UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia BIANCA MORAES DANTAS REIS TECNOLOGIAS DIGITAIS PARA A ALFABETIZAÇÃO DE SURDOS: PORTFÓLIO DIGITAL COMO SUPORTE PEDAGÓGICO PRESIDENTE PRUDENTE – SP 2022 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia BIANCA MORAES DANTAS REIS TECNOLOGIAS DIGITAIS PARA A ALFABETIZAÇÃO DE SURDOS: PORTFÓLIO DIGITAL COMO SUPORTE PEDAGÓGICO Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Educação Inclusiva – Profei, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Educação Inclusiva – Área de Concentração em Educação Inclusiva. Orientador: Soellyn Elene Bataliotti PRESIDENTE PRUDENTE – SP 2022 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia Dedico este trabalho aos professores que fazem a diferença na vida de seus alunos. À minha ex-aluna surda Yasmim, por ter plantado em mim a semente da inclusão. À minha amiga surda Raimunda, por ter me mostrado a beleza e as nuances da Libras. À comunidade surda no munícipio de Monte Santo – BA. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia AGRADECIMENTOS A Deus por sempre me manter firme na jornada e me manter no caminho diante dos desafios. À minha orientadora Soellyn Bataliotti pela dedicação, paciência e zelo em todo nosso caminhar. Ao meu esposo Gilberto Reis por sempre ser meu parceiro, apoiar-me e acreditar em mim; por me tranquilizar e ser esse porto seguro na minha vida. Às minhas filhas Stella e Cecília pela paciência, companheirismo, por me entenderem e me apoiarem nos momentos de ausência; por serem minha fortaleza e estarem comigo sempre. Aos meus amigos queridos do Profei: Artur Maciel, Daniela, Gisele, Isis, Michelle, Raquel, Renan e Rosy, pelos momentos de efetivo exercício do saber, oriundos do grau mais alto de instrução que um professor pode alcançar – o chão da escola. A eles também agradeço pelas ideias, conselhos e pela corrente de união e cooperação que fizeram. À banca de qualificação e defesa composta pelas Professoras Paula Melques e Gabriela Alias, pelas valiosas contribuições na escrita deste trabalho e para além dele. A toda a Equipe do Profei que embarcou junto comigo na missão de tornar possível esta primeira turma de mestrado em meio ao contexto da pandemia da Covid- 19. À Secretaria de Educação Municipal de Monte Santo –BA, por garantir minha permanência no curso. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia “Para as pessoas sem deficiência a tecnologia torna as coisas mais fáceis. Para as pessoas com deficiência, a tecnologia torna as coisas possíveis” (RADABAUGH, 1993). UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia REIS, Bianca Moraes Dantas. Tecnologias digitais para a alfabetização de surdos: portfólio digital como suporte pedagógico. 2022. 79f. Dissertação (Mestrado Profissional em Educação Inclusiva - Profei – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista - UNESP, Presidente Prudente, 2022. RESUMO A presente pesquisa é fruto das discussões e temáticas trabalhadas no decorrer do Mestrado Profissional em Educação Inclusiva - Profei /Unesp – Presidente Prudente. O primeiro Mestrado no Brasil com todas as linhas de pesquisa voltadas para a Educação Inclusiva. As tecnologias aliadas às estratégias educativas para surdos podem fomentar o aprender de forma interativa, estabelecendo novas oportunidades no processo educacional. Dessa forma, a inclusão de surdos torna-se um desafio devido as suas características linguísticas e culturais fundamentadas na percepção visual. E é através da Língua de Sinais que é construída em parâmetros visuoespaciais – o surdo se comunica e percebe o mundo a sua volta. Além disso, é importante considerar que a utilização de recursos e metodologias que explorem a linguagem visuoespacial é de suma importância para o ensino e aprendizagem da Língua de Sinais. Para fundamentar esta pesquisa foram utilizados autores como Gladis Perlin para trazer as Identidades Surdas; Karin Strobel trazendo a cultura surda; Ronice Quadros sobre a aquisição da linguagem; Oliveira, Nascimento e Liz com contribuições sobre o uso e relevância da Tecnologia. Esta pesquisa tem como objetivo geral identificar as orientações oficiais e o procedimento para o planejamento de aulas com alunos surdos no município de Monte Santo – BA, afim de produzir um portfólio de materiais didáticos e recursos tecnológicos que possam ser indicados para a alfabetização de surdos. O produto Educacional Portfólio ou e-portfólio representa uma tentativa de apresentar ao Município de Monte Santo – BA alternativas para a alfabetização de alunos surdos na sala de aula regular com sugestão de atividades e aplicativos que possam contemplar sua identidade surda. Após a análise dos dados ficou evidente que o munícipio veio de uma estagnação no que diz respeito à implantação de políticas alinhadas aos documentos nacionais na construção do PME e do RCMS, pois as políticas locais se restringiam apenas ao acesso à escola. No entanto foi evidenciado que a partir do corrente ano, o início da implementação das salas de AEE tornou-se uma realidade em andamento no munícipio, conforme demonstrado no Relatório de Avaliação do PME. Neste sentido, materiais com orientações práticas, como o e-portfólio, se constitui de grande valia para orientar a atuação do professor junto ao aluno, quando este não pode contar com o apoio de um profissional orientador para da Educação Especial em uma perspectiva inclusiva. Palavras-chave: Surdez. Educação de surdos. Alfabetização. Libras. Recursos Tecnológicos. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia REIS, Bianca Moraes Dantas. Digital technologies for deaf literacy: digital portfolio as pedagogical support. 2022. 79f. Dissertation (Professional Master in Inclusive Education - Profei - Faculty of Science and Technology, Paulista State University - UNESP, Presidente Prudente, 2022. ABSTRACT This research is the result of discussions and themes worked during the Professional Master's in Inclusive Education - Profei/Unesp - Presidente Prudente. The first Master in Brazil with all lines of research focused on Inclusive Education. Technologies combined with educational strategies for the deaf can encourage learning in an interactive way, establishing new opportunities in the educational process. In this way, the inclusion of the deaf becomes a challenge due to its linguistic and cultural characteristics based on visual perception and it is through Sign Language that is built on visuospatial parameters, the deaf communicates and perceives the world around them. Furthermore, it is important to consider that the use of resources and methodologies that explore visual-spatial language is of paramount importance for the teaching and learning of Sign Language. To support this research authors such as Gladis Perlin were used to bring the Deaf Identities; Karin Strobel with deaf culture; Ronice Quadros on language acquisition; Oliveira, Nascimento and Liz with contributions on the use and relevance of Technology. This research has as general objective to identify the official guidelines and the procedure for planning classes with deaf students in the municipality of Monte Santo - BA, in order to produce a portfolio of teaching materials and technological resources that can be indicated for the literacy of the deaf. The educational product, digital portfolio or e-portfolio, is an attempt to present to the Municipality of Monte Santo - BA alternatives for the literacy of deaf students in the regular classroom with suggestions of activities, applications and that can contemplate their deaf identity. After analyzing these data, it was evident that the municipality came from a constant stagnation with regard to the implementation of policies arising from national documents, even presenting alignment with such policies in the construction of the Municipal Education Plan and Municipal Curriculum Reference of the Monte Santo, these policies were restricted only to access to school. However, it was evidenced that as of this year, the beginning of the implementation of Especial Educacional Service rooms has become a reality in progress in the municipality, as shown in the Municipal Education Plan Evaluation Report. In this sense, materials with practical guidelines, such as the e-portfolio, are of great value to guide the teacher's work with the student, when he cannot count on the support of a professional advisor for Special Education in an inclusive perspective. Keywords : Deafness. Deaf education. Literacy. pounds. Technological Resources. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia LISTA DE ILUSTRAÇÕES LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Documentos que norteiam a Educação Especial na perspectiva inclusiva de Monte Santo – BA............................................................54 Quadro 2 - Descrição do produto educacional apresentado por Bianca Moraes Dantas Reis ao Mestrado Profissional em Educação Inclusiva – PROFEI/Unesp – 2022........................................................................63 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Organização do trabalho de avaliação................................................56 Figura 2- Alunos com deficiência no município de Monte Santo- BA – 2021/2022............................................................................................58 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AEE Atendimento Educacional Especializado BA Estado da Bahia - Brasil BNCC Base Nacional Comum Curricular DCRB Documento Curricular Referencial da Bahia IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INES Instituto Nacional de Educação de Surdos LDB Lei de Diretrizes e Bases LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Libras Língua de Sinais Brasileira L1 Primeira língua L2 Segunda língua LS Língua de Sinais PEE Política de Educação Especial PME Plano Municipal de Educação PNAIC Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa PNEEPEI Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva RCMS Referencial Curricular de Monte Santo SRM Sala de Recursos Multifuncional SV Sujeito-verbo SVO Sujeito-verbo-objeto TA Tecnologia Assistiva TDIC Tecnologias digitais da informação e comunicação TILS Tradutor Intérprete de Língua de Sinais VO Verbo-objeto UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Inclusiva-Profei Faculdade de Ciências e Tecnologia SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ...................................................................................................... 