Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes - Campus São Paulo GISELE CRISTINE LAVALLE RODRIGUES ato! do vazio à voz, um caminho de criação São Paulo 2022 GISELE CRISTINE LAVALLE RODRIGUES ato! do vazio à voz, um caminho de criação Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes com a área de concentração em Artes Cênicas, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas. Linha de pesquisa: Estética e Poéticas Cênicas Orientação: Profa. Dra. Wânia Mara Agostini Storolli São Paulo 2022 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. R696a Rodrigues, Gisele Cristine Lavalle, 1979- Ato! : do vazio à voz, um caminho de criação / Gisele Cristine Lavalle Rodrigues. - São Paulo, 2022. 123 f. : il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Wânia Mara Agostini Storolli Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Performance (Arte). 2. Criação (Literária, artística, etc.). 3. Voz - Educação. 4. Exercícios respiratórios. 5. Tao. I. Storolli, Wânia Mara Agostini. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 792.028 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 GISELE CRISTINE LAVALLE RODRIGUES ato! do vazio à voz, um caminho de criação Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas. Dissertação Aprovada em 30/03/2020 Banca Examinadora: ____________________________________________ Orientadora Profa. Dra. Wânia Mara Agostini Storolli Instituto de Artes - UNESP ____________________________________________ Prof. Dr. César Lignelli Universidade de Brasília - UnB ____________________________________________ Profa. Dra. Paula Maria Aristides de Oliveira Molinari Universidade Federal do Maranhão - UFMA À Catarina, por atravessar meu corpo, abrir tantos espaços e inspirar uma revolução! Ao Victor, por estar ao meu lado em tantos momentos que, ora me acolheram, ora me provocaram. Todos importantes! Você, essencial! isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além paulo leminski e, neste propósito, agradeço aos que têm participado da caminhada. por agora, por este trabalho, especialmente aos meus pais e à minha irmã, à wânia storolli, ao wagner canalonga, à andrea drigo, à paula molinari, ao césar lignelli, às parcerias de pesquisa, às mestras e mestres, aos artistas-pesquisadores, a todas as pessoas com quem já cocriei algum ato! RESUMO Esta pesquisa investiga a relação entre vazio e voz em um processo de criação artística denominado ato!. Partindo do conceito de vazio, segundo a filosofia taoista, e considerando a natureza relacional e corpórea da voz, o estudo segue por alguns desdobramentos como a noção de espaço, sopro, silêncio e acaso. Compreende também uma experimentação prática, trazendo propostas de ações em um roteiro original, criado ao longo da pesquisa. O trabalho é construído segundo os três ciclos que marcam a prática do ato!: o esvaziamento, a experimentação e a composição; além de guiarem a pesquisa, eles inspiram a divisão dos capítulos. Cada texto prioriza um fundamento e apresenta abordagens e referências artísticas sobre o tema, em diálogo com autores e artistas, tais como Wu Jyh Cherng (1958 - 2004), John Cage (1912-1992), Murray Schafer (1933-2021), Adriana Cavarero (1947), Paul Zumthor (1915-1995), Antonin Artaud (1896-1948) e Meredith Monk (1942). O primeiro ciclo se desenvolve através das temáticas de espaço, respiração, sopro, meditação, chi kun, escuta e silêncio. No segundo ciclo são abordados o movimento criativo pelo espaço, a experimentação vocal, o acaso e a pausa como elementos de composição. O terceiro ciclo traz uma proposta para a criação do programa artístico, trata da poética da natureza e do espaço vazio e finaliza com a ação em si, considerando a voz que canta através do vazio, a partir do conceito de wu-wei. Entre o vazio, a voz e a criação de uma ação artística, apresentam-se propostas práticas e teóricas que, combinadas, se configuram em um caminho de aberturas para a manifestação da pluralidade vocal. Palavras-chave: vazio; voz; processo de criação; respiração; performance; taoismo. ABSTRACT This research investigates the relationship between emptiness and voice in a process of artistic creation called act!. Starting from the concept of emptiness, according to taoist philosophy, and considering the relational and corporeal nature of the voice, the study follows some developments such as the notion of space, breath, silence and chance. It also comprises a practical experimentation, bringing action proposals in an original script, created during the research. The work is constructed according to the three cycles that mark the practice of the act!: emptying, experimentation and composition; beyond guiding the research, they inspire the division of chapters. Each text prioritizes a principle and presents approaches and artistic references on the subject, in dialogue with authors and artists, such as Wu Jyh Cherng (1958 - 2004), John Cage (1912-1992), Murray Schafer (1933-2021), Adriana Cavarero (1947), Paul Zumthor (1915-1995), Antonin Artaud (1896-1948) and Meredith Monk (1942). The first cycle develops through the themes of space, breathing, breath, meditation, chi kun, listening and silence. In the second cycle, creative movement through space, vocal experimentation, chance and pause are approached as elements of composition. The third cycle brings a proposal for the creation of the artistic program, it deals with the poetics of nature and empty space and ends with the action itself, considering the voice that sings through the emptiness, based on the concept of wu-wei. Between the emptiness, the voice and the creation of an artistic action, practical and theoretical proposals are presented, which combined configure a path of openings for the manifestation of vocal plurality. Keywords: emptiness; voice; process of creation; breathing; performance; taoism. APRESENTAÇÃO abrindo os trabalhos Abrir caminhos para a expressão da voz. Proporcionar experiências de silenciamento. Desenhar vivências. Orientar. Cuidar. Criar. Cocriar ações artísticas. Pensar no processo criativo como o próprio ato artístico. Planejar o processo em que a realização de uma ação final seja o registro poético daquele caminho, naquele instante. De forma sucinta, poderia resumir assim minha pesquisa teórico-prática, que eu chamo de ato!. Acredito que essas ideias refletem em parte um propósito que mantenho desde a infância: a liberdade na comunicação. Um desejo de expressar o que me parece verdadeiro em cada momento, seja em ações cotidianas, gestos, danças ou palavras. Liberdade por eliminar o máximo possível de elementos que possam obstruir a fluidez natural da comunicação, entre a fala e a escuta, entre mim e o outro. Liberdade por não tentar me modificar para agradar ou fazer bonito. Tenho me proposto a criar caminhos artísticos que sigam nessa direção. Inicialmente, eu desenho um mapa do processo com uma sequência de diversas ações práticas. É um roteiro, com listas de propostas e indicações que eu registro em fichas e que guiam minha voz durante a orientação do trabalho. Levo também trechos de teorias e poesias que possam inspirar as movimentações, tanto as minhas quanto as dos participantes. Trabalho com uma escuta atenta ao que se apresenta durante o processo para poder executar eventuais modificações na rota prevista no sentido de provocar novas descobertas e propor diferentes caminhos de experimentação. Assim, tenho elementos para cocriar durante todo o percurso. Experimentar as ações criativas a partir da vivência do vazio e da respiração com foco na expressão da voz. Investigar a potência do vazio no caminho da manifestação vocal com base em alguns princípios. Há um trabalho criado e desenvolvido há anos. Há algumas entrevistas realizadas. Há diversos livros. Há fichas de processos criativos. Há cadernos que registraram ideias, percepções, sensações e descobertas. Há cadernos de treinamentos e de diversas disciplinas cursadas no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas no Instituto de Artes da UNESP. Em uma combinação de ações recentes com esses outros materiais, acredito possibilitar a abertura de um compartilhamento mais profundo sobre a pesquisa. Estou sozinha em frente ao meu computador, mas, dialogando o tempo todo com meus pares. Converso com possíveis leitores deste texto. Converso com artistas e pesquisadores dos mais diferentes perfis e que possuem, ao mínimo, uma característica comum: o interesse pelo caminho de expressão do eu criativo. Ao falar em eu criativo, trago uma terminologia da filosofia taoista e que se aproxima da ideia da criação relacionada a algo que é essencial e natural em cada um de nós, da potência que pode ser manifestada através do ato criativo. SUMÁRIO 1 introdução 10 2 primeiro ciclo: esvaziamento 22 2.1 praticando o esvaziamento, da quietude ao movimento 23 2.2 esvaziar os espaços 29 2.3 vivenciar a respiração 35 2.4 tornar-se respiração 42 2.5 movimentar o sopro, caminhar com suavidade 46 2.6 o silêncio positivo, a escuta profunda 52 3 segundo ciclo: experimentação 58 3.1 atravessando espaços 59 3.2 dançando a voz 62 3.3 o acaso e a pausa na composição 72 4 terceiro ciclo: composição 81 4.1 as perguntas e o programa 82 4.2 a poética da natureza e o espaço vazio 86 4.3 cantar através do vazio ou a não-ação na ação 90 5 impressões 100 bibliografia 106 ato! 111 10 INTRODUÇÃO ato! caminho entre potência e manifestação Este título é uma possibilidade de máxima ampliação do núcleo que trago neste trabalho. Pensar no ato como a ação que concretiza a manifestação de qualquer potência. "No sentido ontológico, o ato se opõe à potência, assim como o real (o que é feito) se opõe ao possível (o que pode ser feito). 'O ato é, para uma coisa, o fato de existir na realidade', dizia Aristóteles". (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 65). Nesse sentido macro, poderia pensar em estabelecer estratégias que facilitem os caminhos de criação, mas a generalização causaria lacunas em relação ao tipo de criação e de manifestação, sobre quem (ou o quê) estaria executando este movimento, sobre a forma e o meio para que isso ocorra. Trazendo essa ideia fundamental para o processo criativo no qual baseio a pesquisa, faço a reflexão a partir de um trabalho que considera o ato como o caminho artístico que se concretiza na voz em movimento pelo espaço. Ao final de todo processo criativo, uma ação é criada para que as experiências vivenciadas possam ser manifestadas artisticamente. Através de práticas de esvaziamento e da "indissociação do som e do movimento 11 do corpo na produção da voz", como sugere Ernani Maletta. (LIGNELLI; GUBERFAIN, 2019, VIII). Processos criativos são efêmeros e estão em constante transformação. O ato! poderia ser chamado de uma aula, de uma prática, de uma brincadeira, mas, eu escolhi chamar de caminho em função dos princípios taoistas que também fundamentam o trabalho. O Caminho gera o Um, O Um gera o dois, O dois gera o três, O três gera os dez mil seres. Os dez mil seres cobrem-se com o obscuro e abraçam o claro E se harmonizam através do Esplêndido Sopro (LAO; WU, 2011, p.218) O Caminho é o Vazio, um espaço em que não há manifestações; o Um é a manifestação desse Vazio, onde há a união das energias opostas e complementares yin e yang, configuradas na imagem do Tai Chi. A partir do Um, inicia-se a multiplicidade das manifestações: o Um se desdobra em dois, céu - terra, representados por yin e yang separados; do dois nasce o três, céu - homem - terra, que traz a ideia da integração das polaridades, tendo o homem como fruto. E do três, então, surgem os dez mil seres. Dez mil são uma medida simbólica que representa todas as manifestações do Universo. O obscuro e o claro são energias yin e yang que, quando colocadas em relação uma à outra como no poema acima, transmitem a ideia de equilíbrio e harmonia. O Esplêndido Sopro representa a força do Vazio. (LAO; WU, 2011, p.218). Podemos relacionar esse poema taoista à proposta de processo criativo que trago neste trabalho: a partir de movimentos que transitam entre o zero e o três, entre as práticas de esvaziamento e a manifestação da ação. Experimentando movimentos entre o yin e o yang, percebendo o sopro, vivenciando a respiração, dançando a voz e percorrendo vazios durante todo o caminho. 