UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES BRIAN CHALEGA DA SILVA DESENHO DE OBSERVAÇÃO E O RELATO DE EXPERIÊNCIA: DESENVOLVIMENTOS CONTEMPORÂNEOS SÃO PAULO 2023 BRIAN CHALEGA DA SILVA DESENHO DE OBSERVAÇÃO E O RELATO DE EXPERIÊNCIA: DESENVOLVIMENTOS CONTEMPORÂNEOS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado apresentado à Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” como requisito para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol SÃO PAULO 2023 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. S586d Silva, Brian Chalega da, 1991- Desenho de observação e o relato de experiência : desenvolvimentos contemporâneos / Brian Chalega da Silva. -- São Paulo, 2023. 78 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Artes. 2. Desenho. 3. Desenho - Técnica. I. Spaniol, José Paiani. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 741 Bibliotecária responsável: Luciana Corts Mendes - CRB/8 10531 BRIAN CHALEGA DA SILVA DESENHO DE OBSERVAÇÃO E O RELATO DE EXPERIÊNCIA: DESENVOLVIMENTOS CONTEMPORÂNEOS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado apresentado à Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” como requisito para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. Trabalho aprovado em: 10/12/2023 Banca Examinadora ___________________________________________ Prof. Dr. José Paiani Spaniol Instituto de Artes – UNESP Orientador ___________________________________________ Prof. Dr. Sergio Mauro Romagnolo Instituo de Artes – UNESP RESUMO Nas últimas décadas tem havido um renovado interesse no desenho de observação em círculos onde essa prática já não era mais comum, como nos meios de imprensa por exemplo. Movimentos como o "Urban Sketchers", e as práticas do "reportage illustration" ("desenho de reportagem", forma de jornalismo visual baseado em desenhos e pinturas feitas em campo) tem resgatado o desenho como forma de mostrar temas relevantes à comunidade do artista/investigador e combinado isso de forma natural com a divulgação dessa visão individual através da internet. Essa pesquisa visa realizar uma análise das especificidades desses desdobramentos modernos, sua ligação com o contexto contemporâneo e realizar uma investigação prática sobre esses campos e suas técnicas. Palavras-chave: desenho de observação; desenho; urban sketchers; reportage illustration. ABSTRACT In the last decades there has been a renewed interest in observational drawing in circles where this practice wasn’t common anymore, like in the press for example. Movements like the “Urban Sketchers” and the practices of “reportage illustration” have bring back drawing as a way of talking about topics relevant to the artist/investigator communities and combined this seamlessly with the use of the internet to publish these individual point of views. This paper aims at analyzing the specifics of these modern developments of observational drawing, their place at our contemporary context and make a practical investigation of this field and it’s techniques. Keywords: observational drawing; drawing; urban sketchers; reportage illustration. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Músicos tocam, veículo de guerra em exibição ao fundo..........................24 Figura 2: Julia Midgley - War Art & Surgery #115......................................................25 Figura 3: Julia Midgley - War Art & Surgery #129......................................................25 Figura 4: Julia Midgley - War Art & Surgery #153......................................................25 Figura 5: Julia Midgley - War Art & Surgery #099......................................................25 Figura 6: Olivier Kruger - Arte feita em residência num hospital................................26 Figura 7: Dr. Victoria Grinberg - Red Cosmos...........................................................31 Figura 8: Dr. Victoria Grinberg - Appledore................................................................31 Figura 9: Dr. Victoria Grinberg - St. Ives....................................................................31 Figura 10: Dr. Victoria Grinberg - Clovelly.................................................................31 Figura 11: Primeiro desenho feito na aula.................................................................38 Figura 12: Desenho onde o esboça azul é visível......................................................38 Figura 13: Circo escola de Franco da Rocha (ao fundo). Parque municipal Benedito Bueno de Morais........................................................................................................39 Figura 14: Fim da Rua Amador Bueno, onde moro, e início da Av. Pref. Ângelo Celeguim, trecho de estrada sem construções em nenhum dos lados......................40 Figura 15: EMEB Nilza Dias Mathias, onde estudei...................................................41 Figura 16: Rua transversal ligando a rua São Benedito ao Jardim Cruzeiro. Desenho feito sentado no ponto de ônibus em frente à EMEB da Figura 7..............................41 Figura 17: Subida da rua São Benedito, logo acima do centro da cidade.................41 Figura 18: Minhocão, que vira parque aos fins de semana.......................................43 Figura 19: Torre da igreja da Santa Cecília vista do minhocão.................................43 Figura 20: Concentração. Aluno com nariz de palhaço ao centro.............................44 Figura 21: Concentração - Produção de cartazes......................................................44 Figura 22: Arte no ato - Jogos teatrais (ao fundo) e música......................................44 Figura 23: Atividades diversas...................................................................................45 Figura 24: Complexo Fepasa.....................................................................................47 Figura 25: Pianista Lorraine experimentando o piano................................................47 Figura 26: Pianista Fernando Biral experimentando o piano.....................................47 Figura 27: Masterclass na Artistas S/A......................................................................49 Figura 28: Masterclass. Piano à 4 mãos....................................................................49 Figura 29: Masterclass. Anna Agazzi dádicas à jovem pianista................................49 Figura 30: Masterclass. Apresentação deJúlia Utikava.............................................49 Figura 31: Senhor descansando com sua bicicleta....................................................50 Figura 32: Esperando a van. Pianistas Júlia e Gilberto.............................................50 Figura 33: Ensaio do pianista Gilberto com uma aluna do 8º ano que recitaria "a tristeza do Jeca".........................................................................................................51 Figura 34: Alunas recitando a Tristeza do Jeca.........................................................51 Figura 35: Autoridades presentes (desenho inacabado)...........................................51 Figura 36: Recital-Aula. Visão geral do salão. Pianista Gilberto falando...................52 Figura 37: Recital-Aula. Pianista Lorraine dando aula...............................................52 Figura 38: Recital-Aula - Pianista Lorraine ministrando a aula..................................53 Figura 39: Pianista Helen Rocha (desenho abandonado).........................................55 Figura 40: Pianista Anabel Cunha (desenho abandonado).......................................55 Figura 41: Anabel Cunha, segunda versão................................................................55 Figura 42: Anna Agazzi tocando................................................................................56 Figura 43: Cinegrafista Felipe Tristão da TV Unesp..................................................56 Figura 44: Pianistas dando aula.................................................................................57 Figura 45: Pianista Júlia tocando. A cruzada das mãos foi tema de uma pergunta...57 Figura 46: Recital com pianistas de Botucatu............................................................58 Figura 47: Desenho sem a pintura digital..................................................................58 Figura 48: Desenho no papel.....................................................................................59 Figura 49: Desenho final após alguns pequenos ajustes e pintura digital.................59 Figura 50: Desenho abandonado...............................................................................60 Figura 51: Desenho feito no local..............................................................................60 Figura 52: Desenho após a pintura digital.................................................................60 Figura 53: Pianista Enzo falando da peça que iria tocar............................................61 Figura 54: Pianista João Sigoli dando aula................................................................62 Figura 55: Senhora olha o celular em meio às mesas das banquinhas de comida.. .63 Figura 56: Músico tocando durante o sarau...............................................................63 Figura 57: 3NÓS3 - Sacola sendo colocada em estátua em referência às torturas praticadas pela polícia...............................................................................................65 Figura 58: 3NÓS3 - Grupo vendado passeando pela bienal e exaltando os trabalhos expostos.....................................................................................................................65 Figura 59: Bispo do Rosário - brinquedos e outros objetos.......................................66 Figura 60: Bispo do Rosário - Manto de apresentação. (a pintura é digital)..............66 Figura 61: Ciranda - "Bloco da Casa Velha" com o público.......................................67 Figura 62: Música - Cantora Janaína Souza..............................................................67 Figura 63: Roda de conversa com as diretoras dos curta-metragem exibidos..........67 Figura 64: Casal assiste as apresentações...............................................................67 Figura 65: Brincadeiras teatrais enquanto esperavam o início..................................68 Figura 66: Apresentação das chapas........................................................................68 Figura 67: Visão geral do local do debate..................................................................69 Figura 68: Cena inicial da ópera, com as personagens Dona Úrsula e Dona Jô.......70 Figura 69: Mesmas personagens. O texto é uma espécie de bordão durante a peça. ...................................................................................................................................70 Figura 70: Cartaz sobre o peso dos votos nos órgãos colegiados............................71 Figura 71: Batuque e cartazes...................................................................................71 Figura 72: Percussão usando material reciclado (o texto e cinzas foram adicionados digitalmente)..............................................................................................................72 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................10 1.1 Obras comentadas nessa pesquisa ou que foram importantes para ela.............10 2 JORNALISMO VISUAL? POR QUE DESENHO?.................................................18 3 A EXPERIÊNCIA....................................................................................................22 3.1 Uma crônica visual...............................................................................................29 