DOUGLAS HENRIQUE DE SOUZA PÁGINAS POLICIAIS NA IMPRENSA ASSISENSE (1935-1939) ASSIS 2018 DOUGLAS HENRIQUE DE SOUZA PÁGINAS POLICIAIS NA IMPRENSA ASSISENSE (1935-1939) Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientador(a): Tania Regina de Luca Bolsista: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2015/16042-0 ASSIS 2018 2 Souza, Douglas Henrique de. S729p Páginas policiais na imprensa assisense (1935-1939) / Douglas Henrique de Souza. Assis, 2018. 172 p. : il. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientadora: Profa. Dra. Tania Regina de Luca 1. Violência. 2. Assis (SP). 3. Imprensa. I. Título. CDD 981.612 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. - Assis - Unesp 3 4 AGRADECIMENTOS Fazer agradecimentos é sempre uma tarefa difícil em razão das várias pessoas que colaboraram direta ou indiretamente ao trabalho. Gostaria de começar pelos meus pais, Aparecido Carlos de Souza e Vera Lúcia de Souza, que sempre estiveram comigo nessa jornada, dos dias mais felizes aos mais difíceis, sem deixarem de ensinar-me o significado do amor incondicional, e aos meus irmãos, André Luiz de Souza, Aline Aparecida de Souza e Danilo Rodrigo de Souza, pelo apoio e incentivo. Já os meus amigos e amigas, Gabriel Adan Araújo Leite, Vinicius Augusto Simão, Lucas Schuab Vieira, Wellington Durães Dias, Daniel Alves de Azevedo, Iara Silva de Andrade e demais familiares colaboraram para tornar a caminhada menos solitária. Uma menção especial para os colegas que, tal como eu, dedicaram-se às práticas esportivas, em especial ao nosso time de futebol de salão, a Sociedade Esportiva Cachaça e Fumaça, que marcou a minha passagem pela universidade. A pesquisa exigiu a consulta a diferentes acervos. Agradeço aos funcionários e funcionárias do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP), onde passei muito tempo nos últimos anos, que sempre amáveis e prontos para me auxiliar com o emaranhado de processos, assim como aos que me atenderam no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP) e na biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Graças à concessão da bolsa da FAPESP pude dedicar-me exclusivamente à pesquisa e estabelecer contato estreito com o mundo acadêmico, em diferentes lugares do país, o que me permitiu apresentar resultados parciais do trabalho e alargar meus horizontes intelectuais. E, ainda, à Professora Tania Regina de Luca, pela motivação, comprometimento e preocupação constante que teve comigo. Mesmo em dias extenuantes da rotina acadêmica, nunca deixou de esclarecer minhas dúvidas e me ajudar a tomar as melhores escolhas. Um muito obrigado Tania, por acreditar em mim! 5 SOUZA, Douglas Henrique de. Páginas Policiais na imprensa assisense (1935-1939). 2018. 172 p. Dissertação (Mestrado Acadêmico em História). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2018. RESUMO A pesquisa fundamenta-se na análise dos casos cotidianos de violência veiculados pelo Jornal de Assis (1920-1963) e A Notícia (1935-1949) entre os anos de 1935 a 1939, na cidade de Assis, São Paulo. A violência, conceito polissêmico, é uma das temáticas presentes nas notícias policiais, que abarcaram gama diversificada de danos a vida: homicídio, suicídio, estupro, assaltos, difamação, sequestro e violência doméstica, para citar uma lista não exaustiva. Trata-se de verificar como ocorreu a percepção deste fenômeno nos casos publicados pelos jornais e acompanhar seu desfecho nos processos crimes que originaram, além de se apontar para o emaranhado das relações entre criminalidade e sociedade, o judiciário, a polícia e a imprensa local. Para tanto, o trabalho propõe-se a investigar o perfil dos acusados e das vítimas, os locais dos crimes, os precedentes e as ações situacionais do delito, além das agravantes inusitadas do acontecido, decisivas ao uso estratégico da linguagem sensacionalista. Tais aspectos podem indicar os critérios de seletividade dos impressos, que nas mãos dos grupos dirigentes informaram determinadas ocorrências em restrição ás outras demais. O período recoberto distingue-se, no plano interno, por um rol de eventos políticos que culminaram com o Estado Novo em 1937 e o consequente cerceamento das liberdades civis, e, em âmbito internacional, pela tensa situação que antecedeu o início da Segunda Guerra Mundial. Foram anos de radicalização ideológica, engajamentos apaixonados e incertezas quanto ao futuro. O desvendamento dos caminhos trilhados pela imprensa numa cidade do interior paulista que, à época estava na fronteira da expansão agrícola, requer olhar atento ao contexto político e socioeconômico da região e pode colocar para refletir sobre a demarcação, na imprensa brasileira, de práticas jornalísticas como o sensacionalismo e os faits divers, componentes importantes para a problemática sugerida. Palavras-chave: Violência; Assis; Imprensa; Notícias policiais. 6 SOUZA, Douglas Henrique de. Police pages in the press assisense (1935-1939). 2018. 172 p. Dissertation (Masters in History). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2018. ABSTRACT This research is based on the analysis of the daily cases related to violence and reported by Jornal de Assis (1920-1963) and A Notícia (1935-1949) from 1935 to 1939, in Assis, São Paulo. Violence, polysemic definition, is one of the topics covered on police news, which provoked several damage to human life, such as murder, suicide, rape, assault, defamation, kidnapping and domestic violence. This study aims to verify the perception of this phenomenon in the cases published by the journals and monitor its outcomes in the criminal proceedings originated during that period, besides pointing to the tangle of relations between crime and society, the judiciary, the police and the local press. Moreover, the study tried to investigate the profile of accused and victims, the places of crimes, the precedents, situational actions of crimes and aggravating facts, which were decisive for strategical use of sensationalist language. These aspects may indicate the criteria used for selecting the printed news by leading groups that noticed some occurrence, but restricted others. The evaluated period coincides with many political internal events that culminated in the Estado Novo in 1937 and restriction of civil liberties. Internationally, the assessed period corresponds to critical situation preceding the beginning of Second World War. There were many years of ideological radicalization, passionate engagements and uncertainty about the future. Therefore, it is necessary to pay attention to the political and socioeconomic aspects of the region to uncover the directions guided by the press in a city of interior of São Paulo, which was undergoing an agricultural expansion. In addition, it enables to reflect on demarcation, Brazilian press and journalistic practices such as sensationalism and faits divers, considered important components for the suggested problems. KEYWORDS: Violence; Assis; Press; Police News. 7 Sumário Introdução ............................................................................................................................. 9 Capítulo 1. Assis: criminalidade e imprensa na década de 1930 ................................... 22 1.1. A “Princesa da Alta Sorocabana” .............................................................................. 23 1.2. Nos trilhos da violência regional ............................................................................... 28 1.3. A Polícia paulista na Era Vargas ............................................................................... 39 1.4. A imprensa partidária assisense ................................................................................. 47 Capítulo 2. A produção das notícias policiais nos jornais .............................................. 55 2.1. “Pela Polícia”: as seções policiais do Jornal de Assis e de A Notícia ....................... 56 2.2. Paulo Botelho de Camargo e suas múltiplas atuações ............................................... 64 2.3.A mulher em cena nos delitos noticiados ................................................................... 67 Capítulo 3. Jornais e processos crimes: um contraponto................................................ 79 3.1. Os homicídios no Jornal de Assis e A Notícia ........................................................... 80 3.2. O controverso assassinato de Gumercindo Saraiva ................................................... 83 3.3. Tiroteio na estrada ................................................................................................... 113 3.4. O “lamentável acidente” de Oscar ........................................................................... 118 3.5. “Em Campos Novos”: homicídio por vingança ....................................................... 131 3.6. O defloramento de Antonia Iracema Martins .......................................................... 135 3.7. Os roubos e os furtos no Jornal de Assis e A Notícia .............................................. 139 3.8. O roubo dos cinquenta contos de réis ...................................................................... 145 Conclusão .......................................................................................................................... 154 Fontes e Bibliografia ......................................................................................................... 158 Anexos ................................................................................................................................ 168 Anexo 1: Amostra parcial da sistematização das notícias policiais do jornal A Notícia e Jornal de Assis ................................................................................................................ 169 Anexo 2: Correspondência das notícias policiais com os processos crimes do acervo do CEDAP ........................................................................................................................... 170 8 O que se observa no território nacional é a existência de um código penal à margem dos códigos e das autoridades, um código penal de cunho primitivo, mas tão real, tão eficiente, tão rigoroso como o que se contém na lei. A Estatística Policial-Criminal do Estado de São Paulo de 1938. São Paulo: Tipografia do Gabinete de Investigações, 1939, p. 153. 