12 o caminho e os vazios Desde 2007 eu crio e oriento processos de criação. Naturalmente, meus estudos e processos individuais influenciam esse trabalho e vice-versa e, mesmo quando eu não conhecia nada da cultura taoista, eu já aplicava alguns conceitos relacionados a seus fundamentos filosóficos. Acredito que essa identificação com os princípios foi o que motivou minha aproximação com a cultura através de estudos teóricos e práticos. Conheci a Sociedade Taoista em 2015, quando comecei um curso de introdução à filosofia taoista, ministrado pelo Sacerdote Wagner Canalonga, Mestre Regente da Sociedade Taoista do Brasil, e realizei minha iniciação espiritual. Continuo participando de palestras, cursos, práticas de meditação, chi kung e cantos tradicionais, em modo virtual desde o início da pandemia. O Taoismo é uma tradição ancestral e, como tal, tem a contribuição de diversas pessoas na criação de seus ensinamentos, elaborados ao longo dos tempos. A filosofia, a ciência, a cultura e a religião caminham juntas. A transmissão dos ensinamentos é muito viva, algo entre a solidez característica dos antigos textos sagrados e a diversidade de materiais mais atuais, construídos a partir das relações entre variados mestres e discípulos. A tradução literal de Tao, em chinês, é algo como caminho, estrada. Nessa perspectiva, podemos considerar a vivência prática dos ensinamentos, pensando simultaneamente no próprio caminho, no ato de caminhar e em quem está caminhando. O Tao é a união desses três elementos. Na língua japonesa, o Tao chinês é o Do, que também indica caminho. Como em Judô, caminho da suavidade, Shodo, caminho da escrita e Kendo, caminho da espada. Os mestres indicam que os caminhos, bem como seus aprendizados espirituais, sejam aplicados na vida cotidiana, buscando a simplicidade nos mais diversos aspectos, sem complexidade, com paz no coração e liberdade no mundo. 13 O Tao Te Ching, considerado um dos livros fundamentais do Taoismo, traz poemas escritos por Lao Tse. A edição que utilizo foi traduzida diretamente do chinês e é comentada pelo mestre Wu Jyh Cherng, que dedica seu olhar filosófico (e também poético) às interpretações citadas neste trabalho. O conceito de vazio para o Taoismo se desdobra nos textos do Tao Te Ching, em estudos, artes e práticas taoistas. De forma bem sintética, podemos refletir sobre este conceito a partir de duas ideias que tanto se relacionam como também contêm suas próprias especificidades. Enquanto o Vazio Primordial é a grande fonte, potência, a origem de tudo e que acolhe todas as manifestações, o vazio é a oposição do cheio, do preenchido, e também pode ser pensado como as aberturas possíveis no caminho e que proporcionam a geração das manifestações. Nos próximos textos e práticas, há reflexões sobre ambos, Vazio e vazio, mas, é principalmente com esse último que se relaciona este processo criativo. caminhos das vozes Alguns anos antes de conhecer o Taoismo, vivenciei mais uma iniciação em um outro caminho. Como eu danço desde a infância, a movimentação do corpo na dança sempre me pareceu muito natural, o mesmo não acontecia com a voz; pra mim, o corpo e a voz eram duas expressões completamente dissociadas e minha relação com o canto, algo distante e complexo. Eu achava que cantar era um dom para poucos. De qualquer forma, de vez em quando eu tinha uns rompantes e buscava algum tipo de aula de canto. Em 2002, pouco tempo depois de ter finalizado minha graduação em Comunicação Social, estava folheando um folder de cursos de expansão cultural do Instituto Sedes Sapientiae e encontrei uma proposta que se chamava Movimento, Respiração e Canto. Só o fato de relacionar o movimento (que eu associei à dança) com o canto, já me interessou. Fiz o curso e conheci, na prática, um pouco da 14 pesquisa de Wânia Storolli. Em 2010, retomei essa busca, mas, naquele momento, queria participar de um trabalho continuado. Cheguei ao Estúdio Nova Dança e à pesquisa O Caminho do Canto, de Andrea Drigo. Participei semanalmente do treinamento e concluí uma formação de dois anos sobre os princípios d'O Caminho. Talvez seja interessante pontuar que fui apresentada à filosofia taoista durante as práticas n'O Caminho, portanto, as temáticas da voz e do vazio já estavam relacionadas desde o começo da trajetória desta pesquisa, embora eu não tivesse essa consciência na época. Aquela voz certamente vem de uma pessoa única, inimitável como qualquer pessoa, porém uma voz não é uma pessoa, é algo suspenso no ar, destacado da solidez das coisas [...] a voz poderia ser o equivalente daquilo que a pessoa tem de mais oculto e de mais verdadeiro. (CALVINO, 1995, p.46) No conto Um rei à escuta, Italo Calvino conta a história de um rei que representa a audição e, como um líder controlador, julga, permite ou interrompe os sons que se apresentam no reino. Entre os diversos sons que ouve, há a presença de vozes. E aí se encontra o ponto central do conto: como essas vozes se apresentam e como são percebidas pela audição do rei. Com um alto grau de percepção auditiva, o rei ouve todos os sons. Quando as palavras são proferidas, os significados não são levados em consideração pela avaliação do rei, seu foco está no som, na "substância fônica", no "timbre vocal" (CAVARERO, 2011, p.16). Vozes repletas de intenções e desejos reverberam pelo palácio. Vozes que se distanciam da naturalidade, da verdade de quem as emite. Talvez desejando agradar? O que importa é que o rei nota a superficialidade e o esforço contidos nessas vozes. Mas, algo diferente é percebido pelo rei quando ele escuta a voz de uma mulher cantando uma canção já conhecida. O que a destaca das demais vozes está relacionado ao "prazer que esta voz põe na existência [...] O prazer de dar uma forma própria às ondas sonoras". (CALVINO, 1995, p.47). A percepção de que aquela voz tinha algo único, a unicidade do humano expressa na qualidade singular 15 de cada voz. A experiência de escutar essa voz potente, cheia de vida, transformou o rei, que abriu mão de sua postura sempre rígida e reativa. O rei abre sua escuta e se coloca inteiro, de corpo presente, apenas para ouvir aquela voz. Potência, vida e prazer expressos na voz do emissor; uma voz capaz de causar transformações no estado de um receptor com a escuta atenta. Voz e escuta em relação. Corpos em relação. Vozes em relação. Esse conto de Calvino destaca pontos fundamentais que são desenvolvidos no trabalho de Adriana Cavarero, e com os quais traço alguns diálogos ao longo da pesquisa. Ao investigar a voz, Cavarero extrapola as relações com a respiração, o ar e a palavra, trata do aspecto da unicidade e do seu caráter relacional. Cada voz é única, expressa a singularidade de cada ser humano, está sempre associada a uma escuta e manifesta a relação indissociável, como já citada, entre o som e o movimento do corpo. Ela comunica algo além do que as palavras podem dizer, não se limitando aos seus significados. Representa uma unicidade capaz de revelar aos ouvidos sensíveis o mais sutil em cada um. E sendo a voz uma manifestação da natureza, segue também ciclos dinâmicos de transformação, pulsando entre o yin e o yang, entre o repouso e o movimento, entre o silêncio e o som. sobre esta pesquisa Investigar a relação entre vazio e voz, que se desenvolve durante o ato!, é a experiência de estudo desta pesquisa. Não falo em objeto de estudo por tratar aqui de um processo, que possui características do efêmero, do impermanente, mais próximas da ideia de experiência. O ato! é um processo criativo que se conforma pela vivência de três ciclos: o esvaziamento, a experimentação e a composição; sendo, assim, um 16 trabalho em constante transformação, mas que contém princípios que têm se apresentado ao longo dos anos. Alguns foram inseridos ao trabalho de forma mais consciente e outros surgiram naturalmente em função de experimentos e necessidades das próprias ações. O ato!, portanto, é o recorte escolhido para aprofundar a pesquisa entre seus dois principais fundamentos, o vazio e a voz. E, a partir de uma certa divisão entre os ciclos do trabalho, será possível discorrer sobre os desdobramentos dessa relação. Falo em certa divisão porque cada ciclo tem seu próprio objetivo, mas, todos acabam se mesclando e se fundem, de alguma forma, durante a trajetória. Com o núcleo e a estrutura básica definidos, as reflexões da pesquisa são pautadas entre as referências, nas quais se baseiam a definição dos conceitos de vazio e voz, e o diálogo com outros artistas e pesquisadores que tratam desses assuntos em suas próprias experiências, sejam práticas ou teóricas, a partir de perspectivas similares. A partir de quais olhares falar sobre o vazio e a voz? Com quais trabalhos traçar relações? Responder essas perguntas levou a certas escolhas, que colaboraram para se chegar à forma final desta pesquisa. Escolhas, em sua maioria, baseadas na identificação. Aquele tipo de trabalho, texto, aula, prática ou experiência que causou algum impacto; nem sempre suave e, por diversas vezes, incômodo. De qualquer forma, foram acontecimentos que influenciaram um modo de pensar e agir e têm transformado minha forma de trabalhar neste processo criativo. Ao pesquisar mais sobre alguns deles, foram surgindo outras tantas referências. Em um repertório de novas e antigas propostas, escolhi aquelas que possibilitam maior aprofundamento da reflexão seja por confirmar e ampliar a percepção de certas ideias ou por apresentar alguns sentidos diferentes. Entre afirmações e negações, abrem-se também possibilidades de novas aplicações práticas no próprio processo. 17 Mesmo a partir dessas diretrizes apresentadas, ao pensar sobre uma pergunta primordial que guia esta pesquisa, imagino algo assim: como proporcionar maior liberdade à expressão da voz? Acho que os outros questionamentos e desejos circundam esta busca primária. Penso na liberdade da expressão da voz na cena, mas, expandindo este estado para a vida cotidiana; acredito que as transformações e revelações da manifestação da voz caminhem em uma via de mão dupla, o que foi vivenciado em um âmbito pessoal reverbera no artístico e vice-versa. Talvez, mais uma vez por identificação, trago nesta pesquisa artistas que se dedicam a certos treinamentos que podem ser considerados como práticas de cuidados de si, como a meditação, e também a algumas linhas filosófico-religiosas como o taoismo e o budismo. As análises são pautadas em função de seus trabalhos artísticos, mas não considero suas escolhas pessoais uma coincidência. Expandindo a pergunta original, e tendo como base minha própria experiência prática, sigo algumas pistas: como a vivência e a busca por vazios podem facilitar a manifestação da voz em diversas camadas expressivas? Seria melhor, talvez, uma reformulação dessa questão: como as experiências de esvaziamento podem potencializar a manifestação das vozes? Não me pergunto se isso é ou não possível, pois já parto do princípio de que existe, sim, uma potência a ser investigada nesta relação vazio-voz. Isso me baseando nos trabalhos e estudos que envolvem a pesquisa em momentos anteriores e que têm refletido no desenvolvimento do ato! desde o início. Penso que me abro, principalmente, a refletir sobre o "como", sobre as estratégias e possibilidades que podem proporcionar um campo de maior liberdade para a manifestação da voz através da vivência do vazio. Hoje me interessam as vozes que podem surgir de forma mais orgânica, natural, a partir do corpo em livre movimentação, em suas performances autorais, em suas próprias composições e improvisos. Certamente, há trabalhos que também miram no desenvolvimento (e exploração?) da vocalidade na cena e, provavelmente, 18 consigam atingir esse objetivo mais rapidamente ou com resultados até mais nítidos se olhados a partir da lente técnica do canto, por exemplo. Mas, como isso acontece? O processo me importa, as revelações ao longo do processo me interessam e, por isso, eu considero o ato! como um caminho de criação. O que este processo pode gerar, independente do rigor técnico? Talvez, em fases futuras da pesquisa, valha investigar outros tantos conceitos e estratégias que podem potencializar o trabalho, além