3.2 Modelos de negócio.............................................................................................32 3.3 A adaptabilidade à realidade brasileira................................................................34 4 EXPERIMENTAÇÕES PRÁTICAS.........................................................................38 4.1 Residência artística “Organicidades”..................................................................39 4.2 Encontro USk SP................................................................................................42 4.3 Redepartamentalização.......................................................................................43 4.4 Rede Unespiano..................................................................................................46 4.5 Projetos pessoais e outros eventos.....................................................................63 4.5.1 Sarau Estação Poesia.......................................................................................63 4.5.2 Aula - Visitação a acervos e exposições...........................................................64 4.5.3 Mulherada - Arte e Resistência.........................................................................66 4.5.4 Debate das chapas para o CONUNE...............................................................68 4.5.5 Fábrica de Óperas – A Solteirona e o Ladrão...................................................70 4.5.6 Greve de servidores técnico-administrativos....................................................71 5 CONCLUSÃO.........................................................................................................73 REFERÊNCIAS.........................................................................................................74 10 1 INTRODUÇÃO Nessa pesquisa discutiremos o desenho de observação com foco em alguns movimentos contemporâneos que trazem novos ângulos para essa prática tão tradicional, o ressurgimento do desenho à mão livre nos meios de imprensa será comentado brevemente e discutiremos de forma geral e também através de obras específicas a forma como é feito o relato de experiência nesses trabalhos, nesse ponto utilizaremos principalmente as ideias sobre experiência de John Dewey, mas também outras abordagens. A relação entre os trabalhos abordados e o jornalismo também será discutida, assim como o caminho que conduziu até as obras atuais. A segunda parte contem relatos de minhas investigações práticas na área do desenho de eventos e acontecimentos através (primariamente) da observação direta, relata os desafios e soluções encontradas e continua as discussões sobre essa linguagem. Não faremos aqui um histórico sobre os movimentos e as outras práticas abordadas, pois ele já está presente no capítulo 2 de meu trabalho de conclusão de curso de licenciatura (SILVA, 2023) cuja leitura é altamente recomendada antes da deste texto, foi apenas a burocracia acadêmica que não permitiu que o trabalho fosse feito em apenas um documento, obrigando que ele fosse picotado em dois textos. 1.1 Obras comentadas nessa pesquisa ou que foram importantes para ela Há três grupos de obras comentadas ou cuja leitura teve especial relevância para essa pesquisa, o primeiro inclui a maioria dos artistas entrevistados na obra de referência de Embury e Minichiello (2018), quando possível a obra escolhida para análise foi a destacada na entrevista, mas em alguns casos, como não haviam informações verificáveis suficientes sobre elas, outra obra do mesmo artista e de natureza similar foi selecionada. O segundo grupo é o de urban sketchers cujo trabalho foi destacado em edições da publicação Drawing Attention, feita diretamente pela organização urban sketchers como divulgação do projeto e distribuída gratuitamente online, e o terceiro é uma amostragem (sem relevância estatística, mas que acreditamos contribuir para a discussão por trazer mais tópicos e mais diversidade de artistas) de obras publicadas online recentemente (no máximo 11 5 anos atrás) usando as hashtags #urbansketching #reportageillustration ou #desenhodereportagem nas redes sociais Instagram, flickr e no Fediverso (que inclui as redes Mastodon e Pixelfed, entre outras menores). Com relação ao modo com que os artistas rotulam seus posts, é importante comentar que a hashtag #reportagedrawing também é usada (inclusive por Embury (2023) e outros artistas e entidades mencionadas aqui). Em nossa pesquisa a tradução “desenho de reportagem” foi escolhida para as buscas por ter sido usada em diversas postagens sobre o assunto pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, o nome “Reportagem Ilustrada”, tradução usada no título do livro em português do Brasil, talvez não seja tão adequada por criar uma sensação de separação entre a reportagem e a sua ilustração, esse termo basicamente não retorna resultados. 12 TABELA 1: ARTISTAS ENTREVISTADOS NO LIVRO REPORTAGEM ILUSTRADA E O PROJETO CONSIDERADO Artista País (em que trabalha) Projeto Comissionado? Tem texto do(a) artista? Meio de publicação original Disponível também Anne Howeson Inglaterra Remember me (HOWESON, 2012) Não Não Exposição Site Pessoal Bo Soremsky Alemanha Verfluchtes Tal der Saphire (“Vale Amaldiçoado das Safiras”) (SOREMSKY, c2022) Sim Sim, no desenho Jornal/revista Site Pessoal Gary Embury Inglaterra DRAWN IN RESIDENCE Chelsea and Westminster Hospital (REPORTAGER, c2022) Sim Sim, no desenho1 Exposição Redes Sociais George Butler Inglaterra Syria (BUTLER, 2012) Sim2 Não Jornal/revista Site Pessoal Jedidiah Dore EUA NYC5 Reportage Drawings (DORE, c2018) Não3 Sim, separado Rede social/Site Livro 1 Apenas algumas palavras 2 “One morning in August 2013, I was in Azaz as a guest of the Free Syrian Army. My job as a freelance illustrator was to capture some of what was happening through my drawings (the pictures were published in the Guardian)”. (BUTLER, 2016). 3 O projeto em geral não, algumas ilustrações individuais podem ter sido. 13 TABELA 1: ARTISTAS ENTREVISTADOS NO LIVRO REPORTAGEM ILUSTRADA E O PROJETO CONSIDERADO (continua) Artista País (em que trabalha) Projeto Comissionado? Tem texto do(a) artista? Meio de publicação original Disponível também Jenny Soep Suécia Svensk Musikvår 2022 (SOEP, 2022) Sim4 Não Exposição (SVENSK MUSIKVÅR, 2022) Redes Sociais (dela e do festival) Jill Gibbon Inglaterra The Etiquette of the Arms Trade: Ten Years Drawing in Arms Fairs (GIBBON, [s.d.]) Não5 Não Exposição Site Pessoal Julia Midgley Inglaterra War Art & Surgery (MIDGLEY, c2019) Não6 Não Exposição Site Pessoal Lucinda Rogers Inglaterra On Gentrification - Drawings from Ridley Road Market (ROGERS, 2021) Sim7 Não Exposição Site Pessoal 4 “This year I drew more concerts than ever before in my 6 years of drawing for them.” (SOEP, 2022). 5 Ela menciona o início do processo em (PIDD, 2018). 6 Pelo que ela menciona em uma entrevista (LIVERPOOL TV, 2015), a série teve início por iniciativa própria. 7 “34 drawings for a solo show commissioned by the House of Illustration” (ROGERS, 2021) 14 TABELA 1: ARTISTAS ENTREVISTADOS NO LIVRO REPORTAGEM ILUSTRADA E O PROJETO CONSIDERADO (conclusão) Artista País (em que trabalha) Projeto Comissionado? Tem texto do(a) artista? Meio de publicação original Disponível também Luisa Crosbie Inglaterra Passeata Anti-Brexit (CROSBIE, 2019) Não Sim, no desenho Rede social/Site Site Pessoal Olivier Kugler Inglaterra8 Burkina Faso: portraits of poverty and hope (KUGLER, [s.d.]) Sim Sim, no desenho Jornal/revista Site Pessoal Sue Coe Inglaterra9 Parque nacional dos elefantes – Tailândia (EMBURY e MINICHIELLO, 2018, p. 52) Não Sim, no desenho Tim Vyner Inglaterra Olimpíada de Londres – 2012 (VYNER, 2012) Sim Não Jornal/revista Site Pessoal Veronica Lawlor EUA Launch of the Charles W. Morgan (LAWLOR, 2013) Informação não encontrada. Sim, separado Exposição Site Pessoal Fonte: Elaborado pelo autor. 8 Ele nasceu na Alemanha e estudou nos EUA. 9 Viveu e trabalhou também nos EUA. 15 TABELA 2: ARTISTAS DESTACADOS EM EDIÇÕES DA REVISTA DRAWING ATTENTION E O PROJETO CONSIDERADO Artista País (em que trabalha) Projeto Comissionado? Tem texto do(a) artista? Meio de publicação original Disponível também Carolyn Daut EUA Desenhos das trilhas Appalachian (DAUT, 2023) Não Sim Rede social/Site Livro Inhong Park Coreia do Sul Arquitetura tradicional Coreana (WINGFIELD, 2023) Não Não Rede social/Site Rita Sabler EUA Santiago de Compostela (SABLER, 2023) Sim Sim Exposição e livro Redes Sociais Steen Malberg Dinamarca Sketchbook da Groenlândia (MALBERG, 2022) Sim10 Não Exposição Redes Sociais Ivan Jerônimo Brasil 60 dias dentro de casa - Um diário ilustrado do isolamento (JERÔNIMO, 2022) Não Sim Livro Redes Sociais (alguns sketches) 10 Não há informações sobre o projeto em si, mas a viagem foi paga: “Travel grant from the Illustrators' Association of 1919 (Denmark)” (MALBERG, [s.d.]) 16 TABELA 2: ARTISTAS DESTACADOS EM EDIÇÕES DA REVISTA DRAWING ATTENTION E O PROJETO CONSIDERADO (conclusão) Artista País (em que trabalha) Projeto Comissionado? Tem texto do(a) artista? Meio de publicação original Disponível também Dora Pindur e Justyna Wojnowska Polônia Seguindo os passos de Wyspiański (WINGFIELD, 2022) Não Sim Rede social/Site Gabi Campanario EUA Coluna no Seattle Times (CAMPANARIO, [s.d]) Sim Sim Jornal Site Pessoal Liz Steel Australia Fechamento de sua casa de chá favorita (STEEL, 2013) Não Sim Rede social/Site Virginia Hein EUA Passenger sketching (HEIN, 2023a)(HEIN, 2023b) Não Não11 Rede social/Site Fonte: Elaborado pelo autor. 11 Há uma descrição, mas é basicamente apenas o local, não há um informações novas. 17 TABELA 3: OBRAS RECENTES MARCADAS COMO URBAN SKETCHING OU REPORTAGE ILLUSTRATION Artista País (em que trabalha) Projeto Comissionado? Tem texto do(a) artista? Henry Murphy Inglaterra Trans Pride London 08/07/23 (MURPHY, 2023) Não Não Emanuela Mae Agrini Irlanda do Norte (Artista é italiana) “I Believe her” – Protestos sobre caso de abuso sexual (AGRINI, 2023) Não Não Jim Butler Inglaterra (nasceu na Irlanda) Cambridge Folk Fest (BUTLER, 2023) Não Não Yên Kohnert Bélgica Recepção – projeto SINGA para refugiados (KOHNERT, 2023) Não Sim, no desenho Victoria Grinberg Holanda (país atual de residencia) Cartões postais de Devon/ Cornwall (GRINBERG, 2023) Não Sim, separado Hênya Santiago Brasil Interior da Paróquia Nossa Senhora da Vitória (Urban Sketchers Salvador, 2023) Não Não Fonte: Elaborado pelo autor. 