9 Introdução O interesse acerca da história de Assis, particularmente, foi motivado pela minha ligação com a cidade. Nascido e residente no município junto a meus familiares, amadureci a curiosidade em recuperar os episódios marcantes de seu passado no final do curso na graduação. A experiência da iniciação científica vivenciada neste ciclo, apesar do objeto ter sido a página feminina do jornal literário Dom Casmurro (1937-1946), distinto da problemática aqui escolhida, serviu de incentivo a prosseguir nos estudos sobre a imprensa e abriu meu olhar à riqueza dessa documentação. Depois de formado, passei a vasculhar no acervo do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP), da UNESP-Assis, algum periódico local que coadunasse com as minhas pretensões. Ao encontrar o Jornal de Assis e o A Notícia, percebi nos contatos iniciais, que a política era assunto recorrente, estampada na primeira página da maioria dos números, tida praticamente como carro chefe das linhas editoriais. Entretanto, com a evolução das leituras, notei que, além do destaque conferido à agenda política, os impressos apresentavam, com certa regularidade, notícias policiais, o que chamou a nossa atenção para esse filão a ser explorado em relação à memória de Assis. Assim, decidi por fundamentar o estudo na análise dos casos cotidianos de violência noticiados entre 1935 e 1939 pelo Jornal de Assis (1920-1963) e A Notícia (1935-1949), ambos semanários que circularam na cidade de Assis, localizada no interior do estado de São Paulo. A natureza dos casos publicados nas colunas policiais revelou-se variada, abrangendo desde os chamados crimes contra a vida, cuja gravidade era maior (homicídios), os de natureza sexual (estupro e defloramento) e a violência interpessoal (lesões corporais) até crimes contra a propriedade (depredações patrimoniais, furtos e roubos). Objetivou-se investigar como a violência foi retratada nos jornais a partir dos episódios que ocorreram na região e na cidade de Assis e contrapor tais dados aos registros dessas mesmas ocorrências nas instâncias policiais/judiciais, via os processos crimes que geraram. Para tanto, a pesquisa buscou elucidar os perfis de acusados e vítimas, os locais dos crimes, os precedentes e as ações situacionais do delito, além dos pormenores inusitados do acontecido, decisivos para o uso estratégico da linguagem sensacionalista. Tais aspectos podem indicar os critérios de seletividade dos impressos que, nas mãos dos grupos dirigentes, informaram determinadas ocorrências e silenciaram em relação à outras, 10 em função dos interesses que permearam as vinculações entre as personagens envolvidas nas infrações, suas atividades no judiciário, na polícia e nos jornais. Esses foram anos nos quais regimes de caráter autoritário ampliavam seus poderes coercitivos na Europa e que culminaram com a deflagração da Segunda Guerra Mundial. No período de 1935 a 1939, o Brasil conheceu importantes mudanças na vida política, com a passagem de um sistema democrático, instituído pela Constituição de 1934, ao Estado Novo, instituído em dezembro de 1937, passando pelo estado de sítio, resultante da chamada intentona comunista de 1935. Para a imprensa, se a década de 1930 significou a consolidação do uso de aparatos técnicos, que já vinham se modernizando desde a virada do século XIX ao XX, ela também foi marcada pelo controle do que viria ou não ao público, uma vez que os jornais subordinavam-se, cada vez mais, aos propósitos arquitetados pelo estado, centralizado na figura de Getúlio Vargas. A segunda metade da década de 1930 assistiu à polarização entre as duas principais siglas partidárias paulistas, o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Constitucionalista (PC), que sustentavam os periódicos em estudo e influenciavam no tratamento dos conteúdos impressos. Acirradas em períodos de eleição, a disputa entre os partidos evidenciava-se nas maneiras de abordar os crimes nas páginas dos impressos, em função de quem ocupava a cadeira de prefeito. Neste cenário, as notícias policiais no interior paulista reuniram marcas singulares, diversas das usualmente encontradas nas capitais, que contavam com maior público letrado e não economizavam o uso de recursos estilísticos nas histórias contadas, como o sensacionalismo e os faits divers, que visavam motivar as mais variadas emoções em seus leitores. Inseridos em contexto político e socioeconômico diverso da capital paulistana, o Jornal de Assis e o A Notícia empregaram as práticas jornalísticas próprias e em sintonia com o espaço no qual circulavam. Além da conjuntura efervescente daqueles anos, o recorte temporal também se justifica pela disponibilidade das fontes. O acervo do CEDAP dispõe-se dos anos de 1935 a 1939 e 1946 a 1949 para A Notícia (1935-1949), enquanto para o Jornal de Assis (1920- 1963) não se tem os anos compreendidos entre 1920 e 1930 e alguns de 1940 adiante, faltas que não comprometeram os resultados. Já os processos crimes podem ser consultados 11 parcialmente, por mídia eletrônica, no site do CEDAP,1 que disponibiliza extratos dos mesmos, além de oferecer acesso à íntegra dos arquivos, em suporte papel. A pesquisa nas fontes iniciou-se com os periódicos e os processos crimes, sistematizados em tabelas específicas. No caso das folhas, procedeu-se à catalogação das notícias policiais em fichas que compreendiam: o título, a data, a página e um resumo estipulando o tipo de delito e os nomes de vítimas/agressores citados nas matérias em ordem cronológica por gênero, conforme se observa no Anexo 1. Quanto aos processos crimes, o desafio foi o de verificar se as notíciais policiais dos jornais deram origem a procedimentos judiciais, como demonstrado no Anexo 2. Foi utilizada a busca por sistema virtual, a partir dos dados recolhidos nos jornais, e nos autos localizados entre 1935 e 1939, independentemente do fato de o delito ter ou não sido registrado nos jornais, tendo em vista estabelecer a abrangência das notícias que chegaram a sair nos mesmos, uma vez que há processos que não foram objetos de atenção dos periódicos. Esta comparação é importante por permitir avaliar a distância entre o que ocorreu e o que foi noticiado. A análise limitou- se aos variados tipos de violência cometidos contra a mulher, aos homicídios ocorridos entre homens e com a participação também de mulheres, além das ocorrências de roubos e furtos, casos todos estes reportados pelo Jornal de Assis e o A Notícia. Cabe observar que os documentos policiais e judiciais, selecionados a partir das notícias publicadas na imprensa local, constituíam-se, por vezes, em longos processos, como no caso do homicídio de Gumercindo Saraiva dos Santos, que revelou o quão complexo foram os desdobramentos investigativos quando confrontados com os informes divulgados na imprensa. Ficou evidente que não era apenas os autos do crime em estudo que mereciam serem consultados, mas também, quando disponível, outros materiais existentes nos registros judiciários relativos aos envolvidos. Assim, despenderam-se esforços para desvendar outros envolvimentos das personagens com o mundo do crime e da contravenção, o que não foi possível para todos os casos. Desse modo, o desafio foi o de localizar, analisar e dar sentido ao volume de informações coletadas em diferentes processos, selecionados a partir dos acontecimentos noticiados na imprensa assisense, expandindo-se para outros eventos nos quais vítimas e 1 Disponível em: http://www.assis.unesp.br/#!/cedap---centro-de-documentacao-e-apoio-a-pesquisa/consulta- online/ . 12 agressores participaram antes dos que motivaram a sua presença nos periódicos. A tarefa resultou no desvendamento de quatro casos de homicídio entre homens, um de crime de natureza sexual contra uma mulher e um de roubo acontecido na zona rural da cidade de Campos Novos. Além desses, pareceu importante acrescentar um caso de injúria que envolveu o próprio dono do jornal A Notícia, mas que não figurou nas páginas dos impressos locais, o que aponta para o processo em relação ao que vinha ou não a público. Sua inserção justificou-se por revelar os conchavos político-sociais que atuavam sempre a favor das camadas dirigentes locais. Assim, foram despendidos esforços para estabelecer vinculações entre os donos dos jornais, a polícia, o judiciário e os poderes executivos e legislativos, uma vez que os envolvidos circulavam em diferentes instâncias e não raro havia troca de favores que influenciavam a maneira como as notícias eram veiculadas. A consulta documental não ficou restrita ao CEDAP e estendeu-se ao Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), localizado na capital paulista. A finalidade da viagem foi consultar acervos relativos à segurança pública estadual, que fornecessem dados sobre a criminalidade, nas diferentes regiões do Estado, objetivo cumprido com sucesso. Realizou-se a sondagem do material e anotações técnicas relativas à sua produção: autor, a quem se dirigia, título, ano e tipo (Relatório da Polícia, do Gabinete de Investigações, do Juízo da Vara de Menores ou da Diretoria do Presídio). Foram selecionados sete relatórios, dos quais se fotografou o que foi considerado relevante sobre a estrutura organizativa da polícia e as delegacias do interior, escolha necessária já que os documentos ultrapassavam a média de 400 páginas e dividiam-se em vários capítulos, com atenção especial às delegacias especializadas da capital. Observe-se o atendimento prestativo dos funcionários do APESP, que sugeriram visita à biblioteca da Faculdade de Direito da USP, onde foram encontrados mais três relatórios do Gabinete de Investigações, além da indicação do endereço eletrônico da Fundação SEADE, por meio do qual foi possível obter integralmente as versões digitais do Anuário Estatístico do Estado de São Paulo e A Estatística Policial-Criminal do Estado de São Paulo. Com ênfase na avaliação dos índices criminais, A Estatística difere dos relatórios citados anteriormente por abranger o estado em sua totalidade sem privilegiar as atividades empreendidas na capital, além de conter mapas e gráficos coloridos, sinal dos avanços técnicos adquiridos no processo de impressão, e por 13 apresentar dados mais completos, o que assinalava a integração firmada entre as delegacias espalhadas pelo estado. Ressalta-se, então, os diferentes tipos de documentos que fundamentam a pesquisa: os periódicos e o material de natureza judicial/policial, o que demanda formas de abordagens específicas para cada um deles, mas sem deixar de destacar traços convergentes entre ambos. Inseridos como fontes no âmbito historiográfico, tanto os jornais como os processos crimes implicam em ultrapassar temporalidades lineares e cristalizadas, bem como a busca de verdades factuais encadeadas em grandes acontecimentos e personagens. Razão pela qual a leitura pauta-se pelas propostas da História Cultural, que convida a releituras do passado e à revisão de processos que tocam pessoas comuns, seus hábitos e valores. Portanto, analisar tais fontes no domínio historiográfico enseja em refletir sobre indivíduos marginalizados e alijados de direitos humanos básicos, de uma vida digna e que, muitas vezes, não tiveram voz, fosse por sua posição social ou por estigmas culturalmente atribuídos pela própria sociedade. Daí a atenção à interdisciplinaridade e à diversificação do leque documental e de recursos para desvendar aspectos revelados por vestígios perceptíveis ao olhar atento do historiador.2 No que se refere aos processos crimes, nessa perspectiva, cabe salientar seu caráter aglutinador de discursos que se propõem a contar verdades conflitantes entre si. Nas falas envolvidas na feitura do dispositivo legal, vítima, acusado e as instâncias julgadoras do delito não hesitam em produzir versões a seu favor no intento de conduzir estrategicamente os rumos do trâmite para a sentença final de absolvição ou de condenação. O historiador deve estar munido do senso crítico ao perscrutar os depoimentos fabricados pelos vários atores, pois estes são passíveis de influências externas, inclusive dos agentes articuladores de sua escrita, que a torna carregada de armadilhas. Como consagra o jargão corrente no meio jurídico, “o que não está nos autos, não está no mundo”, há uma supervalorização do encadeamento dos fatos em um formato de enredo pré-estabelecido pelos responsáveis do encargo, juízes, advogados, promotores e delegados, enquanto fórmula vital para o embasamento das provas. Isto é, segundo a ótica deles, são selecionados os eventos e as declarações chaves para deslindar o caso, rigorosamente pautados nos critérios de isonomia 2 LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Editora Contexto, 2005, p. 111-112. 