dos que são aqui apresentados. Por ora, um olhar para o vazio e suas implicações práticas tem gerado embasamento e descobertas suficientes para as principais questões do trabalho, sendo que elas se desdobram ao longo de todo o texto. Mesmo com o repertório de diversos processos criados, achei fundamental trabalhar com atos específicos para esta pesquisa. Assim, transitei entre o desenvolvimento do texto e a prática, possibilitando inspiração e transformação de ambos entre si. Desde a primeira vez que orientei um processo de criação, muito se (e me) transformou, mas, optei para este momento não trazer referências diretas aos trabalhos passados por acreditar que os exemplos poderiam direcionar a conversa com o leitor para outros caminhos e questões, sendo que o foco são os fundamentos e como eles se relacionam. No início da pesquisa, havia previsto orientar processos a um determinado grupo e refletir sobre as questões com os participantes do trabalho, porém, o contexto da pandemia mais o desejo de me colocar em criação artística me levaram à outra decisão. Planejei alguns roteiros e depois os vivenciei na prática, seguindo a programação de fichas e a orientação da minha voz gravada. Em relação aos ciclos do processo artístico, além de pontuarem as fases do ato!, eles inspiram a divisão da pesquisa em capítulos que seguiram as mesmas nomenclaturas. Desta forma, tanto a investigação quanto a leitura podem tomar rumos mais fluidos e coerentes com a ação prática. Em cada capítulo, os textos também seguem uma sequência de assuntos 19 baseada nas ações de cada ciclo. Por mais que os processos sejam únicos, os ciclos praticamente mantêm seus objetivos dentro das diversas propostas. Tomei como base o roteiro de um desses novos processos criativos para colaborar com a ordenação dos textos, sendo que os próprios assuntos também sugerem certos movimentos. Em relação à escrita, por diversas vezes, entro em certa divagação, com frases curtíssimas e algumas repetições de palavras e verbos de ação. Esvaziar meu pensamento nessa dinâmica também me transportou para o ritmo das próprias ações do processo, me movimentando em direção a algumas descobertas, como se, pela repetição, fosse possível chegar ao núcleo da ideia, da prática. Após o desenvolvimento dos três capítulos, compartilho minhas principais impressões da pesquisa, com algumas conclusões e possíveis novos rumos do trabalho. Ainda como parte do estudo, há um espaço destinado a quem quiser se relacionar com este conteúdo de uma forma mais prática; é um material independente e complementar ao texto. sobre os capítulos Esvaziamento - o primeiro ciclo do processo e também o momento em que teço reflexões sobre o vazio na prática criativa, seja enquanto abertura de caminhos, espaço, respiração ou treinamentos. Priorizo aqui levantar princípios e fundamentos dos trabalhos citados em relação às ações desenvolvidas no ato!. Trato da ideia de esvaziamento dos espaços (do corpo e do ambiente de trabalho) a partir de artistas como Yoshi Oida e José Gil. Sobre respiração, trago algumas referências da pesquisa de Wânia Storolli e Antonin Artaud. Enquanto treinamentos, falo de técnicas que eu pratico: a Meditação e o Chi Kun, duas artes taoistas que aplicam o conceito de vazio em repouso e em movimento. Trabalho com os 20 conceitos de Silêncio Positivo e Limpeza de Ouvidos, desenvolvidos por Murray Schafer, relacionando com propostas artísticas de John Cage. Experimentação - neste ciclo, os conceitos filosóficos entram em movimento criativo a partir da manifestação das vozes. Inicio com a ideia de atravessar espaços a partir da percepção do corpo e do ambiente. No próximo passo, falo sobre experimentação vocal a partir de Paul Zumthor e Adriana Cavarero, e apresento alguns fundamentos e exercícios d'O Caminho do Canto. No último texto deste capítulo, retomo Schafer e Cage, mas, com foco na relação entre o acaso, a pausa e a composição, a partir da obra 4'33'' de Cage. Composição - no último capítulo, desmembro o ciclo em três momentos principais: a criação do programa da ação, inspirada pelo conceito de programa performativo de Eleonora Fabião; a poética da Natureza e do espaço vazio na cena; e, por fim, trato da ação em si. Sobre a ação, optei por, diferentemente dos outros textos, não compartilhar tanto minhas experiências atuando nos processos criativos. Preferi deixar mais espaço para que o leitor pudesse criar suas próprias imagens e foquei no desenvolvimento da proposta de uma voz que canta através do vazio, a partir do conceito taoista wu-wei e em relação a trabalhos de artistas como Meredith Monk e Sara Belo. Impressões - faço aqui referência ao nome de uma das últimas ações que apresento no ato!. Esvazio em palavras a experiência vivida no trabalho, colocando, portanto, algumas conclusões, percepções, novos questionamentos, ideias e próximos passos em um texto mais fluido. ato! - ao final do texto, apresento um roteiro completo com indicação de ações descritas em fichas específicas para cada ciclo do trabalho. Para tornar esta experiência mais próxima de um processo presencial, incluí um áudio com a minha voz como guia. É uma forma de complementar a 21 pesquisa e também inspirar novos processos por outras vias. A voz, em palavras escritas e vocalizadas, atuando na orientação deste processo criativo. Entre referências teóricas e práticas, apresento muitas questões e algumas expressões que fazem parte da filosofia taoista. Convido você a se entregar à leitura como uma experiência prática, de corpo inteiro, sem perder o fluxo do texto. Ao invés de se esforçar para tentar compreender algo desconhecido logo no primeiro momento, sugiro que silencie, respire, abra sua escuta para os sons ao redor, para o espaço e, então, continue lendo; que você se esvazie, se deixe levar. Se preferir, leia depois novamente, mas sem forçar a busca por significados ou respostas rápidas. Faz parte do processo um certo estranhamento. Vamos seguir juntos. Permita-se entrar no contexto do trabalho e deixe que as conexões e a elaboração surjam ao longo do caminho, do ato!, proporcionando à leitura uma verdadeira vivência. Afinal, "[...] um texto só existe, verdadeiramente, na medida em que há leitores (pelo menos potenciais) aos quais tende a deixar alguma iniciativa interpretativa". (ZUMTHOR, 2018, 24). Assim, em um curto período de tempo, que envolveu a participação em diversas disciplinas no Instituto de Artes, leituras, seminários, produção de textos e, entre uma pandemia, mortes, duas gestações e uma nova vida, este ciclo da pesquisa foi finalizado, conformado em um estado de emergência para nascer, como mais uma cesárea de urgência, como um ato de resistência! Boa leitura! Boas práticas! 23 ESVAZIAMENTO praticando o esvaziamento, da quietude ao movimento eu, esta sala, um pouco de silêncio. janelas abertas, o ar que circula. inspiro esse ar, movimento meu corpo, relaxo. expiro suavemente. inspiro, expiro. sento, acendo o incenso. enquanto ele queima, seu aroma ocupa o espaço. inspiro. expiro. tomo um gole de chá. devagar. o calor e o gosto da erva percorrem minha boca, minha língua, lábios, garganta, o meu corpo. fecho os olhos e parece que sinto mais o sabor do chá, o perfume do incenso. que ouço mais o silêncio. fumaça, cinzas. entrego-me ao chão. sinto seu apoio, acolhimento. aos poucos, o movimento do corpo parece cessar e sinto apenas minha respiração. no escuro, repouso. no escuro, respiro. Eu poderia sintetizar o primeiro ciclo desta proposta de criação como uma combinação de práticas e ações que podem favorecer a vivência de estados de quietude. Quietude que pode se configurar em repouso, no silêncio, na pausa, na escuta e também em alguns movimentos, em fluxo consciente com a respiração. Quietude para proporcionar mais presença, 24 para gerar mais espaço no corpo, para aprofundar a escuta e enxergar frestas por onde compor os movimentos. Este é um momento de chegada a este processo criativo. Desligando-se de informações externas para iniciar uma experiência com foco e disponibilidade, experimentando o momento presente. Se o início da proposta costuma acontecer mais em repouso, aos poucos, exercícios próprios do Chi Kun e do Tai Chi Chuan são apresentados para ativar energeticamente o corpo, retomando a movimentação e trazendo maior consciência na relação da respiração com gestos e deslocamentos. A percepção do espaço, com seus elementos sonoros e visuais, é um convite para aproveitar o instante, abrindo-se para os ciclos seguintes. "O turvo, através da quietude, torna-se gradualmente límpido/ O quieto, através do movimento, torna-se gradualmente criativo". (LAO; WU, 2011, p.90). Quietude e movimento são como dois lados de uma mesma moeda e, como tal, ambos seguem um fluxo de constante transformação, ocupando ora um espaço, ora outro. E é nesta dinâmica entre as forças yin e yang que as criações acontecem. Práticas de silenciamento podem facilitar a transformação do turvo em transparente para que, a partir de um estado esvaziado, se inicie um novo movimento. Treinamentos de artes corporais taoistas, como o Chi Kun e o Tai Chi Chuan, possibilitam a compreensão desse contexto em experiência, na ação. Talvez o que mais diferencie um treinamento continuado de uma outra prática seja o tempo e a dedicação disponibilizados para a atividade. Nem sempre um processo criativo é capaz de priorizar essas demandas. Nem sempre os participantes do processo seguem os mesmos (ou algum) treinamentos entre si. Independente das causas ou situações que rondam esse cenário, aqui se estabelece uma questão. Como propor um caminho, normalmente curto, mas que parte de um estado que pede um tempo, normalmente longo, para ser conquistado? 25 Mais do que considerar uma determinada preparação prévia do participante, acredito que a experiência com alguma prática de silenciamento pode facilitar a vivência em um processo criativo como o ato!, por exemplo. Parece que, de alguma forma, o tempo das coisas pontua essa problemática de forma geral. Já orientei workshops de um dia e até de poucas horas a pessoas com pouca ou nenhuma intimidade com quaisquer práticas de silenciamento. Percebi algumas vezes que o nível de disponibilidade para as propostas criativas que viriam na sequência era proporcional à entrega no momento inicial de esvaziamento. Mais do que uma simples sensação, havia relatos ao final do trabalho sobre a dificuldade de permanecer em silêncio, o medo da exposição, do julgamento, a vontade excessiva de acertar (o que, às vezes, direcionava as escolhas criativas por propostas ou movimentos já conhecidos). E, normalmente, as pessoas que conseguiam experimentar mais livremente as ações, aproveitando as experiências em tempo presente, eram as que estavam menos conectadas com essas outras preocupações, que estavam mais presentes, mais esvaziadas. Voltando ao problema: como orientar, então, este caminho criativo mantendo seu princípio de vivenciar o esvaziamento antes da criação? Levando em consideração que pretendo manter este caminho aberto a qualquer pessoa, independente de sua formação pessoal ou técnica, uma pista que me parece fazer sentido é focar nos fundamentos de práticas de esvaziamento, adaptando o formato e as estratégias das propostas para cada processo. Por aqui, que sigo a pesquisa. Em relação ao conceito do vazio, que fundamenta este ciclo, proponho principalmente ações que levam em consideração o vazio como sendo o oposto do cheio, enquanto um caminho, enquanto espaços esvaziados, repouso, silêncio e pausas que podem proporcionar maior disponibilidade, fluidez e presença. Mas também, aproximo o trabalho o máximo possível do Vazio Primordial que, segundo o taoismo, é a fonte da potência e de todas as criações. Atuando com essas duas ideias, oriento um caminho de 26 aberturas para a posterior manifestação de vozes em movimento criativo. Entre as diversas artes taoistas, tanto a Meditação como o Chi Kun trabalham os conceitos filosóficos do vazio na prática. São dois caminhos complementares, de revelação e transformação. Enquanto a Meditação atua com o conceito de vazio no repouso (no caso da principal técnica com a qual relaciono este trabalho), o Chi Kun atua com o vazio através do corpo em movimento (mesmo com um repertório que inclui posturas fixas, a grande maioria se desenvolve na ação). Aquietar-se para esvaziar e, a partir de então, movimentar-se para criar. Mesmo sendo dois vetores com sentidos diferentes, ambos se fundamentam na experimentação de vazios. Esvaziar-se das múltiplas intencionalidades, desejos, expectativas, conectando-se com o sopro e vivenciando a respiração conscientemente. A respiração é uma chave importante deste trabalho. Tenho percebido que todas as ações, referências e estratégias levam em consideração a atenção aos fluxos da respiração. Continuando o caminho deste processo criativo: mergulhar na potência do vazio, do silêncio, energizar e ativar o corpo para deixar a manifestação criativa emergir com naturalidade. Naturalidade é outro ponto fundamental. O que é agir naturalmente em uma proposta de criação artística? Desenvolvo mais essa questão ao longo do trabalho, mas a principal indicação é de que a naturalidade está relacionada ao conceito taoista de wu-wei, a não-ação, a ação que ocorre com o mínimo possível de expectativas ou intenções previamente estabelecidas; a ação que flui pelas frestas, a partir de espaços vazios, como o fluxo livre da água na natureza; uma ação criada entre dinâmicas yin e yang, desenvolvida em gestos, movimentos e em relação ao espaço e ao outro. Tantos conceitos teóricos que se complementam e, provavelmente, façam mais sentido na prática e ao final deste trabalho. 