UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNESP - INSTITUTO DE ARTES JAOA DE MELLO CORPOS DISSIDENTES EM CENA Notas sobre Teatro LGBTQIAP+ Engajado São Paulo 2022 1 JAOA DE MELLO CORPOS DISSIDENTES EM CENA Notas sobre Teatro LGBTQIAP+ Engajado Dissertação apresentada na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Artes. Área de Concentração: Artes Cênicas Linha de Pesquisa: Estética e Poéticas Cênicas Orientador: Prof. Dr. Lúcia Regina Romano. São Paulo 2022 2 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. M527c Mello, Jaoa de, 1993- Corpos dissidentes em cena : notas sobre teatro LGBTQIAP+ engajado / Jaoa de Mello. - São Paulo, 2022. 194 f. : il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lucia Regina Vieira Romano Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Teatro e sociedade. 2. Performance (Arte). 3. Teoria queer. 4. Identidade de gênero. 5. Pessoas LGBT. I. Romano, Lucia Regina Vieira. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 700.103 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 3 JAOA DE MELLO CORPOS DISSIDENTES EM CENA Notas sobre Teatro LGBTQIAP+ Engajado Dissertação apresentada na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Artes. Aprovado em: 22 de junho de 2022 Banca Examinadora Profa. Dr. Lúcia Regina Romano (orientadora) Instituição: Instituto de Artes – Universidade Estadual Paulista Profa. Dr. Amara Rodovalho Fernandes Moreira Instituição: Instituto de Estudos da Linguagem - Universidade Estadual de Campinas ____________________________________________________________ Profa. Dr. Dodi Tavares Borges Leal Instituição: Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo 4 Dedico este trabalho àquelus que se entendem enquanto sexualidade ou gênero dissidentes e resistem na criação de outros mundos possíveis. O teatro também é território nosso. 5 AGRADECIMENTOS Agradeço à todes que colaboraram de alguma forma para que esse trabalho fosse finalizado. Sem o apoio de vocês, essa pesquisa não seria possível. Agradeço à minha orientadora Lúcia Romano pela escuta ativa, ao mesmo tempo crítica e afetiva durante todo o processo. Agradeço às minhas companheiras de cena da Coletiva Rainha Kong, Vitinho Rodrigues, Aleph Antialeph e Helena Agalanéa. Agradeço à Ave Terrena e Diego Moschkovich pela conversa e troca sobre os processos criativos do LABTD. Agradeço à Eliana de Mello pelas conversas, carinho e alegria que sempre estiveram presentes em nossa casa. Agradeço à Job Menezes pelo incentivo constante e por seu amor pela cultura que me contagiou. Agradeço à Éder Augusto Marcos por compartilhar tantas viagens, sentimentos e idéias comigo. Agradeço à Ana Vitória Prudente pelas trocas, experiências e perspectivas outras que me fazem duvidar cada vez mais do mundo em que vivemos. Agradeço à Hugo Rossini por todas as conversas e discussões que me ajudaram a amadurecer meu caminho como pesquisadore. Agradeço à Tulio Bucchioni e Artur Mattar pelas conversas e orientações que me ajudaram a compor meu projeto no início desta pesquisa. Agradeço à Profª Dr. Amara Rodovalho Fernandes Moreira que topou me ajudar nesse processo de escrita e me provocou com suas referências e críticas construtivas na reta final dessa pesquisa. Agradeço à UNESP e aes professories e pesquisadories que marcaram minha trajetória nesse mestrado, especialmente o Profº Dr. Alexandre Mate e a Profª Dr. Simone Carleto. 6 Àquelas de nós cuja existência social é matizada pelo terror; àquelas de nós para quem a paz nunca foi uma opção; àquelas de nós que fomos feitas entre apocalipses, filhas do fim do mundo, herdeiras malditas de uma guerra forjada contra e à revelia de nós; àquelas de nós cujas dores confluem como rios a esconder-se na terra; àquelas de nós que olhamos de perto a rachadura do mundo, e que nos recusamos a existir como se ele não tivesse quebrado: eles virão para nos matar, porque não sabem que somos imorríveis. Não sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras. Sim, eles nos despedaçarão, porque não sabem que, uma vez aos pedaços, nós nos espalharemos. Não como povo, mas como peste: no cerne mesmo do mundo, e contra ele. Jota Mombaça A palavra, a palavra está cheia de gente, cheia de gente cansada a palavra está cheia e dentro dessa pessoa que pensa dentro dessa pessoa que se denomina alguém pronome indefinido cheio de gente cansada que é alguém, é ninguém uma pessoa [...] Marcelo Silva 7 RESUMO MELLO, Jaoa de. Corpos dissidentes em cena: Notas sobre Teatro LGBTQIAP+. 2022. 201 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2022. A presente pesquisa busca levantar dados, analisar e questionar expressões performáticas contemporâneas no Brasil, focando na prática de grupos de teatro da cidade de São Paulo que abordam poeticamente questões Cuír, e que são compostos por integrantes que não se enquadram na cis-heteronorma, contribuindo para a construção de uma memória e narrativa de expressões contra-hegemônicas, muitas vezes, deixadas de lado ou simplesmente apagadas em diversos registros de expressões culturais brasileiras. Como estudo de caso, esta pesquisa aborda a produção artística da dramaturga Ave Terrena, da atriz Renata Carvalho e do ator Leo Moreira Sá, a partir da hipótese que a intersecção entre processos desviantes de gênero e os processos que conduzem à cena configura-se já numa linguagem singular, a ser melhor investigada. Palavras-chave: Performance, Teatro Contemporâneo, Teatro Engajado, Teatro de Grupo, Teoria Cuír, Queer, Políticas de Gênero, LGBTQIAP+, Hegemonia e Contra-hegemonia, Representatividade. 8 ABSTRACT MELLO, Jaoa de. Dissident Bodies on Stage: Notes on Engaged LGBTQIAP+ Group Theater. 2022. 201 f. Dissertation (Master of Arts) - Graduate Program in Arts, Paulista State University, São Paulo, 2022. This research seeks to raise data, analyze and question contemporary performative expressions in Brazil, focusing on the practice of collectives and group theaters in the city of São Paulo that poetically address issues Cuír, and that are composed of members who do not fit into the cis-heteronorm, contributing to the construction of a memory and narrative of counter-hegemonic expressions, often left aside or simply erased in various records of Brazilian cultural expressions. As a case study, this research approaches the artistic production of the playwright Ave Terrena, the actress Renata Carvalho and the actor Leo Moreira Sá, from the hypothesis that the intersection between gender deviant processes and the processes that lead to the scene configures itself already in a singular language, to be better investigated. Keywords: Performance, Contemporary Theater, Engaged Theater, Group Theater, Cuír Theory, Queer, Gender Politics, LGBTQIAP+, Hegemony and Counter-hegemony, Representativity. 9 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Apresentação de Lou&Leo, na Semana da Visibilidade Trans da Casa.............. 70 Figura 2 - Apresentação do “Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu”, na versão de Renata Carvalho e Natália Mallo.......................................................................................... 74 Figura 3 - Apresentação da peça The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven na MITsp 2020, versão de Jo Clifford e Susan Worsfold......................................................... 75 Figura 4 - A travesti Andréa de Mayo e a transformista Miss Biá no palco, em boate de São Paulo.............................................................................................................................. 91 Figura 5 - Manifestação na porta do CCBB de Belo Horizonte........................................... 94 Figura 6 - Apresentação no TUSP - Teatro da Universidade de São Paulo, na capital paulistana, da peça “Sarah e Hagar Decidem Matar Abraão”, da Coletiva Rainha Kong... 101 Figura 7 - Trecho de E Lá Fora o Silêncio........................................................................... 113 Figura 8 - Primeira Cena de As 3 Uiaras de SP City............................................................ 128 Figura 9 - As Três Uiaras de SP City.................................................................................... 128 Figura 10 - Cena da Manifestação em As 3 Uiaras de SP City............................................ 129 Figura 11 - Registro da peça Manifesto Transpofágico, com Renata Carvalho................... 134 10 SUMÁRIO CARTA PARA QUEM AS MEMÓRIAS NÃO SÃO TÃO FÁCEIS. 11 INTRODUÇÃO - O PROCESSO 13 CAPÍTULO I - UMA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA DISSIDÊNCIA 19 1.1 Prática Pré-Imersiva #1 19 1.2 Introdução à Imersão 19 1.3 Imersão #1 - Duvidando do Natural 20 1.4 Imersão #2 - Genealogia da construção do Gênero e da Sexualidade Moderna 22 1.5 Imersão #3 Contexto Histórico Brasileiro 32 1.6 Imersão #4 - Estudos Cuír e Formas de Expressão Performáticas 41 1.7 Imersão #5 - A Representação LGBTQIAP+ no Teatro Brasileiro 49 1.8 Imersão #6 - Produção Cultural Contemporânea de Corpos Dissidentes 60 CAPÍTULO II - ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DE CORPOS DISSIDENTES NO TEATRO DE SÃO PAULO E SUAS REVERBERAÇÕES NA CENA. 66 2.1 Trajetórias de Resistência 66 2.2 Um Ator Punk 67 2.3 Uma Atriz Profetiza 72 2.4 Cancelamentos e Censura 78 2.5 Transfake e MONART: Representatividade Trans Já! 86 2.6 Considerações Sobre Gênero e Teatro no Jogo Atoral 98 CAPÍTULO III - O ELEFANTE TRANS 102 3.1 Figuras-Diadorim 102 3.2 O caminho cuír: estudos feitos sobre pessoas trans e travestis, por elas mesmas 110 3.3 O Coletivo LABTD 112 3.4 Barbantes da Memória 115 3.5 E Lá Fora o Silêncio 117 3.6 As 3 Uiaras de SP City 121 3.7 Voltando ao ponto nevrálgico: existe uma linguagem teatral LGBTQIAP+? 132 3.8 Comentários Finais 136 CONSIDERAÇÕES FINAIS 139 REFERÊNCIAS 142 APÊNDICE A - ENTREVISTA COM AVE TERRENA ALVES 158 APÊNDICE B - ENTREVISTA COM DIEGO MOSCHKOVICH 184 APÊNDICE C - FRAGMENTO DO PROJETO DA PEÇA “E LÁ FORA O SILÊNCIO” 201 11 CARTA PARA QUEM AS MEMÓRIAS NÃO SÃO TÃO FÁCEIS. 25 de Maio de 2022 Cara pessoa, Escrevo esse texto para todes que não tiveram, assim como eu, referências positivas do que hoje nos chamamos e nos orgulhamos de ser. Não apenas não tivemos tais referências positivas, como ouvimos os piores e mais perversos nomes e ideias a respeito de algo que não sabíamos se éramos ou não, mas que provocava um desconforto imenso dentro da cabeça de quem põe sua identidade em dúvida. Como se carregasse um segredo que não consegue colocar em palavras e que perdura como uma pergunta sem resposta em nossa (in)consciência. Foi um longo caminho até entendermos que, mesmo sem referências, ou com referências enviesadas e mal faladas, nos identificamos com o que é abjeto e anormal e estranho e anti-natural (ou foi assim que nos ensinaram). E tudo bem estar ainda nesse processo, já que construímos e demolimos algo todo dia nessa cidade que chamo de corpo. Qual a força que adolescentes de periferia, pessoas mais velhas em sua caminhada, habitantes dos lugares mais distantes da periferia do capitalismo e tantas outras pessoas em situações inusitadas, têm para entender-se e assumir-se enquanto fora da norma? Esse processo sempre me surpreende. É surpreendente porque é algo vivo em minha memória, o quanto especulei, meditei, cristalizei dentro de mim tais ideias, para conseguir regurgitá-las e sofrer as consequências e os prazeres que admitir-se enquanto sujeite para além da vivência cisgênera e heterossexual nos permite. Tudo isso para novamente demolir e construir tudo de novo, em um processo constante do qual nem nos damos conta. Mas me pergunto: se aprendemos muito com esse esforço, por muitas vezes, através da dureza e do lidar com a frustração de expectativas, não poderíamos aprender de outra forma? Talvez com o cuidado e a suavidade do caminho? A escrita dessa pesquisa está ligada a esse esforço surpreendente de rejeitar os valores constantemente reiterados da cis-heteronorma, que insiste em apagar trajetórias outras, múltiplas, originais, tristes, fabulosas, complexas e belas. Pois, a existência de um caminho que não é único denuncia a construção frágil do discurso hegemônico e 12 corrompe os dogmas