18 2 JORNALISMO VISUAL? POR QUE DESENHO? A relação direta do que Embury e Minichiello chamam de reportage illustration com o jornalismo tradicional e as comparações que podem surgir com o fotojornalismo levantam naturalmente a questão do por quê do regresso ao uso de desenhos no lugar de fotografias, os motivos apontados para isso são diversos, do ponto de vista dos fundamentos da obra, a famosa frase de Henri Cartier-Bresson “Photography is an immediate reaction, drawing a meditation.” (Cartier-Bresson, 1998, p. 45) é um dos pontos a serem levados em conta não só no aspecto da interação pessoal e imersão do artista no ambiente, mas também por esse tempo mais longo, meditativo, possibilitar o encontro com outras pessoas, George Butler, artista de reportagem especializado em zonas de guerra e desastre, é um dos que destacou esse ponto numa entrevista: “The inspiration comes from sitting down with someone I would otherwise never have met, and having a connection with them.” (WILLIAMS, 2018). Embora em um contexto diferente (se referindo ao lado pessoal e não jornalistico), o Artista Felix Scheinberger, em entrevista ao jornal O Globo, foi questionado sobre a questão fotografia x desenho e também ressaltou o ponto de simplesmente estar no lugar por mais tempo: “Com as fotos rápidas de celulares, o resultado se torna mais uma declaração de ter estado em algum lugar do que, de fato, uma interação com aquele espaço. Nesse sentido, gastar mais tempo com o desenho exercita o seu olhar, a sua percepção dos locais que você visita. Não é apenas sobre desenhar e pintar, mas também sobre sentar e tomar tempo.” (SALGADO, 2017) Nessa mesma entrevista é levantado um outro ponto relevante, ao falar sobre como a fotografia mudou nas últimas duas décadas, ele brinca: “Antigamente, se você tivesse uma foto com o monstro do Lago Ness, as pessoas acreditariam. Hoje, para quem vê, é tudo Photoshop” (SALGADO, 2017), a edição de fotos é algo que existe desde os primórdios da fotografia, mas hoje, com o acesso à ferramentas de edição não mais restrito a pessoas com conhecimento especializado na área, mas disponíveis à população em geral (e obviamente, com qualidade cada vez maior) até mesmo a partir de seus próprios celulares, além da grande quantidade de casos virais de celebridades cujas fotos foram alteradas com exagero absurdo, é verdade que há uma maior consciência sobre essas manipulações, principalmente por sua 19 contribuição à perpetuação de padrões de beleza irreais e os riscos que isso trás ao público consumidor (TAUBACH, 2016), mas é preciso ressaltar que essa possibilidade técnica e esse uso muito disseminado nas redes sociais não são motivos pelos quais no campo das imagens usadas em material jornalistico, a confiança nas imagens tenha caído significativamente, nessa área o veículo de imprensa em questão, com sua reputação pregressa, é o responsável por passar (ou tentar passar) a seus leitores a confiança de que não há monstros do Lago Ness adicionados às fotos usadas em suas matérias. A questão sobre a “verdade” nas imagens fotográficas vai além desse ponto óbvio da manipulação posterior, o fotógrafo CJ Clarke lembra que ”The role of photographer, image maker, or artist — all essentially interchangeable terms — is opaque: What they choose to frame, is dependent on the process of exclusion” e complementa com uma citação do também fotógrafo Stephen Mayes “there is a vast gulf between facts and truth, and history is strewn with factual images that have been used to tell lies.” (CLARKE, 2018), sobre a natureza subjetiva da imagem fotográfica, em outra entrevista, Nic Dunlop (fotógrafo) coloca que: “There is still the belief that a photograph ‘documents the truth’ which, on one level, is true in and of itself. But the major flaw of this his view is that it implies ‘objectivity’, as though there is some nirvana of neutrality that can be achieved.” (CLARKE, 2018, p. 159). Embora em menor grau do que na percepção das fotos de mídias sociais, onde a frequentemente visível manipulação direta deixa essa questão mais evidente, a impossibilidade de uma fotografia “neutra” ou “objetiva” na imprensa também é mais compreendida pelo público consumidor na atualidade, em especial dada a crescente insatisfação com o conteúdo criado pela grande mídia de forma geral, que vem-se observando em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, em diferentes lados do espectro político. Tendo consciência da subjetividade das formas artísticas, incluindo a fotografia, a aceitação do desenho à mão livre como forma de registro de um acontecimento acontece de forma mais natural, no caso do desenho essa subjetividade não é apenas aceita, como celebrada. Diferente da fotografia, que por sua própria excelência na fidelidade com que reproduz a imagem real, acaba se vendo no papel de provar a importância de um acontecimento e sua existência (a famosa noção do “pics or it didn’t happen” (SILVERMAN, 2015, APUD TAUBACH, 20 2016, p. 21) já presente no cotidiano popular), evidências porém, que via de regra são usadas e contextualizadas por instituições e pessoas que estão fora do controle do fotógrafo que realizou aquele registro (CLARKE, 2018, p. 158), o desenho por ser muito mais claramente manual e subjetivo, possibilita que o papel do artista como participante naquele momento retratado, alguém que vivenciou aquela experiência, tome o primeiro plano. Por outro ângulo, mas indo na mesma direção, Almrinda Lopes (2017) destaca a banalização das imagens no mundo contemporâneo como um dos fatores para a menor importância dada à forma e aos valores estéticos tradicionais, para essa pesquisa é em especial relevante a sua colocação sobre a mudança do papel assumido pelos artistas dentro desse contexto: “Posicionam-se não raramente como arqueólogos, sociólogos, antropólogos, filósofos, escritores, cientistas, ou deixam que a respectiva produção artística se contamine e se hibridize com tais saberes, afastando assim as construções visuais de sua própria especificidade, para inseri-las no espaço social. Muitos se engajam como ativistas em defesa da paz, da proteção dos animais, na luta pela alteridade e pelo respeito às diferenças minoritárias, por um mundo autossustentável ou menos poluído desigual: outros atuam em diferentes frentes ou desenvolvem ações especificas em comunidades periféricas e desassistidas pelo poder público. […] As práticas artísticas se transformaram assim em atitudes que não deixam de manter um viés romântico ou utópico, ao se instituírem como estratégias políticas de enfrentamento à precariedade, à indiferença social e às mazelas do poder.” (LOPES, 2017, p. 24). O discutido por Lopes tinha em vista a arte tradicional de galeria e a cultura dos remixes e reimaginações/ressignificações de imagens já existentes, mas se aplica perfeitamente também às obras foco dessa pesquisa, embora elas retomem a atenção aos aspectos manuais e à representação, como vimos há um grande foco no ativismo e em causas pelas quais o artista se preocupa, a impulsão (como colocado por Dewey) para a criação da obra vem de uma causa coletiva e não de uma preocupação apenas individual. Além dos trabalhos tratados aqui, esse tipo de tema tem sido tratado também em formato de quadrinhos, desde obras biográficas e autobiográficas como o clássico Maus (SPIEGELMAN, 2009) e Persépolis (SATRAPI, 2007) até obras que realmente reivindicam o estatuto jornalistico, como as de Joe Sacco (VALLE, 2010). Assim como essa tendência tem se apresentado no mundo das artes, no jornalismo o trabalho individual e de pequenos grupos, muitas vezes sem formação 21 jornalística, tem se disseminado nas últimas décadas com o advento da internet e de formas acessíveis de registro de imagens e vídeos, passando entre outras coisas por listas de e-mails, fóruns e principalmente blogs pessoais (GILLMOR, 2004, p. 27- 28), meio que foi popular nos anos 2000, mas que, em sua forma original, caiu em desuso desde então com a ascensão das redes sociais gigantes e centralizadas que apesar de decadentes ainda se mantêm altamente influentes, sobre essa queda dos blogs Salmon coloca que: “Ultimately, it was too small, too fragmented, too recondite to be able to resist the internet’s grand transition from an open, distributed network to a place dominated by winner-takes-all economics” (SALMON, 2021, p. 93). Ainda assim, apesar dos veículos de divulgação serem altamente centralizados, a produção de conteúdo por indivíduos se manteve, nos dias atuais, por exemplo, o uso de imagens gravadas por populares se tornou ocorrência comum nos veículos da grande mídia e organizações locais que divulgam informações sobre suas comunidades são uma realidade bem estabelecida. Essas transformações, além de seus aspectos muito positivos, trouxeram consigo também maiores riscos da disseminação de fake news e questões quanto à independência e qualidade do conteúdo. Mas quanto à relação dos trabalhos aqui analisados com o jornalismo, com a informação, há mais coisas que precisam consideradas, como levantado por Bondía “A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência.” (Bondía, 2002, p. 21) nesse ensaio ele lembra como Benjamin era crítico do periodismo em relação à experiência e a narração, de fato: “Se a arte da narração é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio. Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: Quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação.” (BENJAMIN, 1994, p. 203). Falando da obra de Nikolai Leskov, alvo daquele ensaio, Benjamin conclui em seguida que ao deixar o contexto psicológico da ação em aberto, o leitor “é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação” (BENJAMIN, 1994, p. 203), de modo similar, cremos que aqui o sucesso da narração se dá muito pelo foco na experiência humana e na maior abertura à interpretação que a arte apresenta em 22 oposição à frieza do fato jornalistico, embora este ainda seja uma parte constituinte da obra. Antes de terminar essa sessão, é preciso mencionar que outros motivos mais mundanos e práticos também contribuem para o desenho à mão livre poder ser a linguagem escolhida para um trabalho de reportagem, como a sobrecarga de fotografias existente nos tempos atuais, tanto na mídia quanto em redes sociais, que faz com que desenhos, uma linguagem menos usual no dia a dia de muitos, consigam capturar a atenção de leitores de modo mais fácil, além da simplificação das formas também contribuir em muitos casos para uma apreensão mais rápida (ou talvez apenas mais guiada) do que está retratado. Outros fatores ainda mais práticos também são relevantes, a artista Katie Chappell destaca em especial a enorme economia de tempo e burocracia por não precisar de um documento de autorização dos direitos de imagem das pessoas retratadas. (CHAPPELL, 2019). 3 A EXPERIÊNCIA O termo “experiência” pode trazer significados diferentes para cada pessoa e contexto, DEWEY (2010) em sua discussão sobre o que vem a ser uma experiência (no singular) coloca que: Os filósofos, inclusive os empíricos, falaram, em sua maioria, da experiência em geral. A linguagem vernácula, entretanto, refere-se a experiências, cada uma das quais é singular e tem começo e fim. […] A experiência, nesse sentido vital, define-se pelas situações e episódios a que nos referimos espontaneamente como "experiências reais" - aquelas coisas de que dizemos, ao recordá-las: "isso é que foi experiência." Pode ter sido algo de tremenda importância - uma briga com alguém que um dia foi íntimo, uma catástrofe enfim evitada por um triz. Ou pode ter sido algo que, em termos comparativos, foi insignificante - e que, talvez por sua própria insignificância, ilustra ainda melhor o que é ser uma experiência. Como aquela refeição em um restaurante parisiense da qual se diz" aquilo é que foi uma experiência". Ela se destaca como um memorial duradouro do que a comida pode ser. (DEWEY; 2019; p. 110-111) A experiência no nosso caso não envolve apenas o que está acontecendo (o que foi a razão da presença do artista e vivenciado por ele), mas também o próprio ato de se estar desenhando no local, na verdade esse chega em muitos casos a assumir o papel de destaque no urban sketching. É claro que o que foi uma 23 experiência para o artista ou o que foi algo cotidiano, incompleto, é algo que não podemos saber olhando de fora, mas isso não impede que discutamos o assunto com base nas obras, de informações sobre o contexto e pelos textos do autor quando houverem, e sobre o modo como a experiência vivida é relatada. Nesse sentido, começando agora a falar sobre as obras aqui analisadas, ao pensar o interesse de Jill Gibbon pelas feiras de armas, nos vem a mente como o ciclo que ela denuncia e a conivência do mercado e instituições com ele, além de antiético, é também essencialmente inestético em seu percurso sem fim, não de uma guerra em particular, mas da perpetuação dela pelo mundo, “Há começos e cessações, mas não inícios e conclusões autênticos. Uma coisa substitui outra, mas não a absorve nem a leva adiante.” (DEWEY, 2019; p. 116), um conflito armado termina, outro começa, mas nada muda e a agonia de estarmos presos nesse labirinto sem saída é algo que dá ainda mais combustível à indignação do público e da artista. Embora a experiência de participação em cada evento individual tenha criado, sem dúvida, lembranças marcantes, como as registradas nos desenhos e relatadas por ela em entrevistas (PIDD; 2018), a série de desenho já ter se estendido por anos e a intenção dela de não parar de registrar essas feiras, evidencia que o ciclo em si é o ponto de partida para as obras, uma origem tão inestética que talvez não fosse imaginada por Dewey. Numa análise superficial o parque dos elefantes retratado por Sue Coe poderia ser colocado nessa mesma situação, pois os maus tratos a animais são um problema cujo fim não vemos no horizonte e a artista é conhecida por seu trabalho de ativismo há décadas, mas num segundo olhar e lendo sobre como ela descreve com atenção e cuidado os momentos retratados, vemos como o foco das obras está nas experiências específicas e singulares que ela teve ao trabalhar naquele local. 