27 [...] Essa noção de vazio e de pleno nos leva ao intra-sensorial de que falávamos no início da entrevista, à capacidade de ir além da percepção, isto é, de alcançar uma zona de silêncio que teria parentesco com um vazio. E esse vazio é meu trampolim. É porque sou capaz de fazer essa operação, de ir rumo ao vazio que vou poder criar a dinâmica do pleno - em suma trata-se de encher de vazio. Se estou completamente pleno, não posso mais me mexer. (GODARD, 2006, p.77) É preciso esvaziar o sentido de seu demasiado-pleno de pré-visão ou "vomitar a fantasmática do corpo", como diz Lygia Clark, para, a partir daí, atingir um estado de vazio que abre um novo potencial. O estado de silenciamento está mais relacionado ao cultivo do que a uma possível meta a ser alcançada; plantamos a semente, cuidamos e, em seu próprio tempo, ela floresce. Nossa intenção está na decisão de trilhar esse caminho e de se manter presente na prática. "Toda a investigação sobre o corpo requer este silêncio meditativo e concentrado, em que o sujeito do corpo parte à procura de si - do outro em si ou de si no outro". (LOUPPE, 2012, p.70). O interesse de performers por essas práticas pode ser compreendido, em primeiro lugar, a partir de certo entendimento contemporâneo da arte, como evento em que se desencadeiam e se exercitam modos mais sutis de percepção e de comunicação. [...] não são necessárias formas espetaculares, mas situações concebidas a partir de uma grande liberdade em relação às convenções da cena. (QUILICI, 2015, p. 48) As reflexões que desenvolvo sobre as práticas de silenciamento e as possíveis relações com o conhecimento de si e com o processo criativo nascem a partir da minha aproximação com a filosofia e com algumas práticas taoistas, e são fundamentadas pelas pesquisas de mestres e por outros artistas-pesquisadores. Tem algo nesse universo que extrapola o campo do treinamento técnico e se aproxima do treinamento como "técnica de si e como exercício transformador do sujeito" (QUILICI, 2015 p. 191) e o trabalho, de alguma forma, permeia esse ambiente. Dar mais 28 ênfase à vivência do que aos resultados diretamente relacionados à criação cênica e abrir espaços no processo para a experiência de estados profundos de percepção e consciência são decisões que podem influenciar o tipo de ação artística que será criada. 29 esvaziar os espaços abro os olhos. uma sala vazia, poucos elementos. a chaleira, uma garrafa de água, a caixinha de som, ainda desligada. o celular com a playlist, ainda pausada. fichas de trabalho em um canto. respiro. toco meu corpo, meu rosto. sinto minha pele. respiro. a fumaça pelo espaço. "O espaço entre o céu e a terra assemelha-se a um fole/ É um Vazio que não se distorce/ Seu movimento é a contínua criação". (LAO; WU, 2011, p.47). Podemos considerar o espaço a partir de diversos significados e sentidos. Olhando para o externo e para o interno, de forma macro ou micro. O que proponho, de início, é um processo de limpeza do espaço de trabalho e, então, diversas outras limpezas e aberturas dos vários espaços ao longo de todo o percurso criativo. Para começar esta reflexão, podemos pensar no grande espaço entre o céu e a terra; permeia ali uma energia sutil, invisível, algo que ainda não foi manifestado. Ao sofrer as compressões e dilatações provenientes dos constantes movimentos da terra e do céu, essa energia libera sua força vital e permite a criação e a transformação de todas as manifestações possíveis. Em comparação com o fole, podemos pensar na relação de 30 força e resistência que o objeto sofre, demonstrando que em um mesmo espaço vazio há uma potência capaz de expulsar o ar que se manifesta como vento, como som. Há um sopro capaz de ativar o fogo da lenha, por exemplo, e que, sem a movimentação do fole, não poderia ser manifestado. Sem o vazio neste espaço não haveria possibilidade da vida manifestada. Toda movimentação tanto do céu como da terra ocorre naturalmente, é o wu-wei. "E o ser humano é aquele que vive no espaço entre o céu e a terra [...]. Nada mais adequado para ele, portanto, que se orientar também pelas leis que regem a conduta do céu e da terra [...]". (LAO; WU, 2011, p.50). Experimentar a criação no espaço a partir desse contexto traz uma perspectiva de grande liberdade. Um espaço, que é vazio e, portanto, potencial para qualquer manifestação, criações e movimentações. Uma pessoa atuando entre céu e terra, conectando seus movimentos com os ciclos naturais de expansão e recolhimento, e "[...] se usarmos as imagens dos fios e nos movermos entre céu e terra, a ação se tornará mais fácil e conseguiremos foco para nossa concentração interior". (OIDA, 2001, p.44). Ao mesmo tempo em que nos conectamos com o espaço externo, temos a possibilidade de observar os movimentos internos, de criação e transformação. Talvez, para facilitar este caminho, seja interessante se enxergar sempre em relação, pulsando entre as diversas manifestações das polaridades yin e yang. Como a respiração, por essência, é este pulso yin e yang, é a dinâmica entre inspiração e expiração, de entradas e saídas do ar, talvez abrir a percepção para a sua movimentação possa colaborar para permanecermos conscientes e presentes em todo o processo. O homem pode experimentar tanto estados pesados e densos como estados de intensa luminosidade. Como filho do 'Céu' e da 'Terra' (imagem recorrente na alquimia) o ser humano contém em si possibilidades descendentes e ascendentes [...] a alquimia pretendia operar transformações na 'alma', partindo de seus aspectos mais 31 'grosseiros' e brutos para conquistar a qualidade 'nobre', de uma abertura para o 'espírito'. (QUILICI, 2015, p.93) A limpeza do ateliê (como eu gosto de chamar o espaço de trabalho) também pode se tornar a primeira ação prática de esvaziamento se nos colocarmos com a intenção de eliminar os excessos e organizar o material de trabalho necessário com atenção e foco, com o corpo disponível e presente na execução desta ação exclusivamente. Oida abre O ator invisível falando exatamente sobre a importância de limpar e esvaziar o espaço com concentração. Ele fornece indicações precisas e fala da influência desta ação com o treinamento da concentração do ator. Relaciona essa prática a um conceito da filosofia budista indiana, o samadhi, que basicamente se refere a um profundo estado de concentração em qualquer atividade. Além da importância do exercício para o desenvolvimento da concentração do ator, Oida traz a limpeza do espaço como uma atividade útil por si mesma e não apenas como preparação para algo que vem depois. "Essa abordagem de limpeza não está limitada ao ambiente onde se irá trabalhar. Temos igualmente de nos assegurar de que nossos corpos estão no mesmo estado de prontidão". (OIDA, 2001, p.26). A limpeza vai além da proposta de tirar a sujeira e outros tipos de excesso, ela está relacionada ao cuidado, em relação ao espaço físico externo e ao nosso próprio corpo. O espaço também "é o lugar das presenças, ou o presente como lugar [...]". (COMTE-SPONVILLE, 2011, p.203). Dificilmente há um repertório comum, seja de técnicas ou de referências artísticas, entre os participantes de um mesmo processo criativo, por isso, se torna importante a criação de um ambiente propício para que todas as pessoas tenham a oportunidade de experimentar e se beneficiar daquele espaço-tempo. "Como a área vazia não conta uma história, a imaginação, a atenção e os processos mentais de cada espectador ficam livres e desimpedidos". (BROOK, 2002, p.22). Por mais que Peter Brook esteja associando a ausência de elementos na cena como um potencial para a 32 livre imaginação do espectador, creio que seja inspirador considerarmos a poética de espaço vazio desenvolvida em seu teatro já neste início do processo de criação em relação à livre imaginação do artista. Oida oferece, como parte dos "toques finais", outras orientações como ter roupa e espaço específicos para o treinamento pessoal. Nesse caso, podemos também considerá-las como as primeiras ações para iniciar o momento de trabalho e separá-lo da vida cotidiana: [...] devemos estar num lugar especial - que devemos ter limpado antes - purificamos nosso corpo, imergindo-o na água fria, e vestimos um traje diferente. Feito isso, estaremos prontos para iniciar o trabalho. (OIDA, 2001, p.38) percebo o espaço que está à minha volta. possivelmente, este espaço, assim, só eu consigo vê-lo. um espaço construído a partir da minha visão, das minhas sensações, do meu corpo. corpo esse que está apoiado pelo chão, entre céu e terra, que ocupa o espaço, que é o próprio espaço. As palavras pouco falam ao espírito; a extensão e os objetos falam; as imagens novas falam, mesmo que feitas com palavras. Mas o espaço atroador de imagens, repleto de sons, também fala, se soubermos de vez em quando arrumar extensões suficientes de espaço mobiliadas de silêncio e imobilidade. (ARTAUD, 1999, p.98) "O espaço do corpo é o corpo tornado espaço". (GIL, 2001, p.19). Através da percepção do próprio corpo, pelo toque, pelo cheiro, pelo som, pelos deslocamentos, um novo espaço vai sendo construído. Ao sentir os apoios do corpo em relação ao chão e experimentar expansões e recolhimentos entre os planos baixo, médio e alto, abrem-se novos espaços internos. O corpo se alonga, algumas obstruções podem ser melhor percebidas, talvez dissolvidas. Espaços vazios podem ser criados. A respiração pode guiar 33 certos movimentos. Os gestos podem ser criados entre os vazios do ambiente e orientar os movimentos da respiração. Com calma, com atenção ao que está acontecendo a cada instante, uma nova noção pode se instaurar: um espaço-corpo. Então, "[...] cria-se um espaço interior 'paradoxal'. Que está e não está no espaço". (ibidem, p.75). Porque é mais por toda a superfície da pele do que através da boca, do ânus ou da vagina que o corpo se abre ao exterior. Esses orifícios estão a serviço de funções orgânicas de trocas entre o interior e o exterior. Mas raramente operam a abertura global do espaço interno (exceto no prazer sexual e na fala). A 'abertura' do corpo não é nem uma metonímia nem uma metáfora. Trata-se realmente do espaço interior que se revela ao reverter-se para o exterior, transformando este último em espaço do corpo. (GIL, 2001, p.69) toco minha pele, esticando, apertando e acariciando. abrem-se os poros. fluxos de energia se dirigem à pele. extravasam. vazam. sinto esta superfície contínua de espaço-pele, pele porosa, corpo poroso, corpo em espiral. neste momento, estou sozinha aqui. em tantos outros processos, havia o outro. outros. suas presenças físicas podiam ser percebidas, mesmo antes de tocar seus corpos. e, a partir da construção da noção de um espaço-corpo individual, essa presença de diferentes espaços-corpos iam compondo um espaço expandido, um espaço-entre. mesmo sozinha, só de pensar no outro, parece que meu corpo sente sua presença e começa a se movimentar e se manifestar entre as fricções e os vazios presentes e imaginados. Este novo espaço construído não está à parte do espaço externo. A sugestão é colocar-se conscientemente em relação ao ambiente, percebendo-se em relação aos seus elementos, em um processo de composição constante. Mesmo o elemento mais sutil como o ar, que está dentro e fora do nosso corpo, é capaz de ganhar diversas qualidades, 34 densidades, texturas e participa, em um fluxo dinâmico de transformações, da criação deste espaço-corpo que pode ser percebido pela própria pele que se estende pelo entorno. "O espaço move-se através de nós, mas também em nós, seguindo 'direções' internas, móveis e imóveis, com o auxílio das 'viagens interiores', talvez as mais importantes experiências humanas de espaço". (LOUPPE, 2012, p.189). 