em que o mesmo foi construído. Naturaliza-se o que é artificial e rejeita-se o que não se encaixa neste discurso. Mas há quem pesquise e escreva discordando dessa regra, há também quem manifeste em seu corpo o quão artificial é o natural e quão natural é o artifício, tanto na vida, quanto no teatro. E somos muitas pessoas! Busco aqui, neste trabalho, abordar essas questões e escavar algumas trilhas por vezes encobertas de nosso passado, de nossa história, de nosso teatro. Não tenho a pretensão de esgotar tal arqueologia, mas de me unir aes arqueólogues que já realizam essa escavação. Acredito que esta ação seja um devir e que deve ser feita por diversas mãos, de diversas perspectivas, em um campo mais amplo, multidisciplinar. O que nos dá a possibilidade de (re)pensar nossas práticas em diversos âmbitos, pessoais, profissionais, acadêmicos, artísticos, etc. Relato aqui um pouco de como foi esse processo de escrita e pesquisa. Boa Leitura! Jaoa de Mello 13 INTRODUÇÃO - O PROCESSO Quem nos deu permissão para praticar o ato de escrever? Por que escrever parece tão artificial para mim? Eu faço qualquer coisa para adiar este ato — esvazio o lixo, atendo o telefone. Uma voz é recorrente em mim: Quem sou eu, uma pobre chicanita do fim do mundo, para pensar que poderia escrever? (ANZALDÚA, 2000, p. 230) Aos trancos e barrancos, este é o resultado de uma trajetória: trajetória marcada pelo trabalho dramatúrgico e cênico de tantes artistas LGBTQIAP+ que pulsam e me inspiram demais. Pela vivência artística intensa com a Coletiva de Teatro Rainha Kong, que me instigou e instiga questionamentos e curiosidade sobre o que é gênero, Cuír, dissidência, etc, e como raios colocaríamos essas questões em cena. Marcada por atravessamentos de epistemologias distintas no meu corpo não-binário e de vivência bixa. Marcada pela minha descoberta como soropositivo em março de 2021, revelando os estigmas que tal doença ainda carrega em nosso imaginário e me fazendo tremer em minhas bases, procurando refúgio na palavra amiga de outres que compartilham dessa condição (e vivem muito bem com isso). A marca de uma pesquisa feita com muito esforço, sem acesso a bolsa, apesar dos pedidos e projetos bem avaliados, o que demonstram o quanto a temática abordada nesse trabalho ainda não tem o espaço que deveria ter na academia e que a mesma sofre duros golpes, perdas e sucateamentos nos últimos anos. E, por fim, marcada pelos espaços alcançados pela população LGBTQIAP+ que, tendo em vista o contexto político-social em que estamos inserides, conquistou muito com sua luta por direitos, o que não despreza o quanto ainda temos a conquistar. Todos esses aspectos, de diferentes âmbitos, estão presentes de alguma forma em minha escrita. Quando ingressei no mestrado, no ano de 2020, não imaginava as voltas que o mundo daria: pandemia, isolamento, crise política, econômica, sanitária, cultural, oportunidades de diálogo, reinvenção e perdas, muitas perdas. Entretanto tenho que admitir que, assim como a pesquisadora Abigail Campos Leal, “me curo y me armo estudando” e, nesse período conturbado, pesquisar e ler tantes pensadories distintes me trouxe revolta, mas também serenidade para entender que estamos no meio do processo, inacabados, em fluxo. Comecei a escrever em uma tarde sufocante no verão pandêmico de São Paulo, quando as anotações, vídeos, entrevistas, fragmentos de peças, dramaturgias, não 14 cabiam mais em mim e me angustiava ter lido tudo isso e não conseguir organizar meu pensamento em um fio narrativo. Ao pesquisar, as leituras e os questionamentos, oriundos da discussão nas disciplinas e reuniões, pareciam ficar na minha cabeça o tempo todo, permeando as relações e fazeres outros que, não necessariamente, estão interconectados. Talvez por esse motivo, não desvinculo esse trabalho do meu fazer artístico, eles estão extremamente conectados. Eu saía da sala de ensaio ou do ensaio por Zoom com mil questões que sabia que poderia me aprofundar ao pesquisar e, ao mesmo tempo, levei discussões sobre decolonialidade e teoria cuír para diversos espaços de criação. Essa troca coloca para mim a importância de se entender o fazer acadêmico como ferramenta para a prática artística, sem hierarquizar os saberes adquiridos nesses processos. A academia é um meio para a pesquisa, a cena é outro meio que produz conhecimento. E no meu caso, as duas estão correlacionadas. Colocarei aqui um pouco das impressões que tive ao escrever cada capítulo dessa dissertação, pontuando as abordagens e temáticas colocadas. Capítulo I Esse capítulo foi escrito pensando naquelus que vieram antes de nós. Nós que temos corpos e vivências que não se encaixam na lógica cis-heterocêntrica, que não existem aos olhos da ciência e da hegemonia ou que existem como “outro”, afirmando assim qual é o modus operandi “correto”. Corpos abjetos. Lembrei de todos os relatos de homossexuais presos em manicômios por seus familiares. Lembrei das diversas operações da polícia que tinham como objetivo “limpar” o centro de São Paulo de travestis. Lembrei do epistemicídio que nossa população ainda vive, privada de sua história e seu passado, sem saber, em sua maioria, de eventos históricos como a Revolta do “Levante ao Ferro’s Bar”, a criação do “Lampião de Esquina” e outras insurgências importantes da comunidade LGBTQIAP+. Lembrei das diversas censuras que estamos passando na área da cultura e da pesquisa por querermos abordar nossas questões em um sistema que insiste em se apropriar das nossas pautas, hierarquizando-as, comercializando-as, matando-as. Porém, se observarmos nossa história com cuidado, podemos antever a riqueza e pluralidade que temos em nossas mãos, sendo um material artístico potente e profundo, ainda pouco reconhecido. Helena Vieira e Yuri Fraccaroli comentam que bichas, lésbicas, travestis e bissexuais tiveram que assumir “a linha de frente contra a ‘moral e os bons costumes’” 15 na Ditadura Militar brasileira, uma posição que assumiam não apenas por militância, mas apenas por existirem e essa vivência ser insuportável para a maioria da sociedade brasileira1 (VIEIRA; FRACCAROLI, 2018, p. 360-366). A resistência de milhares de LGBTQIAP+ e sua articulação política, artística e cultural contribuíram de forma significativa para que certos estigmas fossem quebrados em relação a vivências e corpos de gênero não-normativo, o que resultou em uma grande “mudança de vida” para aquelus que nasceram depois, mesmo com os fantasmas e cicatrizes que ainda carregamos de nosso passado ditatorial. Essa primeira parte da pesquisa trata-se de entender as raízes de nossa subalternidade e de traçar brevemente uma narrativa acerca dos dissidentes nesse país, me focando na produção cultural da cidade de São Paulo. Para tanto me baseio em artigos e livros de historiadories, antropólogues, cientistas sociais, filósofes e pesquisadories de teatro que abordam a temática da dissidência em seus trabalhos. Os fatos e eventos estudados também se relacionam com as outras partes da pesquisa, já que o estudo de caso escolhido para esse projeto foi a peça As 3 Uiaras de SP City, que revisita os chamados “rondões”, operações policiais que visavam prender e eliminar travestis e homossexuais no centro de São Paulo. Capítulo II A segunda parte da pesquisa consiste em um panorama da produção teatral recente, especificamente as pesquisas teatrais ligadas à questão trans. Visando dar mais concretude a essa trajetória recente, escolhi analisar a produção do ator Leo Moreira Sá, por sua trajetória única enquanto artista trans masculino que vivenciou e se engajou na resistência à Ditadura. Sua carreira artística singular transita por diversas áreas, tendo sido baterista da banda punk “As Mercenárias", primeiro iluminador trans a ganhar um prêmio APCA e ator em parceria com a Companhia de Teatro Os Satyros, com o diretor Nelson Baskerville e, mais recentemente, com o grupo LABTD. Também escolhi abordar a trajetória da atriz travesti Renata Carvalho, por sua luta contra o apagamento dos corpos trans no palco e sua articulação política como co-fundadora do MONART - Movimento Nacional de Artistas Trans (travestis, mulheres e homens trans e pessoas 1 Helena e Yuri comentam que as ações coercivas e violentas do Governo só eram possíveis com o apoio da população em geral, que também praticava atos de violência contra essas populações. O que pode ser confirmado com o terrível fato de que o Brasil até hoje é o país que mais mata pessoas LGBTQIAP+ no mundo, mesmo com muitos direitos garantidos pela constituição. 16 trans não binárias). Sua carreira foi marcada por diversas censuras, mas também pela luta pela visibilização de pautas importantes, como o transfake e a falta de oportunidades para a população T no mercado de trabalho cultural. Ao escrever sobre sua vivência, essa tese busca dar importância para sua luta, que é um marco na construção de uma realidade mais digna para milhares de atories, atores e atrizes trans. A partir dessas duas trajetórias, problematizo algumas questões em relação à organização política da população trans e a censura de artistas LGBTQIAP+ nos últimos dez anos, na tentativa de denunciar a violência por trás de tais ações censórias e de questionar tradições de caráter binário nos processos cênicos. Essas duas trajetórias são um recorte pequeno da produção artística de pessoas trans em São Paulo e menor ainda do Brasil. Porém as escolhi como exemplo por conta da minha proximidade com a produção artística de ambes es artistas, sua ação enquanto militantes e artistas de teatro e por pensar minha dissertação como uma pesquisa regional focada na cidade de São Paulo, o que se justifica por se tratar de uma pesquisa de mestrado de dois anos. Importante pontuar que a produção artística nacional é mais ampla que a produção dos estados do sudeste brasileiro e que as peças realizadas aqui são apenas uma fração da produção cultural nacional, o que, muitas vezes, é colocado de forma hegemônica frente a produção de outros estados brasileiros. Para não reiterar essa ideia imprecisa, sublinho que este trabalho se trata de uma pesquisa regional. Me baseio neste capítulo em artigos e publicações acadêmicas sobre a temática; e em reportagens, podcasts, entrevistas, críticas e vídeos que detalham a repercussão dos eventos abordados. Capítulo III As expressões artísticas ligadas às vivências LGBTQIAP+ estão em um momento extremamente fértil e abundante. Temos produções sofisticadas e pertinentes de artistas como Ventura Profana, Linn da Quebrada, Jup do Bairro, Jota Mombaça, Daniel Veiga, Leonarda Glück, Pêdra Costa, etc. Tais artistas estão ocupando espaços nunca antes alcançados dentro da produção artística nacional e na mídia, em um movimento histórico por representatividade. A terceira parte da pesquisa, portanto, se concentra em uma produção mais recente, abordada na dramaturgia de Ave Terrena e no trabalho do grupo LABTD, especialmente o processo da peça As 3 Uiaras de SP City (2018), sendo o coletivo 17 composto por membros LGBTQIAP+ que seguem uma dinâmica de trabalho mais horizontal e coletiva, típicas do teatro de grupo. Busco também questionar como o teatro de grupo abarca questões transvestigêneres em suas pesquisas e se pessoas dissidentes são abarcadas nesses grupos, em geral de maioria cisgênera. Ave Terrena é uma artista travesti que transita em diversos espaços, muitos deles ligados a produção de teatro de grupo na cidade de São Paulo, que é fomentada por editais e políticas públicas. Com o LABTD, Ave revisita e dialoga com um passado que segue presente até hoje na opressão de corpos marginalizados e, ao questionar a visão dos que contaram essa história, “desapaga” as trajetórias soterradas pela hegemonia ou as recria na ficção. Não se trata de resumir corpos trans à violência, mas de ressaltar que suas vivências são muito mais complexas que os estereótipos em voga no senso comum. A pesquisa de Ave e do LABTD reverbera artisticamente os questionamentos colocados pelo movimento político trans nas artes, abordados no capítulo 2. Por se tratar de um processo recente, optei por realizar entrevistas com Ave Terrena e Diego Moschkovich (diretor da peça) sobre o processo de criação e história do LABTD, transcrevendo-as2 e utilizando-as como base para a construção da escrita deste capítulo, entrelaçando-a com críticas, reportagens e artigos que julguei pertinentes para o aprofundamento dos temas abordados. A partir dos questionamentos e reflexões trazidos por Ave Terrena, também proponho o termo “Figuras-Diadorim”, denominação utilizada para reconhecer figuras ficcionais em nossa literatura e dramaturgia que fogem ao espectro da cisgeneridade, lançando assim uma perspectiva cuír para narrativas e obras pré-existentes. Assim, partindo de uma perspectiva que flerta com estudos sobre história, antropologia e estética, a presente pesquisa busca analisar a produção cultural contemporânea na área da performance cênica sob a ótica da Teoria Cuír, perguntando se a apropriação de espaços de expressão cultural por grupos sociais cuja performatividade de gênero é considerada abjeta (ou seja, contrária aos valores e códigos naturalizados de gênero e sexualidade em nossa sociedade) configura formas de expressão próprias no cenário cultural contemporâneo do Brasil, e como esses grupos organizam-se artística e politicamente. Quais são as ações propostas por tais coletivos artísticos? Com que intensidade a performatividade de gênero trazida por eles aos processos de criação e à cena pode influenciar a produção contemporânea em artes 2 As entrevistas se encontram na íntegra no apêndice dessa dissertação. 