24 Figura 1 - Músicos tocam, veículo de guerra em exibição ao fundo. Esses trabalhos trazem uma perspectiva nova em relação à história dos war artists do passado (área em que há certa tradição na Inglaterra), mostrando não os horrores dos conflitos diretamente, mas destacando as empresas que lucram com isso, as suas linhas delicadas e elegantes e o visual “limpo” de muitos dos desenhos contribuindo ainda mais para esse contraste com o caos e brutalidade de onde os itens ali vendidos serão usados. É também interessante que as obras de Midgley sobre treinamento médico militar e cirurgias reparadoras de pessoas feridas na guerra seguem de certo modo uma lógica muito similar quanto à preocupação com a repetição dessas tragédias visto que a motivação para a realização dessa série veio dos trabalhos que Henry Tonks havia feito na 1ª guerra mundial, cem anos antes (LIVERPOOL TV, 2015). Os pacientes, na maioria das obras vistos sozinhos ou em duplas em sua reabilitação e com um olhar perdido na distância ou voltado para si mesmo, dão um senso de lentidão do tempo e melancolia após o trabalho delicado e agitado das cirurgias, em entrevista ela comentou ter se conectado mais com os pacientes (do que com a equipe médica), algo potencializado por seus próprios filhos terem a mesma faixa etária dessas pessoas que chegam ali com lesões gravíssimas, e esse seu olhar preocupado com a condição deles pode ser visto na expressividade com que são retratados, o trabalho médico e seus treinamentos de resgate sendo atividades mostradas com um foco maior no processo, embora também seja necessário não analisar demais, parte disso é sem dúvida causado pela simples diferença na limitação de tempo ao retratar cada um desses momentos. Fonte: (GIBBON, [s.d.]) 25 Figura 2: Julia Midgley - War Art & Surgery #115 Fonte: (MIDGLEY, c2019) Figura 3: Julia Midgley - War Art & Surgery #129 Fonte: (MIDGLEY, c2019) Figura 4: Julia Midgley - War Art & Surgery #153 Fonte: (MIDGLEY, c2019) Figura 5: Julia Midgley - War Art & Surgery #099 Fonte: (MIDGLEY, c2019) Como começamos a discutir no capítulo 3, a opção pelo registro em desenho, pela natureza lenta dessa técnica, acaba por contribuir para uma maior imersão no ambiente, que vai além da simples observação direta, e inclui o convívio e conversas com as pessoas que habitam aquele local ou ambiente, a vivência no espaço e por vezes até o trajeto até lá, dessa forma é interessante notar como projetos longos e residências são frequentes, os dois projetos que acabamos de citar são um exemplo, assim como a residência no hospital de Chelsea e Westminster (REPORTAGER, c2022) que envolveu diversos artistas numa parceria entre os grupos de pesquisa em psicologia e em desenho da Universidade do Oeste da Inglaterra (UWE Bristol), a residência foi realizada: “with a specific focus on Drawing’s potential to record and translate 26 information in situations where other (digital) data recording methods are either inappropriate or ineffective, such as in describing pain or recording ‘invisible’ ailments. (EMBURY, 2021) O que supõe um trato muto próximo da experiência dolorosa dos pacientes e onde a ação imediata e precisa de câmeras seria uma invasão, é curioso notar como essa proximidade faz transparecer também pequenas coisas que não são tão invisíveis, mas que apenas se apresentam com o convívio, como o paciente, recuperando-se de um AVC, que confunde o nome da esposa atual com o de sua ex, relacionamento de mais de 20 anos antes (fig. 7). Figura 6: Olivier Kruger - Arte feita em residência num hospital. Fonte: (Reportager, c2022) BONDÍA (2002) coloca que: “A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” (BONDÍA, 2002, p. 19). 27 A posição de receptividade e abertura mencionados por ele como características do sujeito da experiência, é algo onde, de forma geral, os artistas aqui analisados tentam chegar. Mas por consequência é preciso também levantar o óbvio, de que ter uma experiência, não é algo que pode ser forçado, os trabalhos encomendados por jornais por exemplo muitas vezes seguem uma lógica editorial mais tradicional, e também é algo evidente que quando o texto é feito por outra pessoa que não o artista, mesmo que uma experiência tenha havido, a sua narrativa é perdida, como explicado por Clarke em relação à fotografia: “Traditionally, the individual practitioner does not control the means of production, for instance, the headline associated with a particular image and perhaps not even the caption. All in all, the narrative is shaped by editors far removed from the circumstances of the images making. Without specific expertise, images are often viewed through the prism of an editor’s own cultural understanding, which invariably is an extension of their publications politics.” (CLARKE, 2018, p. 158) Sejam fotografias ou desenhos, esse ponto continua sendo o mesmo, no caso das obras dessa pesquisa é muitas vezes apenas no site pessoal do artista que temos a narrativa da sua experiência, com suas próprias palavras. Como frisado por Bondía “O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna.” (2002, p. 27). Mas o fato de É interessante observar que nos encontros de Urban Sketchers, o interesse é em grande parte na convivência em si, também nas interações online, mas em especial na troca de experiências presencialmente, o ato em si de ir desenhar é o que cria a experiência vivida, mais do que um interesse em particular no que está sendo retratado, que é decidido, via de regra, pelos administradores do grupo (embora com sugestões do público geral), a interação dos demais participantes pode ser vista como algo análogo a uma caminhada com amigos no parque ou a ir em grupo no cinema assistir um filme que lhe foi recomendado e cujo pôster ou premissa você achou interessante: Enquanto desenha a pessoa aproveita o lugar, a companhia e/ou descobre os personagens do local e as histórias dali conforme faz seus próprios desenhos e vê, através das artes dos colegas, mais pontos de vista sobre essa vivência coletiva que experimentaram durante o dia (de forma análoga a ouvir a opinião dos amigos depois de uma sessão de cinema), nesse contexto, o ato de desenhar segue sendo um importante treino técnico e o fio de ligação para a 28 experiência coletiva, mas o peso que a ligação com o ambiente e que o desenho por si só tem nessa experiência é de certo modo secundário. Essa grande proeminência do aspecto coletivo tem seu lado positivo no estimulo ao contato com outros artistas, tanto pela convivência pessoal quanto pelo aprendizado técnico ao ver outras formas de representação e no treino constante do desenho, de forma menos estruturada, mas mais dinâmica e próxima do real do que sessões de modelo vivo. Isso tem seus desafios: Como é comum desde os anos iniciais do ensino regular, apresentar desenhos junto de outras pessoas, nesse caso muitas vezes profissionais com experiência no mercado de ilustração é algo desafiador e que pode afastar pessoas que não tem ainda muita intimidade com o desenho, os participantes mais experientes e administradores dos grupos tem assim a delicada responsabilidade de manter o ambiente receptivo a todos, o que se estende ao meio virtual, em que é de suma importância que a curadoria das obras que serão destacadas busque representar essa diversidade de experiências e que isso não se restrinja ao fotorrealismo (ou à artistas já reconhecidos). É algo fora do escopo dessa pesquisa, mas uma análise sobre o desempenho dos vários grupos regionais nessa tarefa de facilitar a integração entre os diversos públicos, e um censo do perfil (profissional e socioeconômico) de participantes seria algo de grande valor. Ironicamente, o trabalho individual de urban sketching é onde talvez hajam os relatos de maior qualidade, porque é quando o artista tem realmente um interesse em particular no que está retratando, como lembrado por Dewey: “Referindo-se a produção da poesia, Samuel Alexander observou que “a obra do artista não provém de uma experiência imaginária acabada, à qual a obra de arte corresponde, mas da empolgação passional com o tema. […] O poema do poeta é espremido dele pelo tema que o arrebata”.” (DEWEY, 2019; p. 152) Nesses trabalhos é onde se encontram as obras de maior cuidado narrativo (que lembramos, faz parte do próprio manifesto dos urban sketchers). Com exceção de dois (o das Polonesas Dora Pindur e Justyna Wojnowska e o de Rita Sabler e Miguelanxo Prado), os projetos de Urban Sketchers analisados aqui foram todos produzidos por artistas que trabalharam individualmente. 29 3.1 Uma crônica visual A proximidade de muitas das obras aqui analisadas com a crônica é algo que foi notado por José Spaniol, o orientador desse trabalho já em nossa primeira reunião, é relevante trazer aqui algumas características desse gênero, segundo DIANA, são: ▪ narrativa curta; ▪ uso de uma linguagem simples e coloquial; ▪ presença de poucos personagens, se houver; ▪ espaço reduzido; ▪ temas relacionados a acontecimentos cotidianos (DIANA, s.d.) NERY, em um artigo introdutório sobre esse gênero, destacou que: O leitor pressuposto da crônica é urbano e, em princípio, um leitor de jornal ou de revista. A preocupação com esse leitor é que faz com que, dentre os assuntos tratados, o cronista dê maior atenção aos problemas do modo de vida urbano (NERY, s.d.) O que coincide também com o principal interesse dos Urban Sketchers por exemplo. NERY destaca também a “mistura de jornalismo e literatura” presentes na crônica, e explica que “A crônica se diferencia no jornal por não buscar exatidão da informação. Diferente da notícia, que procura relatar os fatos que acontecem, a crônica os analisa” (NERY, s.d.), o que lembra muito o que é feito nos trabalhos chamados de reportage illustration. Com isso vemos que a questão vai além de algo que seja uma crônica com ilustrações, mesmo os trabalhos apenas visuais também seguem, à sua maneira, essas mesmas características da crônica literária/jornalistica, por analogia podemos até mesmo ver o desenho e a pintura aquarela como a “linguagem simples e coloquial” no âmbito das artes visuais, em oposição à pintura a óleo ou acrílica por exemplo, que usualmente requerem condições mais controladas de trabalho. Da mesma forma, a natureza imediata da crônica, o relato de algo específico no tempo, e que às vezes por isso tem um “prazo de validade” quanto a sua relevância imediata, também é replicado nesse meio do mesmo modo, com a retratação e comentários sobre encontros e eventos muito específicos no tempo e a publicação desses em redes como o Instagram, que não 30 favorecem a pesquisa do que foi feito anteriormente, assim como a publicação de uma crônica em um jornal ou mesmo na televisão também era algo em geral passageiro. Com essas similaridades, não é surpresa que esse ponto seja algo também percebido pelos artistas: No encontro de 2023 dos Urban Sketchers do Brasil em Itu, o artista Flávio Ricardo ministrou uma oficina chamada “Crônicas Ilustradas” e em seu site, Jedidiah Dore introduziu seu livro sobre Nova Iorque como “A new hardcover book featuring from over a decade of chronicling in New York City's 5 boroughs with reportage/location drawings”, a coluna de Campanario no Seattle Times era também um exemplo perfeito de crônica e possivelmente seria chamada assim se não houvessem ilustrações, o texto de chamada na coluna era, muito apropriadamente, “Gabriel Campanario illustrates life in the Puget Sound12 region”. Um ponto que não deve ser subestimado aliás, é a habilidade literária necessária nas obras que combinam texto e imagem, mesmo que sejam relatos breves como nesse caso, Campanario é jornalista por profissão e seu domínio da linguagem da crônica contribui imensamente para a imersão nas imagens produzidas por ele. As características do desenho de observação direta feito em campo, tendem tão naturalmente à crônica que provavelmente os próprios autores não se dão conta do quanto seus trabalhos se aproximam desse gênero, o trabalho de Victoria Grinberg por exemplo (GRINBERG, 2023) tem muitas dessas características mas, ao sair para desenhar e criar sua série de cartões postais, ou mesmo ao parar para escrever esse pequeno relato sobre o passeio, é improvável que tenha conscientemente pensando nisso (fig. 9-12, são uma sequência). 