35 vivenciar a respiração assim, no chão, sinto meu corpo se esparramar. algo vai se despedindo. vou repousando. não apenas repousando. meu corpo vai sendo derramado, derretido pelo chão. vai buscando novas formas. vai buscando uma não-forma. cedendo. dando passagem aos fluxos de ar. fecho novamente meus olhos. fecho pra fora. abro pra dentro. inspiro suavemente pelo nariz. solto o ar pela boca, como um sopro. assopro. inspiro, contração. expiro, expansão. e neste vai e vem, inspiro, inspiro-me. o ar percorre meu corpo, passa pelos seus contornos e retorna, para fora, renovado. abro os olhos, mantenho o fluxo. olho as cinzas do incenso, para o efêmero do presente. impermanência. tempo que passa. eu passo. mas, agora, estou. A respiração, o primeiro movimento e também o último. Diante de tantas particularidades, esta constatação vale para todas as pessoas: o sopro marca o início e o fim das nossas vidas. A dinâmica entrada-saída existe para todos. A forma, não. São fluxos dinâmicos de inspiração e expiração; é o próprio movimento da nossa energia sutil no espaço. O ar 36 se dirige para dentro do corpo e retorna ao espaço, transformado, às vezes, como voz. Quando estamos dormindo, inspiramos e expiramos continuamente. Quando morremos, a respiração pára. Esses três padrões básicos de respiração (inspirar, expirar e parar de respirar) são o que temos na vida diária, e uma vez que o propósito do teatro é evocar uma experiência genuína da vida real, esses são os padrões que empregamos no palco. (OIDA, 2001, p. 128) De fora pra dentro, iniciamos, aos poucos, um processo de esvaziamento mais diretamente ligado ao nosso corpo. Ao fecharmos nossos olhos, trazemos atenção ao sutil, ao sensível, ao interno. Para trazer à reflexão os conceitos taoistas, podemos pensar que nos desconectamos um pouco dos elementos yang, do visível, do claro para aproximarmos nossa percepção do yin, do sensível, do escuro. Antes de falar sobre a respiração como elemento no processo de composição da ação artística, acho interessante pensar em como as práticas que se propõem a trazer mais atenção aos movimentos respiratórios também colaboram para a geração de um estado de presença, com maior consciência e disponibilidade corporal. E talvez aqui, a relação yin-yang para este trabalho comece a ficar mais clara. Os movimentos do corpo e do ar são exemplos da dinâmica entre o yin e o yang em nosso próprio corpo a partir de uma ação tão cotidiana quanto vital e comum a qualquer pessoa: a respiração. Essa percepção traz uma luz à pesquisa: o quanto a atenção à respiração ao longo do caminho é fundamental para um processo criativo que se baseia no vazio e na voz e, também, como a experimentação de oposições em nosso próprio corpo pode facilitar uma proposta mais conectada com a naturalidade. Ao inspirarmos, ao mesmo tempo que nosso corpo se contrai (yin), ele se enche (yang) de ar. Na expiração, o corpo se expande (yang), enquanto se esvazia (yin) de ar. "A plenitude de yin transforma-se na realização de yang - da força da inspiração surge a criação da expiração". (MIDDENDORF apud STOROLLI, 2004, p.62). Entre a inspiração e a expiração há a pausa, o instante vazio que está entre os 37 dois movimentos. E onde se encontra a respiração? Nem dentro nem fora do corpo. Ela está neste espaço entre, dentro-fora, entre mim e o outro, entre mim e o espaço externo. Este entre é o próprio vazio; e talvez aí tenha um espaço que valha mergulhar para experimentarmos a fonte de uma grande potência criativa, tão essencial ao trabalho do artista. Podemos pensar a cada pausa, a cada vazio presente nesta dinâmica da respiração, em mais uma abertura, mais uma possibilidade de gerar algo novo, seja para dentro ou para fora do nosso corpo. Mais do que manter a atenção nessa movimentação durante as práticas, é interessante apenas pensar nessa relação entre as oposições, entre a respiração e os movimentos do corpo, nesse "entre", durante as experimentações e ensaios para que, na hora da cena, na ação artística, seja possível se libertar do racional e apenas vivenciar a experiência. Mais meditativa é a experiência dos intervalos entre a dilatação e a contração do diafragma, com as suas apneias mais ou menos prolongadas (de pulmões cheios ou vazios, consoante o tipo do estado desejado). É neste lugar intermédio, no cruzamento das correntes opostas, que o mâ do pensamento zen japonês desperta. A respiração é abolida ou libertada, mais do que controlada. [...] O ato respiratório é, sem dúvida, uma das raras situações em que é possível abordar experimentalmente a dualidade da plenitude e do vazio e convertê-la numa escolha do corpo na dança. (LOUPPE, 2012, p.97) Quando eu inspiro, o que eu trago para dentro do meu corpo? Como meu corpo se mobiliza ao receber o ar? O que me inspira? Quando eu expiro, o que eu devolvo ao espaço? O que retorna ao ambiente? Quem eu inspiro? Como minha expiração se manifesta? São algumas questões que podem provocar reflexões e ações para o trabalho com a respiração em um processo de criação artística. Entre as práticas que evidenciam a importância da respiração, há diversas perspectivas diferentes sobre sua relação com movimento e ação. Enquanto umas priorizam trabalhar com alterações do ritmo espontâneo 38 da respiração a partir de certas orientações específicas de controle, outras seguem uma abordagem mais conectada ao fluxo e às suas características naturais. Artaud considera a respiração um dos principais elementos do trabalho do ator. "Na relação entre o gesto e a palavra [...] ela é responsável pelo resgate e pela manutenção da vida do que é executado pelo ator em cena". (BONFITTO, 2011, p.59). Assumindo-a como uma ponte entre os processos internos e as ações externas, associa uma respiração mais adequada a cada momento, a cada sentimento. "O ator desejado por Artaud não pode se deixar governar por suas emoções; pretende-o com tal domínio técnico do corpo e da voz, que se torne capaz de emitir o signo exato, no momento oportuno". (AZEVEDO, 2017, p.20). Propõe um trabalho voluntário da respiração para proporcionar a criação de gestos e ações determinadas. Sugere que, a partir de certas alterações intencionais da respiração, diferentes estados podem ser revelados para, então, serem controlados pelo ator. "O que a respiração voluntária provoca é uma reaparição espontânea da vida". (ARTAUD, 1999, p.155). Seguindo por um caminho que permite a livre movimentação da respiração, abrindo mão de controlar seu trânsito entre os espaços internos e externos do corpo, a alemã Ilse Middendorf desenvolve a Respiração Vivenciada. A chave para vivenciar a respiração, conforme pretendido por Ilse Middendorf, está na palavra alemã lassen, que significa 'deixar, ceder, deixar de fazer, permitir'. Segundo Middendorf, o processo de vivência da respiração não pode ser realizado pelo 'fazer'. Deve-se antes 'deixar que ele ocorra', uma diferença sutil e, muitas vezes, difícil até mesmo de perceber. (STOROLLI, 2019, p.58) Trata-se de ceder espaço à experiência, de permitir a movimentação natural da respiração de forma consciente, testemunhando o próprio processo. Outro fundamento que possibilita a prática deste trabalho é a 39 vivência da tríade "concentração - percepção - respiração". Desenvolve-se o conhecimento do corpo a partir dele mesmo e uma vez vivenciada a experiência, essa se torna uma "experiência incorporada", pois ela passa a fazer parte do corpo. "Sem certo ou errado, o movimento respiratório é percebido diversamente por cada um, já que a percepção é um processo individual, assim como o processo de respiração". (STOROLLI, 2019, p.67). Durante o ato! eu apresento caminhos possíveis para vivenciar a respiração em relação aos movimentos de forma mais natural, abrindo espaços para a manifestação vocal, sem direcionamentos específicos de controle da inspiração ou da expiração, mas, sim, priorizando o jogo e a exploração. Não há esforço ou intenção para controlar qualquer movimento da respiração; apenas a disponibilidade para que ela se manifeste em seu próprio fluxo. Esse estado requer tranquilidade tanto para não alterar o tempo da ação como para perceber entradas e saídas do ar e tudo que isso pode movimentar no corpo de cada um. Os trabalhos que tratam a respiração como uma ferramenta para se atingir determinados objetivos criativos podem diminuir sua importância por si só. Diante dessas situações, o próprio corpo também tende a ser um meio para expressar ou alcançar certos estados. Nesse contexto há uma visão fragmentada do corpo e que também minimiza a relação da respiração enquanto energia e movimento vital capaz de guiar um caminho sensível e profundo de percepção de si. Particularmente, me interessa menos esse contexto e pesquiso caminhos que consideram uma visão mais integrativa entre corpo-respiração. Mesmo em um trabalho de livre experimentação, como a respiração se relaciona diretamente com o movimento e a vibração do corpo, e esses, com os gestos, os deslocamentos e a voz, pode ser muito potente explorarmos as diversas possibilidades de combinações entre os 40 elementos. Às vezes, a sutileza da respiração só pode ser percebida em função do movimento. Outras vezes, ela é tão intensa que chama mais atenção do que o movimento do corpo. Dissonâncias e consonâncias. Equilíbrios e desequilíbrios. Experimentos variados, mas que sempre refletem algo além do visível. Ao vivenciar a respiração, nos permitimos vivenciar também o momento presente. Tal estado de atenção e percepção pode proporcionar experiências de extrema potência tanto durante o processo como na cena. Azevedo diz que um ator em estado de concentração e presença tem seu corpo iluminado. "Toda sua energia está voltada, todo o tempo, para seus afetos e sua mente manifesta-se num tipo especial de brilho [...] algo pulsa nele enquanto representa". (AZEVEDO, 2014, p.180). Nos processos que desenvolvi para esta pesquisa, neste momento, nesta experiência, estou sozinha experimentando situações e práticas de esvaziamento. Porém, em outros processos de criação, quando há a possibilidade, gosto de sugerir a formação de duplas para que os participantes fiquem um em frente ao outro, sentados de forma confortável (corpo relaxado e com tônus) e se mantenham em silêncio, atentos apenas à respiração e ao olhar do outro. Nessa experiência de silenciamento é possível também iniciar um processo de esvaziamento, para aquietar a mente e os movimentos do corpo. A presença do outro, ali, à minha frente, permite maior atenção à minha própria respiração e uma potente experimentação, constatando que estamos sempre pulsando entre manifestações. Marina Abramóvic, com sua performance The artist is present (2010), extrapolou as fronteiras da sala de ensaio para vivenciar esta comunhão silenciosa com desconhecidos e em um contexto performático. Colocou-se sentada, em silêncio, disponível, presente, diante do outro. E a cada entre "duas pessoas", "dois estados de presença e silêncio", um espaço-tempo único foi gerado. "Não tenho a menor ideia de quanto tempo se passou. Mesmo depois, quando me informam, 41 percebo que não importa absolutamente sabê-lo". (BONFITTO, 2013, p.91). Cada referência aqui citada tem seus próprios fundamentos e objetivos. Além de refletir sobre possíveis afinidades e diferenças que possam contribuir para esta