18 cênicas? Esses são alguns dos questionamentos propostos neste percurso. Para além disso, acredito que a potência artística subversiva de corpos dissidentes na cena, movida pela urgência de mudança social da triste realidade que LGBTQIAP+ vivem no Brasil, é um fenômeno único e complexo, que com certeza não se esgota aqui, mas do qual gostaria de abordar em uma possível trajetória. 19 CAPÍTULO I - UMA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA DISSIDÊNCIA memória não é segredo pra trancar ou esconder (ALVES, 2018, p.70) 1.1 Prática Pré-Imersiva #1 Para começar, gostaria de propor um exercício simples para quem lê este texto nesse exato momento: por um minuto, se distancie do computador, da tela do celular, do livro, da revista, etc; feche seus olhos; coloque seu foco na sua escuta e procure o som mais distante que você possa perceber. Em seguida, busque o som mais próximo de seu corpo, mesmo que ele seja ínfimo. Após esse primeiro momento, pegue uma caneta e anote os sons que você percebeu. Quantos sons foram captados? É possível captar todos os sons do espaço? O que diferencia cada som, música, ruído ou barulho? Algum som agrada ou incomoda você? Guarde essa sensação. 1.2 Introdução à Imersão De acordo com as leis básicas da física, o “espectro sonoro” (conjunto de frequências que podem ser produzidas pelas diversas fontes sonoras) em relação ao ouvido humano consegue captar apenas de 20Hz a 20.000Hz, sendo essa fração chamada de “sons audíveis”. Entretanto, estes não são os únicos sons possíveis: existem os infrassons, que se caracterizam por estarem abaixo dos 20Hz, e os ultrassons, caracterizados por estarem acima dos 20.000Hz. Ou seja, há uma infinidade de outros sons que não somos capazes de perceber e que, no entanto, continuam existindo. A artista visual não-binária e mestiça Jota Mombaça (2016) traça um paralelo metafórico entre hegemonia/subalternização e o espectro sonoro: é possível pensar os grupos sociais historicamente subalternizados como esses sons que estão fora da audibilidade da escuta hegemônica, vibrando de uma forma que essa escuta não os percebe nem os apreende. Em relação a esse paralelo, Mombaça comenta que a “[...] descolonização, seria um remapeamento da escuta que leva em consideração o ruído e 20 as linhas-de-fuga que ele fissura na harmonia sobreposta” (2016, n.p.). Ou seja, a descolonização seria uma forma de se fazer ouvir e compreender esse espaço fora da zona dos “sons audíveis”, levando em conta aspectos desse “ruído” como uma manifestação desorganizadora e necessária, nas palavras de Mombaça, que “[...] apesar da harmonia arbitrária, manifesta-se, e ao fazê-lo, pode infectar o regime de audibilidade, desorganizando o ‘espectro sonoro’ que conforma a escuta” (ibidem). Mas, o que define o que é harmonia e o que é ruído dentro da sociedade? Quais corpos habitam esse espaço de audibilidade, sendo falados, vistos e escutados, e quais corpos são renegados ao esquecimento, invisibilidade e silenciamento? 1.3 Imersão #1 - Duvidando do Natural Travesti, gay, sapatona, lésbica, entendido, bicha, viado, baitola, michê, trava, boyceta, NBs, fancha, andrógino, invertido, quimbanda, fresco, fanchono, uranista, gouveia, pederasta e sodomita, nosso idioma tem uma rica linguagem para se referir aos diversos tipos de sexualidades e performances de gênero consideradas por muito tempo “degeneradas”. Tais nomenclaturas, cunhadas pela imprensa, estudos científicos, relatos médicos ou pelo senso comum, há cem anos atrás poderiam ser consideradas uma ofensa grave aos bons costumes, apenas ao serem pronunciadas no espaço público. O que dizer sobre assumir-se como desviante da norma, praticante de tais “atividades vexatórias”, auto-identificando-se com esses termos? Mas, como Teresa de Lauretis (2019) comenta: “As palavras atravessam fronteiras, [...] assim como as pessoas, têm histórias; e, quando viajam no tempo e no espaço, elas mudam [...]” (LAURETIS, 2019, p. 397). As palavras não existem per si; é necessário que alguém as enuncie e alguém as ouça ou leia. O interlocutor soma a ela muito de sentido da palavra, apesar de não conseguir controlar completamente o que seu receptor irá entender. Em uma sociedade em que saberes são historicamente hierarquizados, quem tem oportunidade de se colocar em espaços formais de poder já terá posição privilegiada apenas por produzir um discurso. Ribeiro (2019) comenta que todos temos lugar de fala, sendo que a posição social ocupada pelo sujeito resulta em experiências distintas e, portanto, perspectivas diferentes sobre a realidade. Podemos observar que certos discursos de um determinado locus social são valorizados e entendidos como hegemônicos e outros como dissidentes, e, em se tratando de narrativas de grupos minoritários, normalmente estas são sistemática e historicamente apagadas e/ou privadas de sua própria enunciação. 21 Acho necessário pontuar que tomo a palavra “discurso” de acordo com o conceito Foucaultiano, segundo o qual os grandes enunciados produzem verdades, sendo o discurso um sistema que estrutura determinado imaginário social, (FOUCAULT, 2012. p.8). Os discursos produzidos sobre corpos dissidentes muitas vezes se mostram distantes de quem é definido por eles, no sentido de que grupos dissidentes são historicamente patologizados, criminalizados e estigmatizados em relação ao que é hegemônico, ao que é considerado normal. Por exemplo, não foi ê3 transexual que se definiu enquanto transexual; assim como não foi ê homossexual que se autodenominou homossexual. O que nos leva a questionar: quem conta a história des dissidentes? Quem define a narrativa de LGBTQIAP+? Quem deu nome aes dissidentes foram es “incidentes”, aquelus que se encaixam na norma hegemônica e estão em posição de poder, porque dominam os termos utilizados em espaços de formalidade, como escolas, tribunais, academias, etc, e porque controlam a narrativa oficial, definindo o que será preservado e o que será apagado. Seria leviano afirmar que nós, LGBTQIAP+, contamos nossa história, porque não somos nós que ocupamos o espaço de dizer, sendo negado a nós o exercício de questionar o que é verdade na sociedade, nem mesmo sobre os nossos corpos. E assim se dá com diversos grupos sociais marginalizados, onde se perpetua a violência epistêmica que leva Spivak (2010, p. 47) a afirmar que o subalterno não pode falar. Spivak é uma pesquisadora indiana radicada nos EUA e uma das principais teóricas do pós-colonialismo, em seu trabalho ela busca "questionar o lugar do investigador" (SPIVAK, 2010, p.19.), problematizando a visão supostamente neutra daquelus que produzem o discurso em espaços formais e criticando a posição eurocêntrica de diverses pensadories em relação às epistemologias de países colonizados, muitas vezes colocados como o “Outro” em relação ao sujeito europeu. Ela exemplifica a questão: É impossível para os intelectuais franceses contemporâneos imaginar o tipo de Poder e Desejo que habitaria o sujeito nominado do Outro da Europa. Não é apenas o fato de que tudo o que leem ― crítico ou não ― esteja aprisionado no debate sobre a produção desse Outro, apoiando ou criticando a constituição do Sujeito como sendo a Europa" (SPIVAK, 2010, p.45-46). 3 Opto por utilizar a linguagem neutra nesse texto quando não há uma definição clara do gênero da pessoa ou grupo social em pauta ou quando a pessoa citada se identifique como não-binária. Como a linguagem neutra ainda não tem uma ortografia oficial, me inspiro nas propostas de Ophelia Cassiano (2019) e André Fischer (2020). 22 O sujeito europeu enquanto norma foi historicamente imposto às colônias, obrigando-nos a seguir padrões de gênero, etnia, religião, sexualidade, cultura, economia, etc. Spivak reclama a necessidade urgente de desconstrução desse sujeito, sua descentralização e a des-hierarquização de saberes que o mesmo impôs, valorizando os discursos e saberes de populações dissidentes. Observando o valor móvel dos termos e discursos, é possível que essas mesmas palavras, enunciadas para ofender, criminalizar ou patologizar, sejam ressignificadas e alçadas ao patamar de identidade, na adoção por sujeitos que as tomam de forma positiva. Para isso, entretanto, é necessário entender os processos de construção das nomenclaturas, e como elas descrevem e espelham valores e relações sócio-culturais de diversos períodos. 1.4 Imersão #2 - Genealogia4 da construção do Gênero e da Sexualidade Moderna Pensando em minha trajetória, enquanto pessoa não-binária, bixa, branca e proveniente da classe média paulistana (o que me rendeu mais acesso à informação e privilégios, se comparado a sujeitos com outra demarcação de classe e raça-etnia, por exemplo), em doze anos de formação escolar básica, nunca li ou ouvi sobre a história da população LGBTQIAP+ em nenhuma aula, livro ou filme. Para ser preciso, a narrativa que me era contada - nas entrelinhas ou diretamente - era a de que ser homossexual ou performar marcadores sociais ditos femininos era algo anti-natural ou ridículo. Hoje, como professore, entendo o porquê desse silêncio: não nos é permitido falar sobre vivências que fujam da “harmonia hegemônica”, por mais que o acesso à informação e à referências LGBTQIAP+ na mídia seja muito maior hoje, em 2022. Lembro que me esforçava secretamente para baixar filmes e comprar livros que abordassem essa temática, que me fascinava e me dava medo. De fato, meu primeiro contato com algum tipo de produção cultural que falasse sobre questões LGBTQIAP+ foi no teatro, nos cursos livres que fazia na Zona Norte de São Paulo e, especialmente, 4 O termo “genealogia” mostra-se mais apropriado para a pesquisa das vivências e saberes de corpos dissidentes, seguindo a distinção do termo “arqueologia” proposta por Foucault. Nas palavras de Costa (2020): “Segundo o autor, a arqueologia tem por propósito descrever a constituição do campo, entendendo-o como uma rede, formada na interrelação dos diversos saberes ali presentes. É exatamente nesta rede, pelas características que lhe são próprias, que se abre o espaço de possibilidade para a emergência do discurso. Já a genealogia busca a origem dos saberes, ou seja, da configuração de suas positividades, a partir das condições de possibilidades externas aos próprios saberes” (COSTA, 2020, p. 426) 23 no projeto Conexões5, quando foi trabalhado o texto “Godofredo e Alice”, do dramaturgo Newton Moreno, com direção de Cecília Schucman e Tati Caltabiano. O teatro que vivi durante minha adolescência, antes de optar pela formação em uma universidade, reunia os nerds de Pirituba, as meninas mandonas, as bixas no armário, roqueiros bissexuais, lésbicas e patricinhas fãs de musical, tudo isso em salas de ensaio improvisadas, na periferia de São Paulo. De certa forma, aquele era um espaço mais