UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS SUELY APARECIDA ZEOULA DE MIRANDA O MARINHEIRO NA POESIA DE FERNANDO PESSOA: PORTO OU TRAVESSIA? ARARAQUARA - SP 2006 2 UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS SUELY APARECIDA ZEOULA DE MIRANDA O MARINHEIRO NA POESIA DE FERNANDO PESSOA: PORTO OU TRAVESSIA? Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara como exigência parcial para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Renata Soares Junqueira ARARAQUARA - SP 2006 3 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................08 1.1 Teorizando o drama ...........................................................................20 1.1.1 O Marinheiro, um “ drama estático” ..............................................28 1.2 Teorizando a poesia ...........................................................................30 2 O MARINHEIRO: UMA INTERPRETAÇÃO ...........................................41 2.1 O Marinheiro, um resquício simbolista? ..........................................42 2.2 O Marinheiro e suas configurações: espaços e objetos .................49 2.3 Visões da arte simbolista n’ O Marinheiro .......................................52 2.3.1 A pintura simbolista .........................................................................53 2.3.2 Principais nomes da pintura simbolista .........................................54 2.3.3 A pintura simbolista e O Marinheiro: pontos de diálogo ..............55 2.4 A Intrusa e O Marinheiro: uma relação intertextual ..........................58 3 O MARINHEIRO: UM EXERCÍCIO INTRATEXTUAL? ............................63 3.1 A gênese ................................................................................................63 3.1.1 Ser/Não Ser .........................................................................................64 3.1.2 Tudo/Nada ...........................................................................................65 3.1.3 Dentro/Fora .........................................................................................66 3.1.4 Sentir/Pensar ......................................................................................69 3.2 As pessoas de Pessoa ..........................................................................71 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................85 REFERÊNCIAS .............................................................................................89 4 Aos meus amados filhos Thaís, Luís Gustavo e Franco, razões maiores da minha vida, e ao meu marido, Gustavo, que sempre será o meu lugar certo e a minha mais grata paisagem. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, meu Pai amoroso, que sempre me conduz e me ilumina, fazendo dos caminhos mais íngremes e desolados, uma estrada de sol e de esperança. À Profa. Dra. Renata Soares Junqueira, pela orientação competente e precisa. Aos meus pais e irmãos, pela presença alentadora. À Profa. Iracê Miriam de Castro Martins, pela confiança, pelo incentivo e pela ternura dos gestos. À Sonia, amiga e mestra, pelo carinho e disponibilidade, presentes desde o início desta caminhada. Ao Pedro Paulo, meu filho do coração, pela ajuda inestimável. À Carina, amiga-irmã, pela força e pelo carinho inesquecíveis, provas de que o idioma mais bonito é o do coração... 6 “ A Imaginação é mais importante que o Conhecimento. O Conhecimento leva você de A a B; a Imaginação leva você a qualquer lugar”. (EINSTEIN) 7 RESUMO Este trabalho procura estabelecer pontos de diálogo entre o drama estático O Marinheiro, de Fernando Pessoa, e algumas de suas obras poéticas posteriores mostrando que, naquele, residem as sementes destas. Procura, também, fazer uma análise dos temas e dos postulados filosóficos que perpassam o drama estático, bem como da forma poética construída pelo Pessoa dramaturgo, deixando derivar dessa análise a comparação com sua poesia e seu multifacetado processo de criação. Palavras-chave: Drama estático. Poesia. Comparação. Intratextualidade. 8 ABSTRACT This work aims to establish dialogue points between the static drama O Marinheiro , by Fernando Pessoa, and some of his later poetical works, showing that in the former are resided the similarities of the latters. It also aims to do an analysis of the themes and the philosophical postulates which pass the static drama like as the poetical form constructed by Pessoa dramatist, and from this analysis deflects a comparision with his poetic work, and his multifaceted process of creation. Key Words: Static drama. Poetry. Comparision. Intratextuality 9 UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS SUELY APARECIDA ZEOULA DE MIRANDA O MARINHEIRO NA POESIA DE FERNANDO PESSOA: PORTO OU TRAVESSIA? Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara como exigência parcial para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Renata Soares Junqueira BANCA EXAMINADORA: _____________________________________________________________ Orientadora - Profa. Dra. Renata Soares Junqueira ______________________________________________ Membro Titular - Profa. Dra. Maria Lúcia Outeiro Fernandes ______________________________________________________________ Membro Titular - Profa. Dra. Annie Gisele Fernandes _______________________________________________________________ Membro Suplente – Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi ________________________________________________________________ Membro Suplente - Profa. Dra. Patrícia da Silva Cardoso ARARAQUARA - SP 10 2006 1 INTRODUÇÃO Sentir e pensar. O conflito entre essas duas forças - que mais exacerbam o ser humano sem que ele se dê conta - é, talvez, a essência da obra de Fernando Pessoa. Ele soube mostrar, em sua obra, com muita clareza, a complicada e aparentemente impossível harmonia entre a emoção e a razão. Expôs também a angústia da existência do homem na sociedade moderna, o qual ele reconhece ter nascido para estar só em meio à multidão de pessoas ilhadas nas cidades que impossibilitam o diálogo, restando apenas cada um por si. No entanto, a "Ode Triunfal", de Álvaro de Campos, numa das muitas provas de sua essência paradoxal, é um elogio à modernidade: [...] "Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos! Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar! Olá grandes armazéns com várias seções! Olá anúncios elétricos que vêm e estão e desaparecem! Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem! Eh, cimento armado,beton de cimento, novos processos! Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos! Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos! Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera. 11 Amo-vos carnivoramente, Pervertidamente e enroscando a minha vista Em vós, ó coisas grandes, banais úteis, inúteis, Ó coisas todas modernas, Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima Do sistema imediato do Universo! Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!" (PESSOA, 1986, p. 308) Destruindo mitos e colocando o homem diante da triste verdade de que não existe verdade, Pessoa revelou-se através de suas máscaras e de seus constantes mergulhos em si mesmo, durante os quais se contemplava de longe e dos quais voltava renovado, aproximando-se e distanciando-se voluntariamente dessa verdade inexistente. Sua personalidade reflete-se claramente em sua obra poética, disfarçada, simulada, mutilada. Acusado por muitos de destruir sem, depois, reconstruir, deixou-nos a impressão de que o poeta existe não para construir, mas para colocar o homem face a face com sua condição, dando-lhe a chance de, a partir de reflexões, reconstruir-se ou reinventar uma nova verdade. Ele próprio desdobrou-se em outros e fez o retorno a si mesmo. Essa intracomunicação torna sua personalidade mais rica, pois todos esses eus pertencem ao mesmo universo poético. Fazer poesia não era, para ele, um momento de inspiração. Era um ofício a que se dedicava com a certeza plena de ser seu único caminho. Sua obra mostra a firmeza de alguém que pode falar de si, que realiza uma tarefa e sabe as dificuldades que ela comporta, que revela a sua intimidade, desmistificando-se, 12 desnudando-se, ao mesmo tempo em que se esconde. Talvez aí resida a riqueza e a modernidade de sua obra: ela se insere na problemática do homem moderno, pela multifacetação em sujeitos poéticos, ensejando uma crítica a esse homem infinitamente solitário, que saiu dos escombros ferido, mas lúcido o bastante para se buscar e se perder em meio às palavras, ao sonho, à natureza, à religião, à dor da própria desintegração. O desassossego pessoano se respalda no vício de pensar, na ausência de Deus, na fugacidade da vida, na certeza de que a felicidade existe para os outros, na busca do próprio Eu. A fuga da realidade funde-se em três possibilidades: o retorno à infância, o adiamento, o sonho. A solidão é considerada o ponto de partida para a explicação do espaço na obra de Pessoa, e seu paraíso perdido se desdobra em dois grupos de imagens: os espaços de um mundo feliz e perdido, e os de um presente triste. Na moderna produção poética da obra de Pessoa verificam-se, segundo Gonçalves (1995), duas assertivas: uma teórica, pela qual o poeta se volta para as estéticas do Paulismo, Interseccionismo e Sensacionismo e outra, pessoal, voltada à criação dos heterônimos, ponto fulcral de sua poesia e de sua modernidade: A obra de Pessoa, realmente, pertence a duas categorias: ortônima e heterônima. A ortônima contém a obra do Pessoa "ele-mesmo". A heterônima contém a obra do "Pessoa-outros". É preciso, aqui, situar bem a diferença entre A questão da identidade, que perseguirá o poeta vida afora, será responsável pela imposição de um paradigma para a Modernidade - quem produz o texto poético? É por esse prisma que surge a "estética do fingimento", situação que projeta Pessoa para uma autonomia e uma universalidade em relação à modernidade portuguesa. (GONÇALVES, 1995, p. 9 ) 13 pseudônimo e heterônimo, denominações que, constantemente, levam a confusões: a obra pseudônima é a do próprio autor, que apenas assina com nome diferente; "a heterônima é a do autor fora da sua pessoa". (Tábua Bilbliográfica. Presença, n. 7, apud SEABRA,1974, p. 9). O fenômeno da heteronímia talvez seja a mais densa e intrigante faceta da obra pessoana. Segundo o próprio poeta, o traço histérico-neurastênico de seu caráter é que estaria na origem de sua tendência para essa despersonalização. No entanto, alguns questionamentos presentes na poesia de cada heterônimo, sobre a razão dessa subjetividade estilhaçada, mostram, segundo Seabra (1974, p. 12), que essa despersonalização não advém “de uma simples crise da personalidade psicológica, mas do sujeito poético em si mesmo considerado, na sua pluralidade". Assim, temos em Caeiro (PESSOA, 1986, p.241): "Ser real quer dizer não estar dentro de mim./ Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade./ Sei que o mundo existe, mas não sei se existo." Ricardo Reis também afirma: "Se recordo quem fui, outrem me vejo/ E o passado é o presente na lembrança/ Quem fui é alguém que amo/ Porém somente em sonho." (PESSOA, 1986, p. 283). Temos ainda , em Álvaro de Campos ( PESSOA, 1986, p.345): "Multipliquei-me para me sentir/ Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei, não fiz senão extravasar- me, / Despi-me, entreguei-me, / E há em cada canto da minha alma um altar a um Deus diferente." Assim, vemos que dentro do poeta coexistem vários poetas. A cada um deles, Fernando Pessoa atribuiu uma biografia, caracteres físicos, traços de personalidade, formação cultural, ideologia, profissão. Nasceram, assim, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos (os heterônimos perfeitos), além de vários outros semi- heterônimos. O porquê desses heterônimos, as causas de sua origem ou o que 14 pretendia o poeta com essa multiplicidade é motivo de muita discussão e infinitas conjecturas. Mas encontramos, dispersas por sua obra, algumas indicações que nos levam a apontar algumas razões: a consciência das várias personalidades vividas pelo poeta em seu mundo interior; a tentativa de converter-se em toda uma literatura; a sua essência dramática, a clara tentativa de representar a multifacetada vida portuguesa. O próprio Pessoa fala-nos sobre a sua despersonalização poética, na nota que antecede as "Ficções do Interlúdio" (PESSOA, 1986, p.198,199), estabelecendo uma escala de quatro pontos: 1)- o temperamento e o estilo unificam a produção poética, mesmo que esta exprima vários e diferentes sentimentos; 2)- mesmo que o temperamento varie, o estilo permanece único; 3)- o estilo pode variar, mas o poeta permanece único; 4)- o poeta se multiplica em vários poetas. Como se vê, a escala é crescente, considerando-se o grau de despersonalização alcançado. E é precisamente essa pluralidade estranha e fascinante que, por vezes, pode desviar o leitor do que é, segundo Cruz ( s/d ), essencial: o estudo das linguagens poéticas de Pessoa, sejam elas dos heterônimos ou mesmo do ortônimo. Ora tem sido precisamente o problema dos heterônimos – essa estranha pluralidade de poetas num só – que ao quase monopolizar a atenção dos exegetas de Pessoa tem contribuído em grande parte para os distrair desta primeira leitura a que o poeta os convidava. Raramente, com efeito, ela foi abordada em função da estrutura da obra poética em si mesma. As explicações de fundo psicológico, sociológico ou filosófico, como as de tipo impressionista ou mais elaboradamente temático (não falando já nas de matiz ideológico ou polêmico) trouxeram com certeza, aqui e ali, contribuições parciais à abordagem da obra. (CRUZ, s/d, p. 14). 15 Mas o próprio autor deixou-nos uma pista, para que possamos interpretar sua obra polêmica e paradoxal, levando-nos a leituras cada vez mais novas e surpreendentes: a diferença absoluta de estilos, no que se refere aos heterônimos. Assim é que cada um mostra idéias e sentimentos, além de técnicas de composição, absolutamente diferentes dos de seu "criador". "Cada personagem é criada integralmente diferente e não apenas diferentemente pensada". (CRUZ, s/d, p.15). Exibem uma pluralidade de linguagens e não apenas diferentes formas de pensar e sentir. A verdade é que Pessoa, com sua obra, destrói mitos e os recria, depois, à sua maneira. Enquanto o ortônimo é saudosista-nacionalista e lírico, os heterônimos apresentam uma poesia bucólica e subjetiva em Caeiro, pagã e sensacionista em Reis, turbulenta e forte em Campos. Caeiro é o fundador e criador duma nova poesia da natureza; Reis inventa o neoclassicismo; Campos é o poeta modernista, capaz de intensificar as sensações até o paroxismo. Como casar todas essas características e todos esses adjetivos? Simples: basta aceitar o fato de que a obra pessoana é, toda ela, um tributo a tudo o que é paradoxal, contraditório. E entender que ela nos ensina que, na verdade, a verdade não existe. Que o poeta finge uma dor que, na verdade, sente. Que as coisas são apenas o que queremos que elas sejam. Que todos somos medíocres, que nada sabemos, porque não há nada para saber... O drama que existe na obra pessoana é o de uma desesperada e desesperadora lucidez. É, acima de tudo, profundamente inteligente, de uma aguda e quase palpável genialidade. Nada de pieguices, nada de casual. Tudo muito pensado, tudo muito sólido, tanto na forma quanto na essência. E porque é honesta, mesmo que dissimulada, e porque é clara, mesmo que velada, apresenta uma 16 unidade que não encontramos em muitas obras, mesmo nas de alguns dos grandes poetas. "Essa unidade está na própria estrutura [...] da sua obra,numa orientação fundamental que está em ser ela uma cadeia ininterrupta de esforços para estabelecer o contato do homem com o universo" (CASAIS MONTEIRO, 1958, p. 73). Álvaro de Campos crê na sensação; Alberto Caeiro, na existência; Ricardo Reis, na forma; Pessoa ortônimo, em símbolos. Campos é o poeta da impotência; Caeiro representa o sentir sem pensar; Reis é o poeta da morte, do aniquilamento; Fernando Pessoa ortônimo é a vida que vence a inteligência, é a resignação do sonho. Essa diversidade vale como uma expressão dramática de identidade: "Se fingir é conhecer-se, é também dar-se a conhecer". Na verdade, ao colocar sua poesia longe da realidade que nos circunda, Pessoa garante sua autonomia e sua universalidade, dando pistas para que entendamos sua identidade. No centro da nebulosa heteronímica, Pessoa coloca Alberto Caeiro. Porém é interessante a visão, a esse respeito, de Cruz (s/d, p.80): Em Pessoa, a criação literária e as criaturas que a representam, confundem- se, pois os heterônimos só vêm à luz juntamente com os poemas de que são autores. Podemos dizer que os heterônimos existem em função de seus poemas e não os poemas em função dos heterônimos. Nota-se, ainda, pela leitura de alguns Se bem atentarmos, Alberto Caeiro não é, no entanto, o germe exclusivo de onde viriam a nascer, por cissiparidade, os outros heterônimos: ele é apenas um pólo mais forte, um sol mais incandescente e vivo, à roda do qual vemos girar os demais astros do sistema. Esta posição nuclear advém-lhe de ser Caeiro a criação por assim dizer mais pura e perfeita de Pessoa ou, se se quiser, o heterônimo que leva até às últimas conseqüências a sua existência enquanto "pessoa" poética ou estética, como também diz. 17 apontamentos do autor, que ele – ortônimo – coloca-se, ora no mesmo nível dos heterônimos, ora sugerindo a superioridade poética destes, falando de um "Fernando Pessoa impuro e simples", numa carta a Casais Monteiro, sobre o surgimento dos heterônimos. Ortônima ou heterônima, sua obra tem, como denominador comum, o fato de ter sido o maior passo dado, neste século, para a reabilitação da voz, como cerne da poesia. Voz, sob todas as suas formas. Voz que é linguagem, comunicação. Que é filosofia, ironia, mordacidade, desilusão, crítica. E que não é, segundo alguns críticos, construtiva. O "indisciplinador de almas", como o chamou Jorge de Sena, não é apenas alguém que, desiludido com o mundo, limita-se a virar-lhe as costas. Sua desilusão nada tem de passiva e, para não lutar sozinho, cria vários "eus", pura manifestaçào de atividade, não de passiva aceitação da realidade. Segundo Tabucchi (1984), existe até mesmo a hipótese de que Fernando Pessoa fosse o alter ego de um Fernando Pessoa completamente igual ao primeiro. Na verdade, em toda a obra pessoana percebe-se uma genialidade direcionada para a arte. Como artista, como poeta e como gênio, Fernando Pessoa tinha uma visão ampla e multiforme do mundo. Ele foi clássico, romântico, parnasiano e modernista, tudo ao mesmo tempo. A sua genialidade foi justamente poder separar completamente essas formas de "ser", de tal maneira que lhe foi E se Fernando Pessoa tivesse precisamente fingido ser Fernando Pessoa? É só uma suspeita. As provas, naturalmente, nunca as teremos. E, à falta de provas, só nos resta acreditar ( ou fingir acreditar ) nos dados biográficos daquele que foi a ficção de um impostor idêntico a si próprio, ou seja: Fernando António Nogueira Pessoa, filho dos falecidos Joaquim e Magdalena Pinheiro Nogueira, empregado part-time como tradutor de cartas comerciais em firmas lisboetas de importação-exportação. Nas horas livres, poeta. (TRABUCCHI, 1984, p. 12) 18 possível escrever com estilos diferentes sobre matérias diferentes, como se em cada momento fosse um homem diferente. Uma das formas nucleares da poesia de Pessoa é a contradição. Nela, coexistem a tese e a antítese, sendo um terreno fértil para a proliferação das linguagens poéticas do autor. Cada leitura é a face de outra, desnudando pontos comuns e divergentes, que levam a uma oposição fundamental: a do Ser e a do Não-Ser, identificada claramente n'O Marinheiro. A obra de Pessoa é um discurso que busca a si mesmo, numa leitura paradoxal que revela para ocultar, mascara e desvenda constantemente, num ir e vir enriquecedor que perpassa a obra toda, como se cada texto fosse gerado pelos demais e com eles entretecido. João Cabral de Melo Neto expressa bem esse processo em "Tecendo a manhã": "Um galo sozinho não tece a manhã/ Ele precisará sempre de outros "... E segue dizendo que o canto de um galo é "apanhado" por outro, que o passa a outro e este a mais outro, até que a manhã finalmente surge, como que tecida por todos esses gritos. Na obra pessoana, cada texto parece pressentir a presença de outros, numa textura móvel e ressonante que se desdobra para além de si mesma. E, assim como os galos de João Cabral, o poeta solta seu grito e o apanha, grita e o apanha novamente, revestindo cada "grito" de uma roupagem nova, mas que conserva sua essência. E, nesse caminho de recuperação que os textos empreendem, acaba se formando um tecido de recorrências: imagens e temas se repetem para projetarem o seu existir-além, num deslocamento da mesma imagem para outros lugares da obra como se, com essa projeção múltipla, a poesia construísse o "contra-símbolo" de sua própria textura. 19 Seabra (1974, p.15), também cita esse movimento, esse tecer, esse processo original de construção criadora: Em quase todos os momentos da obra pessoana, reconhecemos essa fala singular. N'O Marinheiro, por exemplo, temos visões claras desses desdobramentos. O Marinheiro é um drama estático, uma peça teatral de Pessoa, que já foi objeto de vários e interessantes estudos e - com certeza - ainda o será por muito tempo. Nesse drama "sem ação", o poeta se reporta ao drama dentro do drama, onde o tempo e o espaço não são remetidos a uma unidade referencial. É a questão dos limites entre o sonho e a realidade, é mais uma confirmação da existência de um texto que não se pertence a si próprio, que fala não apenas com a sua voz, mas com a voz que antecipa a de outros. Essa metamorfose opera-se de heterônimo a heterônimo (e, por vezes, dentro do mesmo heterônimo), num movimento dramático que se vai tecendo em torno dos elementos germinais disseminados pelos poemas numa só aparente desordem e dispersão caótica. A originalidade de cada heterônimo, a especificidade de sua linguagem, reside na integração e ordenação desses elementos numa estrutura coerente, quer ao nível dos significantes quer dos significados poéticos. (CRUZ, s/d, p.38) Entre os autores que constituem a constelação poética de Pessoa, estabelece-se um sistema de relações mútuas, em que cada elemento se responde e corresponde, num tecer e destecer sempre retomado de fios que se vão entrecruzando, em planos diversos, mas que se interpenetram. 