14 e justiça perante os códigos legislativos, para em seguida, serem devidamente inscritos na narrativa do processo que busca uma verdade categórica do crime. Contudo, na prática, este alcance pretendido pelo registro não passa de uma tentativa, pois não comporta a realidade em toda sua complexidade. Para Mariza Corrêa: (...) no momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em versões, o concreto perde quase toda sua importância e o debate se dá entre os atores jurídicos, cada um deles usando a parte do real que melhor reforce o seu ponto de vista. Nesse sentido, é o real que é processado, moído, até que se possa extrair dele um esquema elementar sobre o qual se construirá um modelo de culpa e um de inocência.3 Por isso é essencial a análise desdobrar-se no entendimento dos particularismos de um processo para o outro, que podem indicar as contradições do sistema normativo, e das leis em voga, legitimadoras da ação coercitiva do Estado que é cumprida pela polícia, organização pertinente no tema da pesquisa. O uso, portanto, dos relatórios de polícia no trabalho justifica-se pela necessidade de problematizar a existência do aparelho, na percepção de sua finalidade como um órgão que serviu ao regime varguista, e que além de incumbir-se do controle da população delinquente e interferir no cotidiano por meio de medidas repressivas, foi parte da campanha de modernização do país, ao elencar a estatística como instrumento fundamental de esquadrinhamento da criminalidade em São Paulo. Neste sentido, importa destacar que os documentos policiais, incluindo os processos crimes, estão longe de uma suposta neutralidade inquestionável. Eles expressam, antes de qualquer diagnóstico da conjuntura em questão, as concepções pessoais dos integrantes do corpo institucional, a mando dos interesses de seus superiores, segundo uma linguagem pré- determinada, enredada por conceitos técnicos em conformidade ao campo jurídico. Já na imprensa, pelo contrário, o ato delituoso perde o caráter jurídico dos documentos oficiais e circunscreve-se a outra lógica discursiva. Dirigido a um público maior, ao invés da bancada seleta de juristas, a descrição do crime, no noticiário policial, tenta primar pela objetividade e acessibilidade interpretativa do conteúdo, no fito de torná- lo notícia interessante e capaz de aumentar as vendas, e, portanto, o lucro do jornal. Atrair os leitores, então, é um dos desafios prementes, o que envolve, do ponto de vista dos periódicos, enfrentar a concorrência de mercado. Neste contexto, a imprensa 3 CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 40. 15 estrategicamente filtra os acontecimentos do dia a dia e os dotam de novos significados, embebidos em juízos de valor, reforçando moralmente o certo e o errado nas práticas sociais. Condicionados aos seus respectivos lugares de produção e direcionados a um público específico, os documentos tem singularidades que não podem passar desapercebidas pelo arcabouço metodológico empregado. A partir desse pressuposto, é possível analisar como, nos textos jornalísticos, os crimes eram tratados. Para tal fim, acrescenta-se a relevância do suporte das publicações em que as ocorrências se condensaram, ou seja, o tamanho e a qualidade do papel, a distribuição das matérias e da iconografia e a quantidade de anúncios publicitários, aspectos que sinalizam para as formas de enquadramento da palavra impressa, em articulação com o fator financeiro. A título de exemplo, no Jornal de Assis deixava-se comumente de publicar colunas por falta de espaço, obrigando readaptações na paginação.4 Maurice Mouilland assinala a íntima vinculação entre a materialidade e o conteúdo do jornal. Incorre-se no risco de simplificar-se algo que, de fato, é complexo quando: (...) os estudos a respeito da mídia dão, frequentemente, a impressão de estarem divididos entre uma descrição do jornal em sua materialidade de papel e formato (...) e aquilo, que durante muito tempo foi chamado de os conteúdos.5 Em relação aos gêneros textuais produzidos pela imprensa, José Marques de Melo classifica-os em opinativos ou informativos,6 entretanto, segundo Manuel Carlos Chaparro, as duas categorias são intrínsecas ao texto, o que não permite tal tipo de desvinculação.7 É ilusão pensar que as reportagens são imunes a qualquer ponto de vista, a seleção da notícia já subjetiva a ação. Deve-se ter em conta que o veículo de comunicação provém de determinado estrato social, ou seja, não são conteúdos neutros. O texto é provido de uma gama de códigos linguísticos e: “(...) tem sido elemento agregador e excludente de 4 Motivo explicitado como na seguinte nota: “Por motivo de carência de espaço, fomos obrigados a deixar para a edição de 16 do corrente grande quantidade de matéria, entre as quais dois artigos: um do sr. Gregório de Campos e outro do sr. J. N. Marmontel. Solicitamos desculpas aos nossos dois apreciados colaboradores.”. Jornal de Assis. Assis: nº 680, 09/11/1935, p. 1. 5 PORTO, Sérgio Dayrell (org.). O jornal: da forma ao sentido. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002, p. 29. 6 Vide: MELO, 1994, p. 64. apud CHAPARRO, Manuel Carlos. Sotaques d’aquém e d’além mar: percursos e gêneros do jornalismo português e brasileiro. Santarém: Jortejo, 1998, p. 154-162. 7 Ibidem, p. 100. 16 indivíduos e grupos sociais, havendo transformações constantes e inequívocas, no trato com e da palavra.”.8 As redações, por seu turno, devem ser encaradas como espaços que propiciam encontros e trocas, pontos aglutinadores de sociabilidades atravessadas pelas posturas ideológicas dos grupos. Apesar de ser uma tarefa difícil, mapear as redes de contato e as atuações dos colaboradores na imprensa enriquece a historicidade do objeto. Nesse sentido, vale retomar as colocações de Robert Darnton sobre o conceito de “circuito da comunicação”, ou seja, o percurso dos produtores do texto até as formas de apropriação das mensagens pelo público leitor.9 Na emaranhada rede de trocas de experiências simbólicas estabelecida, questões como quem produziu, em quais condições, para quem, com que consequências sociais e finalidades, colaboram para desnaturalizar o material e submetê-lo à crítica. O sucesso de um projeto jornalístico depende do conhecimento do leitor, seus gostos, preferências e o mundo de vivências, determinantes de suas expectativas na compra daquele exemplar de linguagem amena destinado a momentos de distração ou de outro que pretende travar debates e influir na formação de opiniões. É imprescindível, nesse sentido, compreender Assis em perspectiva histórica, para o que foram mobilizados dados demográficos e memorialísticos. Assim, considerações sobre os procedimentos técnicos disponíveis nas tipografias de Assis e do que circulava no mesmo momento, tanto na cidade e seus arredores como na capital, são elementos importantes, pois não basta analisar as publicações sem contextualizar o ambiente de sua inserção, “(...) estabelecer os quadros de referência dos debates nos quais certos discursos pretendem ou pretenderam intervir é, sem dúvida, fonte de uma salutar precaução contra o anacronismo (...)”.10 Para Nicole Louraux, entretanto, a adoção de uma postura mediadora e cuidadosa entre passado e presente possibilita a identificação das permanências.11 A partir dessas colocações, pretende-se compreender a violência na imprensa assisense com a investigação do perfil dos indivíduos envolvidos nos 8 MARTINS, Maria Helena (org.). Outras leituras: literatura, televisão, jornalismo de arte e cultura, linguagem interagente. São Paulo: SENAC, 2000, p. 16. 9 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. Mídia, Cultura e Revolução. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p. 112. 10 AVELAR, Alexandre de Sá; FARIA, Daniel Barbosa Andrade; PEREIRA, Matheus Henrique de Faria (orgs.). Contribuições a história intelectual do Brasil Republicano. Minas Gerais: UFOP, 2012, p. 14. 11 LORAUX, Nicole. Elogio do anacronismo. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 64. 17 delitos além da natureza destes, as linguagens dispensadas pela imprensa a esses eventos, a efetividade ou não da presença do Estado e a problematização da escolha de determinados casos à publicação. No que respeita à historiografia, a violência tornou-se tema historiográfico principalmente a partir da segunda metade do século XX, na esteira do crescente interesse da disciplina sobre as trajetórias de personagens marginalizadas pelo sistema político e socioeconômico. O processo de redemocratização da década de 1980, marcou a guinada desse campo no Brasil, impulsionado, sobretudo, pelo debate que se abria em torno da reconquista dos direitos de cidadania na nova ordem política do país que então se anunciava. Quadro este que desnudou os efeitos perniciosos do poder autoritário, as violações perpetradas nos porões do regime militar e as condições precárias das prisões, consideradas verdadeiras masmorras. Com a gradual liberdade retomada pela imprensa, casos de abuso e tortura vieram ao conhecimento da opinião pública e a questão dos direitos humanos entrou na agenda do dia. Afinal, os abusos deixaram de ser exclusividade das camadas pobres para atingir os presos políticos, muitos dos quais provenientes das camadas médias e intelectualizadas. Na visão de Alba Zaluar: Durante o período caracterizado como ditatorial, e que antecedeu a este, as técnicas repressivas empregadas contra os setores insatisfeitos da população, que incluía estas classes atingidas pelo arrocho salarial no seu padrão de vida, eram diretas, silenciosas, e não precisavam de uma justificativa na grande imprensa.12 Neste contexto, Crime, violência e poder, trabalho de cunho interdisciplinar organizado por Paulo Sergio Pinheiro em 1983, fruto de seminário de mesmo nome realizado na UNICAMP, e Papéis avulsos, coletâneas de textos que resultou do evento acadêmico denominado Crime e Castigo, ocorrido em 1986 na Fundação Casa de Rui Barbosa,13 constituíram-se em esforços que fomentaram estudos sobre a violência no bojo da sociedade brasileira. Outros pesquisadores, como Mariza Corrêa, Martha de Abreu 12 ZALUAR, Alba. Condomínio do diabo: as classes populares urbanas e a lógica do “ferro” e do fumo. In: PINHEIRO, Paulo Sergio (org.). Crime, violência e poder. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 276. 13 Papéis Avulsos. In: BRETAS, Marcos Luiz. (Org.). Papéis Avulsos. v. 1 e 2, Rio de Janeiro, jul-1986. Mimeo. 18 Esteves e Rachel Soihet enveredaram na análise da problemática da violência de gênero ainda nos anos de 1980.14 A esse conjunto pioneiro de trabalhos seguiu-se, na década de 1990 outros que se dedicaram a analisar diferentes atores do universo da violência, a exemplo da polícia.15 No plano da história social, cabe ressaltar as teses de Elizabeth Cancelli e Marcos Luiz Bretas, defendidas respectivamente em 1991 e 1995, que investigaram, com recortes temporais distintos, a atuação do poder policial no Rio de Janeiro.16 Já no que tange à relação entre imprensa e violência, núcleo de interesse propriamente dito desta presente pesquisa, foi a partir do novo século que a produção floresceu, como atestam os estudos de Ana Vasconcelos Ottoni, Ana Gomes Porto e Francisco Linhares Fonteles Neto,17 que esforçaram-se por abarcar as diversas facetas das notas criminais e também do gênero literário policial e isso não apenas para o eixo Rio e São Paulo, uma vez que o trabalho de Fonteles deu conta das especificidades da Fortaleza dos anos de 1920. Evidentemente, a intenção aqui não é esgotar a produção bibliográfica sobre o tema, mas sublinhar algumas obras que muito contribuíram para os rumos do trabalho. Nesse sentido, merece destaque Primavera já partiu: retrato dos homicídios femininos no Brasil, resultado do engajamento do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), que se propôs a discutir a violência de gênero e o tratamento lhe dispensado pela mídia. Os vários capítulos que compõem o livro desnudam as estratégias dos impressos em persuadir o leitor com linguagens eivadas de valores morais discriminatórios. As intenções do 14 CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983. ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. SOIHET, Raquel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. 