liberal em relação à escola6; uma característica que acredito ser semelhante à de outres artistas LGBTQIAP+ com origens semelhantes. É complexo discutir papéis de gênero no mundo social da escola, especialmente no momento histórico em que vivemos, quando esse assunto se tornou um tabu dentro da sala de aula, com um controle extremo sobre ê professore. Um exemplo dessa questão é a proliferação de projetos de leis que proíbem o uso da linguagem neutra nas escolas e concursos públicos em diversos estados brasileiros, já aprovados em Rondônia e Mato Grosso, acusando a prática como “ideologia de gênero", mas que têm como principal objetivo “[..] fazer uma espécie de ‘terrorismo moral’, voltado especialmente à parcela mais conservadora da sociedade, e aquelas pessoas que têm menos acesso à informação (VILELA, 2021, n.p.).7 Porém, ao ignorar essas pautas, uma parte importante da vivência des alunes fica de fora do contexto escolar, que deveria ser um espaço aberto ao pensamento crítico e aos corpos diversos. Entretanto, parece que es alunes e professories, ao entrarem em sala de aula, tornam-se apenas intelecto: ignora-se completamente seus corpos e vivências e, como aponta a teórica feminista bell hooks, são tratados como “espíritos descorporificados” (HOOKS apud LOURO, 2000, p.2). Sobre a imposição normativa de gênero na sociedade burguesa, Judith Butler (2001) propõe “[...] uma análise crítica da diferença de gênero e de sexo, produto do contrato social heterocentrado, cujas performatividades normativas foram inscritas nos corpos como verdades biológicas” (BUTLER apud PRECIADO, 2014, p. 21). Ou seja, 7 Tais questões servem para que políticos se projetem no eleitorado conservador através de pautas polêmicas como educação sexual, educação política, questões minoritárias, etc. 6 O retrospecto da minha própria vivência indica o quanto o teatro pode ser um espaço de enunciação de corpos não-normativos, em fases em que os sujeitos estão se conhecendo e em processo de formação de sua identidade. Porém, o teatro é também um território de contínuas disputas, assim como outros espaços sociais. 5 O projeto Conexões é realizado em parceria entre o British Council, a Cultura Inglesa e a Escola de Teatro Célia Helena, com o intuito de fomentar a criação de textos teatrais contemporâneos por autores brasileiros e ingleses e disseminar esses textos, com a publicação bilíngue do livro “Conexões: nova dramaturgia para jovens”. Participei do projeto em 2010 com a Impertinente Trupe Contrastes. Diversos dramaturgos escreveram para o Conexões, tais como Newton Moreno, Marcelo Rubens Paiva, Jandira Martini e Luis Alberto de Abreu, entre outros. 24 Butler afirma que tais códigos são tidos como naturais e que seguem uma lógica heterocêntrica, garantida por grupos sociais e instituições que dominam posições de poder hegemônico. Podemos pensar que o conceito “gênero”, conforme Judith Butler (2003) e Simone de Beauvoir (1980), é algo que fazemos e não algo que somos. Portanto, cada ser está em construção de suas características como sujeito dentro de um contexto social. Logo, pode-se dizer que não há uma essência por detrás dos nossos atos, mas que esses atos per si implicam uma construção contínua do que "somos". Gênero é uma dessas construções produzidas nesse processo de vivência social; porém, se gênero é devir, o que determina nosso gênero? Em que medida alguém escolhe o próprio gênero? Butler (2003) comenta que fazemos escolhas, ou melhor, negociamos nosso gênero todos os dias, mesmo em corpos cuja performatividade opera dentro da norma; todes pensam como agir e se portar a partir de enunciados identificatórios. Construídos discursivamente no interior de uma matriz heterossexual e cisgênera de saber-poder8, tais enunciados identificatórios são um conjunto de valores e rótulos que nos são passados por nossos modelos de identificação. Normalmente, nossos parentes (e principalmente nossos pais) são nossas primeiras e mais importantes referências, como comenta Almeida et al. (2013), “[...] impregnando a criança de rótulos, determinam a adaptação da criança à identidade que lhe é imposta, sendo a consequência mais comum o fato de que a sua conduta irá confirmar a previsão dos pais” (ALMEIDA et al., 2013, p. 2). Identidade é um processo complexo e dinâmico, que se processa nos planos sexual, social, profissional, entre outros, a partir de identificações (OLIVEIRA apud ALMEIDA et al, 2013, p. 2). Do ponto de vista psicológico, a noção de identidade está associada a um sentimento de continuidade no comportamento de cada indivíduo, que confere a ele características singulares. Esse é o subsídio necessário para a construção do “Eu”, processo o qual, de acordo com a pesquisadora Rita Paiva, “[...] reside substancialmente na edificação de um projeto identificatório e uma interpretação de sua 8 “Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Essas relações de “poder-saber” não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria ou não livre em relação ao sistema do poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas.” (FOUCAULT, 1996, p. 30) 25 própria história, que é incessantemente reconstruída.” (PAIVA, 1998, p.85). Segundo Stuart Hall (2003), os códigos naturalizados que contribuem para a constituição dos projetos identificatórios são aprendidos desde cedo, tornando-se tão arraigados numa sociedade, que deixam de aparentar seu verdadeiro caráter de construção social e são tomados como naturais. Por detrás de sua construção, segundo o autor, encobrem-se práticas de codificação: afastando possibilidades de articulação voluntária entre signo e referente, o conceito é colocado como uma verdade única. Como tudo o que sabemos e dizemos está mediado pela linguagem, não há possibilidade de uma linguagem “neutra” e, para Hall, não há um "grau zero" em relação à linguagem; tudo é mediado, posto que qualquer forma de codificação e decodificação discursiva de um conhecimento resulta da articulação da linguagem em condições reais, sem possibilidades de visão transparente do real. Hall, como um construtivista, vê o “real” como uma construção social (ITUASSU apud HALL, 2016, p. 11), construção esta que poderia ser vista em diversos níveis de abstração, necessários para que a possamos apreender. Como Hall relata: [...] para pensar ou analisar a complexidade do real, é necessária a prática do pensar e isso requer o uso do poder da abstração e análise, a formação de conceitos com as quais se pode recortar a complexidade do real, com o propósito de revelar e trazer a luz as relações e estruturas que não podem se fazer visíveis a olho nu e ingênuo, e que também não podem se apresentar nem autenticar a si mesmas. (HALL, 2003, p.150) Se entendemos o processo identitário como contínuo e incessante, gênero e sexualidade também se tornam conceitos móveis, que podem variar de acordo com os enunciados a eles atribuídos. Muites autories contestam as divisões assimétricas consagradas pelo binômio homem/mulher, apoiado na ideia de "verdade biológica", que liga os sinais morfológicos de gênero (pênis/vagina) a gênero, alinhando compulsoriamente desejo, sexualidade e comportamento sexual, conforme comenta Paul Preciado: O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados. A (hetero)sexualidade, longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se reinstruir através de operações constantes de repetição e de recitação dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais (PRECIADO, 2001, p. 26). Na reflexão de Preciado, a lógica heterossexual é reiterada a todo tempo, através 26 das relações e da formação/construção contínua de cada indivíduo, pela ação das instituições da família, religião, educação, mídia e ideologia. Tal reiteração se dá de distintas formas, algumas sutis e discretas, outras extremamente violentas, como comenta Berenice Bento (2011) sobre a normatização dos corpos no ambiente escolar e o fenômeno do “heteroterrorismo” que muitas crianças/jovens passam em sua vivência escolar. A pesquisadora travesti Abigail Campos Leal relata como se isolava da “[...] socialização cishétero y do seu terrorismo” (2020, p. 67) através dos livros e do estudo, e de como essa estratégia (quase intuitiva) a fortaleceu em um espaço completamente despreparado para lidar com um corpo travesti. Acredito que muites LGBTQIAP+ podem confirmar essa vivência de reiteração forçada e traumática de comportamentos normativos, que abarca a sociedade como um todo e, inclusive, também prejudica a formação de pessoas cisgêneras e heterossexuais. O ambiente escolar exemplifica como a reiteração dessa matriz está impregnada nas instituições formais de poder como fator regulador, embora vista como algo neutro. Entretanto, se o corpo é socialmente escrito, como se expressam as sintaxes que não seguem a gramática normativa? Preciado confirma que a ação coercitiva da sociedade se manifesta no apagamento sistemático de determinados corpos, empurrados à marginalização e aos modos de sobrevivência precarizados. Essa lógica “higienizante” se constituiu em paralelo à normatização dos corpos, conforme os discursos de poder se consolidaram como hegemônicos no Ocidente. Conhecer esse processo histórico nos ajuda a entender como as dissidências estão se articulando politicamente hoje, para mudar esse quadro. Onde e quando surge a dissidência não-normativa, afinal? Inexiste uma resposta exata sobre a história da população LGBTQIAP+ e sua emergência como sujeito político, mas é possível acompanhar estudos que se aventuram no traçado de uma genealogia das corpas dissidentes, indicando como as vivências que conhecemos hoje como abjetas foram construídas através do tempo. A história da população LGBTQIAP+ tem sido apagada pela narrativa hegemônica, que privilegia corpos e vivências normativas. Como sugere Foucault, em sua História da Sexualidade (2018), o séc. XIX demarca o momento em que essa população começou a ser diferenciada, em um processo essencializante e controverso de taxonomias sobre os “desviantes da norma”, criadas pela lógica normativa e suas instituições. 27 Entretanto, nota-se um esforço por parte de pesquisadories e historiadories da contemporaneidade em dar escuta às perspectivas dissidentes, evidenciando vivências que não se encaixavam no que é entendido como norma, “heterossexual”, branca e “cisgênera9”. Figuras como Xica Manicongo10 e Tibira do Maranhão11, apesar de terem fundamentação histórica questionável, constituem marcos simbólicos com valor histórico para essa outra narrativa, uma vez que contribuem para o movimento de visibilidade da multiplicidade de vivências no passado e hoje.12 Diferentes teorias, nas mais diversas áreas, discutem a história da sexualidade e do gênero no Ocidente13. Essas teorias nos auxiliam na análise dos discursos de poder envolvidos no controle dos corpos e suas interações, que Foucault chama de “biopoder”. Foucault, em História da Sexualidade (2018), critica a forma tradicional de entendimento da sexualidade, descrita como um desejo e/ou impulso natural libidinal sem a influência do contexto social do sujeito. O autor argumenta que os desejos não são entidades biológicas pré-existentes, mas sim constituídos no curso de práticas sociais específicas; assim é possível contextualizar historicamente o modo como lidamos com o desejo. Para Foucault, há que se considerar os aspectos geradores da organização social do sexo antes do que seus elementos repressivos, mostrando que novas sexualidades estão sempre sendo produzidas (RUBIN, 2012, p. 20). Ou seja, mesmo que haja um fator repressivo, não paramos de nos relacionar com a sexualidade; contrariamente, negociamos com esses fatores de forma diferente, produzindo sexualidades a partir do contexto. 13 Para maior aprofundamento sobre o tema, consultar: Rubin (2003; 2012), Foucault (2018), Green (2019), Preciado (2008), Jesus (2019), Louro (2001), Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2021), entre outres. 