20 Assim, o presente estudo se propõe a estabelecer pontes entre o drama estático O Marinheiro, de Fernando Pessoa, e algumas de suas obras poéticas posteriores. Pretende demonstrar que, naquele, residem as sementes destas, evidenciando o fato de que a intertextualidade pode acontecer em vários e fascinantes níveis, num exercício de descobertas e redescobertas constantes e enriquecedoras. É interessante, aqui, observar que, segundo Seabra (1974,p.17) Quaisquer que sejam as interpretações, alusões ou citações, este fato é sugestivo: O Marinheiro antecede várias obras importantes do poeta e pode conter, como pretendemos verificar, o gérmen de sua criação. Lendo a obra, datada de 1913, percebemos nela palavras e citações que evocam poemas escritos muito tempo depois. Na "Cronologia da vida e obra de Fernando Pessoa" (1986, p. 61-66), vemos que Caeiro surge em 1914 (8 de março), assim como Campos e Reis (16 de junho). Teria o poeta voltado ao seu drama estático e desdobrado frases-chave do texto, criando - ou recriando - poemas a partir delas? É uma pergunta, sem dúvida, apaixonante. E faz pensar num Pessoa novo, diferente daquele que acredita que o homem completo é aquele que se ignora. Mostra um homem angustiado, sim, mas sonhador o bastante para rever e recriar e sentir e envolver, num puro e paradoxal exercício de insensata lucidez. Estamos, com efeito, perante uma obra proteiforme, não apenas enquanto criação de uma pluralidade de linguagens, mas pelo seu apelo a uma pluralidade de leituras, tanto dos textos poéticos como dos textos críticos que os prolongam e repercutem A heteronímia exige, acima de tudo, uma apreensão dessa intertextualidade... 21 Prefaciando toda a obra pessoana, podemos citar um trecho das "palavras de pórtico", como ele mesmo as chamou: "Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: 'Navegar é preciso, viver não é preciso'. Quero para mim o espírito dessa frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário ; o que é necessário é criar" (PESSOA, 1986, p.15). Pessoa soube criar, recriar, até "criar-se", fazendo de sua obra uma infinita janela que mostra ricas possibilidades de diferentes leituras e interpretações. E, através de pesquisas bibliográficas, tentaremos provar que O Marinheiro contém a essência de alguns poemas significativos surgidos tempos depois. Objetivamos, com este estudo, portanto, comparar algumas obras poéticas ortônimas e heterônimas de Fernando Pessoa ao poema dramático O Marinheiro, com a intenção de destacar, entre eles, pontos de diálogo; verificar se essas obras estão interligadas por um pensamento filosófico que as coordena e concatena; vislumbrar, na obra de Pessoa, uma multiplicidade de visões de mundo, fornecendo alguns elementos que facilitem a compreensão do seu processo plural e multifacetado de criação. O presente estudo pretende, para tanto, buscar o respaldo teórico de autores como Bachelard, Bentley, Régio, Ryngaert, Jauss e Barthes, fundamentando-se nas teorias da poesia e do drama, visto que o ponto de partida desta pesquisa é um texto teatral e que o texto-base remete a toda a obra poética de Pessoa. A teoria da Forma ensina que a imagem tende ao estado quase-matéria, posta no espaço da percepção. Daí pode passar ao devaneio, à ponte, à janela aberta a toda ficção. Esse devaneio pré - onírico depende de um processo de expressão: a palavra. "A superfície da palavra é uma cadeia sonora" (BOSI, 2000, p.29). Enlaçada à matéria que compõe a linguagem, a palavra pode gerar a atividade poética. 22 Assim como o poeta lida com o verso, o dramaturgo vale-se do diálogo, que requer um encadeamento próprio, porque é transmitido pelo ator. Em O Marinheiro, pode-se notar que as frases são formalmente poesia pelo ritmo que as caracteriza. Lendo o texto, não se pode deixar de ficar impressionado com esse aspecto do drama pessoano. Como o poeta mesmo comenta, "há ritmo na prosa e há ritmo no verso. No verso, porém, o ritmo é essencial; na prosa não é, é acessório - uma vantagem, mas não uma necessidade. No fundo, não há verso nem prosa..."(PESSOA, 1986, p.787). Entende-se, portanto, que podemos caracterizar um texto literário pela sua maior ou menor proximidade com esses dois tipos de discurso. Segundo Cruz (s/d, p. 84), "eles correspondem, tendencialmente, aos pólos metafórico e metonímico da linguagem, sendo a poesia dominada pela metáfora e a prosa pela metonímia". Portanto, recorrer à teoria da poesia e à teoria do drama faz-se necessário, pois drama e poesia coexistem na obra de Pessoa, interligados na essência e na forma. Fernando Pessoa sempre buscava a fuga do mundo imediato ou próximo, sempre buscava as interrogações. Sua paixão consistiu na grande aventura da procura, muito mais do que no prazer da descoberta. Ele nunca quis o que era definitivo, deixou abertas todas as possibilidades de dúvida e, através dela, permite que nós sejamos co-partícipes de sua arte. 1.1 Teorizando o drama O prazer estético, segundo Jauss (1979, p.63) "é hoje, ou era até há pouco, em geral desprezado como um privilégio da invectivada 'burguesia culta' ". Começando por Aristóteles e Platão, passando por Santo Agostinho, Schiller, Barthes, Freud, Sartre, Giesz, percebemos que no prazer estético acham-se 23 reunidas a sensibilidade e a objetividade, aisthesis e anamnesis. No entanto, a experiência estética não se esgota aí: existe, também, a katharsis, através da qual o espectador pode ser diretamente afetado pela história representada, identificando-se com os atores, liberando suas próprias paixões e aliviando-se "por sua descarga prazerosa, como se participasse de uma cura" (JAUSS, 1979, p.65). Santo Agostinho traça duas diretrizes para o prazer: a primeira leva ao que é bom, orientado para Deus; a segunda leva ao que é mau, orientado para o mundo. Assim, os prazeres auditivos devem residir apenas nos cantos religiosos, elevando a alma; os prazeres da visão devem restringir-se à beleza da criação divina. Contudo, há entre os dois uma linha muito tênue e existe o perigo de se cair na sedução estética da experiência sensual inspirada pela Arte. Além disso, a arte do discurso pode mostrar uma face tão convincente do inacreditável e do desconhecido que chega a influenciar o espectador de forma poderosa e, até, definitiva. A retórica sempre foi inimiga da filosofia e da teologia, justamente por essa ambivalência: o ouvinte pode ser levado, por suas mãos, tanto para um bom quanto para um mau objetivo. Debates recentes sobre o assunto chamam a atenção para essa dupla face da persuasão e da indução, identificadas atualmente como consenso e manipulação. Hoje, o prazer perdeu muito de seu sentido elevado. Antigamente, o prazer justificava as relações com a arte. "Hoje, para muitos, a experiência estética só é vista como genuína quando se priva de todo prazer e se eleva ao nível da reflexão estética." (JAUSS, 1979, p.71). Roland Barthes empenhou-se na reabilitação do prazer estético, colocando-se contra a idéia de que esse prazer não passa de um instrumento da classe dominante. O prazer, entretanto, não é um elemento do texto, não é um resíduo ingênuo; não depende de uma lógica do entendimento e da sensação; é uma deriva, algo ao mesmo tempo revolucionário e associal e não pode ser assumido por nenhuma coletividade, por nenhuma mentalidade, por nenhum idioleto. (BARTHES, 1973, p.39) 24 Ainda segundo Barthes, é preciso que surja uma estética moderna, que considere o "prazer do consumidor" (p. 94). E oferece a dicotomia entre o prazer positivo e o deleite negativo (plaisir e jouissance). Ressalta também a importância da interação do leitor com o texto, sem o caráter passivo de apenas receber, apenas perceber microestruturas, mas pondo em prática sua atividade imaginante, experimentadora. A apologia de Barthes faz, do prazer estético, o prazer face à linguagem, "o paraíso das palavras" (p. 17). Aqui podemos localizar O Marinheiro e sua característica que, talvez, seja a mais marcante: a ênfase dada à linguagem, em contraponto ao movimento das personagens em cena. Mas, afinal, qual a diferença entre o prazer estético e o prazer dos sentidos? Pode-se dizer que, enquanto o prazer dos sentidos é auto-suficiente e desvinculado do mundo cotidiano, o prazer estético exige uma tomada de posição, um momento adicional, que implica uma função social. Ao contrário do simples prazer, a atitude estética não pode ser fruída no isolamento; ela exige que todas as sensações sejam compartilhadas e tenham um caráter participativo, criador. Em sua análise do imaginário, Sartre afirma que "na experiência estética, o ato de distanciamento é, ao mesmo tempo, um ato formador da consciência representante" (1940, p.239). Assim, a realidade - e também a natureza - nunca é bela por si mesma. Ela depende de um distanciamento, para que possa ser fruída, explorada. O sujeito, enquanto utiliza sua tomada de posição perante o objeto estético, realiza uma reciprocidade entre si e o 25 objeto, de modo a gozar tanto o objeto quanto seu próprio eu, agora liberado de sua mera existência cotidiana. N’ O Marinheiro, esse distanciamento é bem claro, marcante. As veladoras se questionam sobre o ser e o não-ser, a todo momento. O prazer estético de que fala Jauss, que é “ um modo de experiência de si mesmo na capacidade de ser outro”, desvela talvez a semente da heteronímia, para nós claramente presente nas três veladoras . Freud descreveu, várias vezes, o prazer estético pela relação que existe entre o prazer de si e o prazer no outro. O espectador no teatro ou o leitor de romances, pode Assim, essa identificação faz com que participemos de experiências alheias, coisa de que não seríamos capazes se estivéssemos em nossa realidade de todos os dias. Mas a teoria de Freud sobre o auto-prazer não termina nessa catarse, no despertar das próprias paixões que se identificam com ações ou sofrimentos alheios. Na conduta estética, o sujeito sempre goza mais do que de si mesmo: experimenta-se na apropriação de uma experiência do sentido do mundo, ao qual explora tanto por sua própria atividade produtora, quanto pela integração da experiência alheia e que, ademais, é passível de ser confirmado pela anuência de terceiros. O prazer estético que, desta forma, se realiza na oscilação entre a contemplação desinteressada e a participação experimentadora, é um modo da experiência de si mesmo na capacidade de ser outro, capacidade a nós aberta pelo comportamento estético. (JAUSS, 1979, p. 77) [...] gozar-se como uma figura importante e se entregar de peito aberto a emoções normalmente recalcadas, pois o seu prazer tem por pressuposto a ilusão estética, ou seja, o alívio da dor pela segurança de que, em primeiro lugar, trata-se de um outro que age e sofre, na cena, e, em segundo lugar, de que se trata apenas de um jogo, que não pode causar dano algum à nossa segurança pessoal. (FREUD, 1969, p.163) 26 A doutrina tradicional do prazer catártico é atualizada por Freud e superada por uma nova descoberta: a de que a todo o prazer estético se acrescenta um maior prazer, nascido de experiências mais profundas, perdidas entre os jogos infantis e nos desejos ali experimentados, num feliz reconhecimento da experiência passada e do tempo perdido. A recorrência à psicanálise possibilita, entre outros conhecimentos, o da singularidade e da universalidade da obra de Pessoa. Contudo, ela pode ser lida, também, à luz da filosofia. Podemos apresentar a perspectiva filosófica da leitura da obra pessoana em quatro momentos: o primeiro está relacionado com a questão do Eu, frente à sua consciência, à sua subjetividade; o segundo situa a questão do drama do homem face à vida, à morte e ao seu próprio destino; o terceiro situa as dúvidas de Pessoa sobre o conhecimento, a verdade; o quarto refere-se à presença de Deus e do Ser dentro da obra do poeta. Segundo Jauss (1979), existem três conceitos da tradição estética inseridos nas três categorias fundamentais da fruição estética: Poiesis, Aiesthesis e Katharsis. A primeira é a "faculdade poética", é o prazer que podemos sentir ante a obra que realizamos. É a arte de criar, que faz do homem o ser por excelência. A segunda é a contemplação, é "o conhecimento sensível, face à primazia do conhecimento conceitual" (JAUSS, 1979, p.80). A terceira é a experiência estética comunicativa básica, que conduz o espectador à transformação de seus conceitos e à liberação de sua psique, "olhando-se" através dos gestos e das fantasias de outros. Essas três categorias não estão separadas, subordinadas umas às outras; antes, estabelecem relações de seqüência e, nelas, a comunicação literária só terá o caráter de uma experiência estética se mantiver o caráter de prazer. 