pesquisa, considero também construir outras relações nas aplicações práticas. De alguma forma, trago novas camadas ao dar ênfase a pontos específicos, como as dinâmicas yin-yang e a não-ação, agregando conceitos como a potência do vazio em todo o processo e expandindo as possibilidades de implementação da pesquisa a trabalhos que envolvem linguagens artísticas diversas e a participantes que não são artistas. Neste momento, vou me atentar ao fato da naturalidade da respiração ser fundamental para o ciclo de esvaziamento mais do que pensar sobre sua relação com o processo de composição. Inspirar suavemente pelo nariz, cedendo espaço para que o ar entre e percorra os espaços internos, sentindo os caminhos e se movimentando em relação a essa percepção. Expirar, deixar o ar sair naturalmente pela boca, como um sopro. E com a realização desta dança, entre o ar que é inspirado e inspira os movimentos do corpo e o ar que se mistura e transforma em (o) nosso corpo para retornar, já renovado, ao ambiente, podemos perceber as dinâmicas entre o yin e o yang, o dentro e o fora, a respiração e o movimento, além da energia física gerada neste fluxo. Um sopro vital que pode ser chamado de "substância" (MIDDENDORF apud STOROLLI, 2004, p.61), de energia, de Chi. 42 tornar-se respiração ruídos. repouso. ruídos. relaxo. ruídos. escuridão. ruídos. silêncio. sons. silêncio. apenas sons. inspiro. expiro. o vazio, mergulho. o máximo que eu consigo. mais. e mais e mais. e… Trago aqui a Meditação não pela necessidade de ser praticada como um treinamento para se atingir um certo objetivo. Apresento apenas uma técnica com a qual tenho experiência prática para relacioná-la ao trabalho criativo. Acredito que ela pode abrir um caminho de maior concentração e presença e é através de seus fundamentos que desenvolvo algumas das ações neste ciclo de esvaziamento. Na Sociedade Taoista em São Paulo, o principal método de meditação praticado é o Xīn Zhāi Fa, o método de purificação do coração. Para colocá-lo em prática, é preciso basicamente se sentar em quietude, buscar o silêncio interior e unir mente e respiração. Purificar o coração é se tornar a própria respiração. O ouvido e o coração têm uma clara limitação quanto às suas atuações: conseguem ouvir e contemplar. Mas o sopro, por ser o 43 vazio, é receptivo a tudo, tem o próprio caminho, o Tao, a ele relacionado. O sopro é o purificador do coração. (WU, 2008, p. 24). A Meditação é uma das práticas que pode auxiliar a recuperar nossa capacidade de escuta e de contemplação. Ela propõe um caminho em que, mesmo escutando os sons externos e internos, continuamos mantendo o "centro", em um estado de silêncio. Não se trata de estar alienado às coisas mas, sim, mais consciente. Não há aumento da sensibilidade aos sons mas, maior tolerância. Os pensamentos, emoções, ações, gestos e movimentos nascem do silêncio, de um estado de quietude interior, sofrendo menos interferência dos estímulos externos. Sentar no silêncio, sentar na quietude. Esta é a tradução literal, em chinês, da palavra meditação. "Sentar no silêncio é como levar o corpo e a mente a experimentarem um profundo descanso". (WU, 2008, p. 19). Encontrar o silêncio interior, mas antes, começar a desapegar de quaisquer informações externas e internas que se manifestem durante a prática. Mesmo entrando em um estado de profundo silêncio, o praticante mantém a consciência. Normalmente, os praticantes da meditação não têm tanta dificuldade com a postura em si. O ponto mais delicado é se permitir entrar no estado de quietude. E para colaborar nesta fase, algumas ferramentas e um método específico podem ser interessantes. Há várias técnicas e propostas diferentes aos que se interessam por este caminho. Quando a respiração se torna quase imperceptível, ela passa da respiração física para o sutil do Sopro Puro. Neste momento, é possível se alcançar a quietude. Sentado e imóvel, o praticante não mais percebe o corpo físico ou sua mente. Ele se percebe como uma respiração sutil, que vibra e pulsa em um espaço imenso, no próprio vazio, esse estado em que a energia não tem forma. É um Sopro, anterior à manifestação. E quem alcança esse estado, deixa também de se perceber como forma. (WU, 2008, p.28). 44 Em chinês, o ideograma coração significa também mente ou consciência. Assim, Xīn Zhāi Fa pode também ser traduzido como Método de Purificação da Mente. A purificação acontece a partir do esvaziamento dos excessos da mente. É chamado de excesso o acúmulo de sentimentos e pensamentos negativos, o acúmulo de intenções ao longo da vida. A meditação propõe que a energia, aliada à consciência, possa adentrar na mente do praticante. Não será adicionada qualquer informação. Inicia-se o processo de purificação e limpeza, como se tirássemos as camadas de uma cebola, desapegando das formas, liberando os excessos para se chegar ao núcleo. Ali, no núcleo, está o Vazio, que conecta todos os seres. Quando ouvimos com os ouvidos, estamos conectados com os cinco sentidos. Ouvindo com o coração, ouvimos nosso interior. Ouvir com o sopro é tornar-se a própria respiração. Estas são as três etapas do método Xīn Zhāi Fa: a concentração, a contemplação e a fusão. É imprescindível que se mantenha a naturalidade, o relaxamento e o conforto. Com os músculos relaxados, concentrar-se na entrada e saída do ar. Esse é o principal ponto de atenção na meditação. Com a respiração mais consciente e fluida, é possível liberar focos concentrados de energia, permitindo sua movimentação. (WU, 2008, p.22-23). Assim que o praticante vai se desenvolvendo neste caminho, as dificuldades e os desconfortos vão diminuindo até que ele possa ultrapassar a forma, a imagem e possa entrar na quietude e no vazio, respeitando seus limites físico e mental. É um trabalho sutil, tranquilo, sem qualquer intervenção mais brusca. A ideia é que o praticante se sinta confortável no processo de esvaziamento. Suave e sempre, com disciplina. A disciplina é uma qualidade bastante comum na cultura oriental. Uma relação com a meditação de forma disciplinada, com frequência e cuidado, traz benefícios ao corpo, facilitando a possibilidade de vivenciar o vazio. [ditado popular chinês] 'Pessoas comuns respiram pelo peito, pessoas sábias, pelo hara, e pessoas treinadas pelos pés.' [...] As pessoas sábias são aquelas que praticam meditação; 45 para fazer isso, concentremos a respiração no hara, ou seja, na área bem abaixo do umbigo. As pessoas treinadas são aquelas que utilizam o corpo de um jeito altamente desenvolvido, como os atores ou os praticantes de artes marciais. As pessoas nessa esfera de atividade usam a imagem de tomar energia da terra para ajudá-las. (OIDA, 2001, p.130) Por mais que a respiração seja uma ação natural e involuntária, costumo perceber em algumas pessoas a interrupção de seu fluxo ao longo do processo criativo, principalmente nas fases de experimentação criativa. É como se, ao dar ênfase a uma proposta fora do cotidiano, o corpo reagisse com tensão e toda a atenção fosse dirigida ao novo movimento. Acho interessante que a primeira coisa que nitidamente se modifica é a respiração. Em função disso, em diversos momentos do trabalho, me vejo "chamando" por ela, como se lembrando o participante de respirar. Como nem sempre é possível investir muito tempo para sentar e meditar, noto a importância da minha voz durante a orientação ao levar pílulas dos fundamentos durante todo o caminho. Faço uso também do incenso e do chá logo no início dos encontros como elementos para auxiliar o estado de concentração e presença, seja pelo olfato, pelo paladar ou pela visão. 46 movimentar o sopro, caminhar com suavidade corpo pulsando entre. pés bem apoiados. joelhos levemente flexionados, base forte, corpo flexível. movimento yin. movimento yang. inspiração. expiração. equilíbrio. desequilíbrio. busco reequilíbrio através dos desequilíbrios. o micro e o macro. círculos, espirais. fluir com o sopro. Círculos no céu, abraçando a árvore, vôo do ganso, nadando no ar, acariciando nuvens, suaves mãos de Buda e tantas outras imagens poéticas que nomeiam e inspiram posturas fixas e exercícios em movimento do Chi Kun; esse é o nome dado aos exercícios respiratórios e energéticos nas artes taoistas, que têm por finalidade captar, canalizar e circular as energias do corpo. Chi pode ser traduzido como sopro, ar, energia. Sopro é tanto o ar como o Sopro Vital. Kun é exercício ou treinamento. Retomo a imagem da água na natureza para pensar no Chi em nosso corpo: a água circula naturalmente pelos espaços vazios que encontra e, se houver qualquer obstrução de seu movimento, ela empoça, pode ficar turva ou transbordar. Qualquer obstrução que limite o movimento natural de renovação do Chi pode causar desequilíbrios variados. Um dos objetivos do Chi Kun é a restauração da naturalidade do 47 corpo, em oposição a quaisquer construções artificiais. Através do movimento e da respiração, são desenvolvidos os centros, os canais e o campo energético. Canalonga apresenta o Tai Chi Chuan como um tipo específico de Chi Kun, que trabalha a energia através da concentração, da respiração e do movimento consciente. Esses elementos precisam atuar simultaneamente para manter a harmonia psicofísica-energética. Tudo está em permanente mutação e transformação no mundo. Os ciclos de movimento e repouso presentes na natureza são contínuos e permanentes. A principal referência simbólica do Tai Chi Chuan é o próprio Tai Chi: um círculo formado por duas partes em formato de peixe, uma branca e outra preta, separadas por uma linha sinuosa; as duas partes possuem uma pequena esfera em seu interior com a cor oposta, simbolizando que cada uma também contém a semente da energia da outra. O Tai Chi representa a união e o equilíbrio das forças yin e yang e contém a essência das leis e ensinamentos que fundamentam o I Ching, o Tratado das Mutações que, por sua vez, embasa filosoficamente a técnica do Tai Chi Chuan. Podemos dizer que o Tai Chi Chuan é constituído de movimentos corporais e respiratórios e que, além dos benefícios de saúde e longevidade, podem promover a expansão da consciência. (CANALONGA, 2011, p.21-22). No Tai Chi Chuan, há a indicação de respirações abdominais suaves e profundas, mantendo um ritmo espontâneo e natural. O foco na respiração abdominal favorece o processo de captação, formação e circulação do Chi no corpo. Podemos partir da respiração abdominal para promover o trabalho do Chi no corpo, e depois, avançar para outros pontos de atenção até a sensação de que o corpo todo está respirando. Como as posturas e os exercícios possuem orientações específicas em relação ao posicionamento dos ombros, braços, cintura, quadril, pés e coluna, a consciência corporal adquirida na prática pode, aos poucos, também favorecer a exploração e a criação de gestos e movimentos. 