12 Os registros históricos utilizados para se analisar vivências dissidentes na história brasileira são muitas vezes fragmentários e partem de escritos dos colonizadores (como os arquivos da Torre do Tombo de Lisboa, onde estão os manuscritos do Santo Ofício). No entanto, há relatos de viajantes do período colonial que por aqui passaram comentando da “promiscuidade” e “devassidão” de alguns povos indígenas, que tinham relações homossexuais, além de relatos de “travestimento” e de mulheres indígenas que “imitam os homens e seguem seus ofícios” (GANDAVO apud TREVISAN, 2018, p. 65-66). 11 Indígena Tupinambá cuja história foi resgatada por Luís Mott, que teria sido o primeiro mártir homossexual no Brasil, executado em 1614. 10 Considerada por diversos movimentos sociais como a primeira travesti brasileira, seu nome social foi atribuído postumamente por Majorie Marchi, militante travesti negra que presidiu a ASTRA-Rio (Associação de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro), criando-se assim um marco simbólico para a população trans no Brasil. 9 Sobre o termo, segundo Jesus et al (2019): “O termo „cisgênero‟, de acordo com Jesus (2012), foi criado pelo movimento transfeminista para abarcar as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado no momento de seu nascimento, ou seja, as pessoas que não são trans. Simakawa (2015) defende que “cisgeneridade‟ e “cisnormatividade‟ são categorias analíticas relevantes para reflexões políticas, acadêmicas e existenciais sobre as diversidades de corpos e de identidades de gênero, assim como para o desenvolvimento de reflexões acerca dos dispositivos de poder institucionais e não-institucionais que exercem colonialidades, especialmente, sobre os corpos das pessoas trans e intersexo.” (JESUS et al, 2019, n.p.) 28 Avesso ao pensamento de que a questão sexual foi silenciada no séc. XIX, em sua crítica da hipótese repressiva, Foucault sugere o oposto. O primeiro capítulo do livro “A Vontade de Saber” recebe o nome de “Nós, Vitorianos”, numa provocação irônica sobre a sociedade pudica e conservadora da época em que escreveu o livro, 1970. Traçando um paralelo entre 1970 e a sociedade vitoriana do séc. XIX (simetria que poderíamos reconhecer ainda hoje), Foucault argumenta que a sexualidade era muito discutida e produzida pela Lei. Segundo ele, longe de um silêncio em torno do sexo, existia no século XIX “[...] a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez mais” (FOUCAULT apud SALIH, 2012, p.84). Com o intuito de analisar os procedimentos históricos de produzir verdades sobre o sexo, Foucault cunhou dois conceitos, scientia sexualis e ars erotica, dispostos em oposição. O primeiro, marca a tendência ocidental na Modernidade de controlar a sexualidade através da Lei e da ciência; e o segundo, configura-se como uma tendência oriental, nos termos de Foucault: [...] a verdade [sobre o sexo] é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido como experiência; não é por referência a uma lei absoluta do permitido e do proibido, nem a um critério de utilidade, que o prazer é levado em consideração, mas, ao contrário, em relação a si mesmo: ele deve ser conhecido como prazer, e portanto, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, sua duração, suas reverberações no corpo e na alma (FOUCAULT, 2018, p. 57). Por mais que essa afirmação possa ser questionada, em termos da problemática divisão oriente/ocidente, e se realmente não se processa alguma regulação ou lei na Ars Erotica, o que Foucault analisa em termos de scientia sexualis é esclarecedor para o modo como a ciência passou a regular quais corpos e quais vivências são considerados “naturais” ou “normais” nas sociedades Ocidentais. Já Rubin (2003) observa que os arranjos sexuais modernos possuíam um caráter distinto dos modelos pré-existentes. No Ocidente, a industrialização e a urbanização transformaram os trabalhadores rurais em massa de trabalho para o setor industrial; o que reorganizou as relações familiares, alterando os papéis de gênero e tornando possíveis novas formas de identidades, em paralelo à produção de novas formas de 29 desigualdade social. Esse contexto deu origem a um sistema sexual caracterizado por diferentes personas14 sexuais. Os sexólogos do séc. XIX, como salienta Rubin, notaram um processo de “[...] formação e fixação de novas espécies eróticas” (RUBIN, 1984, p.35, grifo nosso) e a formação de suas primeiras comunidades, que mais adiante irão lutar com outros estratos sociais para manter ou mudar seu status dentro de uma sociedade hierarquizada. É nesse momento que são estudados e organizados taxonomicamente grupos sociais marginalizados, procurando através do olhar “purificado e neutro” da ciência explicar as questões mais escusas ligadas à sexualidade. Pode-se acrescentar que tal ciência, entretanto, longe de ser neutra, seguia uma lógica positivista, evolutiva e biologizante, procurando razões biológicas e/ou genéticas para explicar determinados comportamentos sociais, tais como os vícios, a homossexualidade, a prostituição e, posteriormente, a transexualidade. Afinal, era necessário explicar por que esses indivíduos fugiam à natureza heterossexual, cisgênera e burguesa. É nesse contexto que é difundido o termo “homossexual”, como salienta Guacira Lopes Louro: A homossexualidade e o sujeito homossexual são invenções do século XIX. Se antes as relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram consideradas como sodomia (uma atividade indesejável ou pecaminosa à qual qualquer um poderia sucumbir), tudo mudaria a partir da segunda metade daquele século: a prática passava a definir um tipo especial de sujeito que viria a ser assim marcado e reconhecido (LOURO, 2001. p. 542). Segundo Louro, a sodomia, definida pelo direito civil e canônico, era uma categoria de atos proibidos que consistiam em uma prática sexual que incluia o intercurso anal, o que poderia ser feito entre um casal heterossexual ou homossexual. A ação pecaminosa estava mais associada ao fato de a relação sexual estar ligada a uma relação de prazer e não a um objetivo reprodutivo, do que ao envolvimento entre duas pessoas do mesmo gênero (não que isso fosse desejável, já que a relação entre dois homens cisgêneros, por exemplo, implicava sodomia). Entretanto, os que praticavam tais atos eram apenas os “sujeitos jurídicos” (FOUCAULT, 2018, p. 47) dos mesmos, já que a sodomia era um pecado e, uma vez cometida a falta, todes poderiam pagar pelos seus “erros”. 14 Gayle Rubin utiliza o termo “sexual persons” no texto original, optamos aqui pela tradução livre do termo em “personas sexuais”, sendo que outras traduções optaram por “pessoas sexuais” ou “personagens sexuais”. 30 Já o homossexual do século XIX, segundo Foucault, se tornou uma personagem, um passado e uma infância, além de ser um modo de vida, uma forma de agir e pensar, com uma anatomia pouco discreta e uma fisiologia misteriosa. Essencializa-se a homossexualidade, colocando um aspecto da personalidade do sujeito - sua sexualidade - como algo que se sobrepõe a outras características. Foucalut resume: “O sodomita foi uma aberração temporária; o homossexual agora era uma espécie.” (FOUCAULT, 2018, p. 48). É importante pontuar que o fato de se haver nomeado e estudado essas comunidades a partir do séc. XIX não implica que elas não existiam como vivências dissidentes na sociedade anteriormente. Como aponta Foucault, vivências dissidentes de gênero e sexualidade sempre existiram, nos contextos urbano e rural, porém não organizadas como identidades fixa e em oposição em relação à cis-heteronorma. São as análises dos sexólogos e médicos do séc. XIX que trazem à tona as dicotomias heterossexual versus homossexual e homem versus mulher, naturalizando essa dualidade e apagando seu caráter cultural e social, com o objetivo de controle. Rubin analisa em especial a história dos EUA e da Inglaterra na Modernidade. Nessas nações, as populações dissidentes passaram por um processo de patologização e criminalização em um contexto de industrialização, em que as relações maritais normativas eram promovidas pela religião cristã. Ainda que essas populações não se reconhecessem nas identidades gay, lésbica e trans (termos cunhados posteriormente), é possível entendê-las como parte de uma cultura não-cisgênera e não-heterossexual. Essa é a leitura, por exemplo, do antropólogo Luiz Mott (2018) para o caso da escravizada Xica Manicongo, já citada aqui. O principal registro sobre Xica Manicongo se encontra na Torre de Lisboa, nos documentos do Santo Ofício no Brasil, observados por Luiz Mott (1992), em que Xica é citada apenas como “Francisco, natural do Congo”. De acordo com esse registro, Xica viveu na cidade de Salvador, sendo trazida do Congo até o Brasil por exploradores escravagistas. Ela, supostamente, se vestia à moda dos “quimbanda”, termo bantu que, segundo Jaqueline Gomes de Jesus, "[...] significa, basicamente, ‘invertido’, tendo adquirido também o sentido de ‘curador’ e, posteriormente, para os umbandistas do século XX, referindo-se a um ramo de sua religião.” (JESUS, 2019, p. 252). Com a visita da Inquisição, foi feito por parte do lisboeta Matias Moreira uma denúncia contra a forma que Xica se vestia, de acordo com ele, “[...] como na sua terra em Congo trazem 31 os somítigos pacientes” (MOTT, 1992, p.181). No entanto, é possível ler no registro que Xica nega diversas vezes vestir-se de tal forma15, o que também coloca em dúvida se a mesma performava tal comportamento à moda dos quimbanda ou se procurava mentir, para se preservar dos castigos do Santo Ofício. Não se sabe exatamente como Xica se portava nas ruas da Cidade da Bahia, pois os registros acessíveis mostram apenas que Xica foi acusada por parte de um denunciante europeu de se portar como “jimbandaa”, o que acarretaria crime de sodomia e, consequentemente, a punição de ser queimada viva em praça pública. Tal castigo não é levado a cabo, pois Xica passa a andar com o “vestido de homem” que seu senhor lhe dera (MOTT, 1999, p.17). Ao posicionar-se sobre esse episódio, o movimento trans realiza uma importante escavação simbólica da história sob a perspectiva trans: o grupo identifica-se com a vivência de Xica, afirmando que ela não seria um “homem travestido”, mas uma "identidade travesti" apagada pela narrativa dominante. Jaqueline Gomes de Jesus evidencia o valor do processo de Francisco à Xica, reiterando: [...] o caráter mobilizacional da construção de memória coletiva, e seu papel relevante na construção e protagonização de identidades grupais, particularmente, daquelas identificadas no âmbito das identidades de gênero trans, tendo em vista sua apropriação simbólica e ressignificação na contemporaneidade.” (JESUS, 2019, p. 250). Para analisar Xica Manicongo, a autora faz uma aproximação com o termo travesti, que surgiu muitos séculos após a morte de Xica, dando visibilidade a uma vivência dissidente de gênero. Segundo a autora, é o século XXI que irá testemunhar um novo surgimento dessa personagem histórica, ancorando nela o projeto de cidadania a que têm direito as pessoas trans (JESUS, 2019, p. 259). A análise de Jaqueline Gomes 15 “Outra referência interessante encontrada nos processos do Santo Ofício envolve o sapateiro Francisco, natural do Congo, cativo de Antonio Pires, morador abaixo da igreja da Misericórdia, o qual tinha fama entre os negros de ser somitigo. Seu acusante, o lisboeta Matias Moreira, cristão-velho, disse que, ‘[...] em Angola e Congo, nas quais terras ele denunciante andou muito tempo e tem muita experiência delas, é costume entre os negros gentios trazerem um pano cingido com as pontas por diante, os negros somitigos, que no pecado nefando servem de mulheres pacientes, aos quais pacientes chamam, na língua de Angola e Congo, 'jimbandaa', que quer dizer somitigos pacientes’. Ouvindo dizer que o dito Francisco era sodomita, certa feita ‘[...] viu ele denunciante ao dito negro trazer um pano cingido assim como na sua terra em Congo trazem os somitigos pacientes, e logo o repreendeu disso e o dito Francisco lhe respondeu que ele não usava de tal e o repreendeu também porque não trazia o vestido de homem que lhe dava o seu senhor, dizendo-lhe que em ele não querer trazer o vestido de homem, mostrava ser somitigo, pois também trazia o dito pano do dito modo e contudo lhe negou que não estava de tal. E depois o tornou ainda duas ou três vezes a ver nesta cidade com o dito pano cingido e tornou a repreender e já agora anda vestido em vestido de homem’" (Denunciações da Bahia, 1925: 406-7).” (MOTT, 1992, p.181, grifo nosso). Não tive acesso direto nesta pesquisa às Denunciações da Bahia, me baseando nos relatos de Mott. 32 de Jesus é um passo importante para pensarmos a história e a memória de forma mais crítica e política. Embora Xica Manicongo seja um importante marco simbólico para tornar a história brasileira menos hegemônica, questiono se, ao afirmar Xica como a primeira travesti de nossa história, conforme pontuado por Mott (2018), não reduzimos as possibilidades de considerar as vivências de gênero dos povos indígenas, cuja história antecede a invasão colonial no Brasil. Prefiro, assim, pensar Xica Manicongo como um marco travesti dentro do contexto colonial. No entanto, acredito que comportamentos de gênero e sexualidade não-hegemônicos já estavam presentes também no período pré-cabralino, sendo essas vivências submetidas à abjeção com o processo colonial16. Como Rubin pontua, em relação às sexualidades dissidentes: “O comportamento homossexual está sempre presente entre os seres humanos. Mas em diferentes sociedades e épocas ele pode ser estimulado ou punido, exigido ou proibido, pode ser uma experiência passageira ou algo para toda a vida” (RUBIN, 2003, p.35). Pode-se dizer o mesmo sobre as vivências de gênero não-cisgêneras. 