27 Assim Jauss (1979) resume suas considerações sobre as três categorias básicas da experiência estética: Segundo Régio (1967), as características teatrais nem sempre estarão perfeitamente entremeadas entre um poema ou um romance. É preciso que se esteja apto a sentir as formas latentes de teatro neles embutidas. O verdadeiro poeta dramático é "o que algo de pessoal tem a dizer através do teatro" (p.114), é o que sentiu, intuiu, o que vivenciou interiormente situações artisticamente revividas. O próprio Pessoa, em sua estrofe famosa, reconhece o fato de que arte é fingimento: O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente. Contudo, se o artista não sentiu a dor que finge, seu fingimento é apenas retórica e sua expressão jamais será artística. A conduta de prazer estético, que é ao mesmo tempo liberação de e liberação para, realiza-se por meio de três funções: para a consciência produtora, pela criação do mundo como sua própria obra ( poiesis ); para a consciência receptora, pela possibilidade de renovar a sua percepção, tanto da realidade externa, quanto da interna ( aisthesis ); e, por fim, para que a experiência subjetiva se transforme em inter-subjetiva, pela anuência ao juízo exigido pela obra, ou pela identificação com normas de ação predeterminadas e a serem explicitadas. (p.81) A base da representação é a falsidade. A arte do ator consiste em servir-se do drama do autor para mostrar por meio dele sua capacidade de interpretação. A peça é como uma barra onde o ator mostra suas habilidades ginásticas. [...] A representação, repito, tem todo o atrativo de uma falsificação. Todos adoramos um falsificador. É um sentimento muito humano e completamente instintivo. (PESSOA, 1990, p. 282) 28 É necessário entender, também, que o espetáculo teatral não é uma criação individual, como o são, por exemplo, um quadro ou um poema; o espetáculo teatral exige, além do texto, atores, figurinistas, iluminadores, cenógrafos, operadores de som, além do público que, no teatro moderno , chega a interagir com os atores, participando ativamente do espetáculo. Assim, "é o espectáculo teatral um espectáculo complexo" (RÉGIO, 1967, p. 126). Segundo esse mesmo autor, possui o teatro três origens: religiosa, social e lúdica. Na gênese do teatro, essas posições se confundem mas, ao longo do tempo, duas tendências ficaram bem definidas: a que evidencia um espetáculo complexo criado por um artista e realizado por vários outros, e a que mostra ser o teatro essencialmente um texto literário, ainda que realizado num palco, assistido por um público. Esta última é a que mais nos interessa, dentro deste estudo sobre o drama estático de Fernando Pessoa. Contudo, ainda segundo Régio (1967), o verdadeiro autor teatral nunca fica satisfeito com a simples leitura de sua obra. O que o realiza é ser visto, ouvido, sentido por um público. No palco é que se manifesta, realmente, uma obra teatral. Uma simples leitura jamais desvelará minúcias e especificidades teatrais que só a representação, num palco, mostrará. O teatro começa, portanto, quando se junta à obra literária um espetáculo que a enriqueça e a complete, independentemente da vontade do autor. É preciso considerar, dessa forma, que são suficientes o ator e a palavra para que o espetáculo teatral não seja apenas literatura. Tudo depende da natureza da obra e da personalidade do poeta dramático, já que "qualquer obra de arte é a personalidade do seu criador". (RÉGIO, 1967, p. 122). Há outra consideração importante a fazer: o texto literário é o que respalda o espetáculo teatral. No entanto, ainda segundo Régio (1967), esse texto não pode ser 29 um texto qualquer, mas sim um texto especial, artístico, que possibilite ao ator exprimir-se e revelar-se. Aqui percebe-se a estreita ligação do espetáculo teatral com o amar, o gostar, o querer. Pois um espetáculo só atinge o seu auge, seu clímax, seu momento maior, quando todos os envolvidos com esse espetáculo escolhem, amam, sentem verdadeiramente um texto. Sem essa cumplicidade, essa ação conjunta, nenhuma obra dramática pode ser chamada de obra teatral. Régio (1967) ainda aponta as três origens do teatro: uma origem religiosa, mágica, voltada para os deuses e para as cerimônias em que se comemoravam seus feitos, se pedia sua proteção, se aplacava a sua cólera; uma origem social que, através dos ritos de passagem manifestava o sentido de clã, nação, humanidade; uma origem psicológica e lúdica, que inspira, no homem, o espírito de imitação. Baty e Chavance apud Régio (1967), comentando a importância do teatro face às demais artes, afirmam que as artes plásticas, por exemplo, podem produzir espetáculos magníficos e a literatura, da mesma forma, criar poemas admiráveis. Mas são incapazes, separadamente, de realizar uma obra verdadeiramente dramática, enquanto que, no teatro, existe uma confluência de elementos espetaculares levando a um objetivo comum. O texto, a interpretação, a decoração, a expressão corporal, tudo é canalizado para o momento mágico do espetáculo teatral. O autor conclui que o teatro para ser lido, portanto, é um simples gênero literário, pois só no palco ele viverá sua verdadeira vida. A literatura exige um autor e um leitor; o teatro exige vários colaboradores e um público. Teatro é espetáculo. Assim, um texto sem espetáculo e um espetáculo sem texto jamais chegarão a ser teatro. O que nos parece é que, quaisquer que sejam as situações, o poeta dramático cria a sua obra contando, mesmo que de relance, com um público. Assim 30 é que, n' O Marinheiro, as personagens não se movem durante toda a peça. Apenas falam, sem quaisquer gestos em meio aos diálogos. No entanto, existem referências, anotações, indicações de cenário, posicionamento de objetos, entonação de voz, etc. Há, portanto, a intenção do espetáculo, uma situação de apresentação teatral. Como afirma Régio (1967, p. 170), Fernando Pessoa sempre se referiu ao caráter dramático de sua poesia, afirmando que a obra de cada heterônimo seria como a fala dos personagens de um drama seu. E que, juntas, elas formariam outro drama. Assim, um drama dentro de outro drama. Por que não uma obra dentro de outra obra? Por que não a essência dos heterônimos estar contida n'O Marinheiro, um "drama estático", já que, segundo Cruz (s/d, p. 19), o drama " reside, mais propriamente, no diálogo das linguagens poéticas, no interior da obra (das obras) dos heterônimos"? O próprio Pessoa se define como um poeta dramático que é vários poetas, criando os heterônimos e estes criando suas respectivas obras poéticas. É essa poesia multipessoal, plurissubjetiva que interessa ao nosso estudo. . 1.1.1 O Marinheiro, um "drama estático" A realidade é que todos os grandes poetas dramáticos acharam meio de, não renunciando ao seu gênio, nem submetendo a sua criação a excessivas pressões externas, criarem literariamente e inspirarem espetáculos teatrais sem, ao mesmo tempo, afastarem a fecunda lembrança do público 31 Segundo Seabra (1974), não parece possível classificar "O Marinheiro" como um "drama de ação" ou como um "drama de personagem", nem mesmo como um "drama de espaço", segundo uma outra classificação proposta por alguns teóricos da literatura. Ele é, realmente, um drama estático, sem ação, sem movimento. Não parece que Pessoa tenha criado "O Marinheiro" para ser representado. Segundo Seabra (1974, p. 28), " ele destina-se muito mais a ser lido do que a ser visto, ou antes a ser visualizado através das palavras." Até as indicações iniciais de cena mostram isso: a maneira poética e sugestiva como são indicadas, parecem dirigir-se não a um cenógrafo, mas à imaginação de um leitor. Não há indicação de tempo ou espaço e as três Veladoras que, no início, parecem personagens distintas, aos poucos vão se diluindo, dissolvendo sua identidade até se reduzirem a, aparentemente, uma só. "Quem é que está falando com a minha voz?" (PESSOA, 1986, p.451). Elas vivem no espaço de uma noite, receosas da primeira luz do dia, que as dissolverá. Para viverem e poderem sentir- se reais, falam o tempo todo, contando umas às outras os seus sonhos. No entanto, mesmo que as veladoras sejam simples vozes e não efetivamente personagens, há no interior do drama um "personagem" simbólico, evocado através do sonho: um marinheiro, perdido numa ilha longínqua e que Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação - isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo. Dir-se-á que isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatro tende a teatro meramente lírico e que o enredo do teatro é, não a ação nem a progressão e conseqüência da ação - mas, mais abrangentemente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a criação de situações (...) Pode haver revelação de almas sem ação, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade. ( PESSOA, 1990, p.283 ) 32 sonha, também, com uma pátria que perdeu, ou antes, "que nunca tivesse tido". Assim, a distinção entre sonho e realidade é questionada, quando uma das veladoras se pergunta se, na verdade, não seriam elas o sonho do marinheiro e ele a única coisa real de toda a situação. O tema central de toda a poesia de Pessoa, o mistério do Ser e o terror do Nada também são perfeitamente identificados na peça: "Há alguma razão para qualquer coisa ser o que é?" (PESSOA, 1986,p.443). "Se nada existisse, minhas irmãs?... Se tudo fosse, de qualquer modo, absolutamente cousa nenhuma?" (PESSOA, 1986, p.449). Essas vozes que se confundem numa só, como nas tragédias gregas, o clima de terror e dúvida gerado pelas palavras que respondem às palavras, é que situam o drama no plano da tragédia. Muitos críticos citam o fato de que Pessoa sempre ambicionou escrever um poema dramático em verso. No entanto, ele conseguiu uma maior intensidade de estruturação poética e dramática no drama estático em prosa. Mais um paradoxo, confirmando a face surpreendente do poeta. E, numa frase de Seabra (1974, p. 34), encontramos uma afirmação que leva ao objetivo maior deste estudo: mostrar que n'O Marinheiro estão contidas as sementes de algumas das obras poéticas posteriores de Pessoa. Pessoa não deixou de sugerir o caráter trágico de O Marinheiro, num de seus comentários escritos em inglês, que aqui traduzimos: "Começando de uma forma muito simples, o drama evolui gradualmente para um cume terrível de terror e de dúvida, até que estes absorvem em si as três almas que falam e a atmosfera da sala e a verdadeira potência do dia que está para nascer. O fim desta peça contém o mais sutil terror intelectual jamais visto. Uma cortina de chumbo tomba quando elas não têm mais nada a dizer uma às outras nem mais nenhuma razão para falar”. (SEABRA, 1974, p. 31) E tanto O Marinheiro como o Primeiro Fausto nos surgirão, em última análise, como a face positiva e negativa de uma mesma evidência fundamental: a dramaticidade da obra de Pessoa manifesta-se não no gênero dramático propriamente dito mas na sua transposição lírica para os heterônimos.( SEABRA, 1974, p. 34). 