15 Bem como salientou André Rosemberg e Marcos Luiz Bretas, o interesse historiográfico pela polícia no Brasil iniciou-se nos anos de 1970 mas de maneira isolada, com as pesquisas de Dalmo de Abreu Dallari e Heloísa Rodrigues Fernandes, que debruçaram-se sobre a história da instituição paulista. BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e perspectivas. Topoi, v.14, nº 26, 2013, p. 164. 16 BRETAS, Marcos Luiz. You can’t! The daily exercise of police authority in Rio de Janeiro: 1907-1930. Tese (Doutorado em História). The Open University: Grã Bretanha, 1995. CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da Era Vargas. Brasília: EDUNB, 1993. 17 PORTO, Ana Gomes. Novelas sangrentas: literatura de crime no Brasil 1870-1920. Tese (Doutorado em História Social). Campinas: UNICAMP, 2009. OTTONI, Ana Vasconcelos. O paraíso dos ladrões: crime e criminosos nas reportagens policiais da imprensa (Rio de Janeiro 1900-1920). Tese (Doutorado em História). Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2012. FONTELES NETO, Francisco Linhares. Crimes impressos: uma História social dos noticiários criminais em Fortaleza nos anos vinte. Tese (Doutorado em História). Rio de Janeiro: UFRJ, 2015. 19 periódico, que estão por trás da descrição factual, coadunam-se com práticas culturais derivadas de grupos dominantes, que impõe seus códigos como legítimos.18 As pesquisas de Boris Fausto, com destaque para Crime e Cotidiano: a Criminalidade em São Paulo (1880-1924) e O Crime do Restaurante Chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 tocam em temas que nos interessam diretamente. No caso do primeiro livro, tratou-se de analisar vários delitos que possibilitaram a composição do perfil da criminalidade na embrionária República brasileira, enquanto o segundo enfatizou um único caso, que permitiu revelar as contradições de um país orgulhoso pela campanha de sua seleção de futebol na Copa do Mundo, que festejava o carnaval e também expressava preconceitos étnico-raciais que atingiam em cheio certas comunidades imigrantes, no contexto do Estado Novo varguista. O interessante é notar a capacidade de colocar em destaque diferentes pontos de vista, isso graças à abordagem que joga com diferentes escalas de observação, da macro à microhistória.19 É certo que cabia (e ainda cabe) ao Estado zelar pela segurança do cidadão e refrear a delinquência, tarefa concernente à corporação policial, objeto da tese de doutorado de Marcelo Thadeu Quintanilha Martins. Apesar de o recorte anteceder a Segunda República, o trabalho pontuou a formação gradual do aparelhamento da polícia, que se apresentava como paladino da ordem.20 Após o golpe de 1930, a centralização política reservou novos papéis ao aparelho policial, como esclareceu Elizabeth Cancelli, ao explicitar a complexidade e o seu caráter repressivo que, longe de se restringir à perseguição do Partido Comunista e de seus simpatizantes, “personificava o braço executivo da pessoa do ditador e de um novo projeto político.”.21 Essa produção historiográfica fornece elementos para que se compreenda a inserção de Assis neste contexto. A começar pelo fato de a cidade estar subordinada à região policial de Presidente Prudente, ou seja, numa área do Estado que florescia em ritmo vertiginoso 18 OLIVEIRA, Dijaci David de; GERALDES, Elen Cristina; LIMA, Ricardo Barbosa de (Orgs.). Primavera já partiu: retrato dos homicídios femininos no Brasil. Brasília: Vozes, 1998. 19 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Editora da USP, 2002. Idem, 2009. 20 MARTINS, Marcelo Thadeu Quintanilha. A Civilização do Delegado: Modernidade, Polícia e Sociedade em São Paulo nas primeiras décadas da República, 1889-1930. Tese (Doutorado em História). São Paulo: USP, 2012. 21 CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da Era Vargas, p. 47. 20 nos anos 1930. Atentos ao progresso urbano, os habitantes percebiam e reformulavam as imagens do desenvolvimento assisense esboçadas no Jornal de Assis e em A Notícia. A imprensa, ora lisonjeiramente, ora criticamente, referia-se ao progresso alcançado, ainda que sob as rédeas de grupos dirigentes que também eram proprietários das folhas, sempre em disputa pelo protagonismo no palco da administração pública local. Rodrigo Christofoletti ressalta justamente essa faceta das disputas políticas no cotidiano assisense da primeira metade do século XX, momento em que os conluios e as alianças entre as agremiações marcaram a experiência política no município, com seus personagens emblemáticos.22 Ainda que subordinada aos interesses do jogo político, os impressos simbolizavam o refinamento cultural alcançado pela cidade, que certamente não ansiava apenas por prosperidade econômica, como tem ressaltado a bibliografia sobre o município, que insiste sobre a diversificação das formas de entretenimento que, além de consistirem em alternativas de distração das rotinas extenuantes do trabalho, fortaleciam os laços de solidariedade das camadas sociais, em especial aquelas que encabeçavam os arranjos das relações de poder.23 Amparada nesses aportes teórico-metodológicos, a pesquisa desmembrou-se em três capítulos. No primeiro, denominado Assis: criminalidade e imprensa na década de 1930, pretendeu-se reconstruir o pano de fundo histórico dos anos de circulação simultânea dos dois impressos assisenses. A ênfase residiu nas transformações que levaram a cidade, desde sua origem em 1905, a tornar-se conhecida na Alto Sorocabana, fama que, todavia, não fazia jus aos altos índices de violência da região militar de Presidente Prudente a qual Assis estava inserida. Assunto esmiuçado na sequência com a análise das estatísticas policiais fornecidas pelos relatórios da Secretaria de Segurança Pública do Estado, e ainda, do próprio papel da instituição. E, por fim, sublinhou-se a atividade jornalística nas imediações municipais, com as características materiais das publicações, a natureza, os tipos dos conteúdos veiculados, bem como os indícios de recepção dos leitores. 22 CHRISTOFOLETTI, Rodrigo. Assis em mosaico: caminhos para a construção de uma história (1905-1955). São Paulo: All Print Editora, 2009. 23 TANNO, Janete Leiko. Dimensões da sociabilidade e da cultura: espaços urbanos, formas de convívio e lazer na cidade de Assis (1920-1945). Tese (Doutorado em História). Assis, SP: FCL, UNESP, 2003. 21 No segundo capítulo, A produção das notícias policiais nos jornais assisenses, tratou-se de discutir as características das colunas policiais dos periódicos estudados. Semelhantes até certo ponto, tanto que traziam o mesmo título, “Pela Polícia”, figuraram de maneira irregular nos jornais. Para a análise nesse capítlo, foram selecionados os crimes que não constam no arquivo do Fórum da Comarca, ou seja, não deram origem a processos judiciais. Trata-se de violência cometida, sobretudo, contra mulheres – estupro, defloramento e homicídios – que, a despeito da gravidade, não tiveram prosseguimento, pois é improvável que os processos não tivessem sido conservados. O capítulo que encerra a dissertação, Jornais e processos crimes: um contraponto, tratou de confrontar as notas policiais dos jornais aos registros judiciários, que incluíam o inquérito e, por vezes, todo o trâmite jurídico. A contraposição permitiu verificar as escolhas dos responsáveis pelos jornais, a versão que apresentaram dos fatos, os silêncios e também o pouco interesse em fornecer novos dados depois de realizada a investigação policial, o que aponta para os compromissos entre as elites da cidade e os donos dos jornais. 22 Capítulo 1 Assis: criminalidade e imprensa na década de 1930 23 Elucidar a conjuntura histórica na qual se inseria os impressos constitui-se no objetivo desse capítulo, que se divide em quatro subunidades. É importante delinear o cenário assisense dos anos de 1930, revelando as micro e macroestruturas que impactaram nas características do Jornal de Assis e A Notícia. A prática jornalística do munícipio esteve abertamente submetida aos partidos políticos, num quadro regional específico e que ajuda a compreender o lugar ocupado pela cidade no quadro mais amplo da segurança pública do estado de São Paulo. 1.1. A “Princesa da Alta Sorocabana”24 Segundo as narrativas memorialísticas, a denominação Assis remete para duas situações bem distintas: ao fundador, Capitão Francisco de Assis Nogueira, e a São Francisco de Assis, santo escolhido como padroeiro. A cidade, localizada nas proximidades das bacias dos rios Paranapanema e Peixe, região denominada de Oeste Paulista, foi fundada em 1º de julho de 1905, a partir da doação de terras da antiga Fazenda Taquaral, realizada por Francisco de Assis Nogueira. A ocupação da região remonta à segunda metade do século XIX, conduzida por aventureiros liderados por José Teodoro de Souza, proveniente de Pouso Alegre, Minas Gerais. Depois de empossar as terras desbravadas, participou da formação de outros núcleos urbanos. Região de significativo potencial hidrográfico25 e entornada com terras férteis dotadas de madeira de lei para a extração, Assis atraiu os primeiros contingentes das frentes de expansão26 ainda na passagem do século XIX para o XX. A exemplo do que ocorreu em várias outras cidades da região, o povoamento desenvolveu-se a partir da edificação da paróquia de Campos Novos do Paranapanema e sua capela, marca de influências incisivas da Igreja no processo, que era proprietária do local. A instituição ainda recebeu doações de terrenos do fundador Capitão Francisco de Assis Nogueira, que posteriormente foram 24 Termo cunhado para Assis pelo jornal A Notícia, em razão do crescimento de prédios da cidade, que colocava a comarca em 6º lugar nas estatísticas do Estado. O desenvolvimento e o progresso de Assis. A Notícia. Assis: nº 61, 30/08/1936, p. 1. 25 Os rios Paraná e Paranapanema, divisores do estado de São Paulo com o Mato Grosso do Sul e Paraná respectivamente, e os rios Capivara, Cervo, Fortuna, Jacu, Palmitalzinho, Pari, Pavão e Matão partes dos territórios assisenses. 26 Acrescente-se a fuga dos alistamentos militares da Guerra do Paraguai (1864-1870), fator que teria motivado a exploração do Sertão do Paranapanema no século XIX. 24 concedidos a terceiros por meio da enfiteuse.27 Em decorrência, as vias urbanas traçaram-se de acordo com essa fragmentação territorial contínua até pelo menos a segunda metade do século XX. Data de 1928 a criação da Diocese, bastante ativa e que se envolveu em querelas com a maçonaria na década de 1920. Os exploradores compartilhavam uma visão de mundo etnocêntrica, ancorada na crença da superioridade do homem branco e no desprezo aos indígenas,28 vistos como “entraves” para a apropriação de terras e a implantação de infraestrutura necessária, seja ao cultivo de subsistências ou à exploração pelo capital. Não admira que, na região de Assis, a necessidade do primeiro cemitério tenha nascido justamente pela alta taxa de mortalidade dos nativos. O extermínio, expulsão, apresamento ou aculturação dos indígenas, práticas correntes por séculos em fronteiras inexploradas pelo “homem branco”, exigia ações de apaziguamento, preocupação que se fez presente desde a colonização portuguesa.29 Havia sim: “(...) a intenção missionária dos religiosos, que tentavam integrar os índios ao mundo dos brancos”,30 porém: (...) sempre houve a brecha da guerra justa, isto é, o beneplácito oficial ao extermínio e ao apresamento no caso dos nativos interporem-se de algum modo ao projeto econômico ou político da colonização, por exemplo, ocupando terras cobiçadas para agricultura ou resistindo ao avanço dos brancos.31 No início do século XX, a situação não era diversa, pois se tratava de ocupar terras produtivas e explorar as riquezas naturais provenientes da mata ainda intocada. O arrendamento das propriedades dificultava o processo de constituição das grandes propriedades e gerava, muitas vezes, insatisfações das partes envolvidas na divisão, dando origem a disputas sangrentas, o que bem indica que a luta estava longe de se circunscrever a indígenas e "brancos". Destituídos da posse legal de terras, posseiros e grileiros abriam as 27 Segundo SILVA, Ricardo Siloto da. Urdiduras e tessituras urbanas na história das cidades, a estruturação territorial de Assis. Tese (Doutorado em História). Assis, SP: FCL, UNESP, 1996, p. 185: “Em Assis, a doação efetuada para constituição do patrimônio estabelecia que os lotes decorrentes do parcelamento da gleba seriam permitidos à utilização por terceiros, através da figura jurídica da enfiteuse. Definia-se assim, o pagamento anual de um foro e, nas transmissões de alienação do direito de uso, o pagamento à Igreja Católica de um laudêmio de dois e meio por cento do valor do bem contratado.”