1.5 Imersão #3 Contexto Histórico Brasileiro O brasilianista James Green (2019) relata como se desenvolveu nos centros urbanos dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, durante o século XX, o chamado “submundo homossexual”, que abarcava pessoas de orientação sexual e gênero fora do padrão. O contexto urbano e industrializado de que trata o autor espelha as mudanças em relação à produção de verdades frente à sexualidade na Modernidade, que Rubin e Foucault comentam. As modificações sucessivas do conceito de homossexualidade têm reverberações análogas no Brasil. Até o início do Séc. XIX, a homossexualidade era considerada pecado (de sodomia) e punida com tortura, perda de bens e banimento. O “travestimento” também era um pecado, apesar de ser prática comum até o final do séc. XIX no teatro e nas festividades populares como o Carnaval (sendo até hoje uma prática comum). Na segunda metade do séc. XIX, como aponta Green (2019), ocorre uma 16 Prefiro pensar, por uma questão estratégica, as vivências indígenas em relação a gênero e sexualidade utilizando o termo Cuir, pois: “O “queer”, nesse sentido, nos permite chamar a atenção não ao homo/bi/trans/inter/etc., mas ao fenômeno da abjeção em si (Kristeva, 1982) dentro de processos aos quais os povos indígenas foram (e são) sistematicamente submetidos.” (FERNANDES, 2015, p.16). 33 mudança em relação à homossexualidade, que passa a ser considerada um crime e classificada como atentatória ao pudor e, por fim, patologizada, assim como outras formas de expressão contra-hegemônicas de sexualidade e gênero. A homossexualidade e a transexualidade tornam-se passíveis de prisão, internação em hospícios e tratamentos psiquiátricos abusivos, com resultados devastadores para os "pacientes". Conforme Peter Beattie (1997) comenta, o conceito é perpassado por valores importados da Europa pela elite de fins do século XIX, que patologizam comportamentos alheios à ordem hegemônica de masculinidade, de forte traço militarista, pregada pela Nova República. É a esses “valores importados” que Rubin (2017) se refere em seu texto, e que marcam a sexualidade como uma marca pujante da personalidade de um indivíduo, em um ponto de vista cientificista e positivista que essencializa a homossexualidade e a heterossexualidade, uma entendida como doença e a outra, como natural. Apesar disso, de acordo com Green (2019), no início do séc. XX homossexuais e travestis continuam a resistir e a se concentrar em centros urbanos. No caso da provinciana São Paulo, o período demarca o início de um grande projeto de modernização urbana, fomentado pela produção de café e pela industrialização rápida, que possibilitam a construção de grandes obras públicas: a criação do Viaduto do Chá, em 1892; a urbanização da praça da República (até então, um espaço afastado do centro antigo, onde funcionava um sanatório) e o projeto paisagístico do Anhangabaú, pelo arquiteto francês Joseph Antoine Bouvard, em 1911, são alguns exemplos desse desenvolvimento urbano. Populações de homossexuais passam a socializar em regiões centrais da cidade, praticando footing17 nas adjacências dos parques e praças do centro novo. Ainda não existiam espaços voltados para a população LGBTQIAP+, e espaços públicos e banheiros eram os melhores lugares para o contato e a paquera, sem levantar suspeitas. Caso os participantes do footing quisessem mais privacidade, havia a possibilidade de alugar um quarto nas diversas pensões e hotéis baratos da região, onde poderiam se isolar. Esse tipo de socialização pode ser comprovado em registros policiais, seja nos relatos de homossexuais presos por atentado ao pudor, seja nas notícias sobre golpes aplicados em homossexuais mais abastados, que caiam no dito “conto do suadouro” 17 “Footing” é um termo utilizado para uma prática comum entre homossexuais no séc. XX que se baseia em flanar por espaços urbanos e flertar ou socializar com outros homossexuais que estejam passando por esses espaços. Tal atividade buscava uma certa discrição, já que qualquer demonstração de afeto poderia ser considerada atentado ao pudor e o meliante levado para a prisão ou um hospício. 34 (onde o mesmo era enganado por seu parceiro, que o levava para um quarto de hotel em que outra pessoa estava escondida e lhe roubava, discretamente, a carteira). Vale acrescentar que a pesquisa sobre tais espaços, muitas vezes, se restringe a homossexuais masculinos, sendo excluídas populações lésbicas e transexuais. Também vale ressaltar a inexistência de uma distinção clara entre travesti, homossexual e transexual18; assim como, no âmbito da população lésbica inexistia distinção mais precisa entre lésbicas cuja performatividade abarcava marcadores ditos masculinos e homem trans. Tais divisões surgiram, como veremos adiante, a partir da metade dos anos 1970, e se consolidaram no início dos anos 2000, em virtude de questões de representação política e exigências de atendimento específico dessas populações por parte do governo19 (CARRARA, p.467, 2016). Nos anos 1930, outro espaço de socialização começou a fazer sucesso entre 19Sobre a problematização do movimento homossexual e a origem do termo LGBTQIAP+, Sérgio Carrara comenta sobre as diferenças entre os distintos grupos que não se sentiam contemplados pelo termo “homossexual”: "Militantes lésbicas passaram a apontar que, sob a genérica categoria ‘homossexual’, havia como referente implícito um homem homossexual e que isso as invisibilizava. Quando puderam emitir uma voz pública por meio de suas organizações, as travestis recusaram-se a ser classificadas como ‘homossexuais’, pois não se identificavam com um movimento que, em seu início, as marginalizava. Para elas, o que estava em jogo não era o preconceito que sofriam por sua ‘orientação sexual’, mas a liberdade ou o direito de expressarem uma ‘identidade de gênero’." (CARRARA, 2016, p. 468). 18 É tecnicamente difícil apontar as diferenças entre transgênero, transexual e travesti, posto que são denominações, de acordo com Saleiro (2013), “[...] provisórias e sujeitas a revisão, precisamente porque os conteúdos dos termos permanecem ainda em negociação” (SALEIRO, 2013, p.20). A palavra “transexual” - derivada do vocabulário comparativo do latin “trans + sexus”, posteriormente utilizado no francês como transsexuel (MICHAELIS, s.d., s.p.) - é utilizada pelo endocrinologista Harry Benjamin a partir da década de 1950. De acordo com Benjamim, o principal critério para definir uma pessoa transexual “seria a relação de abjeção, de longa duração, com suas genitálias. Para evitar que cometam suicídio, as cirurgias [de redesignação genital] deveriam ser recomendadas a partir de um rol de procedimentos arrolados por Benjamin em sua obra seminal.” (BENTO; PELÚCIO, 2012, p. 571). Entretanto, essa concepção é problemática pois reduz a transexualidade a uma patologia. Já a palavra “transgênero” propõe uma diferenciação entre identidade de gênero e sexualidade (frequentemente confundido) e pode ser colocada como um termo “guarda-chuva” que abarca distintas identidades de gênero de pessoas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído socialmente, tais como pessoas não-binárias, travestis, homens e mulheres trans, etc. Já o termo “travesti”, de acordo com Jaqueline Gomes de Jesus (2018), tem uma longa história, iniciada com os latinos que juntaram o termo “trans” ao termo “vestire”, referindo-se a quem exagerava na roupa que usava. No séc. XVI os italianos adicionaram mais um sentido à palavra “travestito”, utilizando-a para denominar quem se disfarça. O termo logo é adotado pelos franceses, que relacionaram o “disfarce” com um comportamento, tido como ridículo ou falso, de um homem que se veste como mulher. Posteriormente o termo é traduzido para o inglês como “travesty” e passa a ser uma forma pejorativa de se referir a população trans (JESUS, 2018, s.p.). O termo é importado ao Brasil e passa a designar uma identidade de gênero que abrange pessoas que receberam como imposição o gênero masculino, mas que se identificam com o gênero feminino. O termo era utilizado de forma pejorativa e vinculado a prostituição por muito tempo, mas vem sendo ressignificado e ganhando mais peso político, como comenta a coordenadora geral da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac), Yara Canta, “o termo mulher transexual muitas vezes é usado como uma forma de higienizar e talvez até apagar toda a história que a identidade travesti carrega. Precisamos parar de marginalizar essa identidade que foi e é extremamente importante para a história do movimento LGBTI+" (CANTA apud ALMEIDA, 2021, s.p.) 35 homossexuais: o cinema. Com a construção de verdadeiros palácios voltados para a sétima arte, a Av. São João e o Largo do Paissandú passaram a ser espaços de efervescência cultural, às vezes comparados à Cinelândia, no Rio de Janeiro. Cine Paissandú, Cine Marabá, Cine Espacial, Cine Marrocos e Cine Ipiranga, entre muitos outros, passaram a ser endereços favoráveis ao encontro de homossexuais que procuravam fugir dos enquadres da polícia na rua. Encobertos pela escuridão da sala de cinema, encontravam também uma maior discrição em seus encontros. Posteriormente, com a desvalorização imobiliária do centro e o consequente declínio dos cinemas de rua, ao lado da ascensão das grandes redes de cinema nos shoppings, essas salas antigas passaram a projetar filmes pornôs, continuando a ser um lugar de socialização homossexual, especialmente para HSH20, que sustentam esses espaços. A partir da década de 1950, a cidade ganhou seus primeiros estabelecimentos voltados ao público LGBTQIAP+; na verdade, bares comuns onde homossexuais transitavam com frequência - o que, muitas vezes, incomodava seus proprietários heterossexuais (STEFFEN, 2017, n.p)21. Em meados dos anos sessenta, a construção de uma ampla área de compras, a Galeria Metrópole, forneceu aos homossexuais um novo espaço para interações sociais. Clóvis, um dos entrevistados por Green (2019), lembra-se da estrutura: “[...] já quando estava em obras, as bichas falavam ‘vamos invadir esse espaço, vai ser nosso, vai ser uma bicharada toda nessa galeria’” (GREEN, 2019, p. 407). A Galeria Metrópole tornou-se o ponto gay mais movimentado de São Paulo; com seus cinemas, bares, boates, livrarias e escadas rolantes, era ideal para as paqueras. Do mesmo modo, a população gay adotou as adjacências da Galeria, a área ao redor da biblioteca municipal Mário de Andrade, onde fica a praça Dom José Gaspar, também um espaço de reunião de poetas, artistas e intelectuais. Como comenta o antropólogo Néstor Perlongher: Ponto quente da vida gay paulistana era a Galeria Metrópole. Cheia de bares, boates, inferninhos, fliperamas, galerias, livrarias, escadas rolantes, etc., a Galeria misturava não só o mundo gay, mas também intelectuais, artistas, 21 Para saber mais sobre como se desenvolveu os espaços de socialização LGBTQIAP+ na cidade de São Paulo, sugiro conhecer o grupo de pesquisa da FAU-USP Outros Urbanismos (http://outrosurbanismos.fau.usp.br/lugares-memoria-lgbt-sao-paulo/) e o documentário São Paulo em Hi-fi (2013), de Lufe Steffen. 