33 1.2 Teorizando a poesia Segundo Bachelard (1991 ), "a poesia é uma metafísica instantânea". Ela pode dar uma idéia de unidade e uma visão universal numa simples palavra, num curto bloco de palavras.. Em todo verdadeiro poema, encontramos elementos de um tempo atípico, que foge do tempo comum. Bachelard chama esse tempo de vertical, porque foge horizontalmente do tempo regular, que administra arrebatamentos e emoções, muitas vezes inoportunamente. O instante da poesia visa à verticalidade, à profundidade. E essas simultaneidades, ordenadas, mostram que o instante poético exibe uma perspectiva metafísica: O instante poético é, pois, necessariamente complexo: emociona, prova, - convida, consola -, é espantoso e familiar. O instante poético é essencialmente uma relação harmônica entre dois contrários. No instante apaixonado do poeta existe sempre um pouco de razão; na recusa racional existe sempre um pouco de paixão. As antíteses sucessivas já agradam ao poeta. Mas, para o arroubo, para o êxtase, é preciso que as antíteses se contraiam em ambivalência. Surge, então, o instante poético... No mínimo, o instante poético é a consciência de uma ambivalência. Porém é mais: é uma ambivalência excitada, ativa, dinâmica. O instante poético obriga o ser a valorizar ou a desvalorizar. (BACHELARD, 1991, p.184) Só a poesia é da mesma ordem que a filosofia e o pensar filosófico. Mas a criação poética e o pensar não são, apesar disso, idênticos. Falar do nada será sempre, para a Ciência, uma abominação, um absurdo. Pelo contrário, além do filósofo, o poeta pode fazê-lo. E isso não em razão de um menor rigor que, segundo o senso comum, seria próprio da poesia, mas sim porque na poesia (a que é autêntica e grande) reina uma essencial superioridade de espírito em relação a tudo o que é puramente ciência. Superioridade em virtude da qual o poeta fala sempre como se o ente (das Seiende) fosse pela primeira vez expresso e interpelado. (HEIDEGGER) 34 Ainda segundo o autor, antítese e ambivalência são dois termos que nascem juntos, pois o poeta vive num único instante os dois termos de suas antíteses. Mas, o que é o tempo, dentro desse pluralismo de efeitos contraditórios? Podemos chamar de tempo essa perspectiva vertical que envolve o instante poético? "Sim, porque as simultaneidades acumuladas são simultaneidades ordenadas". (BACHELARD, 1991, p.185). Elas dão a dimensão do instante, porque lhe dão uma ordem interna e o tempo nada mais é do que uma ordem. Portanto, a ordem das ambivalências no instante poético é um tempo, que o poeta descobre ao recusar o tempo comum, horizontal. E, ao atingir o âmago desse tempo, o poeta atinge o centro de si mesmo. Cada poeta apodera-se desse tempo, à sua maneira. Lendo Poe, vemos que o tempo vertical pode se elevar ou se afundar. N'O Corvo, podemos perceber que meia-noite nunca soa horizontalmente. Vai descendo, descendo na alma, trazendo junto com as pancadas, feridas, recordações, fantasmas... Depois nos traz de volta para a vida, para o tempo plano. Enfim, "tudo que nos afasta da causa e da recompensa, tudo que nega a história íntima e o próprio desejo, tudo que desvaloriza ao mesmo tempo o passado e o futuro encontra-se no instante poético". (BACHELARD, 1991, p. 186) Segundo Barthes (1971), prosa e poesia são grandezas que se podem medir e uma é sempre diferente da outra. Essa diferença não é de essência; é de quantidade. Assim, o dogma clássico da unidade da linguagem não é afetado. Assim, a poesia é a "equação decorativa, alusiva ou carregada, de uma prosa virtual que jaz em essência e potência em todos os modos de expressão." (BARTHES, 1971, p.56) 35 Nos tempos clássicos, Poética era algo convencional, designando somente a inflexão de uma técnica verbal, a expressão vestida de roupagens mais belas. Na poesia moderna, nada resta dessas características. Ainda segundo Barthes (1971), enquanto a poesia clássica é técnica, sem duração, na poética moderna as palavras mostram uma emanação visivelmente sentimental. "... a fala é, então, o tempo espesso de uma gestação mais espiritual, durante a qual o 'pensamento' é preparado, instalado pouco a pouco pelo acaso das palavras" (p. 57). Portanto, a Poesia moderna é diferente da clássica pela estrutura da linguagem, e entre elas só existe um ponto comum: a intenção sociológica. Barthes compara ainda a natureza da prosa e da poesia clássicas à matemática. Todo o movimento da continuidade matemática provém de um entendimento explícito de suas ligações. A linguagem clássica apresenta também um movimento semelhante, ainda que menos rigoroso: respaldadas por uma tradição que lhes retira todo o frescor, suas palavras apresentam uma sucessão de elementos de igual densidade, submetidos a uma mesma pressão emocional. A função do poeta clássico, portanto, não é "encontrar palavras novas, mais densas ou mais brilhantes, mas ordenar um protocolo antigo, aperfeiçoar a simetria ou a concisão de uma relação, levar ou reduzir um pensamento ao limite exato de um A Poesia não é mais então uma Prosa decorada de ornamentos ou amputada de liberdades. É uma qualidade irredutível e sem hereditariedade. Não é mais atributo, é substância e, por conseguinte, pode muito bem renunciar aos signos, pois traz em si sua natureza e não precisa assinalar exteriormente sua identidade: as linguagens poéticas e prosaicas estão suficientemente separadas para poderem prescindir dos próprios signos de sua alteridade. (BARTHES, 1971, p.56) 36 metro" (p. 58). Não há dúvida que a fala clássica, embora semelhante, não atinge a perfeição funcional da rede matemática: "nela, as relações não se manifestam por signos especiais mas apenas por acidentes de forma ou de disposição." (p. 59). Na linguagem clássica, são as relações que dirigem a palavra; na poesia moderna, as relações são apenas uma extensão da palavra. E é a Palavra que revela uma verdade de ordem poética e, portanto, "a palavra poética nunca pode ser falsa porque é total; ela brilha com uma liberdade infinita e prepara-se para resplandecer no rumo de mil relações incertas e possíveis" (p.60 ). Assim, sob cada palavra da poesia moderna, está inserida uma espécie de geologia existencial, constituindo um objeto inesperado, produzido e consumido com uma curiosidade particular que faz da fala poética uma fala terrível e inumana. A linguagem clássica é uma linguagem social, um universo onde as palavras nunca têm o peso terrível das coisas, onde a fala é sempre o encontro com alguém. A poesia moderna, ao contrário, destrói as relações da linguagem, inverte o conhecimento da Natureza e é uma poesia objetiva que, segundo Barthes (1971), exclui os homens, pois "não existe humanismo poético da modernidade" (p. 63). A poesia moderna põe o homem em ligação com as imagens mais inumanas da Natureza: o céu, o inferno, a loucura, o sagrado, etc. Os poetas modernos assumem a poesia não como um estado de alma, uma tomada de posição, mas "com o esplendor e o frescor de uma linguagem sonhada." (p. 63). Quando a linguagem poética põe em questão a Natureza, não há mais escritura, há apenas estilos, através dos quais o homem enfrenta, solitária e corajosamente, o mundo objetivo. Em se tratando da poesia de Pessoa, ela ganha especial relevo quando integrada na análise da linguagem heterônima. E essa multiplicidade de linguagens poéticas leva-nos à descoberta da diversidade de toda a obra pessoana. Superando- 37 se, Pessoa se recria, desdobrando-se em muitos, falando através de várias vozes, todas suas e, ao mesmo tempo, todas absolutamente diferentes e desconhecidas. Essa pluralidade nos abre horizontes para a multiplicidade de todas as leituras possíveis e, a cada leitura, julgamos ter encontrado uma chave para a interpretação perfeita. No entanto, Pessoa nos escapa, se esconde, reaparece, heterônimo após heterônimo, até enquanto "ele mesmo". É preciso observar que cada personagem é criada integralmente e não apenas pensada de modo diferente. Por isso, os heterônimos falam através da poesia. Em prosa, é mais difícil simular, fingir. Os versos tornam mais espontânea essa simulação. Este estudo, como já citamos, visa a estabelecer pontes entre o drama estático O Marinheiro, de Fernando Pessoa e algumas de suas obras poéticas posteriores. Portanto, tentaremos encontrar a poesia sob a prosa, pois o teatro em prosa de Pessoa mostra frases que são poesia, pelo ritmo que possuem. N'O Marinheiro, esse aspecto do drama impressiona sobremaneira, se levarmos em conta o seguinte apontamento do próprio autor: O verso difere da prosa não só materialmente, mas mentalmente. Se não diferisse, não haveria nem uma coisa nem outra, ou haveria só uma que fosse uma espécie de mistura de ambas. O estado mental que produz verso é diferente do estado mental que produz prosa. A diferença exterior entre a prosa e o verso é o ritmo; a diferença interior entre a prosa e o verso será a entre um estado mental que naturalmente se projeta em simples palavras, e um estado mental que naturalmente se projeta em ritmo feito com palavras. (PESSOA, 1986, p.787) A poesia de Pessoa é a análise mais complexa, dolorosa e trágica, mas ao mesmo tempo lúcida e impiedosa, do homem do século XX; um homem atormentado que escarnece de outrem e de si próprio e que, na sua verdade e na sua maldade, no abuso do paradoxo, na capacidade de afirmar ironicamente o contrário de um axioma já antes ironicamente utilizado, produz uma poesia das mais revolucionárias do século XX. (TABUCCHI, 1984, p. 19) 38 Pessoa aproxima as linguagens poéticas dos heterônimos aos dois pólos que, no seu entender, dominam a arte da linguagem: a prosa e a poesia. Como vimos, ele as diferencia apenas pelo ritmo, que estabelece "um acordo entre o princípio que preside à estrutura dos significados e o que rege a forma da expressão, se quisermos reportar-nos à sua própria poesia."(SEABRA, 1974, p.85). Para Pessoa, a poesia é como a prosa feita música, ou uma prosa cantada. Seguindo esse raciocínio, teríamos, na poesia, a naturalidade da palavra aliada ao artifício da música. Assim é que Caeiro e Campos tenderiam para a prosa; Pessoa "ele mesmo" e Reis, para a poesia. Segundo Casais Monteiro (1958), o modernismo realizou uma revolução na linguagem poética, revolução esta concretizada na poesia de Pessoa, embora iniciada por Gomes Leal, Cesário Verde e Antonio Nobre: Em toda a poesia de Pessoa palpita um anseio essencial, doloroso, imenso, de desvendar o mistério da vida. Isso lhe dá uma unidade profunda: aqui não há repartições por heterônimos, nada muda nem divide a substância desta preocupação essencial, porque ela está na natureza profunda do seu ser. É a vasta interrogação que salta, em cada instante, dos seus passos pelo mundo, do seu encontro com as coisas, com os acontecimentos reais, os quais escondem, para além de sua aparência causal, um sistema de mistérios que são a denúncia de um mundo dum mundo radioso e calmo. É este mundo - do qual veio o Poeta para cumprir neste a missão que de lá trouxe e as instruções que ainda de lá recebe - que a sua poesia procura exprimir com uma eloqüência e uma coragem que insistem em querer dizer o inexprimível. Em querer dizer os grandes mistérios que habitam o limiar do seu ser, perdido entre os sonhos que não foram ("quem me dirá quem sou?"), em dizer os sutis segredos que se escondem à sua angústia, "querer ouvir para além do sentido que uma voz tem", querer poder beijar o gesto sem beijar as mãos e descendo pelos desvãos do sonho, poder encontrar esse gesto e prendê-lo, em querer dizer a grande mágoa de todas as coisas serem bocados e aquela fome de viver as coisas que, já durante a sua duração, sofre a pena do momento em que tiverem acabado." (MAR TALEGRE apud CASAIS MONTEIRO, 1958, p.133-4) 39 Ainda segundo Casais Monteiro (1958, p.138), "a poesia é uma deusa incógnita". Realmente, quando nela nos absorvemos e com ela nos identificamos, parecemos compreendê-la, tocá-la. No entanto, ela de nós se oculta, de repente, deixando-nos apenas a dúvida e as possíveis paisagens a descortinar. A verdade é que é muito difícil de se identificar poesia e idéias. Fernando Pessoa é, entre os grandes poetas do nosso tempo, um dos que melhor nos permite reconhecer essa dificuldade. Seus heterônimos têm suas obras impregnadas de várias filosofias, mostrando ao mesmo tempo a diversidade e a unidade efetivas da poesia. Impregnadas, também, de uma música própria, fazendo um contraponto entre si, mostrando harmonizações que se repetem nos poemas de Caeiro, Reis, Campos e Pessoa "ele mesmo". É preciso ter sempre presente que a linguagem dos poetas é a linguagem de sua própria época. A linguagem é algo vivo, palpitante e, no caso de Pessoa, destrói para, talvez, reconstruir e "desvendar o mistério da vida", como afirmou Talegre Portanto, poesia e prosa coexistem na obra pessoana, racionalizando para sonhar e sonhando para racionalizar. O ritmo oferece as nuances, as possibilidades de compreensão, o auxílio à interpretação. A captação desta multiplicidade exige, todavia, do leitor que o "acessível" não lhe faça perder de vista o difícil - [...] Exige dele, em primeiro lugar, que a música de Álvaro de Campos, de Ricardo Reis e de Alberto Caeiro não lhe seja menos familiar do que a de Fernando Pessoa ele-mesmo, e que nas complexas harmonizações da "Tabacaria" ou de "Ode Marítima", por exemplo, saiba reconhecer as mesmas virtudes que na melodia mais familiar do "Menino de sua mãe". Exige, em suma, que a música lhe ensine aquilo que a métrica não oferece". (CASAIS MONTEIRO, 1958, p.170). 