. 28 Tribos indígenas como os Coroados, Cayuás, Kaingángs e Xavantes povoaram a região de Assis antes da chegada de José Teodoro de Souza e do Capitão Francisco de Assis Nogueira. 29 MOTT, Luiz Roberto de Barros. Os índios e a pecuária nas fazendas de gado do Piauí Colonial. Revista de Antropologia, nº 22, 1979, p.63 apud CANCELLI, Elizabeth (org.). Histórias de violência, crime e lei no Brasil. Brasília: EDUNB, 2004, p. 17. 30 ARAÚJO, Emanuel. A ferro e fogo: formas de violência no Brasil colonial. In: Op. Cit., p. 18. 31 Ibidem, p. 18. 25 frentes pioneiras e não era raro que explodissem disputas violentas com as Companhias Colonizadoras e o processo mais amplo de implantação do modo de produção capitalista. Tais empreendimentos contavam com investimentos das oligarquias cafeeiras, que desfrutavam de sólida posição econômica e política na federação brasileira. A produção, escoada pelas linhas férreas, ampliou a área explorada, diminuiu o desperdício que ocorria com o transporte no lombo de burros, sem esquecer a própria construção das ferrovias, que se transformou num lucrativo investimento. Em Assis, a ligação da Estrada de Ferro Sorocabana, ocorrida em 1914, possibilitou maior fluxo de pessoas e mercadorias pelos trilhos estendidos desde a capital, e ainda, o surgimento de empregos. Ferroviários movidos pela oportunidade de trabalho que lhe garantia benefícios adicionais ao salário, como moradia e a compra de gêneros alimentícios em armazém próprio da empresa, fixavam-se na cidade com suas famílias e estimulavam a economia local com o consumo de bens produzidos nas cercanias.32 Assim, a visibilidade alcançada pela vila na área de povoamento periférica do estado, contribuiu na sua elevação à condição de município em 1917 e na transferência da comarca de Campos Novos Paulista, em 1918. Dali em diante, até a década de 1930 precisamente, o aumento do poder de compra dos moradores injetaria ânimo nas atividades comerciais, junto à expansão da entrada de investimentos da iniciativa privada, culminando na origem da Associação Comercial e Industrial de Assis (ACIA) em 1932, órgão de defesa dos interesses da classe, que entre uma de suas ações, incentivou a abertura da Escola de Comércio São Luiz em 1935, provida de cursos técnicos para suprir o setor de mão de obra qualificada. A demanda do mercado de trabalho por profissionais formados adequadamente nos bancos escolares, deixava exposto o atraso do ensino no município, dependente da vinda de capital externo ao orçamento público. Aos assisenses, ofertava-se o Grupo João Mendes Junior, aparelhado com o quarto ano do ciclo primário em 1930 e o Ginásio Paulistano, primeira instituição particular de Assis, instalada em 1937, resultado do acordo feito entre a prefeitura e a Sociedade de Educação.33 32 Para mais informações a respeito da importância do prolongamento da linha de ferro na cidade vide: MOREIRA, Maria de S. A organização do processo de trabalho: sua dimensão política na Estrada de Ferro Sorocabana. Dissertação (Mestrado em História). Assis, SP: FCL, UNESP, 1989. 33 BARBOSA, Raquel Lazzari Leite. A construção do “herói”: leitura na escola. Assis 1920/1950. São Paulo: UNESP, 2001, p. 82. 26 E com a centralização dos serviços judiciários da região, o núcleo urbano modificou-se sensivelmente e atraiu profissionais liberais, como os bacharéis de Direito,34 que juntos às levas de burocratas, imigrantes e nacionais, alteraram a demografia do município: de 18.619 habitantes em 1934, passou para 19.824 em 1938 e 23.703 em 1940.35 Na década de 1950, a cifra subiu para 32.959, mais da metade dos quais (18.127) residentes na cidade,36 o que atesta o processo de urbanização então em curso. Além do fluxo de novos moradores, a condição de sede de comarca implicou em mudanças de cunho institucional, com a presença da delegacia, Fórum, cadeia e cartórios, transformações que justificavam a vinda da 27ª Subseção da Ordem dos Advogados do Estado de São Paulo em 1932.37 As novidades expressavam-se também na arquitetura urbana, que deixavam para trás a antiga vila acanhada com suas casas de madeira em prol de novas construções que garantiram à cidade, no ano de 1935, posição de destaque na Alta Sorocabana em termos de número de edificações, atrás somente de Presidente Prudente, que então tinha apenas 87 prédios a mais que Assis.38 Incontestavelmente, Assis tornou-se polo de atração e concentrou atividades econômicas e sociais, impulsionadas pelo adensamento populacional, o que alterou as práticas de sociabilidades. Cinemas, clubes, bares e praças despontavam na paisagem urbana do município, oferecendo diversificadas opções de lazer a seus frequentadores. O universo lúdico abrangia o Clube Recreativo e a Associação Atlética Ferroviária, lugares frequentados pelas elites e onde se organizavam bailes e jantares requintados, diferente das ruas e dos cinemas, pontos de encontro que reuniam as classes mais populares ansiosas pelo dia em que podiam interromper a rotina e desfrutar de momentos de lazer, prestigiar os desfiles de carnavais na avenida central e os filmes recém lançados da época.39 34 Sobre a história do desenvolvimento da advocacia no município vide: DAVID, Priscila. Memória e história da advocacia assisense (1960-1989). Tese (Doutorado em História). Assis, SP: FCL, UNESP, 2014. 35 TANNO, Janete Leiko. Op. Cit., p. 76. 36 Enciclopédia dos municípios brasileiros, Rio de Janeiro: IBGE apud DAVID, Priscila. As jovens das classes populares sob a mira dos crimes de estupro, sedução e rapto na cidade de Assis (1950-1979). Dissertação (Mestrado em História). Assis, SP: FCL, UNESP, 2009, p. 32. 37 DAVID, Priscila. Memória e história da advocacia assisense (1960-1989), p. 34-35. 38 Em Assis, havia 1.200 edificações, número que, na região da Sorocabana, era maior em Botucatu, 2.387; Itu, 2.189; Presidente Prudente, 1.287 e Avaré com 1.213, conforme dados do: Edificação urbana. Jornal de Assis. Assis: nº 684, 08/12/1935, p. 1. 39 TANNO, Janete Leiko. Op. Cit., p.17-18. 27 O ritmo de crescimento urbano de Assis inseria-se na onda da ocupação do oeste do estado de São Paulo, em curso pelo menos desde a segunda metade do século XIX e que seguiu acelerado até as primeiras décadas da centúria seguinte. Vejam-se os mapas relativos à expansão das fronteiras do interior paulista entre 1890 e 1930: Mapa 1: Limites municipais no oeste paulista em 1889 e 1930 Fonte: Mapa do Estado de São Paulo, 1889 e 1930. Seção de Cartografia do Departamento de Estatística do Estado de São Paulo. Arquivo Público do Estado de São Paulo. É justamente esse processo de robustecimento urbano que marca o final dos anos 1930. Ricardo Siloto da Silva frisa a importância dos espigões, picadas e estradas abertas 28 por tropeiros e que permitiam o deslocamento em direção à cidade.40 Vale lembrar o papel de destaque da Igreja como proprietária de terras. Conforme estipulava o documento de doação do patrimônio, a instituição detinha certo controle sobre a concessão dos lotes, situação que sofreu modificações em 1938. Ainda que existam controvérsias em relação à legalidade desses documentos,41 evidencia-se a pujança da Igreja no que tange à administração fundiária, fundamental para a disposição do traçado urbano. A intervenção do cristianismo no florescimento das cidades no sertão paulista adentrou o século XX, apesar da separação formal entre Estado e Igreja remontar ao advento da Primeira República e de haver, em geral no estado, a predominância da fundação de loteamentos urbanos de tipo leigos em contraposição a patrimônios religiosos.42 Mas nem a presença eclesiástica e sua rígida postura frente à moral e ao comportamento impedia que as marcas típicas das cidades e de seus indesejáveis, isso aos olhos do conservadorismo religioso, se fizessem presentes. Uma das mais famosas casas de meretrício, conhecida como a Casa da Antonieta, simbolizou a intensificação da rotina noturna na cidade. A força de sua presença no imaginário social é atestada pelo fato de circular a versão, segundo a qual: (...) Antonieta foi a musa de Jorge Amado para o livro Tieta. Ligações para explicar essa inferência são feitas a partir de um outro fato: Jorge Amado tinha um amigo que residia na cidade e algumas vezes teria vindo visitá-lo e que, ao conhecer Antonieta usou desse contato para escrever um livro, cujo título expressaria o relacionamento.43 1.2. Nos trilhos da violência regional Se crescia a fama e a legenda de Assis como “Princesa da Alta Sorocabana”, o avesso das benesses do progresso, ou seja, a violência, insinuava-se gradativamente na localidade, apesar da ampliação estrutural dos dispositivos de segurança pública do estado. Confrontada com crimes que exigiam cada vez mais de sua perícia investigativa, no final da década de 1930, a polícia paulista colocava em ação novos órgãos, como as Delegacias 40 SILVA, Ricardo Siloto da. Op. Cit., p. 173. 41 Segundo o depoimento de SILVA, Leoni Ferreira. Minha terra Assis. Assis: Leoni Ferreira, 1978, p. 253- 257, as pessoas envolvidas nas alterações do documento tinham reputação suspeita. 42 PUPIM, Rafael Giácomo. Cidade e território do oeste paulista: mobilidade e modernidade nos processos de construção e re-configuração do urbano. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). São Carlos: USP, 2008, p. 60-63. 43 SIMILI, Ivana Guilherme. Memória da prostituição: lembranças da “Casa da Antonieta”. Dissertação (Mestrado em História). Assis, SP: FCL, UNESP, 1995, p. 9. 29 Especializadas,44 o Gabinete de Investigações, o Gabinete Médico Legal, o Instituto de Criminologia, o Laboratório de Polícia Técnica e o Posto Médico da Assistência Policial. Todavia, ao mesmo tempo que as melhorias a credenciavam como instituição modelo e reforçavam o prestígio de São Paulo diante do restante da federação, dissimulavam o medo da sociedade com os riscos de quebra da ordem estabelecida. Uma visão preliminar sobre os dados estatísticos constantes nos relatórios policiais, revela o aumento de delitos nos anos de 1936 a 1938, tanto no interior como na capital do estado, com pequeno decréscimo em 1939. As prisões correcionais e policiais, medidas consideradas preventivas contra a delinquência, mantiveram-se em ritmo crescente de 1937 a 1939, talvez um sintoma da conjuntura ditatorial do Estado Novo, que fechava o cerco contra qualquer suspeita tratada como ato subversivo ao governo. Tabela 1: Delitos e Detenções Policiais e Correcionais no Estado de São Paulo no quadriênio de 1936 a 193945 Ano 1936 1937 1938 1939 Total Região46 Interior Capital Int. Cap. Int. Cap. Int. Cap. Estado Delitos 2.080 1.488 6.278 2.862 6.431 4.146 6.024 3.184 32.493 Total 3.568 9.140 10.577 9.208 Detenções 29.029 - 32.465 8.578 33.146 13.190 33.704 15.038 136.12147 Total 29.029 41.043 46.336 48.742 Fontes: A Estatística- Policial-Criminal do Estado dos anos de 1938 e 1939 e Relatório do Gabinete de Investigações de 1936. As explicações nos documentos oficiais sobre a escalada dos delitos fundamentavam-se na heterogeneidade cultural da população, devido ao contingente de estrangeiros presente no país,48 ao adensamento demográfico dos núcleos urbanos e à produção de riquezas, dinamizada pela circulação possibilitada pelas linhas férreas, que 44 As Delegacias Especializadas localizavam-se na capital e, quando necessário, auxiliavam as regionais no interior do estado. Segundo o Relatório de Chefatura da Polícia de 1939, as nove Delegacias Especializadas dividiam-se em: Vigilância e Capturas; Investigação sobre Furtos; Investigação sobre Roubos; Investigações sobre Falsificações e Defraudações em Geral; Costumes; Fiscalização de Jogos; Segurança Pessoal; Repressão à Vadiagem e Terras. 