12 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 16 1.1 OBJETIVOS ......................................................................................................... 22 1.1.1 Objetivo geral............................ ........................................................................ 22 2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............................................................ 23 2.1 Tipo de pesquisa .......................................................................................... 23 2.2 Local da pesquisa ........................................................................................ 24 2.3 Desenvolvimento da pesquisa ................................................................... 25 2.4 Análise dos dados ....................................................................................... 26 3 EDUCAÇÃO DOS SURDOS: BREVE HISTÓRICO ............................................ 27 3.1 EDUCAÇÃO DOS SURDOS NO BRASIL ........................................................... 33 3.2 A APRENDIZAGEM DO SURDO .......................................................................... 36 3.3 ALFABETIZAÇÃO EM LÍNGUA DE SINAIS .................................................. 39 3.3.1 ALFABETIZAÇÃO..........................................................................................43 3.4 PEDAGOGIA SURDA – RECONHECENDO A CULTURA SURDA ......... Erro! Indicador não definido. 4 TECNOLOGIA E A EDUCAÇÃO DE SURDOS .................................................. 45 4.1 Aplicativos que podem auxiliar na comunicação e aprendizagem ................ 47 5 RESULTADOS E DISCUSSÕES ......................................................................... 51 5.1 Análise Documental ....................................................................................... 53 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 60 7 PRODUTO EDUCACIONAL ................................................................................ 63 8 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 65 9 ANEXO 01- Relatório Municipal de Avaliação do PME ................................... 72 12 APRESENTAÇÃO A docência se impôs na minha vida muito cedo. Antes mesmo de eu percebê- la. Sou fruto de uma sala multisseriada, com uma professora rígida, pela qual todos os alunos tinham um respeito inabalável. A vida escolar nesse ambiente, diante do público-alvo variado (alunos de 1° a 4° série), muitos em idade avançada para série escolar, me proporcionou uma maturidade em relação aos estudos. Eu era uma boa aluna e não tive problemas para aprender conteúdos relacionados ou não à série em que me encontrava. Devido a essa facilidade me tornei uma espécie de monitora da turma, ajudando os colegas com as leituras e tarefas, ensinando-os, ao meu modo, o que havia aprendido. Hoje acredito que isso contribuiu significativamente para a minha formação. Parafraseando Paulo Freire: quem ensina aprende ao ensinar. E, com certeza, muito tenho aprendido até aqui. A minha formação escolar no Ensino Médio foi direcionada à preparação para o trabalho pedagógico. Venho do curso Normal Médio/Magistério e, durante os quatro anos, pude ter a oportunidade de entender a sala de aula e também de ser desafiada por ela. Muitas percepções acerca do processo de ensino-aprendizagem só se evidenciaram quando eu já estava na faculdade. Devido às poucas vivências que tinha no Ensino Médio, não pude compreender com a criticidade necessária todo o processo no qual o ensino se pautava. Fui criada no Sertão e o Nordeste faz parte de minha existência. Está no meu sotaque, na minha cultura e na vida sofrida que muitos tiveram antes de mim para que eu pudesse estar aqui. Ser aluna no Sertão foi conviver com a seca e a falta de recursos básicos para poder frequentar a escola. Uma única sala, falta de transporte escolar, de merenda, de material, de cadeiras, de incentivo público, falta de um olhar atento às necessidades escolares da minha comunidade. O povo “arretado” sofreu bastante no passado e Euclides da Cunha não poderia tê-lo descrito melhor em sua obra Os Sertões: “o sertanejo é antes de tudo um forte” (CUNHA, 2002, p.115). É nesse contexto onde o alicerce da minha formação é edificado. Durante minha trajetória pude conviver e perceber como os alunos que não acompanhavam o ritmo da professora, eram excluídos e marginalizados; não tinham apoio e estavam fadados 13 à evasão. Na minha percepção, a realidade era ainda mais perturbadora para os alunos com deficiência. Eles simplesmente não existiam dentro das escolas, não havia uma preocupação em trazê-los para a sala de aula, as famílias não os consideravam capazes de aprender, tinham receio de machucá-los e, nesta situação, o poder público parecia estar bem distante e um tanto omisso com o que acontecia. Comecei a trabalhar como professora em 2011 no munícipio