40 Como afirma Pessoa, o ritmo é algo presente tanto na prosa quanto no verso, mesmo que, essencial neste, seja naquela apenas um acessório. Ao afirmar que, "no fundo não há verso nem prosa" (p. 787), ele talvez queira nos mostrar que existe, apenas, a linguagem, seja ela prosa ou poesia. Platão dedica um diálogo inteiro, Crátilo, aos problemas da linguagem, mostrando que, nas mãos de um sábio, ela é um instrumento que deve ser usado com lógica. Há uma diferença fundamental entre a perspectiva socrática e a nossa perspectiva: a palavra, considerada divina, formava um elo indivisível com seu significado, elo esse indissolúvel porque era o próprio destino que o traçava. Uma Sócrates passa a exemplificar como os nomes dos deuses e heróis se justificam pelo seu significado oculto ou evidente em relação ao destino de cada um. (BRILL, 1988, p.28) O ritmo consiste numa gradação de sons e de falta de som, como o mundo na graduação do ser e do não-ser. Quer isto dizer que o ritmo consiste numa distribuição de palavras, que são sons, e de pausas, que são faltas de som. [...] Na prosa, que é a linguagem falada escrita, estas pausas são dadas por uma coisa a que se chama pontuação, e a pontuação é determinada exclusivamente pelo sentido.[...] Se, porém, quisermos acentuar o ritmo para além da ordem lógica, em virtude de em nós a emoção,[...] predominar sobre a idéia propriamente dita, abriremos pausas artificiais no discurso.( PESSOA, 1990, p. 273) [...] a diferença entre a prosa e o verso, sem desaparecer, longe até de desaparecer, acentua-se tal qual é, sem mais nada. O verso é a prosa artificial, o discurso disposto musicalmente. Não é outra a diferença entre as duas formas da palavra escrita. (PESSOA, 1990, p. 274) 41 denominação, por exemplo, tinha a capacidade de revelar a essência da coisa significada. Na perspectiva atual da linguagem, houve um hiato entre significado e significante. Segundo Brill (1988, p.29), o sistema lingüístico contemporâneo, desligado da realidade, "volta-se para si mesmo, mais interessado na sua própria coerência interna do que no relacionamento com o mundo exterior". Surge, então, a importância do símbolo. O que realmente faz do homem um ser racional é a sua capacidade de simbolizar todas as suas experiências de vida. A função simbólica permite ao homem apropriar-se de suas vivências e expressá-las, memorizando-as ou transmitindo-as aos outros. Assim, na base da função simbólica está a comunicação entre os homens, "possibilitando a troca de idéias entre indivíduos do mesmo grupo social, através de códigos tais como a linguagem escrita e falada e as artes" (BRILL, 1988, p.35). Segundo Gonçalves (1995), as condições que determinam a existência do humano é que constituem o simbólico. Por isso, a fantasia possui duas funções: uma função imaginária, que é ilusória, e uma função simbólica, que é desveladora. Vale lembrar aqui, contudo, que não é apenas a poesia que se utiliza da imaginação para entender a realidade. Toda a Teoria, inclusive a científica o faz, também. Podemos entender que a poesia é a livre interpretação da realidade. Isso significa que o poeta não aceita o mundo interpretado por outras pessoas; ele a desinterpreta, depurando-a, interpretando livremente o real. É, então, que a poesia pode ser vista como um jogo, feito não com as palavras, mas sim com a realidade. Portanto, a principal substãncia dessa atividade lúdica é, em última análise, a imaginação, a atividade criadora que pode, através do olhar do poeta, reelaborar as visões do mundo, usando temas próprios, usando a riqueza dos símbolos. 42 O Marinheiro tem como símbolo a morte. Um caixão, onde repousa uma donzela, domina toda a peça. Veremos que, principalmente em Campos e no poeta ortônimo, a morte é um tema transcendental, rico em conteúdo metafísico. Em ambos, percebemos o conflito da percepção do mistério aliada a um impiedoso racionalismo. N'O Marinheiro, essa dualidade é bem clara. Enquanto a Primeira e a Segunda veladoras questionam-se sobre situações e imagens misteriosamente pinceladas pela memória ou pelas palavras ditadas pela emoção e pelo medo, a Terceira é racional e objetiva, na maior parte do tempo. Se as duas primeiras vêem no tempo que custa a passar um motivo para sonhar ou relembrar o passado, ela simplesmente pergunta: "Por que não haverá relógio neste quarto?" (p. 442). E, à pergunta da Primeira veladora: "Quando virá o dia?" (p. 442), sua resposta é rápida e ácida: "Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira..." (p. 442). Como se vê, talvez esse narrador-observador que perpassa toda a obra de Pessoa, possa ter andado por uma ponte construída entre vários Pessoas que, contudo, são os mesmos. Talvez os caminhos sejam iguais, apenas revestidos de diferentes paisagens. Teria o poeta iniciado, n'O Marinheiro, a construção dessas pontes e a pintura dessas paisagens? É o que tentaremos demonstrar, fazendo inicialmente uma análise da peça, seguida do estudo comparativo entre o drama estático e alguns poemas e, finalmente, apresentando as possíveis conclusões a que poderemos chegar, ao final deste trabalho. 43 2 O MARINHEIRO: UMA INTERPRETAÇÃO Segundo o próprio autor, a literatura dramática é uma variante da literatura narrativa. A literatura é a expressão verbal de um temperamento e a narrativa é a forma objetiva dessa expressão. A literatura dramática é a forma sintética dessa expressão objetiva; um drama é, assim, um romance na sua forma máxima de síntese possível e, por isso, pode receber a aparência de vida, pode ser simulado num palco. O Marinheiro, drama publicado por Pessoa no primeiro número de Orpheu, não se trata de uma das obras perfeitas e acabadas que nos ficaram dele. Ele mesmo comenta essa particularidade, em uma carta a Armando Cortes Rodrigues: Na verdade, não podemos chamar esta obra de Pessoa de "drama de ação", nem tampouco de "drama de personagem", segundo Cruz, (s/d, p. 28). Talvez, criando um "drama estático" em prosa, Fernando Pessoa atingiu, em mais um O meu drama estático "O Marinheiro" está bastante alterado e aperfeiçoado; a forma que v. conhece é apenas a primeira e rudimentar. O final, especialmente, está muito melhor. Não ficou, talvez, uma cousa grande, como eu entendo as cousas grandes; mas não é cousa de que me envergonhe, nem - creio - me venha a envergonhar. (PESSOA, 1986, p.788). 44 surpreendente paradoxo, "uma maior intensidade de estruturação dramática e poética do que no seu ambicioso plano de um poema dramático em verso". (CRUZ, s/d, p. 34). 2.1 O Marinheiro, um resquício simbolista? No final do século XIX, verifica-se uma crise social, existencial e cultural que tem como conseqüência a saturação das expectativas otimistas anunciadas pelo desenvolvimento industrial e pelo progresso científico, que ganharam impulso a partir da metade desse século. É nesse contexto que surge o Simbolismo, voltado para o ego, para as esferas inconscientes, na busca do "eu" profudo. Os simbolistas buscavam a "síntese viva", que unisse em sua complexidade, todos os aspectos da vida. A linguagem simbolista, infinita e plurívoca, explorava temas místicos, fabulosos, mergulhando no vago, no mistério, na ilusão. Sobre esse importante movimento, comenta Hauser (1968, p. 216-7): Para melhor entendermos a evolução do simbolismo em Portugal, segundo Cruz (s/d), devemos nos reportar a D. João Câmara, que em 1894, escreveu a primeira peça "programaticamente simbolista" (p.22), O Pântano, sob a clara influência de Maeterlink. Escrita para ser encenada, feita concretamente para o palco, não agradou ao público, talvez pela excessiva simbologia e pela carga O simbolismo é a mais celebrada tendência[...] Predomina a moda da novela russa, do prerrafaelismo inglês e da filosofia alemã. Mas o efeito mais profundo e mais fecundo vem de Baudelaire; é considerado o precursor mais importante da poesia simbolista e, sobretudo, o criador da lírica moderna. 45 evocativa complicada. Talvez por isso, as demais obras de Câmara, depois, mostraram um simbolismo bem mais simplificado. No mesmo ano (1894), surge o primeiro poema dramático de Eugênio de Castro, Belkiss. No entanto, Castro mostra uma particularidade que nos interessa sobremaneira, em virtude do estudo a que nos propomos neste trabalho: não há, em suas obras, uma distinção exata entre textos dramáticos e não dramáticos. Alguns textos podem ser levados ao palco, mas é visível que as particularidades da construção teatral como movimento, cena, dinâmica, não eram uma preocupação do autor. É interessante notar, também, que a sua poesia dramática é extremamente estática, como o é, também, o nosso O Marinheiro. Mas, ainda segundo Cruz (s/d), é em Antonio Patrício que a evolução do simbolismo português encontra um dos seus momentos mais importantes e, no teatro, sua "mais completa e característica expressão" (p.24). Sua obra, construída a partir da dualidade morte/amor, mostra uma fórmula e uma técnica bem características da corrente simbolista, como em Pedro o Cru e D. João e a Máscara, entre outros trabalhos. Mas, na verdade, é no modernismo que amadurecem certas inclinações que a escola simbolista procurou integrar e esse talvez seja um dos motivos por que Simbolismo e Modernismo podem ser confundidos. No simbolismo, dá-se um fenômeno extremamente importante: a regeneração musical da poesia, que lhe permite recuperar a sua essência rítmica. Além disso, outras características marcaram o movimento: a necessidade de se captar a essência misteriosa das coisas; a busca da expressão poética através da musicalidade, dos símbolos, dos temas místicos que levam à percepção de uma nova linguagem; a peregrinação pelo inconsciente, na busca do eu-profundo; o tom fatalista (pessimismo, horror, dor, 46 morte); valorização de toda possibilidade de expressão que reproduza a percepção do mundo. Além disso, o simbolismo exalta a fala, a literatura teatral. E a palavra, por si só, já é espetacular, embora como vimos, ela não dará à obra um caráter cênico se não for acompanhada de um mínimo de dinâmica teatral. O ideal dramático simbolista começa por se afirmar em Mallarmé, entre outros, através, principalmente , da negação do teatro naturalista, segundo Seabra Pereira (1975). Segundo Junqueira (2001), as diretrizes que norteiam O Marinheiro são as que norteavam o