45 Não se consideraram os delitos das contravenções e das Leis de Segurança Nacional. 46 Na contagem das regiões do interior, soma-se a região da capital com as cidades do entorno da cidade de São Paulo: Jacareí, Mogi das Cruzes, Santo André, Santa Branca, Santa Isabel, Cotia, Guararema, Guarulhos, Itapecerica, Igaratá, Juquerí, Parnaíba e Salesópolis. 47 O resultado não incluiu as detenções de 1936 pela falta da quantidade calculada da capital. 48 Entretanto, como observa Elizabeth Cancelli, na Era Vargas o nacionalismo propagado dificultou a fixação de qualquer indivíduo estrangeiro em solo brasileiro. CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a Polícia da Era Vargas, p. 122. 30 aproximaram diversas regiões do estado.49 Evidentemente que para a polícia controlar a situação não bastava a divisão administrativa entre interior e capital. No ano de 1939, distribuíam-se pelo estado 15 regiões policiais,50 cada qual com uma delegacia regional sediada nas seguintes cidades: Araraquara, Bauru, Botucatu, Campinas, Capital, Casa Branca, Guaratinguetá, Itapetininga, Presidente Prudente, Penápolis, Ribeirão Preto, Rio Preto, Santos, São Paulo e Sorocaba. Assis pertencia a região de Presidente Prudente, junto a Santo Anastácio, Maracaí, Cândido Mota e Paraguaçu Paulista.51 O fracionamento territorial por áreas policiais, sob uma rígida hierarquia pré- estabelecida, viabilizava a cobertura de zonas afastadas, que escapavam ao vigilante poder institucional, e oferecia subsídio ao planejamento das ações dos agentes de segurança pública. Como pode-se observar na tabela abaixo, as regiões exibiam índices diversos, resultado das singularidades de natureza política e socioeconômica que exerciam papel ativo na gênese da violência em diferentes comunidades, o que exigia procedimentos maleáveis do braço policial: Tabela 2: Distribuição dos delitos por região do estado e taxa média por 100.000 habitantes segundo os termos da Consolidação das Leis Penais no biênio 1938/193952 49 Relatório do Gabinete de Investigações de 1935, Arquivos de Polícia e Identificação. Apresentado por Francisco de Assis Carvalho Franco. São Paulo: Tipografia do Gabinete de Investigações, 1936, p. 9. 50 Incluída a cidade de São Paulo, subdividida em 11 circunscricionais. Vale lembrar que as divisões regionais se modificavam frequentemente. Até 1928, por exemplo, Assis era sede da delegacia regional, posição perdida para Presidente Prudente na década de 1930. 51 Divisão segundo o Relatório da Chefatura de Polícia do Estado de São Paulo de 1939. Apresentado ao Sr. Dr. Adhemar Pereira de Barros interventor federal do Estado pelo Chefe de Polícia Dr. João Carneiro da Fonte. São Paulo: 1940. 52 Como os dados sobre a população não constam na A Estatística-Policial-Criminal do Estado de 1939, decidiu-se por utilizar o Anuário Estatístico do Estado de São Paulo para o mesmo ano. A variação demográfica, portanto, de um ano para outro deve ser estimada, pois além de todas as condições externas que envolvem o recenseamento, as fontes, ou seja, o Anuário e os documentos da polícia, se diferenciam pelo método de coleta. Para o entendimento e justificativa teórica do cálculo da taxa por 100.000 habitantes, foi utilizado o Manual de Interpretação da Estatística de Criminalidade do Estado de São Paulo. São Paulo: Coordenadoria de Análise e Planejamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, 2006. 53 As regiões militares encontram-se abreviadas. Região Delitos População (estimativa) Taxa Média por 100.000 Habitantes nas regiões por ordem decrescente53 1938 1939 1938 1939 1938 1939 Capital (São Paulo) 4.146 3.184 1.268.894 1.322.643 1)Cap.SP 326,7 1)Cap.SP 240,7 Capital (Região) 376 339 240.478 214.210 2)San. 179,6 2)San. 219,5 Araraquara 594 560 628.304 563.894 3)Soro. 164,4 3)Cap.R 158,2 Bauru 733 626 527.213 666.804 4)Cap.R 156,3 4)Soro. 126 Botucatu 396 417 346.450 331.467 5)Bau. 139 5)Botu. 125,8 31 Fontes: A Estatística-Policial-Criminal do Estado de 1938 e de 1939 e Anuário Estatístico do Estado de São Paulo de 1939. A análise prévia sobre a criminalidade nas regiões citadas indica que, tomando-se a taxa média anual de delitos por 100.000 habitantes havia grande disparidade da capital frente às outras demais áreas, apesar da queda razoável de 326,7 para 240,7, conforme se observa na tabela. Longe de se tratar de uma exceção, oito delegacias regionais (Bauru, Guaratinguetá, Itapetininga, Penápolis, Presidente Prudente, Ribeirão Preto, Rio Preto e Sorocaba) também registraram diminuição das atividades criminais, o que representa mais da metade das 15 regiões policiais. Presidente Prudente, por sua vez, manteve uma média relativamente alta no biênio, o que a coloca entre as seis regiões com maior quantidade de delitos, acima até de Campinas e inferior, comparativamente, apenas com a Capital (São Paulo), Capital (região), Santos, Sorocaba e ora Bauru, ora Botucatu. Vale notar que quando se contabiliza números absolutos, sem se levar em conta o aspecto demográfico, Presidente Prudente figura atrás de centros mais antigos, como Araraquara, Campinas, Guaratinguetá, Ribeirão Preto e Rio Preto, o que poderia sugerir que se tratava de uma região menos violenta. Classificadas de acordo com o que determinava a Consolidação das Leis Penais, redigida pelo desembargador Vicente Piragibe e aprovada pelo decreto nº 22.213 de 14 de dezembro de 1932,55 as infrações compartimentavam-se em três grupos, Crimes Contra o Estado, Crimes Contra a Pessoa e Crimes Contra a Propriedade que, por sua vez, subdividiam-se em 13 títulos. Assim, sistematizavam-se todos os aditamentos e 54 Não constou Prata, tida como estância no Anuário Estatístico do Estado de São Paulo de 1939. São Paulo: Tipografia Brasil, 1940. 55 PIRAGIBE, Vicente. Consolidação das Leis Penais. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1938. Disponível integralmente na biblioteca digital do Supremo Tribunal Federal: < http://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/DominioPublico/72115/pdf/72115.pdf> Campinas 703 687 865.415 802.527 6)Pre.P 136,4 6)Pre.P 120,6 Casa Branca 219 237 392.715 371.18554 7)Botu. 114,3 7)Arar. 99,3 Guaratinguetá 391 336 385.343 381.054 8)Rio P 106,3 8)Bau. 93,8 Itapetininga 254 176 239.988 245.658 9)Itap. 105,8 9)Rio.P 90,6 Penápolis 317 335 344.635 415.191 10)Rib.P 101,9 10)Rib.P 89,5 Presidente Prudente 358 422 262.435 349.718 11)Gua. 101,4 11)Gua. 88,1 Ribeirão Preto 499 407 489.495 454.263 12)Arar. 94,5 12)Cam. 85,6 Rio Preto 601 511 565.346 563.728 13)Pen. 91,9 13)Pená. 80,6 Santos 529 625 294.518 284.727 14)Cam. 81,2 14)Itap. 71,6 Sorocaba 461 346 280.257 274.602 15)Cas.B 55,7 15)Cas.B 63,8 Total (estado) 10.577 9.208 7.131.486 7.241.671 Total 148,3 Total 127,1 32 modificações em vigor do Código Penal de 1890,56 de modo a facilitar seu entendimento e aplicabilidade. A seguir, expõe-se os títulos tipificados com os respectivos delitos e os índices estatísticos do II ao XIII, com exceção do I e VII por não se haver registrado quantidades significativas: Tabela 3: Títulos dos delitos segundo a Consolidação das Leis Penais Números Títulos Tipificações I Contra a existência política da República Desintegração da Pátria; atentado a forma de governo; coação ao exercício do poder político. II Contra a segurança interna da República Resistência; fuga de presos; desacato e desobediência à autoridade. III Contra a tranquilidade pública Danificação das vias de comunicação; exercício ilegal da medicina; falso espiritismo; curandeirismo; alteração de medicamentos. IV Contra o livre gozo e exercício dos direitos individuais Ameaça; livre exercício dos cultos; inviolabilidade do domicílio e liberdade do trabalho. V Contra a boa ordem e administração pública Suborno; concussão; peculato; usurpação de funções públicas; excesso de autoridade. VI Contra a fé pública Moeda falsa; falsificação de documentos, atos públicos, papéis particulares, testemunho e falsa denúncia. VII Contra a Fazenda Pública Contrabando. VIII Contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor Atentado ao pudor; corrupção de menores; libidinagem; defloramento; estupro; rapto para fim libidinoso, seguido de defloramento, sem atentado ao pudor; lenocínio; manter ou explorar casa de tolerância; adultério e ultraje público ao pudor. IX Contra a segurança do estado civil Poligamia; cumplicidade na poligamia; ocultação de menores de 7 anos; desamparo de menores de 7 anos. X Contra a Segurança da Pessoa e Vida Homicídio; tentativa de homicídio; cumplicidade de homicídio; homicídio por imprudência; homicídio por envenenamento; infanticídio; cumplicidade de infanticídio; indução ao suicídio; aborto; ferimentos leves, graves e por imprudência. XI Contra a Honra e a Boa Fama Calúnia; injúria. XII Contra a propriedade pública e particular Dano; furto; tentativa de furto; cumplicidade de furto; abigeato; apropriação indébita; cumplicidade de apropriação indébita; furto de animais; falência fraudulenta; estelionato; tentativa de estelionato; estelionato por meios astuciosos. XIII Contra a pessoa e a propriedade Roubo; tentativa de roubo; cumplicidade de roubo; latrocínio; fabricação de instrumento para roubar; extorsão; tentativa de extorsão. Fonte: PIRAGIBE, Vicente. Consolidação das Leis Penais. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1938. 56 O Código Penal de 1890 sofreu, desde sua promulgação, críticas de setores jurídicos e para facilitar a consulta das atualizações elas foram reunidas num mesmo documento. Sobre as críticas, ver: ALVAREZ, Marcos. César; SALLA, Fernando. A; SOUZA, Luís Antônio F. A sociedade e a Lei: o Código Penal de 1890 e as novas tendências penais na Primeira República. Justiça e História, Porto Alegre, v. 3, n. 6, 2003. 33 Tabela 4: Distribuição dos delitos tipificados na Consolidação das Leis Penais por região no biênio 1938/1939 Região Títulos da Consolidação das Leis Penais Crimes Contra o Estado II III IV V VI Total 1938 1939 1938 1939 1938 1939 1938 1939 1938 1939 Capital (São Paulo) 8 1 4 11 7 2 10 5 21 30 99 Capital (Região) 1 2 1 2 4 4 - - - - 14 Araraquara - 8 5 8 4 6 1 - 2 3 37 Bauru 10 10 7 5 10 16 7 3 1 3 72 Botucatu 8 6 9 7 4 4 - - 1 3 42 Campinas 6 2 3 3 7 6 1 2 4 1 35 Casa Branca - 6 1 - 2 - 1 - - - 10 Guaratinguetá 1 1 1 1 5 3 1 - - 1 14 Itapetininga 8 1 2 - - - - - - - 11 Penápolis 2 2 4 5 16 13 - 2 - 2 46 Presidente Prudente 5 2 2 4 4 4 1 3 - - 25 Ribeirão Preto 1 16 4 - 8 5 - - - 2 36 Rio Preto 5 5 6 11 5 5 11 1 3 2 54 Santos 2 1 2 4 11 1 1 - 2 7 31 Sorocaba - 2 1 3 6 3 3 1 2 - 21 Total 57 65 52 64 93 72 37 17 36 54 547 Região Títulos da Consolidação das Leis Penais Crimes Contra a Pessoa Crimes Contra a Propriedade VIII IX X XI Total XII XIII Total 1938 1939 1938 1939 1938 1939 1938 1939 1938 1939 1938 1939 Capital (S.P.) 233 300 3 1 2.789 2.218 1 1 5.546 543 459 526 156 1.684 Capital (R.) 75 63 - - 239 221 1 - 599 36 33 19 14 102 Araraquara 98 78 - - 265 290 3 1 735 175 134 41 32 382 Bauru 107 74 - 5 388 337 1 - 912 157 142 45 31 375 Botucatu 68 73 3 1 204 245 2 1 597 86 55 11 22 174 Campinas 123 116 - - 376 406 - - 1.021 152 122 31 29 334 Casa Branca 39 54 - - 137 143 - - 373 27 28 12 6 73 Guaratinguetá 86 81 1 - 212 180 - 1 561 67 51 17 17 152 Itapetininga 47 20 - 1 159 136 1 - 364 24 13 13 5 55 Penápolis 28 41 4 1 204 259 3 - 540 38 76 18 21 153 Presi. Pru. 41 55 - - 196 212 - 4 508 93 38 16 13 160 Ribeirão P. 103 73 - 1 273 230 3 - 683 83 56 24 24 187 Rio Preto 95 103 3 - 305 242 1 1 750 132 109 35 32 308 Santos 64 44 1 - 351 449 - 1 910 82 92 12 26 212 Sorocaba 80 64 1 1 183 159 - - 488 152 102 35 11 300 Total/Estado 1.287 1.239 16 11 6.281 5.727 16 10 14.587 1.847 1.510 855 439 4.651 Fontes: A Estatística Policial-Criminal do Estado de 1938 e de 1939. 