, quartel general da resistência. Acervo MAS – UFBA, Salvador-BA. Fotos Rafael Schunk (2010).   49 Figura 5. Mesa de altar, sacrário e tocheiros em prata da antiga Sé da Bahia demolida. Acervo Museu de Arte Sacra – UFBA. Foto Rafael Schunk (2010). Da primitiva Sé outrora erguida na Cidade Alta e impiedosamente demolida no século XX, chegaram aos nossos dias capitéis, colunatas, anjos, cariátides, fragmentos entalhados, além de um altar em prata da capela do Santíssimo Sacramento anexa à velha Catedral, mesa de altar, banqueta com seis castiçais e quatro florões, sacrário, tocheiros ornados por leões, lampadário, turíbulo, púcaro, coroas e resplendores de santos, todos prateados ao gosto maneirista local.6 ______________________ 6 O Maneirismo representa um período de transformações entre o Renascimento e Barroco. O nome foi empregado por alguns historiadores europeus de forma pejorativa e inadequada designando manifestações artísticas desde 1520 até o princípio do século XVII, associando a palavra com crise ou decadência na época renascentista, mau gosto ou excesso. Este padrão era visto com desconfiança pela crítica de arte até o começo do século XX, considerando este movimento uma falha de compreensão por parte dos artistas daquela época sobre a obra de grandes mestres como Leonardo da Vinci, Rafael ou Michelangelo, imitação “sem alma”. Diversos críticos consideram o Maneirismo uma oposição ao classicismo e uma tendência que se manteve até o desenvolvimento do Barroco marcando um novo ponto de vista da Igreja Católica após a contra-reforma. Alguns historiadores vêem as tradições maneiristas como uma transição entre o Renascimento e Barroco, enquanto outros preferem adota-lo como um estilo próprio. Nesta época, os pintores, escultores ou arquitetos passaram a criar uma arte com mais movimento, sinuosidade e introdução de elementos abstratos, libertando-se da relação direta entre o tamanho da figura, simetria, proporção ou sua importância na obra; se observa um rompimento da perspectiva, descarte de regularidade ou harmonia, ênfase nos efeitos emocionais, dramatização, subjetividade e deslocamento dos temas centrais da composição. Na arquitetura designada como maneirista, os   50 No ano de 1558 desembarca no Estado do Espírito Santo o eremita Frei Pedro Palácios, carregando consigo a histórica imagem de Nossa Senhora da Penha, celebrado ícone cultuado pelo povo capixaba. Paralelamente a posse das terras à Nordeste do Brasil, a região da velha Capitania de São Vicente, atual Estado de São Paulo, começou a ser colonizado poucos anos depois das conquistas, agregando em seu território um dos conjuntos mais antigos da arte sacra produzida no país. Segundo o historiador __________________________________________________________________ construtores priorizaram igrejas longitudinais, com espaços mais alongados do que largos. Naves escuras, contendo iluminação em ângulos indiretos criaram uma atmosfera singular, ornamentada por guirlandas de flores ou frutas. Balaústres compostos por figuras caprichosas, volutas, caracóis ou conchas vão povoando paredes e altares, anunciando o período subseqüente. A arquitetura profana recorre a estas técnicas edificando palácios com elementos convexos, contraste entre luz e sombra sobre outrora ambientes disciplinados nos cânones renascentistas. Muito além de marcar uma transição entre períodos, o Maneirismo expressou uma vontade de renovação social. Neste sentido percebe-se que as manifestações maneiristas são variadas, tornando-se complexas sua reunião em um único conceito ou parâmetro de comparação, pois em cada país seguiu caminhos diferentes. De acordo com a linha de pensamento do pintor e arquiteto italiano Giorgio Vasari (1511-1574), lembrado principalmente pelas suas realizações literárias, encontramos no documento bibliográfico: Vida dos Artistas, uma obra considerada das maiores referências sobre o Renascimento Italiano. A opinião deste crítico de arte foi fundamental para o estudo Maneirista, período artístico do qual participou e ajudou a popularizar, estabelecendo conceitos que sobrevivem até os dias atuais. Em consonância com seu pensamento, o Maneirismo pode ser associado à maniera ou “maneira” (estilo) com que cada artista trabalha seus processos e procedimentos, a supremacia do caráter particular de cada autor, sinônimo de graça, leveza, sofisticação e elegância sob a forma, estilização e capricho nos detalhes, deixando uma marca individual e que extrapolou as rígidas linhas dos tratados clássicos convencionados, rompimento da perspectiva e proporcionalidade, uma libertação estilística. Este movimento torna-se, sob esta ótica, um desdobramento crítico do renascimento, expressão de liberdade; uma das primeiras manifestações desvinculadas da tentativa de imitação da natureza. Por meio desta atmosfera de renovação, o Maneirismo aporta no Brasil no início da ocupação e representa o primeiro momento da arte colonial manifestando-se segundo atuação das oficinas conventuais e não se restringiu a introdução de conceitos clássicos na terra conquistada, mas abraçou tradições estéticas de vários povos, um hibridismo que reviveu séculos de história da arte, presente nas tradições portuguesas, de intenso passado medieval e mourisco, referências orientais e encontrando na mão de obra indígena e nacional terreno fértil para o surgimento de formas particulares, distanciando-se de elementos europeus dos quais foram inspirados e despontando saborosas soluções nativas dos talentos regionais. Em nosso estudo, o Maneirismo torna-se despido de sentidos pejorativos ou comparações com o chamado “alto renascimento” e recorre a Vasari como uma representação da “maneira” de cada artista trabalhar sua obra, técnicas e referências, o valor do talento individual do ser humano no contexto histórico da região no qual pertence e sua contribuição na construção da arte nacional entre os séculos XVI e XVII. Essa maneira particular de produzir uma imaginária cristã no Brasil aparece precocemente na antiga Capitania de São Vicente a partir de 1560, data da elaboração das primeiras esculturas sacras em terracota estendendo-se até 1661, período da morte de grandes artistas monásticos como Frei