12 “Sound” significa aqui “estuário”, “estreito” ou “enseada”, o nome do local é comumente traduzido como “Estuário de Puget”. 31 Figura 7: Dr. Victoria Grinberg - Red Cosmos Fonte: Grinberg (2023). Figura 8: Dr. Victoria Grinberg - Appledore Fonte: Grinberg (2023). Figura 9: Dr. Victoria Grinberg - St. Ives. Fonte: Grinberg (2023). Figura 10: Dr. Victoria Grinberg - Clovelly Fonte: Grinberg (2023). 32 3.2 Modelos de negócio Nos trabalhos comissionados, o fator monetário já está claro, o que abordaremos nessa sessão serão os projetos independentes e outras atividades relacionadas realizadas pelos artistas que tenham relação com as práticas em questão, por mais que nossa atenção esteja voltada à arte em si, a introdução que estamos fazendo sobre esses desenvolvimentos contemporâneos seria de pouco valor se não discutíssemos também as formas e modelos de negócio com os quais esses artistas usam seu trabalho para se manterem financeiramente, em especial considerando que são essencialmente artes aplicadas, com suas particularidades e um ciclo diferente da arte feita para galerias. Essa questão também se apresenta de forma mais proeminente porque há muito conteúdo postado publicamente em blogs e redes sociais e as artes são, via de regra, realmente feitas para serem vistas virtualmente ou em reproduções e não no original, como mencionado ao fim do capítulo 2.3, a reprodução é algo abraçado por esses artistas o que faz com que a postagem dos desenhos tenha ainda mais significância. Quando o foco da produção culminará eventualmente na exibição do objeto físico, a publicação de reproduções tem menos impacto, pois o apego é à “aura” da obra, algo que não está presente nas reproduções (BENJAMIN, 2012). Quanto aos trabalhos em si, há diversos artistas que conseguem a publicação posterior de séries de desenhos em formato de livro, como Jedidiah Dore (OVER + UNDER + THROUGH + NYC5 Boroughs de 2018), Ivan Jerônimo (60 dias dentro de casa - Um diário ilustrado do isolamento, publicado em 2021), Carolyn Daut (Paint, Sweat and Tears - 150 Days On The Appalachian Trail, 2023) e Rita Sabler e Miguelanxo Prado (Camiñamos para Parar, 2022), é algo frequente o suficiente que uma extensa matéria sobre a publicação de livros de sketches sobre cidades chegou a ser publicada pelo Urban Sketchers (Drawing Attention de Junho de 2022, p. 39). Além das obras, nas comunidades de urban sketching uma forma muito vista de monetização da experiência do artista é a atuação como instrutores em cursos e a realização de oficinas, algo que aproveita a própria natureza coletiva desse meio, onde os artistas, com sua participação, podem desenvolver uma relação de confiança com o grupo, entre as atividades dessas comunidades são realizados com regularidade também simpósios e encontros regionais, onde oficinas pagas são permitidas, é importante lembrar que os encontros regulares para desenho não 33 podem cobrar por participação, uma determinação da organização central “urban sketchers”, à qual todos os grupos regionais oficiais fazem parte, a promoção pessoal nos grupos também não é permitida. Quanto a isso, a organização Urban Sketchers atua como um veículo de promoção dos artistas que são selecionados e mencionados por eles em seu site, na publicação Drawing Attention, usada como referência nessa pesquisa e em outros locais. Essa promoção e parceria também ocorre em seus simpósios, onde há uma grande quantidade de oficinas e demonstrações (vinte oficinas e vinte duas exibições de demonstração na edição 2023, em um evento de três dias), os simpósios porém, são eventos extremamente caros e assim muito restritivos, na edição de 2023 em Auckland (Nova Zelândia) os ingressos mais baratos eram 260 USD e o acesso a todos os eventos 450 USD (CHIE, 2023) (DAWSON, 2023). Combinando esses dois modelos de negócio, a venda de livros sobre a prática de urban sketching é outra atividade recorrente, a série The Urban Sketching Handbook, iniciada por Campanario, tem atualmente 16 livros feitos por 10 artistas diferentes, e há uma grande quantidade de outras publicações do tipo, de forma mais profissional, mas similar a como, no Brasil, foram populares há uma década os manuais de desenho vendidos em bancas de jornal. Diferente desses manuais, que continham instruções passo a passo sobre como criar os esboços e estruturar o objeto alvo da publicação (p. ex. figura humana, casarios, animais, etc.), a fórmula usada na maioria das publicações sobre urban sketching é a de fazer uma separação temática (similar à dos manuais) e usar muitos desenhos de exemplo, tanto do autor como de artistas diversos para discutir diferentes formas de abordar aquele assunto, mas sem entrar na lógica do “passo a passo”; por ser uma prática que envolve o trabalho na rua, há também um espaço muito maior dedicado a materiais (pelas restrições que o uso em campo impõe e questões de transporte) e em sugestões e conselhos sobre como trabalhar na cidade (escolha de tema, relação com o local e transeuntes, etc.). A verificação disto é algo além do escopo desse texto, mas a quantidade de livros sobre o tópico e a prevalência de um estilo de arte similar entre eles (reflexo também dessa ocorrência nas mídias sociais, num processo que se retroalimenta), talvez tenha contribuído negativamente para a diversidade de estilos de desenho que vemos serem produzidos, há uma uniformidade que, como artista, é triste de ver, como se fossem uma série de 34 releituras, no sentido mais simplório da palavra, de artistas já famosos no meio. A parceria com marcas e lojas de material artístico é outra forma de monetização largamente usada tanto pela organização Urban Sketchers, por grupos regionais ou mesmo artistas individuais, o simpósio internacional de 2023 foi patrocinado pelas marcas Strathmore, Leuchtturm1917 (sketchbooks), Hahnemühle, Jacques Herbin (tintas e penas caligráficas), Stillman & Birn (sketchbooks), Royal Talens, Blockx (tintas), General Pencil, Claire Fontaine, Da Vinci (pincéis), Kremer Pigmente, QoR Watercolor, editora Quarto Books US (que publicou alguns manuais da Urban Sketchers) e pelo café local The Terrace Café. Outro exemplo é a artista Inhong Park, muito envolvida em Urban Sketching, que é embaixadora global da Stillman & Birn e em suas redes fez alguns posts em colaboração com a marca que destacam a criação de desenhos usando os sketchbooks deles, uma promoção prática ao invés de apenas um endosso publicitário tradicional. 3.3 A adaptabilidade à realidade brasileira Apesar de quase todos os artistas abordados nesse trabalho serem estrangeiros, a grande maioria europeus, essas práticas tem se tornado comuns no Brasil, em especial o urban sketching, no país existem 34 grupos oficiais e são organizados encontros nacionais anualmente, como vimos na sessão 2.2 até mesmo o primeiro sketchcrawl, algo que foi de conhecimento de um nicho muito pequeno, contou com a presença de um brasileiro, indicando o interesse por esse tipo de prática por aqui. Pelo lado da reportagem, vemos também um interesse no desenho como ferramenta narrativa, mas embora com design mais moderno e integrado aos conteúdos, em linhas gerais esses trabalhos ainda seguem a lógica tradicional da ilustração editorial, podemos citar aqui BARBOSA; MACEDO; CUNHA (2018) e BIMBATI; BRITO (2022). Nesse mesmo caminho, o uso da linguagem dos quadrinhos, incluindo a sua adaptação ao meio digital de forma natural, sem se prender às limitações do ambiente físico, possibilidade há muito discutida (McCloud, 2006), também é bem explorada em obras como DECLERCQ; DIAS; ROSA (2020), onde a combinação entre texto editorial e narrativa gráfica é bastante única (na verdade parece ser usual no esquema de produção específico do jornal UOL, que é 35 talvez o veículo que mais faz uso de desenho como narrativa no momento da escrita dessa pesquisa), gera por um lado uma imersão muito maior do que seria apenas usando-se texto, embora por outro pareça fragmentada, mas a exploração nele das possibilidades do meio digital é algo muito positivo e que cria soluções muito interessantes, como o aproveitamento da possibilidade de sobreposição das imagens ao invés da justaposição, algo intrínseco à própria definição de quadrinhos. (McCloud, 2004). Essa sofisticação técnica e elegância na apresentação gráfica, muito maior do que a presente nos veículos de imprensa e sites estrangeiros vistos nas outras obras citadas nessa pesquisa, não vem acompanhada, porém, da mesma liberdade quanto a expressão de suas visões pessoais e preocupações que muitos artistas aqui discutidos tem (mas artes como as de Bo Soremsky, por exemplo, são usadas de forma similar, trazem uma sofisticação visual ao resultado final, mas a voz do artista se perde por trás do fato jornalistico e texto editorial), naquelas obras a figura do jornalista/investigador é, em geral, a mesma do artista/ilustrador e mesmo nos trabalhos comissionados, o artista trabalha em campo com mais autonomia e a integridade de seus desenhos e relatos é conservada, e mesmo quando integrados a textos de outros, por vezes há um maior respeito à preservação do relato de experiência do artista, um exemplo é a apresentação do trabalho de Olivier Kugler [s.d.] em matéria do The Guardian (HENLEY, 2012), onde as duas vozes, a de Henley com a notícia, e a de Kugler contando sua experiência no local e processo de trabalho, são mantidas e permanecem individualizadas13. Isso pode soar como um ode ao individualismo em detrimento do trabalho em grupo, mas a questão é mais ligada à diferença entre as duas linguagens e no peso com que cada uma é vista nesse ambiente editorial, onde a arte gráfica muitas vezes acaba assumindo um papel de submissão em relação à palavra escrita, um exemplo disso é que em BIMBATI; BRITO (2022), o nome do ilustrador (Marcos de Lima) é citado apenas ao fim da matéria, na penúltima linha de créditos. Apesar de ocupar esse espaço tão pequeno no conjunto teórico desse texto (mas sendo extensivamente demonstrado no relato de experiência à seguir, no capítulo 5), é nosso argumento aqui que levando-se em conta os aspectos práticos 13 Embora, e isso é um ponto interessante, no trabalho de Kugler seja literalmente impossível a remoção de seu relato textual do trabalho visual, visto que são integrados em uma só imagem. 