48 movimentar e equilibrar o yin e yang. da forma para a não-forma. para o sutil, para o chi. pausar. nutrir o chi. o espírito. esvaziar, sentir, perceber. "O retorno é o movimento do Caminho/ A suavidade é a atuação do Caminho". (LAO; WU, 2011, p.210). Retorno é a tradução de FAN, em chinês, e também traz o significado de oposto. Assim, podemos pensar em algo como "os movimentos do caminho se realizam através dos opostos." A atuação suave na caminhada traz uma qualidade de delicadeza e brandura na criação de gestos e palavras. O simbolismo do retorno também tem correspondência com os movimentos do Tai Chi Chuan. Canalonga (2011) apresenta alguns princípios relacionados à prática, dos quais destaco, resumidamente: ● A não-intenção, o wu-wei. Realização de ações, movimentos, gestos sem demasiada vontade de fazê-los, sem excesso de desejos ou pensamentos; ● Movimentos macios, com vitalidade e sem tensão; ● Movimentos circulares e contínuos, desenhos que não têm início ou fim, com as articulações descontraídas; ● Músculos acionados, porém sem contração excessiva; ● Pés em conexão com o chão, como raízes profundas; ● A suavidade, aspecto levado em consideração tanto nos movimentos externos como internos; ● A harmonia. Atuando a partir da naturalidade e da fluidez do movimento, o trabalho ocorre de forma equilibrada, sem excessos ou demasiados conflitos; ● O eixo. Podemos pensar no eixo como aquilo que mantém nosso equilíbrio e também relacioná-lo com o ponto que fica entre as formas manifestadas e o vazio do espaço, como a tênue linha que separa as formas do Vazio, sendo o real equilíbrio entre ambos. Esse 49 vazio que é espaço absoluto, que possibilita a manifestação de qualquer coisa, existindo antes, durante e depois de toda existência. Precisamos agir de forma intuitiva e transparente para localizar o eixo em nosso corpo. Nem totalmente no vazio, nem totalmente conectados às formas. Nesta fase de esvaziamento, enquanto estou orientando, apresento algumas posturas e exercícios e, ao longo do processo, mantenho os fundamentos como um guia para as ações e para o próprio caminho criativo, atenta para que essas diretrizes atuem mais na expansão do que na limitação da expressividade do participante. O símbolo Yin/Yang o entrosamento, a união-dissolução do movimento dentro de um círculo. As energias semelhantes, e, ao mesmo tempo, contrastantes, movem-se juntas [...] quando o aprendizado se torna você, então ele aparece conforme a necessidade, quando você está sendo você. É isso que chamamos de wu-wei - fazer não fazendo, fazer permitindo que aconteça. (CHUNG-LIANG apud AZEVEDO, 2017, p.96) O Tai Chi Chuan também é uma forma de meditação. Ele leva em consideração o equilíbrio dinâmico, em movimento, e não apenas em repouso. Como tudo muda o tempo todo, e também há as características individuais de cada praticante, ele desenvolve a vitalidade e a criação de formas, considerando potenciais e aspectos criativos individuais. Inicialmente, os movimentos são fragmentados mas, com a prática, eles começam a se combinar e se fundem em um fluxo, como uma grande unidade. A movimentação ocorre lentamente para que a pessoa possa perceber melhor seu corpo e seus movimentos. Poderia ser mais difícil adquirir consciência corporal se os exercícios fossem muito rápidos e, provavelmente, se perderiam os detalhes. Detalhes, sutileza: podemos encontrar aí preciosidades a serem trabalhadas em um caminho artístico. Os movimentos circulares e contínuos são baseados no conceito do yin e do yang dentro do Tai Chi. Ao avançarmos, chegando quase ao limite de 50 um gesto, não nos mantemos nele nem vamos além. Ao contrário, recuamos e já o transformamos em algo novo. Este vai e vem contínuo, com abertura e reclusão, alto e baixo, para frente e para trás, nos leva a experimentar o yin e o yang na prática. (CANALONGA, 2011, p.35). Em momentos de dificuldade no processo de criação, quando sentimos bloqueio no fluxo criativo, por exemplo, é comum sugerir que o participante pare de focar na ação, que relaxe um pouco e simplesmente respire. A proposta pode favorecer o trabalho, mas, talvez, não exatamente em função do desvio do foco. Talvez haja outros assuntos envolvidos. A Meditação, bem como o Tai Chi Chuan, são práticas que promovem a consciência do corpo e a experiência do vazio. Ambas trazem a atenção à respiração durante o processo. Ao trazer a atenção para nosso próprio corpo, podemos desviar não do trabalho criativo apenas, mas também das questões do nosso dia-a-dia, aliviando a mente do excesso de pensamentos e problemas e facilitando a entrada em um estado de quietude. Podemos ir além da percepção do corpo e pensar no favorecimento da escuta, de si, do outro e do entorno. E, possivelmente, por nos permitirmos abrir espaços, trazendo o vazio para a prática, também nos permitimos experimentar nosso corpo, nossa expressão em formas surpreendentes, no tempo presente. Caminhamos na direção do foco e não em sentido oposto, mas é um caminhar sem rigidez. Durante a prática do Tai Chi Chuan, só é necessário realizar corretamente os movimentos, sincronizando-os com a respiração e mantendo-se relaxado. Esse é o único objetivo concreto; não há competição entre adversários. É mais simples. É mais uma forma de exercitar o conceito de não-intencionalidade, tão importante na filosofia taoista. Como todo treinamento, depois da fase inicial em que estudamos os detalhes e cada movimento ainda é um pouco fragmentado, podemos iniciar uma dança, fluindo na sequência de posturas, sem se apegar aos detalhes técnicos. Na prática do Tai Chi Chuan, "[...] a respiração, aos poucos, vai se 51 tornando mais e mais profunda e ritmada, a percepção do próprio corpo e do espaço em torno se amplia e a sensação de um tempo presente solidifica-se". (AZEVEDO, 2017, p.95). 52 o silêncio positivo, a escuta profunda abro as janelas. do espaço. de fora. de dentro. faço silêncio. escuto o silêncio. escuto o som. silêncio. mais silêncio, mais sons. silencio. Em trabalhos que envolvem a voz, talvez as duas manifestações mais citadas na relação yin e yang sejam o silêncio e o som. Como trabalhar com a voz sem considerar o silêncio e a pausa? Como pensar o silêncio sem considerar o som? [...] O círculo do Tao, por exemplo, que contém o ímpeto yang e o repouso yin, é um recorte da mesma onda que costumamos tomar, analogicamente, como representação do som. [...] podemos dizer que a onda sonora é formada de um sinal que se apresenta e de uma ausência que pontua desde dentro, ou desde sempre, a apresentação do sinal. [...] Sem este lapso, o som não pode durar, nem sequer começar. Não há som sem pausa. (WISNIK, 1989, p.18) Diversos artistas investigam relações entre som e silêncio, mas trago aqui dois compositores e escritores que aprofundaram suas pesquisas teóricas e práticas na exploração da temática do silêncio. A partir de fundamentos 53 da música, de experimentos criativos e com um olhar claramente alinhado com a filosofia oriental, John Cage e Murray Schafer produziram importantes trabalhos que podem inspirar a reflexão para o processo de criação. Levando em consideração as peças silenciosas de Cage, a proposta de limpeza de ouvidos de Schafer e relatos de ambos, podemos também pensar em outras relações, situações e até conceitos envolvendo o som e o silêncio, como o acaso, a escuta e o silêncio positivo. Som/Silêncio. Não há som sem silêncio antes ou depois. Som/Silêncio é uma relação simbiótica. Som e silêncio estão em relação um ao outro….Escutar os sons significa escutar os silêncios, e vice-versa. (OLIVEROS, 2005, p. 14, tradução nossa) Talvez o silêncio possa ser considerado como um alto grau de disponibilidade para a escuta. Assim, torna-se imprescindível incluir a importância da nossa atitude para vivenciar a experiência do silêncio: escuta atenta, mente esvaziada, corpo relaxado. E estar ou não disponível para essa vivência diz muito de cada um de nós em dado momento. Talvez, então, o silêncio também seja um estado de presença, um estado criado. A vivência do instante isenta de expectativas de um porvir pode ser estimulada, por exemplo, pela experiência prolongada de um tempo esvaziado de peripécias e distrações, que esgota nossos desejos de acontecimento. [...] O uso da longa duração como modo de esgotar o desejo por narrativas pode também apoiar o surgimento de outras qualidades de percepção, sensíveis às pequenas mudanças e diferenças. (QUILICI, 2015, p.40) Pensando o silêncio para além das questões acústicas, produzindo trabalhos na música, na literatura e na pintura, desenvolvendo parcerias com a dança, o teatro e a performance, Cage faz uso de técnicas, elementos e estratégias similares em suas criações. Percebemos suas obras como experimentações contínuas e que, mesmo com as devidas 54 diferenças entre si, apresentam coerência em relação à abordagem do silêncio. Em seu percurso artístico, é possível notar que a inquietação com o silêncio não se limita à área musical, literária, cênica ou filosófica. São campos que se encontram em estado de fusão e interligação, como pontua Heller em seu livro John Cage e a poética do silêncio. Heller (2011) estabelece uma conversa entre a temática do silêncio a partir e na própria obra de Cage com outros autores, incluindo pensadores do Zen. Reflete como o silêncio nessa abordagem cageana faz referência a tantas outras questões como liberdade, vida, natureza e cultura, por exemplo. Considerando noções variadas relacionadas ao silêncio, à ideia de pausa, repouso, falta, ausência, não-fala, vazio e quietude, Cage aborda o tema em seus trabalhos de maneira dinâmica, percebendo os movimentos e se deixando transformar com as descobertas. O artista pensou no silêncio como a ausência de som, a princípio. Depois, disse que o silêncio não existe. E mais tarde, abriu mão de tomar o campo acústico como referência para o conceito de silêncio, passando a compreendê-lo como uma forma de pensar a ação. Assim, ele começa a se envolver mais com o processo artístico do que com a obra em si. (HELLER, 2011, p.13). O silêncio se tornou o ponto fundamental de seu trabalho, tanto artístico quanto teórico. Esse é um dos motivos que inspirou Heller a falar, então, de uma "poética do silêncio". Alguém já disse, o silêncio é de ouro. [...] Silêncio é um recipiente dentro do qual é colocado um evento musical. [...] Silêncio é uma caixa de possibilidades. Tudo pode acontecer para quebrá-lo. O silêncio é a característica mais cheia de possibilidades da música. (SCHAFER, 2011, p.59) Schafer defende que em um possível movimento de reconquista da quietude perdida, haverá espaço suficiente para que menos sons se manifestem em toda sua potência e luz. Ao produzirmos sons, 55 independente de significados, manifestamos nossa existência, nos colocamos em um processo de comunicação, nos relacionamos com o outro, nos mostramos vivos, presentes. Em contraposição, podemos relacionar o silêncio com a não-existência, a não-vida. Um silêncio que cala, que nos apaga da sociedade de alguma forma. O homem contemporâneo ocidental produz som, produz palavra, informação, ação. "O homem gosta de produzir sons para se lembrar de que não está só". (SCHAFER, 2011, p.354). Considerando o silêncio como algo negativo, estabelecemos uma relação com a pausa, com o vácuo, como situações capazes de interromper o fluxo de comunicação, portanto, a própria relação entre as pessoas. Por outro lado, esse mesmo aspecto negativo torna o silêncio um tema de muita investigação no campo artístico. Talvez enquanto um conceito já amplamente aceito que relaciona o silêncio a partir dessa ótica negativa (pessimista?), o artista pode explorar seus movimentos e sonoridades em cena a partir de possíveis relações com o silêncio, através da ideia de nada, ausência, pausa, repouso ou vazio, por exemplo. O silêncio pode inspirar o artista em seu processo criativo quando se deseja levar sentimentos como solidão, melancolia, tristeza para a cena. Um longo período de silêncio, antes de determinado som, pode dar mais destaque ou dramaticidade à manifestação sonora. Uma inesperada interrupção no meio de uma fala; o repouso do corpo em contraste com a música em alta velocidade; alguém emudecido no meio de uma discussão. Como diz Schafer, "embora obscuramente, o silêncio soa". (SCHAFER, 2011, p.355). Mesmo levando em consideração o lado negativo da palavra silêncio, é interessante vivenciar no processo criativo também o lado positivo do silêncio, associado à potência criativa do vazio, às aberturas que o silêncio pode proporcionar, à escuta atenta. [...] procurei sempre levar os alunos a notar sons que na verdade nunca haviam percebido, ouvir avidamente os sons de seu ambiente e ainda os que eles próprios injetavam 56 nesse ambiente. [...] Antes do treinamento auditivo é preciso reconhecer a necessidade de limpá-los. (SCHAFER, 2011, p.55) Além de seu trabalho no processo de limpeza dos ouvidos, Schafer identifica a importância do ato de contemplar para se adquirir uma visão positiva do silêncio, algo mais presente na cultura oriental, e aponta a filosofia taoista como um caminho de abertura para essa transformação. (SCHAFER, 2011, p.358). É a partir das experiências de contemplação, no silêncio, na quietude, na experiência do Vazio que a escuta pode se tornar mais clara, transparente, alerta. Ressignificar o silêncio, com um olhar positivo, diminuindo os diálogos internos, ampliando a escuta. Nessa nova relação com o silêncio talvez também seja possível uma nova relação com a vida cotidiana, uma nova relação com a criação artística. O símbolo dos ouvidos é a concha que também simboliza o órgão sexual feminino - símbolo da receptividade e do aconchego. [...] os ouvidos têm sua percepção e até mais acurada que os olhos e o tato - como se comprovou fisiológica, física e matematicamente. Os antigos chineses consideravam os olhos um órgão Yang dos sentidos, ou seja, masculino, agressivo, dominador e orientado para a razão, para a superficialidade e para a análise, ao passo que o ouvido é um órgão Yin feminino, receptivo, prestativo, intuitivo e espiritual, que perscruta o interior e que encara o todo como Um. (BERENDT, 1983, p.20) pauso. respiro. ouço. respiro. sons. olhos fechados. toco a concha. com a concha, o silêncio, o mar, meu mar. escuto. eu. O que é que ouço na concha? O eco dos barulhos do meu corpo. [...] Sim, ouço o mar de meu corpo, ouço as minhas pulsações sanguíneas, ouço todos os marulhos que podem intervir no meu próprio corpo. E, justamente, a escuta permite escutar por e através do próprio corpo. (GODARD, 2006, p.74) 57 Entre propostas que envolvem o toque, a escuta, a visão, novas percepções dos espaços externo e interno são apreendidas. E é neste ambiente, com o material possível de ser percebido e produzido por cada um, que finalizamos a etapa de esvaziamento para entrarmos em um novo ciclo criativo. 