34 Observe-se que Presidente Prudente fica abaixo de várias outras regiões nos três grupos de delitos, conforme se observa na coluna que totaliza os dados. Nos “Crimes Contra o Estado”, que não tem a mesma natureza dos cometidos contra a pessoa e a propriedade, a região à qual pertence Assis representa 4,5% do total de delitos do estado. Quando se considera a faixa mediana da distribuição das ocorrências, ou seja, entre as cinco primeiras e as cinco últimas regiões, Presidente Prudente fica ao lado de Santos (5,6%), Campinas (6,3%), Ribeirão Preto (6,5%) e Araraquara (6,7) e a frente de Casa Branca (1,8%), Itapetininga (2%), Guaratinguetá (2,5%), Capital (região, 2,5%) e Sorocaba (3,8%). Uma das explicações para a baixa frequência no que respeita aos “Crimes Contra o Estado” vincula-se à dificuldade de sua imputabilidade. Por envolverem indivíduos próximos ao poder, principalmente quando enquadrados nos títulos V e VI, que pressupõe a ação de funcionários públicos graduados e políticos que ocupavam cargos de responsabilidade pública, é fato que os envolvidos tinham maior margem para assegurar o acobertamento da culpabilidade ou de fechar acordos sigilosos que abriam caminho para a impunidade. Situação diferente ocorre nos “Crimes Contra a Propriedade”, em que a vítima se sente diretamente lesada, daí a exigência ser mais incisiva junto às autoridades para obter a solução do caso. Tal cobrança não provinha, contudo, unicamente da esfera civil, como evidencia o fato de a própria polícia fazer duras críticas à Delegacia de Furtos, localizada na capital paulista, pela suposta prioridade de investigação que o órgão daria aos furtos de maior valor, em desfavor dos de pequena monta.57 Repreensão prontamente repudiada com a justificativa de falta de pessoal para o cumprimento das diligências requisitadas: Sabemos, porém, que não se trata de premeditada preferência e, sim, de escassez de pessoal, o que tem feito com que a Delegacia de Furtos não leve a bom termo todas as investigações que lhe são solicitadas.58 Mediante essas controvérsias relativas à ineficiência do trabalho policial, que certamente não pararam naquele ano, os “Crimes Contra a Propriedade” na zona prudentina em 1938/1939 atingiu a casa dos 3,4%, acima de Itapetininga (1,1%), Casa Branca (1,5%), Capital (região; 2,1%), Guaratinguetá (3,2%) e Penápolis (3,2%), o que bem demonstra sua posição intermediária no quadro regional, junto a aglomerados do porte de Botucatu 57 Relatório do Gabinete de Investigações de 1936. Apresentado por Francisco de Assis Carvalho Franco. São Paulo: 1937, p. 33-34. 58 Ibidem, p. 34. 35 (3,7%), Ribeirão Preto (4%), Santos (4,5%) e Sorocaba (6,4%). Já nos “Crimes Contra a Pessoa”, Presidente Prudente tem sensível declínio e supera apenas as circunscricionais de Itapetininga (2,4%), de Casa Branca (2,5%) e de Sorocaba (3,3%), com 3,4%. A capital liderava as estatísticas com larga vantagem (38%), seguida, bem atrás por Campinas (6,8%), Bauru (6,2%) e Santos (6,2%). Neste caso, a região de Presidente Prudente nos “Crimes Contra a Pessoa” insere-se no bloco das áreas com menores índices, a exemplo de Penápolis (3,7%). Tal constatação fica mais evidente quando se agrupam as 15 regiões policiais segundo a quantidade média dos crimes registrados, o que indica que a parcela superior era formada por São Paulo (capital), Bauru, Campinas, Rio Preto e Araraquara; a segunda por Ribeirão Preto, Santos, Botucatu, Presidente Prudente e Penápolis; e a terceira por Sorocaba, Capital (região), Guaratinguetá, Casa Branca, Itapetininga. Tabela 5: Classificação por porcentagem dos números absolutos por região e grupos de crimes da Consolidação das Leis Penais no biênio 1938/1939 Região Contra o Estado % Região Contra a Pessoa % Região Contra a Propriedade % Capital (SP) 18,0 Capital (S.P.) 38,0 Capital (S.P.) 36,2 Bauru 13,1 Campinas 6,9 Araraquara 8,2 Rio Preto 9,8 Bauru 6,2 Bauru 8,0 Penápolis 8,4 Santos 6,2 Campinas 7,1 Botucatu 7,6 Rio Preto 5,1 Rio Preto 6,6 Araraquara 6,7 Araraquara 5,0 Sorocaba 6,4 Ribeirão Preto 6,5 Ribeirão P. 4,6 Santos 4,5 Campinas 6,3 Capital (R.) 4,1 Ribeirão P. 4,0 Santos 5,6 Botucatu 4,0 Botucatu 3,7 Presidente P. 4,5 Guaratinguetá 3,8 Presidente P. 3,4 Sorocaba 3,8 Penápolis 3,7 Penápolis 3,2 Capital (R) 2,5 Presidente P. 3,4 Guaratinguetá 3,2 Guaratinguetá 2,5 Sorocaba 3,3 Capital (R.) 2,1 Itapetininga 2,0 Casa Branca 2,5 Casa Branca 1,5 Casa Branca 1,8 Itapetininga 2,4 Itapetininga 1,1 Fontes: A Estatística Policial-Criminal do Estado de 1938 e de 1939. No que concerne aos números absolutos, vale destacar que, tal como ocorre com os dados apresentados até aqui, não há distinção dos envolvidos por gênero. Observa-se que a capital esteve na dianteira de todas as demais regiões e isso nos três grupos de crimes. Assim, com exceção da cidade de São Paulo, percebe-se que a distribuição da quantidade de delitos pelas regiões militares do estado não acompanhou um padrão geográfico bem definido. A impressão, partilhada pelo senso comum, de que quanto mais uma determinada 36 área fosse afastada do poder central da polícia, localizado na capital, mais a mesma seria suscetível aos mandos e desmandos de criminosos, não pode ser categoricamente confirmada. Os dados revelam variações que invalidam essa percepção simplista, como quando se constata em relação à Presidente Prudente, região localizada no extremo do estado e onde a quantidade das infrações, se a equação fosse verdadeira, deveria ser maior. Entretanto, áreas mais próximas da capital, como Bauru, Campinas, Rio Preto e Araraquara, por exemplo, concentravam o número de ocorrências maior do que as registradas nas bordas à leste das terras paulistas. Todavia, deve-se notar que os informes estatísticos não contemplam as múltiplas intersecções da realidade, razão pela qual se tentou diversificar o rol das amostragens criminais referindo-as às da taxa de crimes por 100.000 habitantes. Para um olhar mais completo e preciso da mensuração dos delitos espalhados pelas diferentes localidades, inseriu-se a variável populacional, com o intuito de reavaliar os dados relativos à zona de Presidente Prudente. A relação entre crimes e população revela coeficientes bem diversos para o período em apreço, tanto que nos “Crimes Contra o Estado”, Presidente Prudente chegou a sobrepujar Ribeirão Preto e a própria cidade de São Paulo, apesar da diferença ser irrisória (0,2%). Já no que respeita aos crimes contra a pessoa e a propriedade, a delegacia regional circunscrita a Assis ocupou posição acima de Bauru e de Botucatu, que se encontravam na primeira faixa quando se tratava dos percentuais calculados a partir dos números absolutos. Na contagem proporcional à demografia, a Capital (São Paulo) e Bauru mantiveram-se no primeiro estrato, ao passo que Sorocaba, Santos e Botucatu tomaram o lugar de Rio Preto, Campinas e Araraquara. Os resultados, aliás, chamam a atenção pela queda expressiva de Campinas e Araraquara, agora colocadas abaixo de Presidente Prudente em todos os grupos delituosos e cujos indicadores as remetem para regiões com os menores índices, ou seja, Casa Branca, Guaratinguetá e Itapetininga. 37 Tabela 6: Classificação regional dos delitos por taxa de 100.000 habitantes segundo os grupos dos títulos da Consolidação das Leis Penais no biênio 1938/1939 Fontes: A Estatística Policial-Criminal do Estado de 1938 e de 1939 e Anuário Estatístico do Estado de São Paulo de 1939. Por outro lado, pode-se inferir o declínio da criminalidade de 1938 para 1939 na maioria das divisões policiais enquanto um ponto comum entre os dois arrolamentos estatísticos. Na taxa de delitos por 100.000 habitantes, das 15 regiões paulistas, oito registraram decréscimos nos três grupos dos títulos da Consolidação das Leis Penais: Capital (São Paulo), Bauru, Guaratinguetá, Itapetininga, Presidente Prudente, Rio Preto e Sorocaba. As restantes oscilaram entre subidas e descidas, sem que nenhuma apresentasse aumento uniforme nos diferentes tipos de infrações. No que toca a Presidente Prudente, ressalte-se a disparidade dos “Crimes Contra a Propriedade” no ano de 1938, correspondente a média de 41,5 ocorrências, inferior apenas à cidade de São Paulo, o que a colocou no topo entre as regiões com maiores índices de “Crimes Contra a Propriedade” no interior do estado. Nesta configuração, portanto, percebem-se variações significativas, com Presidente Prudente tendendo a equiparar-se aos centros mais antigos e mais populosos, nos quais os níveis criminais atingiam taxas elevadas. Região Contra o Estado Região Contra a Pessoa Região Contra a Propriedade Botucatu 6,1 Capital (S.P.) 214,0 Capital (S.P.) 64,9 Bauru 6,0 Santos 157,1 Sorocaba 54,0 Penápolis 6,0 Capital (R.) 131,7 Santos 36,5 Santos 5,3 Botucatu 88,0 Araraquara 32,0 Rio Preto 4,7 Sorocaba 87,9 Bauru 31,4 Presidente P. 4,0 Presidente P. 82,9 Rio Preto 27,2 Capital (S.P.). 3,8 Bauru 76,3 Presidente P. 26,1 Ribeirão P 3,8 Itapetininga 74,9 Botucatu 25,6 Sorocaba 3,7 Guaratinguetá 73,1 Capital (R.) 22,4 Araraquara 3,1 Ribeirão P. 72,3 Penápolis 20,1 Capital (R.) 3,0 Penápolis 71,0 Campinas 20,0 Itapetininga 2,2 Rio Preto 66,4 Guaratinguetá 19,8 Campinas 2,0 Araraquara 61,6 Ribeirão P. 19,8 Guaratinguetá 1,8 Campinas 61,2 Itapetininga 11,3 Casa Branca 1,3 Casa Branca 48,8 Casa Branca 9,5 38 Tabela 7: Distribuição dos delitos por taxa de 100.000 habitantes, regiões policiais e grupos dos títulos da Consolidação das Leis Penais nos anos de 1938 e 1939 Região Contra o Estado Contra a Pessoa Contra a propriedade 1938 1939 1938 1939 1938 1939 Capital (S.P.) 3,9 3,7 238,4 190,5 84,2 46,4 Capital (R.) 2,4 3,7 130,9 132,5 22,8 21,9 Araraquara 1,9 4,4 58,2 65,4 34,3 29,4 Bauru 6,6 5,5 94,0 62,3 38,3 25,9 Botucatu 6,3 6,0 79,9 96,5 27,9 23,2 Campinas 2,4 1,7 57,6 65,0 21,1 18,8 Casa Branca 1,0 1,6 44,8 53,0 9,9 9,1 Guaratinguetá 2,0 1,5 77,5 68,7 21,7 17,8 Itapetininga 4,1 0,4 86,2 63,9 15,4 7,3 Penápolis 6,3 5,7 69,3 72,4 16,2 23,3 Presidente P. 4,5 3,7 90,3 77,4 41,5 14,5 Ribeirão P. 2,6 5,0 77,4 66,9 21,8 17,6 Rio Preto 5,3 4,2 71,4 61,3 29,5 25,0 Santos 6,1 4,5 141,2 173,4 31,9 41,4 Sorocaba 4,2 3,2 94,1 81,5 66,7 41,1 Total (estado) 3,8 3,7 106,5 96,4 37,8 26,9 Fontes: A Estatística Policial-Criminal do Estado de 1938 e 1939 e Anuário Estatístico do Estado de São Paulo de 1939. Assim, os dados provenientes da estatística policial merecem prudência, pois se tratam da notificação dos atos transgressores, sem que os mesmos espelhem o grau de violência presente de fato numa dada região. Para que o registro do delito fosse oficializado e contabilizado, era necessário notificá-lo aos órgãos competentes, identificá-lo de acordo com as leis penais então vigentes, do que resultava a confecção do boletim de ocorrência. Muitos crimes que ocorreram em determinados locais e circunstâncias não percorriam o trajeto burocrático estipulado e não chegavam ao conhecimento da instituição policial, seja pela ineficácia do corpo investigativo na identificação dos acusados, pelo medo da vítima que temia por sua segurança caso denunciasse seu malfeitor ou, ainda, pela falta de interesse dos agentes da segurança pública em reprimir certos comportamentos, condenados pela legislação mas aprovados socialmente, como a violência do homem contra a mulher.59 É salutar, então, munir-se de senso crítico no trato da base numérica sobre a criminalidade. Por isso, o presente trabalho não se limitou ao âmbito da pretensa exatidão dos relatórios policiais e buscou, outrossim, entender a conjuntura e os critérios de produção do material, bem como os mecanismos que presidiram a sua feitura. Pode-se 59 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), p. 18-20. 