36 da realidade nacional, o desenho como forma de relato sobre o cotidiano, seus momentos alegres ou seus problemas, pode ser ainda mais rico na diversidade de narrativas e útil como ferramenta de comunicação e denúncia do que o é para artistas Ingleses por exemplo, com a enorme desigualdade social vista em nosso país, um meio extremamente acessível como esse tem grande valor prático, permite que uma gama muito maior de pontos de vista sejam ouvidos e o custo muito baixo faz com que seu uso seja possível em campo onde na maioria dos casos o artista/investigador temeria pela própria segurança se usasse uma câmera ou mesmo celular, em outros países não é incomum vermos artistas, por exemplo Tim Vyner (VYNER, 2012), usarem tablets para a criação de suas obras em campo, mas em quais cidades brasileiras alguém se sentiria seguro em sentar numa calçada ou em um ponto de ônibus e desenhar em um iPad? Com certeza não muitas e esses aspectos não podem ser simplesmente ignorados. Na verdade, creio que nós, por nossa trajetória histórica, que nos deixa mais alertas e tendo uma maior compreensão dos problemas gerados pela verticalização do poder e dos riscos de contribuir para um aumento da desigualdade de condições, poderíamos gerar estruturas melhores do que a do próprio Urban Sketchers, com sua hierarquia centralizada numa entidade única e simpósios excludentes, aos quais apenas uma pequena faixa social pode ter acesso. O registro em desenho também trás mais liberdade de ação no relato de conflitos e situações problemáticas, pois como comentado por Mario Minichiello ao falar, de forma honesta e bem-humorada, sobre seu próprio trabalho em áreas “difíceis” como o parlamento ou tribunais: “It’s difficult to be offended by a large gentleman with a crayon, you look vaguely stupid. And the results are, that when you do go into some of these areas, the children come, sit next to you and they start drawing with you, which kind of diffuses the impact of it” (RORKE, 2018) O ato de desenhar, de forma geral, não é visto como uma ameaça como muitas vezes a câmera o é, e o artista pode usar esse fato em seu favor ao relatar os conflitos ou histórias de suas localidades. Por fim, a própria característica social dessas práticas também encontra solo fértil em nosso país, a imersão tão discutida nesse texto é facilitada pelo povo mais receptivo, o que é potencializado ainda mais pelo ato de desenhar, que abre portas 37 para a conversa e a descoberta. Assim como a residência no hospital de Chelsea e Westminster citado anteriormente, que tinha a intenção de ajudar a identificar as coisas que eram “invisíveis”, o trabalho de artistas individuais ou de grupo dentro de seus bairros e de suas comunidades pode trazer à tona histórias que também eram invisíveis aos olhos dos jornalistas da cidade grande ou às lentes apressadas das câmeras. 38 4 EXPERIMENTAÇÕES PRÁTICAS Nesse capítulo serão abordadas as minhas praticas artísticas relacionadas aos movimentos abordados nos capítulos anteriores, o meu interesse atual no desenho de observação começou a se desenvolver no início do curso de artes visuais no IA Unesp quando, nas aulas de desenho do professor José Spaniol (que gentilmente aceitou orientar esse trabalho), nos foi introduzido o desenho de observação sem borracha, um exercício que até então eu não havia experimentado, eu era, na verdade, muito viciado em apagar e esse semestre inicial de desenhos transformou tanto minha prática artística que atualmente eu raramente uso a borracha. Nessas aulas desenhávamos diversos pontos do instituto de artes e também uns aos outros, os esboços podiam ser feitos com lápis coloridos, como é o comum ao se realizar esse exercício, cujos objetivo é ganhar confiança nas próprias linhas e notar o lado prático de poder usar os traços “errados” como referência para continuar o desenho. Figura 11: Primeiro desenho feito na aula. Fonte: Do autor. Figura 12: Desenho onde o esboça azul é visível. Eu pessoalmente não costumo me sentir à vontade em situações sociais (em eventos ou até mesmo ficar muito tempo em locais públicos), mas ao mesmo tempo Fonte: Do autor. 39 tenho bastante curiosidade em saber o que acontece pelo Instituto e outros lugares que frequento, com isso o desenho começou a se tornar uma forma interessante de deixar mais relaxante passar tempo ao ar livre, ele serve de distração e pratica que eu precisaria de qualquer forma, e é um “pretexto” para que eu saia de casa que eu simplesmente não teria de outra forma. Assim esse exercício foi se tornando mais e mais frequente para mim, até se tornar minha principal prática artística. Figura 13: Circo escola de Franco da Rocha (ao fundo). Parque municipal Benedito Bueno de Morais. Fonte: O autor. 4.1 Residência artística “Organicidades” Em 2019 tive a oportunidade de participar da residência artística “Organicidades” na cidade onde moro, Franco da Rocha, e esse foi um momento importante nesse treino do desenho de observação por gerar a necessidade de criar obras finalizadas, que outras pessoas iriam ver, nesse momento eu não estava publicando meus desenhos nem ao menos online, então não havia nenhum tipo de pressão em apresentar os desenhos a outras pessoas, exceto nas próprias aulas da faculdade. A residência foi idealizada por 3 artistas que haviam trabalhado juntos numa residência anterior, a “Soy Loco por ti Juqueri”, realizada no antigo complexo hospitalar do Juqueri, e que é uma tradição local, junto deles, foram selecionados 3 40 artistas moradores de Franco da Rocha. A residência tinha sua localização principal na casa de cultura Marielle Franco em Franco da Rocha e a cidade em si era também o seu tema, realizamos também duas caminhadas conjuntas, e o trabalho que produzi consistiu em uma série de desenhos de observação cobrindo quase todo o caminho que eu faço de casa até o centro da cidade, um trajeto que precisei realizar para quase tudo que fiz (entre estudo, trabalho e diversão) por toda a vida, já que no bairro há basicamente apenas residências. Além desses desenhos, alguns outros pontos da cidade foram retratados também. Naquele momento eu já estava acostumado a desenhar de observação, mas mesmo assim ainda me surpreendi muito com a quantidade de elementos do ambiente que eu, justamente pela familiaridade com aqueles locais, não havia percebido antes, incluindo coisas extremamente “óbvias”, como o ângulo agudo da curva na figura 16, ou o quase abismo existente na rua transversal da figura 16, quase uma descida e subida de montanha-russa (com esse ponto eu até já me admirava antes, mas não estava acostumado a ver isso do lado oposto da rua, de onde eu fiz o desenho sentado em um ponto de ônibus, onde o ângulo se torna ainda mais extremo). Figura 14: Fim da Rua Amador Bueno, onde moro, e início da Av. Pref. Ângelo Celeguim, trecho de estrada sem construções em nenhum dos lados. Fonte: O autor. 41 Figura 15: EMEB Nilza Dias Mathias, onde estudei. Fonte: O autor. Figura 16: Rua transversal ligando a rua São Benedito ao Jardim Cruzeiro. Desenho feito sentado no ponto de ônibus em frente à EMEB da Figura 7. Figura 17: Subida da rua São Benedito, logo acima do centro da cidade. Fonte: O autor.Fonte: O autor. 42 4.2 Encontro USk SP Não me recordo exatamente qual foi meu primeiro contato com o movimento Urban Sketchers, mas em Julho de 2019 li Urban Sketching: Guia completo de técnicas de desenho urbano (THORSPECKEN; 2014) e portanto já tinha conhecimento dele, em outubro daquele mês participei pela primeira vez de um encontro do USk São Paulo e essa experiência teve dois lados muito contrastantes. O evento foi realizado no Minhocão num domingo, dia em que ele é aberto ao público como um parque, o ponto de encontro era no elevado, em frente à igreja da Santa Cecília, onde há uma alça de acesso. Ao chegar não havia ainda muita gente, andei um pouco de um lado a outro e foi um pouco complicado saber exatamente quem estava lá para desenhar, visto que eu não conhecia ninguém ainda (o que foi muito por causa desse meu primeiro contato ter sido num evento em um ambiente aberto e muito amplo), mas durante todo o dia não senti muito uma sensação de grupo, pois as interações foram apenas muito brevemente no início e apenas um pouco maior no final, no momento em que se reúnem os desenhos para apreciação de todos e feitas algumas fotos registrando o encontro, preciso reforçar porém que os participantes regulares foram muito gentis e educados, as pequenas interações com as pessoas que passaram foram mito positivas, lembro em particular de uma moça que fazia caminhada e comentou que estudou arquitetura e durante o curso os alunos também tinham de fazer desenhos em locação de uma forma muito similar. Mas creio que o principal ponto que não me permitiu me sentir realmente à vontade foi a falta de uma maior gama social no grupo, que aparentemente é constituído de pessoas de classe média, pequenas coisas como menções a viagens, uso de materiais importados e coisas nesse sentido, além de uma baixa representatividade racial tornam o ambiente desconfortável para alguém como eu que tive uma experiência de vida e continuo vivendo numa realidade muito distante da dessa classe social. 43 Figura 18: Minhocão, que vira parque aos fins de semana. Figura 19: Torre da igreja da Santa Cecília vista do minhocão. Fonte: O autor. 4.3 Redepartamentalização Em contraste com essa experiência, nessa mesma época houveram os protestos contra a redepartamentalização no IA Unesp, no meu tempo no instituto esse foi o momento em que os alunos estiveram mais mobilizados e unidos, até pelo absurdo da situação e a precariedade que a falta de professores ocasionava (e que ainda está presente), houveram várias atividades de ocupação artística no IA, com participação de um número razoável de pessoas, o que não é algo fácil de conseguir e além do ato onde houve uma caminhada do IA até a reitoria e que contou com uma quantidade muito grande de pessoas, houveram ao menos dois outros, em um deles eu fiz alguns desenhos de observação. Lembro de ter ido em uma assembleia onde haviam poucas pessoas (se não me engano havia chovido forte), nessa reunião foram cogitadas algumas atividades artísticas a serem propostas para os próximos atos e fiz a sugestão que ficou no dia nomeada de “desenho ao vivo”, após um momento inicial de pouca participação de estudantes de artes visuais, foram feitas reuniões com todos os estudantes do curso e uma maior mobilização teve Fonte: O autor. 44 início com atividades dentro do IA e também participação desenhando em um ato em frente a reitoria, foi curioso que eu mesmo estava com muita timidez em desenhar em público nesse dia, alguns colegas fizeram um trabalho artístico e performático muito melhor desenhando e escrevendo em folhas fixadas com fita numa parede, eu desenhei com uma prancheta e de forma bem discreta, de modo que só depois do evento as artes foram vistas, a figura 22 foi feita numa folha A3 e as demais em A4 e bem pequenas no papel. Figura 20: Concentração. Aluno com nariz de palhaço ao centro. Fonte: O autor. Figura 21: Concentração - Produção de cartazes. Fonte: O autor. Figura 22: Arte no ato - Jogos teatrais (ao fundo) e música. Fonte: O autor. 