59 EXPERIMENTAÇÃO atravessando espaços um novo espaço. visualizo os elementos. o mesmo espaço, novos vazios. um novo espaço. sinto. respiro. toco meu corpo, meu rosto. massagem. arrepios. "Curvar-se permite a plenitude/ Submeter-se permite a retidão/ Esvaziar-se permite o preenchimento/ Romper permite a renovação". (LAO; WU, 2011, p.127). Curvar o corpo, a própria curva, o movimento espiralado, a suavidade, a tolerância. Significados diversos podem ser atribuídos a esta mesma expressão "curvar-se" na língua chinesa. Esse trecho do poema faz referência a uma possível qualidade do indivíduo de se manter flexível diante das circunstâncias e, mesmo assim, preservar a sua essência. Wu aprofunda essa interpretação ao relacionar a curva à naturalidade, já que todos os movimentos naturais do Universo são circulares ou em espiral. (LAO; WU, 2011, p.128) Compreender esse fato e trazê-lo em relação aos movimentos e dinâmicas da própria vida pode proporcionar uma sintonia mais fina com a natureza e com o corpo, 60 desenvolvendo maior harmonia e equilíbrio em níveis micro e macro, individual e coletivo. Submeter-se, permitindo a retidão, aborda o sentido de aceitarmos que não temos total controle das ações. Há outras forças que também atuam concomitantemente aos nossos movimentos. Há algo de invisível, de sutil pulsando junto. A gente se coloca em ação, fazendo nossas escolhas da forma mais consciente possível, mas, sabendo que outras interferências também coexistem. A retidão trabalha com a noção de equilíbrio e harmonia. O preenchimento só é possível a partir de um esvaziamento anterior. Com o rompimento dos laços, em um exercício contínuo de desapego, podemos nos relacionar de forma mais harmoniosa com as mudanças e transformações. Tudo passa, finda e abre espaços vazios para que a renovação se manifeste. A partir do vazio, criamos atravessamentos pelos espaços. respiro. danço pelo chão, escuto meu corpo. silêncio. escuto. o espaço. aos poucos, caminho. explorando. ocupando. compondo. pelo corpo-espaço. impressões. percepções. "É preciso aprender a ouvir o que o corpo quer fazer", diz Oida. (2001, p. 65). Para inspirar e provocar novos movimentos pelo espaço, para que o corpo tenha mais opções de escolha durante seus deslocamentos e gestos, o ateliê começa a tomar uma nova forma e, mantendo ainda o aspecto mais esvaziado, vai recebendo alguns elementos e materiais, de texturas, tamanhos, pesos e qualidades diferentes. Proponho toques sutis e contatos mais profundos com essa nova paisagem. Às vezes de olhos fechados, às vezes de olhos abertos. Com os materiais expostos, criam-se relações com, sob ou sobre eles. Caminhando ou correndo. Testando 61 equilíbrio. E desequilíbrio. Aos poucos, novas percepções são criadas. "Não posso mudar o meu gesto se não mudar a relação que mantenho com o meu corpo e com o espaço através da percepção". (GODARD, 2006, p.75). uma bola. folhas. almofadas. outra bola. menor. uma pedra. sinto. desvio. volto. imagino. toco. crio. Michel Bernard fala muitas vezes do fato de que não há diferença entre o imaginário e a percepção, que se um pára, o outro pára. Portanto, a questão de Lygia [Clark] é realmente estar sempre colocando em movimento as modalidades que permitem fazer isso. A mesma coisa existe, pois, para o tato […]. (GODARD, 2006, p.74) Em um convite para que o corpo todo possa se expressar, imprimindo seus gestos pelo espaço, proponho ações entre a percepção e o movimento. Danças e cantos que vão atravessando o espaço em poesia, em performance. 62 dançando a voz pés pelo chão. tocam. caminham. correm, pulam. respiração oscila. movimento muda. pausa. só sinto o movimento da respiração. fico assim um tempo. o corpo quer dançar. primeiro em terra. base forte. os sons ficaram graves. fiquei pesada. passo para o fogo. outro ritmo. outra velocidade. outro peso. vento. furacão. água. correnteza. deságuo. "Os dez mil seres cobrem-se com o obscuro e abraçam o claro/ E se harmonizam através do esplêndido sopro". (LAO; WU, 2011, p.218) A partir da cosmovisão taoista, temos o Sol, como energia yang, à frente dos outros planetas, que simbolizam a energia yin, e no centro de gravidade de toda energia yin há um núcleo yang e vice-versa. A manutenção do equilíbrio entre essas duas forças permite a harmonia do Sistema Solar, com os planetas abraçando o claro e se cobrindo com a escuridão. Os dez mil seres representam, na filosofia taoista, toda a humanidade e o poema apresenta essa dinâmica yin-yang dos movimentos da Natureza como inspiração para nossos próprios movimentos, abraçando a energia yang, de iluminação da consciência, e se cobrindo com o obscuro, yin. (LAO; WU, 2011, p.218). E, através do 63 Esplêndido Sopro, da respiração, entrar em harmonia com a gente e com o mundo, no mesmo equilíbrio do cosmo. O Esplêndido Sopro representa a energia do Vazio, presente em todas as manifestações. Compreender a harmonia a partir do movimento dinâmico entre as forças opostas indica uma possível diretriz em relação a exercícios e propostas criativas que envolvem o corpo e suas manifestações. Para eu me manter em equilíbrio, se uma força me puxa para baixo, outra força, de igual intensidade, precisa me levar para cima. Isso vale para o gesto vocal, para o gesto corporal. Vou compartilhar um exercício que experimentei (ou o que eu registrei da experiência vivida) no trabalho de pesquisa vocal O Caminho do Canto, que pode ilustrar essa ideia. Cante uma nota bem aguda e sinta onde esse som está ressoando mais em seu corpo. Cante novamente e sinta o peso desse som. Repita algumas vezes até ter noção da vibração da nota no corpo e noção de seu peso. Agora leve uma força de igual intensidade para o lado oposto ao local onde você sentiu a vibração. Com esta percepção corporal, execute novamente o som. Depois, tente o inverso: leve a força do seu corpo exatamente para a mesma área onde você sentiu a vibração. Outra possibilidade: trabalhe com vetores de pesos muito diferentes: emita uma nota muito "pesada" em relação a uma força corporal oposta muito leve. Provavelmente, você sentirá alterações no corpo e nos sons produzidos. Vale experimentar as diversas relações de força e peso entre movimentos corporais e vocalizações para conhecermos melhor como nosso corpo se organiza e se manifesta, no equilíbrio e no desequilíbrio. Como criar artisticamente estados de desarmonia e harmonia? Como meu corpo se organiza e se reorganiza a cada nova proposta? Dança é representação do movimento humano, expressão em movimento do que ele é. A respiração que adquire espaço no corpo, gerando energia, tende a expandir-se para 64 o espaço externo através do movimento. (STOROLLI, 2004, p.67) "Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: tendes ainda caos dentro de vós". (NIETZSCHE, 2011, p.18). Como é este corpo que brinca com o caos e com a harmonia e atravessa espaços vazios? Acredito que a dança seja um caminho, dentro do processo criativo, que pode ajudar a responder esses questionamentos. sons apenas da respiração. curta. comprida. rápida. devagaaaaaaarrr. a dança da respiração. mantenho a dança. sem som. com sons. novos sons. e outros… Drigo relaciona o corpo humano ao diapasão e traz a origem grega da palavra para explicar a comparação: "Diapasão: "dia" é "através" e "pasão", do Deus Pã – "todo". Através de tudo!" (DRIGO apud LAVALLE, 2019, p.1061). O diapasão é um instrumento metálico em forma de U que, ao vibrar, emite um som de determinada altura e é utilizado para afinar instrumentos e vozes. Cada diapasão tem um tamanho e vibra certa quantidade de frequências por segundo, chegando a uma certa altura. Para que o diapasão passe do seu estado de potência para um estado manifestado, em som, é necessário que ele seja tocado, que ele seja movimentado. No caso de um corpo-diapasão, os toques capazes de fazê-lo vibrar, segundo Drigo, podem ser associados a lampejos de consciência: física, emocional, espiritual. Em relação a si e ao outro. Com esta imagem em mente, o participante se coloca nos exercícios propostos percebendo como seu corpo é afetado em relação ao tempo e ao espaço, aos sons e movimentos, que partem de si ou do outro, ampliando o campo de percepção e a consciência sobre sua própria 65 expressão-frequência e o entorno, em uma jornada de descoberta de seu próprio corpo-diapasão, alinhada à pergunta que mobiliza o trabalho d'O Caminho do Canto: "Quem canta em mim?". A voz criadora surge como um som que vem do nada, que aflora do vazio: 'O abismo primordial, a garganta aberta, a caverna cantante [...] a fenda na rocha dos Upanichades ou o Tao dos antigos chineses, de onde o mundo emana como uma árvore, são as imagens do espaço vazio ou do não-ser, donde se eleva o sopro apenas perceptível do criador. Esse som saído do Vazio é o produto de um pensamento que faz vibrar o Nada e, ao se propagar, cria o espaço. É um monólogo em que o corpo sonoro constitui a primeira manifestação perceptível do Invisível'. (SCHNEIDER apud WISNIK, 1989, p.38) Esvaziar, escutar, ceder espaço aos vazios em mim, entre mim e o outro, e deixar que a respiração flua e se manifeste em voz, através do movimento do corpo, da poesia da dança. Mais do que pensar em uma Voz essencial, pensar nas vozes de cada corpo-diapasão manifestadas em movimento criativo e em relação umas às outras. E como o outro atua neste caminho de descobertas? A capacidade de afetar e ser afetado, de perder-se no outro para alimentá-lo e ser alimentado de volta, se apresenta como um critério possível para tecer revelações de si a partir da disponibilidade de se abrir ao encontro e às experiências. Outro exercício realizado n'O Caminho do Canto que ilustra esse processo de autoconhecimento do corpo-diapasão: duas pessoas, uma de frente para a outra, e alguém da dupla propõe uma música. Sem avisar, sem combinar, um dos dois começa a cantar. O objetivo é que esta canção seja executada pelas duas pessoas, ao mesmo tempo, sem momentos solo. A dinâmica costuma chegar com um direcionamento bem mais simples, algo como: cantem juntos e escutem esta terceira voz criada por vocês. Enquanto cada um coloca seus 50% de participação na execução da música, percebem também como a dupla participa da ação. 66 Narciso se vê na fonte. Se ele ouve sua voz, isso não é absolutamente um reflexo, mas a própria realidade. [...] escutar um outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa voz, dirigindo-se a mim, exige de mim uma atenção que se torna meu lugar, pelo tempo dessa escuta. (ZUMTHOR, 2018, p.77) Quando uma das pessoas se manifesta com muita força, perceptivelmente ultrapassando o que seria sua "metade" no espaço, como soa a música resultante da dupla? Como isso interfere no corpo e na participação vocal do companheiro? Como é possível perceber o que está acontecendo e realizar um ajuste em tempo real para equilibrar estas forças vislumbrando algo mais harmônico? Eu costumo me adiantar ou aguardo tempo demais em silêncio e espero até que alguém tome a iniciativa de começar a cantar? E, p