39 observar a intenção de segmentar, com o máximo de precisão, a massa de atos criminais em categorias padronizadoras, que procuravam dar conta dos comportamentos desviantes e execrados pela sociedade. Nesta esteira, compreender a história da polícia de São Paulo tornou-se um passo imprescindível para desvelar as formas como o Estado tentou controlar a violência para a instauração da chamada boa ordem, em benefício de alguns e infortúnio de outros. 1.3. A Polícia paulista na Era Vargas O surgimento da polícia moderna, como força separada do exército, burocratizada e uniformizada,60 justificava-se na contenção dos infratores, ancorada nas prerrogativas legais vigentes nos códigos. Entretanto, desde os seus primórdios, com o desenvolvimento do Estado Moderno a instituição vinculou-se gradativamente ao seio político, o que lhe ensejou incumbências para além de sua finalidade primária.61 No oeste paulista, até pelo menos a década de 1920, o dever da força policial não se resumia ao monitoramento dos indivíduos de índole suspeita. Como verdadeira agente moral, a repartição também preconizava incutir os valores ditos civilizados da modernidade nos locais de ocupação recente, em contraposição aos mandonismos caudilhistas, obstáculos ao progresso pela condução paternalista da vida pública nas câmaras municipais.62 O delegado tinha por função desmantelar os esquemas chefiados pelos coronéis, que não hesitavam em atacar ilegalmente seus opositores. A tensão aumentava principalmente quando da realização das eleições, momento em que as desconfianças quanto à idoneidade dos resultados das urnas inflamavam os ânimos partidários. Preocupação evidenciada no Relatório da Polícia de 1928, em que a região de Assis, sede da delegacia regional antes da transferência para a cidade de Presidente Prudente, solicitava 60 Para Charles Tilly, a polícia moderna emerge no século XIX no Velho Continente, após longo processo de municiamento do Estado e desarmamento dos civis. TILLY, Charles. Coerção, capital e Estados europeus. São Paulo: Edusp, 1996, p.110. 61 Sobre o interesse da historiografia brasileira no estudo da polícia como objeto de pesquisa, ver: BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e perspectivas. Topoi, v.14, nº 16, 2013, p. 162-173. 62 MARTINS, Marcelo Thadeu Quintanilha. Op. cit., p. 80-83. 40 destacamentos junto à capital como medida preventiva na realização dos pleitos.63 E ainda não se pode esquecer que a autoridade encarregada de manter a ordem não estava isenta de envolvimentos com os poderosos locais. E, de fato, a imagem dessa polícia imbuída da nobre missão de apaziguar os ânimos não passou, em muitas oportunidades, de uma miragem, pois a corporação envolveu-se com candidatos e chegou mesmo a ocultar práticas ilegais que poderiam comprometer a reputação dos aspirantes às cadeiras na câmara local ou na prefeitura. Assim, a instituição interferiu e foi ator importante nos arranjos políticos desenhados na Primeira República: Um dos mitos repetidos sobre os efeitos da modernização da polícia de São Paulo foi que ela ‘saiu das mãos dos políticos locais, para as mãos seguras de uma plêiade de bacharéis, completamente alheios aos negócios de campanário.’. Pouco a pouco, diziam, ‘a polícia partidária e perra retraiu-se, desaparecendo, sucumbindo, para dar lugar à polícia imparcial e pronta, filha da justiça e defensora do direito.’. Porém, são fartas as evidências de que a polícia paulista nunca se separou da política. A polícia tinha meios de influir no resultado eleitoral e o fazia sem constrangimento, favorecendo o governador e seus aliados. Durante o pleito, os delegados podiam prender qualquer um, calando opositores e afastando eleitores, proteger aliados políticos ou simplesmente ignorar os abusos de certos chefes políticos.64 No período subsequente, a instituição não se apartou da arena política, pelo contrário, sua presença foi realçada frente aos contornos repressivos do novo regime. A vitória do movimento de 1930 trouxe transformações profundas na cúpula diretiva do país e aos anos conturbados da história brasileira, marcados pela formação de um Estado autoritário que abertamente fazia uso da violência contra o mínimo prenúncio do que alegava ser subversivo. Autoritarismo erigido sobre as bases da centralização administrativa propugnada por Getúlio Vargas que, segundo Boris Fausto, minou a autonomia federativa e atingiu sua culminância em 1937 com o Estado Novo, regime de aprofundamento da tendência já expressa no breve período constitucional.65 Na leitura dos relatórios de polícia, tais nuances podem ser inferidas, tanto que nos documentos de 1934, 1935 e 1936, publicados antes do Estado Novo, há poucas referências 63 Relatório da Polícia do Estado de São Paulo de 1928.Apresentado ao Secretário da Justiça e da Segurança Pública Dr. A. C. de Salles Junior pelo Chefe de Polícia Mário Bastos Cruz. São Paulo: Atelier Tipográfico do Gabinete de Investigações, 1928, p. 14-15. 64 MARTINS, Marcelo Thadeu Quintanilha. Op. cit., p. 65. 65 FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III, vol. 10, O Brasil Republicano: Sociedade e Política (1930-1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 130-131. 41 à figura de Getúlio Vargas, situação bem distinta no Relatório da Chefatura de Polícia de 1939, em que logo no início estamparam-se as fotos do Chefe de Governo e dos dirigentes do estado de São Paulo. Figura 1: Autoridades referidas no Relatório da Chefatura de Polícia de 1939 Da esquerda para direita: Getúlio Vargas, Presidente da República; Adhemar Pereira de Barros, Interventor Federal do Estado e João Carneiro da Fonte, Chefe de Polícia. Fonte: Relatório da Chefatura de Polícia de 1939. Nesta conjuntura, a polícia era uma das engrenagens vitais para o funcionamento da nova ordem, o que exigiu mudanças na hierarquia e renovação dos quadros profissionais, em consonância com a política unificadora implantada nos anos 1930, ao que se soma as consequências da Revolução Constitucionalista de 1932. Assim, especialistas alertam que: Não era coincidência o fato de que as polícias estaduais – formalmente subordinadas aos interventores ou governadores de estado – passaram a ser diretamente subordinadas à polícia do Rio de Janeiro e, portanto, à Presidência da República. E a primeira iniciativa neste sentido foi tomada em relação à polícia paulista, logo após outubro de 1930, e paulatinamente esmerada, até que tomasse a forma de uma organização subordinada exclusivamente a uma vontade.66 Mas tal concentração de poderes deu origem a resistências em outras instâncias, como no caso da retirada da autonomia do Juiz de Menores pelo Decreto-lei nº 2497, de 24 de dezembro de 1935, que deu margem a reclamações registradas no Relatório do Juízo Privativo da Vara de Menores de 1936. O juizado passou para o âmbito do Departamento de Assistência Social, o que teria trazido diversos inconvenientes: 66 CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da Era Vargas, p. 50-51. 42 (...) o Juiz de Menores perdeu a sua antiga autonomia e exclusiva superintendência, principalmente na parte administrativa, quer quanto a guarda e orientação na educação dos menores, quer quanto a escolha de seus auxiliares, mesmo os de sua imediata confiança. Está errado, pelo menos assim pensamos.67 O interior do estado, por seu turno, demandava intervenções contundentes para vencer a influência das lideranças locais, avessas à nova ordem. Com o intuito de dar conta das solicitações que se avolumaram,68 o decreto nº 4.780-A, de 28 de novembro de 1930, desmembrou a Delegacia de Ordem Política e Social em duas: a de Ordem Política e a de Ordem Social, voltadas para o combate de movimentos tidos como perniciosos ao regime, além de sindicatos, organizações estudantis ou qualquer outra que pudesse levantar suspeita de professar o comunismo, ideologia que era simbolicamente associada ao demônio.69 No Relatório do Gabinete de Investigações de 1934, a questão recebeu especial atenção, contando inclusive com mapa ilustrativo da difusão da propaganda no estado de São Paulo, com destaque para as cidades de Bauru, Marília e Botucatu, enquanto Assis ocupava lugar insignificante na avaliação policial.70 Outras alterações podem ser remetidas à Revolução Constitucionalista, fruto da perda da hegemonia política da burguesia-cafeicultora paulista, que tencionava, por meio de revolta armada, dissimulada em tons de defesa dos valores democráticos, pôr fim ao governo provisório e quiçá restaurar a antiga ordem.71 A insatisfação generalizou-se e o chamado “pequeno exército paulista”,72 a Força Pública, aderiu à causa insurgente e ocupou diversas regiões do estado, com as elites conclamando os civis a participarem da empreitada, apresentada como um ato de defesa dos interesses paulistas. Todavia, a insurreição não obteve êxito no confronto com as tropas legalistas e, findo o movimento, 67 Relatório do Juízo Privativo da Vara de Menores de 1935. Apresentado ao Secretário da Justiça pelo Dr. Eduardo de Oliveira Cruz Juiz Privativo da Vara de Menores de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1937, p.5. 68 Relatório do Gabinete de Investigações de 1934. Apresentado ao secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo por Francisco de Assis Carvalho Franco. São Paulo: Tipografia do Gabinete de Investigações, 1935. p. 13. 69 CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da Era Vargas, p.80-81. 70 A Propaganda Comunista no Estado de São Paulo. Delegacia de Ordem Social. Relatório do Gabinete de Investigações.Apresentado ao secretário de segurança pública do estado de São Paulo por Francisco de Assis Carvalho Franco referente ao ano de 1934. s/ número de página. 71 FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III, vol. 10, O Brasil Republicano: Sociedade e Política (1930-1964), p.547. 72 Expressão aludida na obra de Dalmo de Abreu Dallari que aborda a história da Força Pública, desde suas origens até a segunda metade do século XX. DALLARI, Dalmo de Abreu. O pequeno exército paulista. São Paulo: Perspectiva, 1977. 43 não tardaram os expurgos nas fileiras da Força Pública. Antigos soldados, funcionários e delegados foram excluídos e o poder policial buscou renovar os votos de obediência incondicional graças à contratação de novos integrantes, o que provocou conflitos de interesses nas nomeações, pois os servidores exonerados passaram a reivindicar a volta aos cargos.73 Armando de Salles Oliveira, interventor federal de 1933 a 1935, acatou alguns desses pedidos para apaziguar a categoria e levou à frente reformas na máquina policial, o que incluiu a criação, pelo decreto nº 6245 de 29 de dezembro de 1933, do Serviço de Estatística Policial. Medida que, segundo A Estatística Policial Criminal do Estado de 1939, foi fundamental para sanar a ausência de dados e representou um divisor de águas,74 num claro intento de evidenciar o caráter inovador do governo. Responsável por “Conhecer o número e sob que forma se verificam os atentados às leis; suas causas e seus efeitos; o número de delinquentes e as espéc