45 Figura 23: Atividades diversas. Fonte: O autor. Um dos pontos fundamentais do desenho é a arte da seleção do que é ou não essencial para o que se está tentando representar, a figura 22, apesar de ser o desenho com mais detalhes, é o que menos tem a dizer quanto ao que estava ocorrendo, já nos seguintes, com muito menos linhas, creio que consegui capturar melhor um pouco da essência do evento, que foi basicamente uma feira ou aula de artes ao ar livre e uma demonstração da potência dessas linguagens. Ter participado dessa mobilização fazendo esses desenhos foi algo revelador, eu não sou habilidoso com a palavra falada e tenho problemas para me expor em diversas situações, mas com o desenho eu pude contribuir, mesmo que um pouco, para essa causa. 46 4.4 Rede Unespiano Em dezembro de 2021, devido a indisponibilidade da aluna bolsista de artes visuais que trabalhava no programa de extensão Rede UnesPiano (que eu ainda não conhecia), fui convidado a substituí-la e registrar em fotos e vídeo o encerramento do ciclo 2021 do programa, o evento foi realizado na sala dos relógios do Complexo Fepasa em Jundiaí, mesmo eu não sabendo exatamente como seria, as condições de um evento como esse pareciam ideias para que eu pudesse dar início à prática de desenho de eventos, um desafio pelo qual eu já estava muito interessado. Conversei com a professora coordenadora da Rede UnesPiano, a Profª Drª Anna Cláudia Agazzi e desde esse início até hoje ela deu muita liberdade para que eu pudesse fazer os registros também em desenhos, nesse aspecto aliás, os registros à mão livre ficaram muito melhores do que os fotográficos e de vídeo, que sendo totalmente honesto tiveram resultados desastrosos, o solicitado foi que se realizasse uma transmissão ao vivo, mas tínhamos muito pouco tempo para aprender e testar as possibilidades de realização, além de não termos equipamento, o que nos forçou a usar um celular até mesmo para a gravação do vídeo, que ficou com um som extremamente ruim, com cliques talvez gerados por interferência com algum equipamento, mas que até hoje não entendo porque surgiram). De qualquer modo os registros foram feitos e foi uma ótima experiência de aprendizado, no ano seguinte, acabei por ingressar no programa como bolsista. Como nesse primeiro evento e até hoje, o registro audiovisual não tem sido algo fácil, os equipamentos não são os ideias, em geral não há tempo algum de preparação no local onde irão tocar, etc. E isso torna um desafio encaixar a criação de registros em desenho nesse trabalho, onde o audiovisual é prioridade. Nesse primeiro evento tivemos tempo de preparação, cheguei entre 1 e 2 horas antes do início marcado para organizar as coisas junto ao pianista Vinícius Durães, como cheguei primeiro andei pelo ambiente, onde há vários espaços diferentes, nesse momento não sabia exatamente onde seria feito o recital, suspeitando que seria num palco por onde passei, um espaço bem aberto e com cadeiras de plástico, iniciei um desenho, mas logo depois, com a chegada de Vinícius, vi que estava no lugar errado, ele mostrou a sala correta e por um bom período ficamos organizando as cadeiras, posição do piano e painéis de isolamento acústico, testando a gravação quanto à vídeo e som e quando ficamos satisfeitos, como ainda não haviam chego 47 os outros pianistas, aproveitei para sair e desenhar a parte externa do local. Figura 24: Complexo Fepasa. Fonte: O autor. Figura 25: Pianista Lorraine experimentando o piano. Fonte: O autor. Figura 26: Pianista Fernando Biral experimentando o piano. Fonte: O autor. 48 Com a chegada dos pianistas fiz mais 2 desenhos do momento em que estavam experimentando o piano, antes do concerto em si ter início, é possível perceber que foram feitos nesta hora pelas cadeiras que ainda estavam vazias, principalmente na figura 27, o que não é algo muito bom para o registro do evento em si, já que não é tão representativo do que o público em si experienciou, mas era o momento livre disponível, durante o concerto eu estava monitorando a transmissão e também tirando algumas fotos. Em 2022, durante minha primeira viagem à Botucatu agora como bolsista do projeto, por não ter tido sucesso na requisição do empréstimo de uma câmera junto ao STAEPE do IA UNESP14, a profª Anna me deu liberdade para dar prioridade ao desenho. Nessa viagem foram realizadas duas apresentações, uma na escola de música Artistas S/A e outra na EMEFI Professora Maria Jacomino Vendito, com a qual temos uma parceria e onde realizamos um Recital-Aula15 por mês, nessa ocasião seria realizado evento de inauguração do piano, que foi adquirido pela prefeitura de Botucatu especialmente para a realização do projeto. Como é de se imaginar, eventos de música em que são usados instrumentos como o piano, que não permite movimentação durante a performance, são relativamente fáceis de se registrar em desenho, somando-se ao ambiente calmo e com lugares para se sentar, esse é o tipo de evento ideal para o treino dessa prática. Na escola de música os registros puderam ser feitos de modo confortável, quando chegamos no salão preparei o celular num tripé para gravação em vídeo e logo fiquei livre para me sentar nas cadeiras mais ao fundo, atrás do público, para desenhar. (figuras 29 a 32). Uma dificuldade que tenho até hoje é em registrar a fisionomia das pessoas de forma ao menos minimamente reconhecível, o que não é necessário para se ter noção de como foi o evento, mas nesses casos, quando os participantes verão os desenhos, é algo muito desejável. 14 E também por estarmos nos ajustando à rotina ainda, em algumas das viagens seguintes eu fotografei com a câmera do meu próprio celular, por exemplo. 15 Os Recitais-Aula são aulas de música em que os pianistas introduzem alguns temas, tocam para os alunos peças que tenham relação com esses temas e fazem perguntas sobre o que foi tocado para treinar o entendimento dos conceitos abordados. As turmas se alternam ao longo do dia como nas aulas regulares, entramos às 08:00 e saímos por volta das 17:00. Pela questão do tempo de aula, por vezes o repertório também é um pouco diferente entre turmas. 49 Figura 27: Masterclass na Artistas S/A. Figura 28: Masterclass. Piano à 4 mãos. Fonte: O autor. Figura 29: Masterclass. Anna Agazzi dádicas à jovem pianista. Fonte: O autor. Figura 30: Masterclass. Apresentação deJúlia Utikava. Fonte: O autor. Na verdade, nesse dia eu já havia feito outros desenhos antes da partida de São Paulo, inicialmente o ponto de encontro seria a pequena praça mais à frente do Instituto de Artes, fiquei sentado algum tempo lá e vendo as pessoas que passavam, alguns moradores de rua vivem no local e um ou dois estavam por lá, mais ao fundo dessa praça há barracas montadas, um senhor por volta de 50 anos parou com sua Fonte: O autor. 50 bicicleta, tinha um olhar bem cansado e ficou parado por alguns minutos antes de seguir seu caminho (Figura 33), também houve algo muito curioso, depois de todo esse tempo não lembro com clareza, mas uma mulher (creio que de uns 30 anos, roupas bem alinhadas) pareceu se abaixar e esconder atrás de um arbusto enquanto um homem, se lembro bem, com uma criança, passava. Figura 31: Senhor descansando com sua bicicleta. Figura 32: Esperando a van. Pianistas Júlia e Gilberto. Quando voltei ao IA Unesp, logo no portão vi pela primeira vez os pianistas Gilberto Peixoto e Júlia Utikava que chegavam exatamente ao mesmo tempo que eu, nós ficamos um tempo esperando na cantina, onde desenhei os dois (Figura 34). Nesse momento creio que Vinícius Durães havia chegado também. No dia seguinte à viagem e ao evento na Artistas S/A, os pianistas participaram do evento de inauguração do piano, nele houveram falas das autoridades do município presentes, da coordenação da escola e apresentações artísticas dos alunos e dos pianistas da Rede UnesPiano, eu sentei junto ao público, na primeira fileira, ao lado dos pianistas e pude desenhar esse evento também, as artes foram feitas em papel A3. Fonte: O autor O autor 51 Figura 33: Ensaio do pianista Gilberto com uma aluna do 8º ano que recitaria "a tristeza do Jeca". Figura 34: Alunas recitando a Tristeza do Jeca. Figura 35: Autoridades presentes (desenho inacabado). Fonte: O autor. Fonte: O autor. Fonte: O autor. 52 Depois desse momento mais solene, na parte da tarde foram realizados Recitais-Aula para algumas turmas, sentei no fundo, atrás dos alunos, para desenhar o que acontecia, como era uma cena ampla, cheia de detalhes, e eu estava desenhando com uma caneta para CD genérica, com a ponta grossa, trabalhei em papel A3. Já nesse dia, o meu trabalho desenhando foi algo que distraiu um pouco as crianças que estavam por perto, esse não foi um problema no dia, mas é algo que depois se mostrou insustentável. Figura 36: Recital-Aula. Visão geral do salão. Pianista Gilberto falando. Fonte: O autor. Figura 37: Recital-Aula. Pianista Lorraine dando aula. Fonte: O autor. 53 Figura 38: Recital-Aula - Pianista Lorraine ministrando a aula. Fonte: O autor. Apesar de raramente conversar pessoalmente ou por voz com quem quer que seja, eu pessoalmente gosto de escrever e tendo em vista que os eventos da Rede UnesPiano tem uma dinâmica bastante única e que não é tão clara para o público geral, minha intenção sempre foi fazer um texto relativamente detalhado sobre como foram esses dois dias, trazendo também algo dos bastidores dessa experiência, mas depois da viagem, no momento de postar os desenhos, percebi que comentar sobre o evento seria muito mais complicado do que eu imaginava, em parte pelo aspecto do quê escrever em si, mas também pelo aspecto prático da ferramenta usada ser extremamente limitada, naquele momento a Rede UnesPiano fazia uso apenas do Instagram, o que pode parecer uma reclamação estranha tendo em vista o extensivo uso dessa plataforma na publicação inicial dos trabalhos de quase todos os artistas vistos nessa pesquisa, mas ela não é nada adequada à textos longos, por não ter opções de formatação ou de alternância entre texto e imagem, e como os interessados no programa Rede UnesPiano o seguem obviamente por interesse em música e não em artes visuais, não me senti confortável em dividir o relato por múltiplos posts. Com isso muitas coisas ficaram de fora do texto publicado, como toda a aventura na praça ainda em São Paulo, pois mesmo que interessante, não tinha relação direta com os eventos, o número limitado de caracteres fez também com 54 que o texto ficasse excessivamente descritivo, o que na verdade é uma tendência que observei em meus textos de modo geral, esse não foi nem de longe um bom exemplo de trabalho que integre texto e imagem, mas um ponto interessantíssimo de praticas que o fazem é a tentativa de manter um equilíbrio entre os dois, um grande desafio e que não se refere apenas à qualidade, mas também ao tom do que é produzido em cada uma das linguagens, sendo fundamental considerar como a leitura do texto afeta a interpretação das imagens e as imagens afetam a leitura do texto. De 16 a 18 de maio de 2022 os pianistas realizaram no teatro de música do IA Unesp gravações para o programa Encontros Musicais da TV Unesp, esse foi o primeiro evento em que tive bastante dificuldade para conseguir produzir algo, considero que isso se deveu a três fatores, 1) O teatro estava fechado e o silêncio era absoluto, então estava muito preocupado mesmo com os mínimos ruídos produzidos pela caneta no papel ou no manuseio dela; 2) Nas performances pianísticas em si, visualmente havia muito pouca informação para registrar, no fundo os painéis acústicos eram a única coisa visível e sua estrutura geométrica muito regular demanda muito tempo para se registrar e de todo modo não é algo que cative a atenção; 3) Nessa ocasião eu tinha mais responsabilidade com o registro fotográfico (feito com o celular), algo com o qual não tinha intimidade, o que ocupou grande parte do tempo e não me deixou confortável em ficar grandes períodos parado desenhando. A figura 41 foi o primeiro desenho feito dessas gravações, mas o ângulo totalmente lateral me incomodou muito, pois é algo difícil de tornar interessante, por isso o desenho foi logo abandonado, assim como a figura 42, onde depois de notar um erro que no momento me pareceu bem grave, mas que agora não tenho certeza qual era, creio que o problema foi a câmera claramente não estar focando a pianista, o que atrapalha muito o significado simbólico da imagem, o de todas as atenções estarem voltadas para a pianista, o que é de certo modo potencializado ainda mais no palco vazio e solitário, assim comecei o desenho novamente (Figura 43), e com esse fiquei relativamente feliz, porém ele não foi publicado até hoje. 55 Figura 39: Pianista Helen Rocha (desenho abandonado). Figura 40: Pianista Anabel Cunha (desenho abandonado). Fonte: O autor. Figura 41: Anabel Cunha, segunda versão. Fonte: O autor. Fonte: O autor. 