20 HSH é um termo utilizado para definir homens que têm relações sexuais com homens em padrões ditos masculinos, recusando o que seria uma identidade “gay”. Como comenta Tiago Melo e Elena Santos: "Ao optarem pelo silenciamento e discrição, subterraneamente, observamos, em ambos os discursos, a tentativa de afiliação a uma identidade heteronormativa, já que ela, em nossa sociedade, carrega em seu bojo, sobretudo, a preferência pelas expressões de gênero classicamente masculinas." (MELO; SANTOS, 2020, p.263) http://outrosurbanismos.fau.usp.br/lugares-memoria-lgbt-sao-paulo/ 36 poetas, encucados, suicidas, prostitutas, gigolôs, cafetinas, músicos, e mais a bossa nova, o jazz, o rock, a tropicália, a psicodélica, o álcool, as drogas e, é claro, a polícia. Enfim, misturava tudo e todos, de Chico Buarque a Silvia Pinel, todo mundo deu, nem que en passant, uma geral pela galeria, onde o “Barroquinho” de Zilco Ribeiro era ponto chique (PERLONGHER, 1987, p.80). Como pontua Green, os intelectuais boêmios no centro de São Paulo podiam dividir o espaço com dissidentes sexuais, mas a opinião hegemônica ainda considerava a homossexualidade pervertida, decadente e não natural. Ou seja, o relativo grau de tolerância para com os homossexuais nesse espaço não significava que eles tinham obtido aceitação social nos anos cinquenta e sessenta. (GREEN, 2019, p. 290) James Green ainda comenta que, após o Golpe Civil-militar de 1964, uma série de batidas frequentes da Polícia Militar tiveram início no centro do Rio e de São Paulo. Clóvis, um dos entrevistados, menciona que continuou a frequentar o centro em fins dos anos sessenta, e que o efeito da "revolução dos generais" (GREEN, 2019, p.407) sobre os homossexuais de São Paulo demorou a ser sentida no cotidiano da cidade. O auge da Galeria Metrópole, de 1966 a 1968, só começou a arrefecer a partir do AI-5, em dezembro de 1968, quando houve um movimento de maciças blitz. Na Galeria, por exemplo, foram fechadas as três portas principais do centro de compras, os frequentadores foram detidos e levados em camburões. Isso diminuiu a frequência, e a Galeria entrou em declínio. Por fim, após quase um século de patologização das relações entre corpos dissidentes, começou a ocorrer o que o antropólogo Sérgio Carrara (2016) chama de processo de “cidadanização” de gêneros e sexualidades contra-hegemônicas. O termo descreve o processo que se dá desde os anos 1960 em relação a essas populações em todo o mundo, num fenômeno descrito pelo autor como “[...] um amplo projeto de incorporação social e política de certas categorias sociais marginalizadas que se apoia sobre o triplo processo de individualização, racionalização e responsabilização” (CARRARA, 2016, p. 3). A individualização corresponde ao processo de leitura des integrantes de determinada comunidade ou sociedade enquanto, sobretudo, indivíduos. Para além da totalidade social a que essa pessoa pertença, sua individualidade deve ser considerada para que esta seja vista como uma cidadã. A racionalização, por sua vez, remete “ao meio pelo qual os sujeitos sociais se relacionam com o mundo, com os instrumentos de apreensão do tempo, lugar, causalidade, relação, ordem, etc.” (DUARTE et al; 1993, p.4). E o último processo, a responsabilização, 37 consiste na relação moral entre os processos anteriores, entre o sujeito individualizado e suas razões racionais. Tal processo vinculado a luta política LGBTQIAP+ é um paralelo feito por Carrara baseado na análise do trabalho de organizações não-governamentais com populações marginalizadas na periferia do Rio de Janeiro nos anos 1980, que buscavam pôr em prática políticas públicas voltadas para cidadania, originalmente analisado por Duarte et al (apud CARRARA, 2016, p.3) No mesmo sentido, João Silvério Trevisan (2018) afirma que, no final do séc. XX, com a derrocada do sistema político comunista soviético e a radicalização das leis de mercado hegemônicas na economia globalizada, o que se colocou como mais importante foi o consumo e, dessa forma, até a moral passou a depender do mercado. Isso possibilitou uma certa “aceitação” dos comportamentos LGBTQIAP+ no mercado; porém, uma aceitação claramente fragilizada, pois se baseava no oportunismo do lucro, variando em graus de acordo com o momento político e econômico (TREVISAN, 2018, p.18). Ao analisar o processo de "cidadanização" da população LGBTQIAP+ no Brasil, Carrara (2016) comenta que a disputa entre o que era moralmente aceito em termos de sexualidade e performatividade de gênero foi marcada por processos de patologização e repressão. Nesse contexto, é importante pontuar o engajamento de grupos políticos, como o SOMOS (do qual Trevisan participou), fundado em 1978, e a militância de publicações, como o jornal Lampião de Esquina, no mesmo ano, ambos considerados marcos iniciais do movimento LGBTQIAP+ no Brasil (CARRARA, 2016, p.6). Ao lado desses dois eventos, colocados pelo autor como fundadores, cabe destacar outras ações políticas, de grupos como a Frente de Mulheres Feminista e o Grupo Gay da Bahia, no final da década de 1970. Já no campo da cultura, coletivos que questionavam a visão hegemônica sobre sexualidade e gênero não são tradicionalmente colocados como políticos, como aponta Carrara: É claro que essa datação (SOMOS e Lampião) corresponde a certa concepção do que seja ação política, deixando de lado eventos definidos como “culturais”, como os espetáculos do grupo teatral Dzi Croquettes, grande sucesso na primeira metade dos anos 1970, com sua irreverente estilização do humor camp (CARRARA, 2016, p.6). Observa-se nessa exclusão uma certa dissociação entre atitude e engajamento político nos campos cultural e da militância, como se a arte não se configurasse como força política efetiva. Entretanto, mesmo com a censura institucionalizada e a repressão 38 ostensiva da ditadura civil-militar, expressões culturais, muitas vezes, antecederam a própria organização política, sendo vanguarda no questionamento da moralidade socialmente aceita em termos de gênero e sexualidade. Além dos Dzi Croquettes, comentados por Carrara (2016), o cantor Ney Matogrosso e o grupo teatral Vivencial Diversiones, em Pernambuco, ao lado de outres artistas e coletivos que trabalhavam em espetáculos em clubes, boates e teatros, traziam de forma criativa questões que envolviam vivências sexuais e de gênero marginalizadas. Todas essas formas de ver e classificar corpos abjetos estão intimamente ligadas ao contexto histórico em que se incluem as lutas sociais e culturais. Na segunda metade da década de 1970, é significativa a lenta e gradual reabertura política no Brasil, na esteira dos movimentos de defesa dos direitos humanos no mundo. Sobre as mudanças desse momento histórico, no bojo da contracultura mundial e das lutas pela restituição dos direitos políticos no Brasil, Green comenta: As idéias da contracultura haviam penetrado no Brasil e influenciavam muitos jovens da classe média. Entre os novos desafios aos valores sociais hegemônicos estavam o uso de drogas, uma rejeição à sociedade de consumo e a desestabilização dos código sexuais, especialmente nas questões da virgindade feminina antes do casamento e da heterossexualidade normativa para homens e mulheres (GREEN, 2019, p. 409). Nesse contexto complexo, em que a expansão dos comportamentos libertários de certos grupos sociais conflitava com o rompimento do tecido social pela ação coercitiva de um Estado totalitário (num contexto de ditadura, cuja distensão só se deu a partir de 1985), é notável a mudança de condutas dentro do meio LGBTQIAP+ e o protagonismo que passou a assumir. Após o chamado milagre econômico (1968-1973), período em que o país atingiu o patamar de 11% de crescimento ao ano, seguindo um modelo econômico que favoreceu a concentração de renda nas classes média e alta dos centros urbanos, o Brasil passou a ter um mercado consumidor interno com mais capital para a compra de bens e serviços. Contudo, de acordo com James Green (2018), a exclusão das classes populares nesse crescimento fez com que estas procurassem condições cada vez mais precárias de trabalho, forçando ainda mais seus membros do grupo LGBTQIAP+, especialmente a população travesti, à prostituição. Aliado a isso, a aparição na mídia de estrelas como a travesti Rogéria (sem que se resolvesse a dificuldade de travestis e bichas afeminadas conseguirem postos de trabalho) confluiu para a fetichização da travesti e sua 39 valorização entre as profissionais do sexo, aumentando a quantidade de travestis nas ruas dos grandes centros urbanos. Em uma situação de completa abjeção, aliada a violência com que esta população era tratada pela sociedade e estado brasileiro, muitas travestis imigraram para a Europa em busca de uma sociedade mais permissiva e melhores condições de vida. Vale salientar que tal fetichização ainda está fortemente enraizada nos estereótipos construídos em torno da imagem de travestis e pessoas trans em geral, sendo estas objeto de desejo sexual no âmbito privado, ainda que repudiadas no espaço público. Assim, continua dominante o paradoxo deste ser o país que mais consome pornografia com pessoas trans no mundo (BENEVIDES, 2020, n.p) e, ao mesmo tempo, o que mais violenta e mata essa mesma população. Segundo Néstor Perlongher (2009), dentro da sua comunidade (que abarcava uma infinidade de expressões sexuais e de performatividade de gênero desviantes à norma), os homossexuais mantinham uma lógica heterocêntrica em suas interrelações, seguindo a oposição binária homem e mulher. Um entrevistado por Perlongher exemplifica o cenário do período: O Universo gay hoje é vasto e povoado por tipos que vão desde o travesti [sic] radical ao gay macho, que é o extremo oposto. O gay macho rejeita, hoje, a velha e neurótica superidentificação com as mulheres. Hoje, os modelos de identificação são os macho-man. Em pouco anos passaram da escravidão à feminilidade que nunca alcançaram a uma masculinidade que, eles sabem, jamais alcançarão (PERLONGHER, 1987, p.83) Entrevemos na descriação de como os homossexuais viam a si mesmos o amplo campo de performatividade de gênero presente na comunidade gay, que abrangia no período homens cis e mulheres trans.22 Nos anos 1970, emerge uma intensa discussão sobre como as vivências dissidentes se organizariam politicamente, aglutinadas no chamado “Movimento Homossexual”, mas que incluia pessoas trans, travestis, bissexuais e lésbicas (que não se sentiam contempladas pelo termo “homossexual”, pois argumentavam que o mesmo pressupunha o sujeito masculino). Segundo Cláudio Silva (1998), antropólogos como Luiz Mott, Peter Fry e Edward MacRae tiveram um importante papel nessas discussões, ainda que com pontos de vista concorrentes. Mott, numa perspectiva essencialista, contrapõe-se à visão de Fry e MacRae, na medida em que afirma que "[...] o ser 22 Vale ressaltar, conforme comentado, que travestis e mulheres trans, até então, eram lidas como homens cis e confundidas com homossexuais. A pauta identitária foi reivindicada pelo movimento trans posteriormente. 