teatro simbolista no final do século XIX. Essas diretrizes correspondem às idéias de Fernando Pessoa, segundo as quais "...Pode haver revelação de almas sem acção, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade". (PESSOA apud CRUZ, 1991,p.68). Discriminado como resquício simbolista, ainda segundo Junqueira, são precisamente essas características simbolistas − principalmente a valorização de recursos sonoros e rítmicos sistematicamente repetidos, perfazendo uma linguagem sensívelmente poética − que, reelaboradas pelo autor, "fazem da peça um 'artefato lingüístico' que é sui generis na medida em que proporciona ao leitor/ ouvinte/espectador, um espetáculo potencialmente musical, uma quase sinfonia de vozes femininas..." (JUNQUEIRA, 2001, p.204). [...] libertação de toda e qualquer regra, mesmo da relação representativa entre a forma tomada pelo drama e as formas da vida; desprezo da realidade contemporânea e da observação exacta; não subordinação ao fio de uma intriga; tendência para anular a acção; imprecisão de cenários e vestuários; desnudaçào da cena; redução do número de actores, até ao ideal do actor único, e obscurecimento da sua presença e função; etc. (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 96) 47 Não apresentando nenhuma ação, apenas linguagem, a peça apresenta um cenário igual, do princípio ao fim do espetáculo. O autor privilegia a imaginação, fazendo com que as personagens adquiram materialidade através da fala, como se escrevesse um "hino à palavra", demonstrando o quanto nosso pensamento pode viajar, sem necessidade de movimento. O drama estático, na verdade, substitui a categoria de ação pela categoria de situação, mostrando um teatro mais filosófico do que dramático, onde, a cada diálogo, confundem-se cada vez mais as fronteiras entre a vida e o sonho. Uma das veladoras, a certa altura da peça pergunta: "Por que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?..." (PESSOA, 1986, p. 449) A peça passa-se no quarto de um castelo antigo, onde três jovens velam o corpo de uma donzela. O que mais impressiona é a rigidez do quadro, a forma estática das cenas. Tudo se passa nesse quarto e as três veladoras jamais saem do seu lugar. O ambiente é tipicamente simbolista: o quarto é bem isolado do mundo exterior, só se comunicando com ele através de uma única janela, "alta e estreita, dando para onde se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar" (PESSOA, 1986, p. 441). É interessante perceber, aqui, que a metáfora da janela reforça a questão do isolamento interior e exterior do homem, presentes na obra pessoana, talvez como uma necessidade premente de totalidade: janela, porta, pórtico, paredes, muros, todos são funcionalmente idênticos. É oportuno lembrar, aqui, dois poemas de Alexander Search: In the street e A Donzela. Neles, o sono e o sonho são mostrados como as matrizes da melancolia de Pessoa. Segundo Gonçalves (1995), nesses dois poemas pode-se perceber sinais da solidão e de um país de sonho, temas que seriam retomados depois, n'O Marinheiro. 48 Assim é que, na peça, as três veladoras mostram-se, cada qual a seu modo, envolvidas pelo sonho, pelo mistério. O caixão, símbolo de toda a peça, domina a cena, numa clara alusão à morte, única personagem verdadeira do teatro da vida. As três jovens não têm nomes, talvez privilegiando o sentir, o pensar, numa demonstração de importantes características simbolistas: a valorização das manifestações espirituais, a atmosfera dionisíaca obscura, subjetiva, a percepção de uma outra realidade, a captação do mundo e do sentido das coisas pelo símbolo. É preciso lembrar que o quarto é, na verdade, o palco que, no simbolismo, é considerado o espaço de um cerimonial, o espaço ideal para a sinestesia. A peça é, toda ela, uma representação do homem existencialmente impotente, surpreendido pelo destino. As protagonistas são criaturas em estado de passividade, que falam de uma vida não propriamente analisada, mas refletida na sua aspiração de imaterialidade e de sonho. Na peça não há noção de tempo. Não há relógio no cenário, fato percebido subjetivamente pelas Primeira e Segunda veladoras e objetivamente pela Terceira. PRIMEIRA- Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado? SEGUNDA- Não, não dizíamos. TERCEIRA- Por que não haverá relógio neste quarto? SEGUNDA- Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é? ( PESSOA, 1986, p.442 ) Em significativa parte dos escritores do Simbolismo, encontramos uma configuração platônica da visão do Mundo: sobreposição de duas realidades distintas, sendo uma - a material, fenoménica, sensivelmente atingível - destituída de valor em si, porque considerada apenas como anúncio simbólico da outra, a realidade espiritual, imperecível e plena. Neste universo se suscita e situa a busca transracional, detectora e vivificadora das analogias secretas dos seres... (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 66) 49 A supressão do tempo remete a elementos claramente simbolistas: a efemeridade das coisas; o desejo de viver não a vida, mas o sonho; a inércia que insinua o quanto são frágeis os limites entre a vida e a morte. As três veladoras falam o tempo todo. Têm medo e, ao mesmo tempo, tédio. Suas falas são filosóficas e intrigantes, com definições fascinantes: "as mãos não são verdadeiras nem reais... são mistérios que habitam a nossa vida". [...] "os montes devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que têm... (PESSOA, 1986,p.443); "tudo é muito e nós não sabemos nada..." ( idem, p.445). A segunda veladora, então, começa a contar um sonho que ela teve: é sobre um marinheiro, perdido numa ilha longínqua. Ele também sonha, com uma pátria que inventou. A cada dia inventa novas paisagens, pessoas, acontecimentos. Até que se cansa de sonhar e tenta se lembrar de sua pátria verdadeira... mas não consegue. Esquecera tudo. E percebe que toda sua vida, agora, se resume no sonho que sonhara, dia após dia. Segundo Junqueira (2001), a capacidade de sonhar, que é vital ao marinheiro (pois este sobrevive graças à sua ficção), está ligada ao desapego de seu passado histórico , pois [...]foi preciso perder-se num naufrágio e separar-se dos valores que tinha até então para finalmente se reencontrar, renovado, e reconstruir - à base de sonhos - uma identidade, sua e de sua pátria. Repare-se também que, nesse processo de renovação, a água é um elemento imprescindível, quer pela sua força motriz, quer pela propriedade de refletir imagens invertidas, quer pelo poder quase hipnótico com que nos embala: é no mar e pelo mar que se perde e se reencontra o marinheiro... (JUNQUEIRA, 2001, p.207). 50 A peça prossegue, com o relato da jovem que, a essa altura, se perde em meio à narrativa: contara um sonho, dentro de outro sonho. E as três se assustam: onde está, qual é o limite entre o real e o irreal? E se, de repente, a jovem morta estivesse ouvindo a história? Quem pode afirmar que não? A morta estará mesmo morta ou apenas sonha, repousada num caixão? Então, amanhece. E, com o amanhecer, vem a certeza: apesar de todos os riscos, os medos, os desencantos, é seguro viver, mas é mais bonito sonhar. Onde está a tristeza: na morte ou na vida? Em que se deve acreditar? Na verdade, perguntas claras ou veladas, mas sempre instigantes, são a tônica dessa obra, onde tudo é fluido como a água, tudo é sonho, tudo é pura ficção. As próprias veladoras,curiosamente, não têm nomes. São sempre denominadas por números: a primeira, a segunda e a terceira veladoras. O que nos parece é que a morta, repousando em seu caixão, pode representar o poeta ortônimo, que "morre" para fazer nascer os heterônimos. Essa idéia se repete, segundo Seabra (1974, p.160), no poema "Eros e Psique". Aos poucos, tomado pela idéia de que no sonho pode-se viver com muito mais intensidade do que no mundo real, o leitor / espectador vai-se deixando levar para o limite entre o real e o fictício, entre a vida e a morte, também ele tornando-se parte do espetáculo. A linguagem também vai-se tornando fluida, à medida em que as A lenda da Princesa que espera ser despertada por um Infante que, finalmente, descobre ser ele essa mesma Princesa, seria susceptível de ler-se, de resto, como uma espécie de iniciação simbólica ao mistério da heteronímia. [...] Esta visão esotérica da identidade das oposições, germe central da poesia de Pessoa, encontra-se na textura do poema não como uma simples ilustração de um rito, mas como a germinação dos elementos do significado e do significante em que ele se desdobra e se consubstancia. 51 veladoras desmistificam o mundo real, diluindo o significado das palavras, fazendo- as soarem como pura melodia. No final da peça, a linguagem "é quase música pura a embalar o espectador / ouvinte e a enredá-lo numa espécie de transe do qual só sairá no momento em que a segunda veladora disser, subitamente, que já não acredita no sonho" (JUNQUEIRA, 2001, p. 208). Esse teatro musical, que não apresenta qualquer ação, sem qualquer outra movimentação que não seja a da fala, é realmente um teatro simbolista, pois se presta tanto ao palco quanto à declamação. No entanto, já há n'O Marinheiro , indícios de um modernismo que leva as personagens a desmistificarem a própria ficção, tentarem rebelar-se, sonharem um sonho dentro de outro sonho, questionarem o seu autor. Ilustrando sua interpretação do drama estático de Pessoa, Junqueira (2001) escolhe a seguinte imagem: "o chão de areia quente em que, para sonhar, se senta o marinheiro durante o dia à sombra das palmeiras, é o chão do Simbolismo; mas o horizonte ainda pouco iluminado que ele perscruta, à noite, sem olhar para as estrelas, é o do Modernismo..." (p. 211). Modernista ou simbolista, O Marinheiro é uma leitura fascinante e aterradora: fala de vida e morte, sonho e desesperança, certeza e mistério. O navio que chega, finalmente, à ilha, não encontra lá o marinheiro. Teria ele voltado à sua terra? E o mais perturbador é pensar, então, a qual delas teria voltado: à real ou à do sonho? Será possível viver um sonho com tal intensidade? E será que só essa conjectura já não é uma prova definitiva de que nós, leitores, também nos afastamos da realidade? 