56 Antes do início dessa semana de gravações, a coordenadora do programa, Anna Agazzi, havia comentado que seria interessante o registro dos bastidores da gravação, e vendo as fotografias que fiz, é possível notar que levei isso até longe demais, acompanhar o trabalho profissional dos simpáticos cinegrafistas da TV Unesp foi uma experiência pessoal muito interessante e algo que naturalmente tive vontade de capturar nas fotos. Desse tema dois desenho foram finalizados de forma satisfatória (Figura 44 e 45), na fig. 45 acho interessante como o foco apenas no cinegrafista ajuda a que imaginemos o que estava passando por sua cabeça, a figura do pianista é algo que atrai demais a atenção, nesse enquadramento o contraste entre a direção das linhas e as variadas texturas (em especial das cortinas, painel da direita, parede e câmera) também contribui para que a imagem final seja algo que capture a atenção, o desenho foi iniciado no local de observação direta, continuado logo depois, no intervalo das gravações, usando uma foto de referência e os cinzas foram adicionados em casa digitalmente. Essa arte foi publicada no instagram da Rede UnesPiano (mas “escondida”, como segunda imagem, atrás de uma foto) com bastante atraso, dia 22 de agosto de 2022, como parte do anúncio da publicação de um dos programas que exibiram as gravações realizadas nesse dia. Já a figura 44 nunca chegou a ser publicada. Figura 42: Anna Agazzi tocando. Figura 43: Cinegrafista Felipe Tristão da TV Unesp. Fonte: O autor. Fonte: O autor. 57 No Recital-Aula do mês seguinte (Abril), a realização de desenhos foi ao mesmo tempo de certo modo um sucesso e um grande problema, foi algo que distraiu demais as crianças, que ficaram curiosas sobre o que eu estava fazendo e levantavam das cadeiras para conferir, em certo momento tivemos que tirar um momento da aula para que eu me apresentasse e os desenhos fossem mostrados, ao final das aulas eu dei os desenhos para algumas das crianças que haviam ficado mais interessadas neles (tirei fotos antes, fig. 46 e 47, para ter algum registro). Logo depois de uma aula algo curioso aconteceu, uma aluna voltou pedindo a adição da assinatura e data, a professora da aula seguinte havia notado que estavam faltando, foi um puxão de orelha indireto muito merecido, porque eu realmente deixo muito de lado a datação dos trabalhos. Figura 44: Pianistas dando aula. Fonte: O autor. Figura 45: Pianista Júlia tocando. A cruzada das mãos foi tema de uma pergunta. Fonte: O autor. Para não correr o risco de continuar atrapalhando a aula de música não fiz mais desenhos nessas aulas até muito recentemente, tenho também que adicionar que outro fator que contribui para isso é que o meu próprio interesse em desenho é em grande parte pela simplicidade dessa linguagem, que não exige nenhum equipamento especial, enquanto que o piano, por ser tão complexo e extremamente caro, juntamente com o repertório muito europeu não me motivavam tanto a desenhar, apesar do ótimo trabalho de educação musical realizado pelo projeto (essa é uma crítica um pouco hipócrita, visto que a maioria dos artistas comentados nesse trabalho são Ingleses, mas o interesse social e o modo como esse meio pode se encaixar muito bem na nossa realidade fazem com que eu me interesse muito). 58 O próximo desenho ao vivo que fiz foi apenas um ano depois (fig. 48), num evento apenas com pianistas, dessa vez trabalhei num formato quase A5 (num sketchbook) e com esferográfica, ferramenta da qual eu gosto pela simplicidade comentada acima, mas cuja linha fina não me agrada, os contornos não ficam tão óbvios do que com a caneta para retroprojetor que usei anteriormente e as marcas frequentemente são um pouco falhas. Essa foi a primeira vez que a prof. Anna comentou ter notado que eu estava desenhando e eu preferi disfarçar e não mostrar o desenho na hora devido aos pontos comentados acima, o desenho depois foi escaneado e pintado digitalmente para que ficasse mais legível. Figura 46: Recital com pianistas de Botucatu. Fonte: O autor. Figura 47: Desenho sem a pintura digital. Fonte: O autor. Nesse intervalo de um ano fiz também o desenho da fig. 50 a partir de uma foto que havia tirado, as linhas foram feitas no papel e a pintura no computador, apesar de ser algo provavelmente mais atraente para a maior parte do público que veria a imagem nas redes sociais do projeto, não é algo cujo processo me agrada, tenho a tendência de me perder demais nos detalhes (no papel um pouco menos, mas principalmente fazer as linhas no computar é sempre algo quase interminável) e me incomoda demais a cópia direta da foto, mesmo ela sendo minha, a aparência final também é visivelmente a de uma fotografia, enquanto que o trabalho da 59 obervação direta, apesar de causar momentos estressantes, é um desafio mais divertido e gera um visual mais orgânico e dinâmico. Figura 48: Desenho no papel. Fonte: Do autor. Figura 49: Desenho final após alguns pequenos ajustes e pintura digital. Fonte: Do autor. Durante um dos eventos seguintes da rede UnesPiano, o pianista Fernando Biral comentou que a professora de uma das escolas de música onde eles haviam se apresentado se interessou pela realização de desenhos das atividades lá, devido a outros compromissos (incluindo a escrita desse texto) não pude fazer artes a partir das fotos desse evento, mas quando retornamos ao local em Setembro tentei desenhar um pouco, mas ainda dando prioridade para as fotos, que são o meio principal de registro. O primeiro desenho eu abandonei rapidamente porque não gostei do rosto do pianista, além de cartunesco demais, parecia ranzinza ou desconfiado e a figura toda está fora de lugar, não haveria espaço para as pernas se ele estivesse nessa posição por exemplo, com o segundo e último fiquei um pouco mais satisfeito, embora existam problemas de proporção e algumas questões quanto à narrativa, o foco na pianista fez o público parecer menor do que era, para contornar isso eu poderia ter adicionado nas bordas mais alguns pedaços (ombros e pernas) das pessoas que estavam por lá, algo simples e que passaria a sensação do local estar mais povoado, mas não me veio à cabeça na pressa do momento. Fiquei muito em dúvida sobre pintar digitalmente ou não, mas decidi por postar esse desenho pintado para que fosse legível mais rapidamente, tendo em vista que a atenção das pessoas em cada imagem em redes sociais é extremamente curta. 60 Figura 50: Desenho abandonado. Fonte: Do autor. Figura 51: Desenho feito no local. Fonte: O autor. Figura 52: Desenho após a pintura digital. Fonte: O autor. No dia seguinte foi realizado o Recital-Aula na EMEFI com a qual o projeto tem sua parceria principal, aproveitando que eu estava com folhas A3 e como a minha câmera começou a apresentar problemas (e também por pura saudade), resolvi desenhar um pouco ao final das aulas, a caneta nanquim 010 que usei em todos esses desenhos não é tão grossa quando a para retroprojetor que usava antes, mas para mim já é bem mais agradável de olhar do que a esferográfica. O primeiro desenho creio que funcionou muito bem como narrativa, com o gestual dos pianistas e da aluna assistindo a aula guiando bem o entendimento da cena, para o 61 segundo (fig. 56) tentei começar 2 vezes antes dessa versão final, mas parei depois de apenas 3 ou 4 riscos, até estar minimamente satisfeito com o rosto do pianista, a perspectiva me agradou muito, mas fiquei um pouco preocupado com a narrativa, pois o dedo apontando pode parecer um pouco agressivo, ainda mais por um dos alunos estar se inclinando para trás, na realidade o pianista estava apontando para um quadro ao fundo da sala, ter parecido que era para alguém não é nenhum problema, pois é também algo natural das aulas, foi apenas a combinação disso com as expressões que me deixaram um pouco receoso por parecer uma repreensão. Figura 53: Pianista Enzo falando da peça que iria tocar. Fonte: O autor. 62 Figura 54: Pianista João Sigoli dando aula. Fonte: O autor. O fundo incompleto do segundo desenho foi simplesmente falta de tempo, a aula acabou antes que eu terminasse, algo muito interessante é que algumas alunas passaram para olhar o desenho ao fim da aula e conseguiram identificar algumas das pessoas que eu tinha desenhado mais atentamente, mas as do fundo, que eu havia feito sem ter muito cuidado, apenas para completar a imagem, elas realmente não conseguiram reconhecer, eu jamais teria imaginado que pudessem ter uma noção tão exata de onde estava cada colega de sala a ponto de perceberem quem era quem e quais estavam fora de posição. Durante essas aulas alguns alunos também disfarçaram que iam fazer algo no fundo da sala para voltar e ver o que eu estava desenhando, mas não chegou a ser algo que interrompeu a aula, até porque desenhei bem rapidamente. No geral creio que houve uma evolução e os trabalhos feitos para o projeto conseguiram por si só contar bem as histórias dos eventos, não pude realizar o que havia imaginado no início de poder também escrever sobre eles, mas pude experimentar com isso em outros ambientes. 63 4.5 Projetos pessoais e outros eventos 4.5.1 Sarau Estação Poesia Entre a cobertura dos eventos da UnesPiano, desenhei outros acontecimentos também, o primeiro que quero comentar aqui ocorreu no meio de 2022, um sarau na cidade onde moro (Franco da Rocha), a segunda imagem tem um exemplo muito curioso sobre a influência do ambiente no desenho, nessa época eu ministrava uma oficina de desenho de observação à tarde nesse mesmo local e fiquei até a noite para o sarau, o frio foi forte e por isso há muitos riscos tremidos no desenho, logo depois começou a chover e o evento foi para dentro da casa de cultura, um espaço muito apertado para o grande público presente, mas apesar disso o ambiente agradável fazia todos se sentirem à vontade. Figura 55: Senhora olha o celular em meio às mesas das banquinhas de comida. Fonte: O autor. Figura 56: Músico tocando durante o sarau. Fonte: O autor. Apesar de gostar das duas imagens, elas são péssimas em falar sobre o evento em si, há muito pouco contexto sobre o que está acontecendo, não haviam muitos locais onde sentar em que eu pudesse ter uma visão um pouco mais geral do ambiente e as imagens acabaram ficando muito aproximadas, além do frio e da chuva como mencionado antes. Esse foi o primeiro evento que eu tive bastante 64 espaço para descrever em palavras (SILVA, 2022), pouco tempo antes havia criado um perfil no Pixelfed16, ser uma rede com poucos usuários contribuiu para que eu não tivesse nenhuma expectativa quanto a interações nas postagens e assim pudesse fazer o que quisesse, em geral os trabalhos que publico nesse espaço são escritos em Português e também Inglês (por ser a língua franca no mundo atual e também por haverem pouquíssimos usuários brasileiros nessa rede). 4.5.2 Aula - Visitação a acervos e exposições. Em 2022, na matéria optativa de visitação a acertos e exposições no IA Unesp, tive a oportunidade de ter aulas novamente com o orientador desse trabalho, José Spaniol, professor