40 homossexual implica numa existência distinta, não separada [mas] uma alternativa a essa sociedade heterossexista" (MOTT apud CARRARA, p.463). Portanto, não se está homossexual, mas se é homossexual23. Fry e MacRae (1983), por sua vez, problematizam que essa visão do homossexual como identidade ontológica entra em conssonância com discursos essencialistas que, no mesmo período, patologizam a homossexualidade, além de ignorarem outras vivências de homossexuais de classes populares, que tinham relações com pessoas do mesmo sexo mas não se identificavam enquanto homossexuais ou com o estilo de vida adotado por gays da classe média e nas quais a performatividade de gênero e a escolha da posição sexual seriam mais preponderantes. Essa discussão foi importante para a organização de movimentos políticos de corpos dissidentes que lutavam contra o preconceito dentro de uma sociedade heteronormativa e binária, sendo necessário por vezes se enquadrar em determinadas "classes", os ditos "aprisionamentos identitários" (CARRARA, 2016) ou “essencialismo estratégico” (ALMEIDA, 2009), para conseguir direitos e não serem invisibilizados frente ao Estado. Por isso a adoção de uma “identidade” homossexual se fazia necessária, pois enquanto grupo social estes tinham necessidades específicas e, portanto, demandam uma política pública específica a essa população. Em contraposição, o heterossexual é sempre visto como neutro, seguindo a lógica do que é hegemônico como algo "natural" ou "normal". Foi a problematização sobre o caráter ontológico dessas vivências e designações que culminou na organização dessa multiplicidade nas letras do movimento LGBTQIAP+, visto que cada grupo social possui motivações estratégicas frente à luta diária contra a marginalização. A sigla, ao mesmo tempo que "engessa" algo que é vivo e fluido - como é o modo como entendemos a performatividade de gênero ou a vivência sexual de determinados indivíduos -, possibilita o diálogo entre as distintas vivências dissidentes, em um contexto político-social mais amplo. Apenas fortalecendo esses laços é que grupos ainda mais a margem pode mover a linha divisória entre o que é aceito em termos de sexualidade/performatividade de gênero, e o que é repudiado. 23 A questão foi amplamente questionada pelos estudos queer e pós-estruturalistas, posteriormente. Ver em: Preciado (2011), Louro (2001) e Miskolci (2017). 41 1.6 Imersão #4 - Estudos Cuír24 e Formas de Expressão Performáticas Os estudos cuír são importantes para entendermos formas de expressão de gêneros e vivências dissidentes no teatro. Termo polêmico e complexo, mostra-se útil para tratar dos processos por trás da produção da verdade em relação às normas e padrões impostos pela hegemonia. A palavra “Cuír”, abrasileiramento da palavra inglesa “Queer”, pode ter muitos significados, mas por motivos didáticos, gostaria de sugerir três deles, como se segue: Cuír remete à origem da palavra “queer”, muito antiga na língua inglesa, com registros do séc. XVI. Pode-se aproximar seu sentido original como estranho, excêntrico, peculiar ou esquisito; mas, até o século XIX, a palavra não trazia uma conotação necessariamente negativa. Foi nesse século que a palavra passou a designar pessoas tidas como abjetas, como prostitutas e devedores, denominando seu espaço na cidade como “Queer Street”. Na virada do século XX, o termo pasou a ser associado mais diretamente aos estigmas dos gêneros e/ou sexualidades consideradas “invertidas” ou disfóricas, após o fatídico julgamento e condenação de Oscar Wilde por sodomia. Desse modo, passa a definir um amplo espectro de identidades que não se encaixavam no binômio homem/mulher (BRETAS, 2020, p. 1). Como comenta Paul Preciado: Eram ‘queer’ os invertidos: a bicha, a lésbica, a travesti, o fetichista, o sadomasoquista e o zoófila. O insulto ‘queer’ não tinha um conteúdo específico: pretendia reunir todas as cifras do abjeto. Mas a palavra, na verdade, serviu para traçar um limite para o horizonte democrático: aquele que chamou outro de ‘queer’ colocou-se confortavelmente sentado em um sofá imaginário na esfera pública, em uma troca comunicativa silenciosa com seus pares heterossexuais, enquanto expulsava o ‘queer’ para além dos limites do humano. Deslocado para fora do espaço social, o ‘queer’ foi condenado ao segredo e à vergonha” (PRECIADO apud BRETAS, 2020, p. 2). Um século depois, com os movimentos em prol dos direitos humanos e, especialmente, depois da eclosão da AIDS/HIV, a palavra queer ganhou uso por LGBTQIAP+ estadunidenses e ingleses, como uma insurgência, ou uma reação ao estigma que a palavra aportava: lésbicas, gays, bissexuais, transgêneres, etc, reivindicam de forma positiva a palavra queer. Se quisermos nos aproximar do impacto 24 Opto aqui pela utilização do termo “cuír” como forma de abrasileirar o termo “queer” e de tirá-lo apenas de sua genealogia vinculada aos acontecimentos de Stonewall e do movimento político LGBTQIAP+ estadunidense, a fim de pensar que “[...] os modos como essa palavra-chave penetrou os múltiplos vocabulários locais fez proliferar outras narrativas. Em resumo: o queer de Pindorama, do sul quente dos trópicos, não emerge a partir dos mesmos processos que o queer de cima.” (MOMBAÇA, 2016, n.p). 42 que essa palavra traz na língua inglesa, podemos traduzi-la em português como bixa, transviado, sapatão e assim por diante. A comunidade LGBTQIAP+ no Brasil também se apropriou amplamente dos conceitos “bixa”, “travesti”, “sapatona”, “viado”, etc; seja num impulso contestatório, em movimentos político-sociais, seja no uso corrente. Pode-se dizer que, mesmo fora dos movimentos engajados, a estratégia de corromper a ordem heterosocial faz parte da vivência LGBTQIAP+, inclusive, precedendo os estudos teóricos sobre as mobilizações. Como identidade, o cuír também é um termo “guarda-chuva”, englobando diversas vivências que fogem ao padrão binário de gênero; com pessoas que se auto-intitulam cuír por recusarem a norma de gênero tradicional. Essas vivências são plurais, indo do não-binário a pessoas trans que não querem assimilar marcadores de gênero masculinos ou femininos. Como teoria, o cuír é reivindicado pelo movimento de pesquisadories que tinham como objetivo, seja através de práticas ativistas, performances e/ou produções teóricas, o questionamento e a desconstrução de normas sócio-sexuais (REA, AMANCIO, 2018, p. 3). Na dimensão de um movimento intelectual e crítico, o cuir consolidou-se nos anos 1990, advindo de diversas áreas de estudo, mas principalmente dos estudos gays e lésbicos que sublinham “[...] a importância do construtivismo enquanto modus operandi na investigação sobre sexualidades.25” (SANTOS, 2012, n.p.), com pesquisadoras como Eve Sedgwick, Noreen Giffney, Paul B. Preciado, Teresa de Lauretis, Glória Anzaldúa e Judith Butler, para citar exemplos proeminentes, embora tendo suas bases no pensamento pós-estruturalista26. Nessa visão, dos estudos 26 Conforme Bogéa (2021): "O pós-estruturalismo busca mostrar a centralidade do papel da linguagem e dos discursos para os processos de construção da estrutura social, defendendo a inseparabilidade entre linguagem, cultura, verdade e poder. Desse modo, contesta as teorias totalizantes que buscam explicar a realidade social a partir de perspectivas universais. A teoria queer busca mostrar a sexualidade como um dispositivo histórico de poder que serve para regular a sociedade a partir de um sistema de linguagem/discurso que normaliza e opera em binarismos, colocando sujeitos que fogem desses binarismos como abjetos, anormais, indesejados, etc. Sendo assim, busca questionar os quadros regulatórios da sexualidade e orienta a se desconfiar daquilo que é tido como inquestionável e “normal” ". (BOGÉA, 2021, p.128). Para se aprofundar no pós-estruturalismo, sugiro a leitura de Peters (2000) e Williams (2013). 25 Vale ressaltar, como propõe Ana Santos, que a tensão entre essencialismo biológico e construção social não é linear, o que promove uma discussão que volta a tona de tempos em tempos, como ela exemplifica com a proposta do “gene gay”, apresentado pelo neurobiólogo Simon LeVay, em 1991. (SANTOS, 2012, n.p.) Entretanto, como resposta a essa discussão, nos atemos aqui à afirmação de Gayle rubin: “a sexualidade humana não é compreensível em termos puramente biológicos [no sentido em que] nunca encontramos um corpo que não seja mediado pelos significados que as culturas lhe atribuem” (RUBIN apud SANTOS, 2012, n.p.). 43 queer, propõe-se uma politização da dissidência sexual e uma política de identidades não essencializadas, o que implica na substituição de uma política da identidade por uma política da diferença; ao passo que a retórica da diferença substituiu a ênfase na similaridade com outros grupos hegemônicos. A retórica cuír busca não o enquadramento do que é abjeto à norma, mas que corpos e vivências não-hegemônicas continuem resistindo à tentação de se uniformizar, cedendo ao que é tido como normal e confortável no capitalismo (ALMEIDA, 2003, p.19). Ao confrontar não apenas os essencialismos das estruturas sociais e do conhecimento, mas também o essencialismo estratégico dos movimentos identitários sexuais (como os abrangidos nos termos gay, lésbica, travesti, etc), a teoria queer expressa com urgência a necessidade de repensar as noções de identidade, comunidade e política. Por isso, os estudos queer seriam quase uma contra-teoria, no sentido de que negam o que pode ser encaixado ou apreendido pela norma, não apenas em relação à sexualidade e ao gênero, mas em termos de distinções étnico-raciais, de classe, de normas corporais, etc, privilegiando uma "política dos anormais", como colocado por Paul Preciado: A política das multidões queer emerge de uma posição crítica a respeito dos efeitos normalizantes e disciplinares de toda formação identitária, de uma desontologização do sujeito da política das identidades: não há uma base natural (“mulher”, “gay” etc.) que possa legitimar a ação política. Não se pretende a liberação das mulheres da “dominação masculina”, como queria o feminismo clássico, já que não se apoia sobre a “diferença sexual”, sinônimo da principal clivagem da opressão (transcultural, trans-histórica), que revelaria uma diferença de natureza e que deveria estruturar a ação política. [...] Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida. Essas diferenças não são “representáveis” porque são “monstruosas” e colocam em questão, por esse motivo, os regimes de representação política, mas também os sistemas de produção de saberes científicos dos “normais”. (PRECIADO, 2011, p.18). Podemos observar nessa citação a complexa problematização que a teoria cuír coloca não apenas em relação à hegemonia, mas a qualquer tipo de ontologização do ser humano. Helena Vieira, pesquisadora e professora travesti27, trouxe em uma de suas aulas uma imagem muito sintética em relação ao cuír, relacionando o termo com a linha 27 Venho acompanhando Helena Vieira em diversos cursos e palestras, entre eles, “Introdução ao Pensamento de Paul B. Preciado” e “Introdução ao Pensamento de Judith Butler”. Além disso, apresentei a aula aberta ministrada por ela, a convite da coletiva Rainha Kong, com a temática “Performances do Trânsito”. Ver em: https://youtu.be/kFvBmg8Xet4 https://youtu.be/kFvBmg8Xet4 44 do horizonte: embora útil à compreensão, é algo inapreensível, posto que não se enquadra nas normas e conceituações vigentes, permanecendo sempre como algo que escapa à taxonomia. Acho importante pontuar que os processos vinculados à emergência do movimento cuír foram distintos no hemisfério norte e na América Latina, não sendo possível ignorar os contextos específicos onde se deram esses processos de emergência. Se nos EUA o termo está vinculado aos confrontos policiais e à organização política, passando daí para os estudos acadêmicos, aqui o termo é introduzido de forma inversa, em um processo que Jota Mombaça chama de “caravelas queer”: [...] queer [é] forjado por meio de artigos científicos e teses de doutoramento, ainda que se rebele parcialmente contra os enquadramentos teóricos hegemônicos, não consegue escapar completamente das modulações do campo que o envolve: como evento acadêmico (MOMBAÇA, 2016, n.p). Também é interessante notar como algumes autories colocam o Cuír em seus diversos sentidos como uma prática colonial, questionando que as práticas abjetas ou fora da normatividade já existiam antes de serem “descobertas” pelo movimento. Hija de Perra, performer chilena, rejeita o termo, em seu argumento: Sou uma nova mestiça latina do Cone Sul que nunca pretendeu ser identificada taxonomicamente como queer e que agora, segundo os novos conhecimentos, estudos e reflexões que provém do Norte, encaixo perfeitamente, para os teóricos de gênero, nessa classificação que me propõe aquele nome botânico para minha mirabolante espécie achincalhada como minoritária. (PERRA, 2015, n.p) Hija de Perra critica a teoria cuír no contexto latinoamericano como uma sistemática de taxonomia dos corpos abjetos imposta aos