2.2 O Marinheiro e suas configurações: espaços e objetos 52 Considerando a distinção que Issacaroff (1981) faz entre espaço mimético e espaço diegético, podemos considerar em O Marinheiro, segundo Marinho (1983), a existência básica desses dois espaços. O espaço mimético (tudo que é visível, concreto), será constituído pelo quarto do castelo, visível no palco; o espaço diegético (tudo o que é descrito pelas protagonistas/narradoras do drama), é constituído pelas recordações das veladoras. Podemos ainda considerar, no interior do espaço diegético, o espaço sonhado pelo marinheiro e narrado pela segunda veladora, a que chamaremos de intradiegético. Ainda segundo a autora, todos os elementos de um espaço têm a sua correspondente negativa no outro. O espaço mimético é fechado, circular, fixo e representa o presente; o diegético é aberto, cheio de mobilidade, abstrato e representa o passado, "que nunca existiu a não ser no desejo". (MARINHO, 1983, p. 28). No primeiro está a morte; no segundo está o sonho. Nos dois, movem-se quatro personagens: as veladoras, que pertencem a ambos e a morta, que só pertence ao primeiro. O marinheiro só é evocado no segundo, dando origem, como já mencionamos, ao espaço intradiegético. Apesar da existência desses três espaços, não existe ação propriamente dita, em nenhum momento da peça. Assim, o que ocupa o primeiro plano são os objetos existentes nesses espaços, pois são eles que sugerem a ação. No espaço mimético, os objetos geram angústia: o caixão, a donzela morta, as tochas; a ausência do relógio indica atemporalidade; o cantar do galo e o chiar do carro marcam a distinção entre noite/dia, fora/dentro, vida/morte, real/sonho. No espaço diegético, tudo leva à busca do sonho: os palácios de outros continentes, a vela de um navio inatingível. No espaço intradiegético o país sonhado e o navio sugerem segurança e bem-estar, ainda que impossíveis. Assim, 53 percebemos claramente que os objetos dos espaços diegético e intradiegético tentam, inutilmente, anular os objetos do espaço mimético. O que acontece é que, por contraste, eles os ressaltam ainda mais. É preciso observar, também, o modo semântico de estudar esses objetos, considerando que morte e sonho são dois campos semânticos fundamentais n'O Marinheiro. Inseridos neles encontramos alguns desdobramentos: família, o elemento líquido, natureza, atemporalidade, angústia, etc. Ao longo da peça, percebemos que o campo semântico da morte, onde permanecem, todo o tempo, as veladoras, anula o campo do sonho. "O sonho é, também ele, o sonho de um sonho." (MARINHO, 1983, p. 31). O modo retórico de estudar esses objetos considera a realização sucessiva e/ou simultânea em diferentes figuras. No espaço mimético, o caixão, símbolo de toda a peça, representa uma metonímia da morte. A donzela morta é a antítese vida/morte enquanto que as velas representam uma metáfora da vida dentro do universo da morte. O relógio, ausente, é a metáfora da atemporalidade. No espaço diegético, os espaços são, na sua maioria, símbolos: casa, flores (de felicidade); vela (fuga ); o próprio marinheiro (morte). No espaço intradiegético, navios e barcos naufragam no mar do real ou do irreal e a viagem só pode ser um sonho enquanto o passado, a ilha, o marinheiro são puras essências. No final, resta o caixão, a forma englobante da morta. [...] em O Marinheiro, o único enredo é apenas o da morte de que a peça é uma clara alegoria; e o objeto nunca desrealizado é o caixão - forma englobante que revela ou afirma permanentemente, mais do que o corpo, a alma da morta. (MARINHO,1983, p. 31) 54 A água representaria a dialética vida/morte. O elemento líquido contido na peça é o mesmo que atravessa a poética pessoana e remete para o tema do fluir do tempo. A água parece ser, para Pessoa, um sinal de limitação e o conduziria a um tempo de passagem. 2.3 Visões da arte simbolista n'O Marinheiro Segundo Cândido et al(1970), o mundo representado no palco é feito de objectualidades puramente intencionais e é, integralmente, ficção. Essa ficção reveste-se de tal força que se superpõe à realidade. Assim, a personagem "vive", ultrapassa os limites dessa realidade e faz do homem, realmente, o centro do universo. O teatro é, em última análise, uma forma de arte complexa e abrangente. Para refletirmos sobre a arte visível no drama estático de Pessoa, precisamos pensar o homem que, respaldado por um movimento artístico, revestiu esse trabalho de suas características marcantes. Buscando incessantemente a sua própria identidade e o sentido da existência humana, ele conseguiu uma liberdade de ação tanto exaltante como aterradora. E aí reside o conflito fundamental de nossos dias: embora tenha adquirido um vasto e profundo conhecimento de si mesmo, não lhe veio a segurança esperada. A arte, então, é a grande sublimação. 55 2.3.1 A pintura simbolista Segundo Woodford (1983), há muitas maneiras de se olhar para uma pintura. Se tomarmos como base a figura de um bisão, pintada há uns quinze mil anos no teto de uma caverna existente no que hoje é a Espanha, poderemos olhá-la de quatro maneiras diferentes. A primeira seria indagando a sua finalidade. Alguns poderiam dizer que sua finalidade pode ter sido mágica: o pintor rupestre pode ter alimentado a esperança de que o fato de capturar a imagem do bisão na caverna lhe propiciaria capturar o próprio bisão. Uma segunda maneira de ver essa pintura seria indagando o que elas nos dizem a respeito das culturas em que foram produzidas. Assim, a pintura rupestre pode nos dizer muitas coisas sobre os homens primitivos, que se deslocavam de um lugar para outro, por vezes abrigando- se em cavernas, caçando animais ferozes e colhendo frutos em meio aos campos pré-históricos. Uma terceira forma de ver essa pintura seria procurando avaliar até que ponto ela é realista. Com certeza, a semelhança com a natureza foi um dado desafiador para o artista... Uma quarta forma de ver essa pintura consiste em analisá-la em termos de construção, ou seja, como formas e cores foram usadas para produzir padrões dentro do quadro. Essa análise nos ajudaria a compreender melhor seu significado e a entender os recursos utilizados pelo artista para obter os efeitos desejados. Um simples olhar para um quadro é bastante para nos impressionar de algum modo sobre ele: as formas e cores, configurações, dimensões e arranjo dos 56 motivos podem ajudar-nos a reconhecer os meios criados pelo artista para obter determinados efeitos, que nos impressionam desta ou daquela maneira. Um quadro pode estar repleto de símbolos e, sempre, existem mais que nós não notamos sequer. Eles não são facilmente reconhecidos, mas podem estar disfarçados como objetos de aparência perfeitamente natural. Assim, com freqüência, existem num quadro muito mais coisas do que apenas aquelas que atraem nosso olhar. 2.3.2 Principais nomes da pintura simbolista Em 1889, surgia na pintura um novo movimento chamado sincretismo ou simbolismo, do qual a figura central era Paul Gauguin. Para Gauguin, a civilização ocidental estava totalmente desestruturada, obrigando os homens a uma vida incompleta, dedicada ao ganho material, em detrimento de suas emoções. Seus seguidores simbolistas, os "nabis", foram muito mais notáveis na teoria que na prática. Um deles, Maurice Denis fez a declaração que iria tornar-se a palavra de ordem para os pintores do século XX: "Um quadro- antes de ser um cavalo de batalha, um nu feminino ou um episódio qualquer- é essencialmente uma superfície plana coberta de cores aplicadas com certa ordem." Um bom pintor sabe como compor um quadro, possui um sentido sutil de harmonias cromáticas ou um sentido ousado de uma dissonância tonal. [...] Sua obra pode dar satisfação, agradar, surpreender, ampliar nossa compreensão de um tema ou enriquecer nossa percepção de formas. (WOODFORD, 1983, p.110) 57 Os simbolistas também descobriram alguns artistas mais velhos, descendentes dos românticos, cuja obra, como a deles, também colocava a visão interior acima da visão da natureza: Moreau e suas fantasias medievais, Redon e sua imaginação atormentada, cheia de imagens pessoais e perturbadoras, Vuillard, o mais talentoso dos nabis. No final do século XIX, uma preocupação com a decadência, a corrupção e o mal permeou o clima artístico e literário. Van Gogh e Gauguin mostraram-se insatisfeitos perante esses males da civilização ocidental e essa insatisfação, paradoxalmente, provou ser, pelas obras produzidas nesse período, uma fonte de vigor. Um nome importante, também, nesse cenário foi Toulouse-Lautrec. Outros nomes se sobressaíram nessa época: Ensor e seu pessimismo obssessivo face à condição humana; Munch e suas incursões pelas faces do medo (seu quadro "O Grito" é o exemplo mais famoso); Picasso e seu "período azul", que consiste de quadros de mendigos, marginais e vítimas da sociedade, refletindo o isolamento do próprio artista. 2.3.3 A pintura simbolista e O Marinheiro: pontos de diálogo Tomando como ponto de partida os quatro modos de se ver uma pintura, elencados por Woodford (1983), visualizemos, inicialmente, o cenário da peça. Um quarto de um antigo castelo, tendo ao centro um caixão contendo o corpo de uma donzela, vestida de branco. Nos cantos, quatro tochas. À direita existe uma única janela, alta e estreita, mostrando o mar, entre dois montes longínquos. Do lado 58 da janela estão três donzelas, velando a morta. A primeira está sentada em frente à janela; as outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela. É noite e pode- se perceber "um resto vago de luar". A finalidade desse quadro (e a imobilidade das personagens nos permite vê- lo como tal), pode ser levar-nos a perceber a importância da morte, a mais verdadeira personagem do teatro da vida. A janela, o único acesso ao exterior, mostra o mar e sua dualidade vida/morte, seu mistério, símbolo do tempo que flui, inexoravelmente. É noite, há apenas um resto de luar lá fora e, dentro, quatro tochas iluminam a cena, criando um ambiente tipicamente simbolista. E aí talvez resida a finalidade maior do cenário: levar o espectador a perceber exatamente a raiz simbolista da peça. Se pensarmos que, para os pintores simbolistas, a visão interior deveria estar acima da observação da natureza, perceberemos o porquê da pequena visão oferecida pela janela, da fraca iluminação do aposento, da ausência de gestos e da abundância de idéias. Há, ainda, uma curiosa observação a esse respeito: Maillol, um pintor simbolista e, depois, escultor (considerado por alguns críticos como o maior de todos os escultores simbolistas), considerava que uma estátua Como se vê, o "quadro" onde se passa a peça pode ter a finalidade de situar o espectador no contexto simbolista, enfatizando as características marcantes desse [...] deve, acima de tudo, ser "estática" e estritamente equilibrada, como uma obra arquitetural; deve representar um modo de existir liberto de toda e qualquer pressão das circunstâncias. (JANSON, 2001, p. 929) 59 período através dos objetos de cena, da posição das personagens, das sensações que todos esses elementos provocam. Considerando a segunda maneira de se ver um quadro, indagando o que ele nos diz a respeito da cultura em que foi produzido, O Marinheiro pode nos mostrar pontos interessantes: a maneira da época de se velar os mortos, a arquitetura, a decoração, o vestuário. Aqui podemos citar Gauguin e sua crítica à sociedade industrial, que obrigava os homens a uma vida incompleta, dedicada aos ganhos materiais, enquanto suas emoções eram esquecidas. As veladoras, privilegiando a palavra e a emoção, mostram-se discretas e comedidas, perturbadas apenas com seu caos interior. Redon, Moreau e, mais ainda, Munch, mostram em suas telas o medo que ronda todo o drama estático de Pessoa. A terceira maneira de ver uma pintura, ainda segundo Woodford (1983), consiste em avaliar até que ponto elas são fiéis à realidade. É importante perceber, aqui, o quanto de irreal, insólito, existe na peça, evidenciando mais ainda sua essência simbolista. As três jovens, estáticas, imóveis, numa sala escura, tendo por companhia uma jovem morta e contando um sonho dentro de outro sonho, cercadas por objetos estranhamente simbólicos, nada têm de real. Vemos essa característica nos quadros de Ensor, com sua visão pessimista da condição humana e nos de Picasso, do seu "período azul", ao retratar personagens e cenas que refletiam seu próprio isolamento. Finalmente, uma quarta maneira de ver pinturas consiste em analisá-las em termos de construção, do modo como formas e cores foram usadas para produzir padrões dentro do quadro. Nesse sentido, podemos perceber que as cores escuras dominam o cenário. A iluminação, feita pelas tochas dão um tom 60 fantasmagórico ao ambiente, com certeza criando sombras e imagens onduladas e bruxuleantes. Não há qualquer menção à vestimenta das veladoras. No entanto, quanto à morta, a indicação é clara. Ela está "de branco". É interessante notar que o branco jamais foi uma cor ligada à morte. Mas, aqui, esse dado talvez signifique que a morte é a única coisa real, clara, verdadeira que existe na vida. No quarto circular, fechado, englobante, existem quatro toc