de Monte Santo - BA, através de concurso público, que na época exigia apenas o magistério. Trabalhar no ensino regular na escola pública me deu os mais variados exemplos de como uma sala de aula pode ser diversificada e excludente. Em muitas dessas experiências a noção de inclusão da escola e do poder público vigente contemplava apenas o ato de matrícula – a garantia de uma cadeira na sala de aula para o aluno especial1. Expressões como: “ele não vai dar trabalho”, “deixa ele sentadinho ali no canto”, “você não precisa fazer nada”, ainda ecoam na minha memória. Mas foram justamente essas frases que impulsionaram minha reação diante de minhas frustrações enquanto professora. Me formei em Pedagogia e pude vivenciar na prática as teorias aprendidas na graduação. E com base na minha experiência, percebi a fragilidade da minha formação frente aos desafios da sala de aula. Sentia falta de orientações mais precisas para a condução do trabalho pedagógico com as crianças com necessidades educacionais especiais, especialmente as com deficiência, como as as surdas, pois eu tinha um interesse mais profundo em compreender sua especificidade linguística. Em 2013 tive a oportunidade de trabalhar no 3° ano com minha primeira aluna surda de 9 anos, e que, segundo sua mãe, ainda não havia frequentado a escola, não se comunicava bem em nenhuma língua e até era desprovida de elementos da linguagem caseira2. A escola, amparada pela Secretaria de Educação resolveu matricular a aluna na série que deveria corresponder à sua idade. Apesar já existirem leis que fundamentam a educação inclusiva, foi desafiador encarar uma situação sem a formação adequada para tal e sem documentos orientadores. Na época estávamos 1 Expressão comumente usada para definir o aluno da Educação Especial e que, segundo Sassaki (2011,) não deve ser utilizada para se referir aos alunos com deficiência. 2 Os surdos nascem majoritariamente em famílias ouvintes que desconhecem a Libras e, por essa razão, criam entre si, formas particulares de comunicação, as quais temos chamado de línguas de sinais caseiras. Essas línguas de sinais caseiras não devem ser discriminadas, bem como os surdos que as utilizam não devem ser chamados de “sem língua”, pois são formas de comunicação funcionais nos ambientes familiares (KUMADA, 2012, p.99) 14 vivenciando o PNAIC3 e a retenção do aluno só era permitida no último ano do programa, motivo pelo qual ela não ingressou no 1° ano do ciclo inicial de alfabetização. Para minha aluna, em algum momento ela desenvolveria a oralidade e começaria a falar como os seus colegas. Por não ter a consciência de ser surda, essa aluna tentava se expressar buscando reproduzir a fala. Nesse sentido, Perlin e Miranda (2003) afirmam que ser surdo é “(...)olhar a identidade surda dentro dos componentes que constituem as identidades essenciais com as quais se agenciam as dinâmicas de poder. É uma experiência na convivência do ser na diferença (PERLIN; MIRANDA, 2003, p.217)”. Nesse momento percebi que as estratégias que eu poderia desenvolver com esses alunos ainda eram vagas e eu não entendia como, de fato, deveria proceder para que ela pudesse alcançar o êxito, o que impulsionou minha busca por formação para que, enquanto educadora, proporcionasse a minha aluna o ensino condizente com a sua necessidade educacional específica. Nessa busca, me especializei em Libras com a determinação de ensiná-la não apenas a escrever ou ler, mas de despertá-la para a percepção sobre sua identidade surda. Segundo Perlin (2011), as identidades surdas4 estão sempre em construção e em constantes transformações; são complexas e diversas e dependem da experiência dos indivíduos com a surdez, de como enxergam o mundo por e através dela. Minha aluna se encaixaria na Identidade flutuante, caracterizada pela não participação na comunidade surda, tendo a visão clínica da surdez, rejeitando a língua de sinais e prezando pelo oralismo. No entanto, essa identidade foi imposta a ela, enquanto criança, fato que ela passou a perceber quando entrou em contato com a Libras, ainda que não tenha sido através de um(a) surdo(a). A confiança que ela depositou em mim fez com que as minhas inquietações se tornassem pequenas em relação ao caminho que ela teria que trilhar em busca de sua identidade. Não foi um caminho fácil e não houve tempo suficiente para que nós duas pudéssemos ter o êxito esperado. Uma das barreiras se encontrava na sua família que apesar de entender a surdez, não a aceitava como ponto de partida para sua 3 Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). A ação é um compromisso formal assumido pelos governos federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal para assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade, ao fim do terceiro ano do ensino fundamental. http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/36271 4 Perlin (2011) dividiu as identidades surdas em seis tipos: identidade surda, identidade de transição, identidade híbrida, identidade flutuante, identidade de diáspora e identidade incompleta http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/36271 15 aprendizagem, uma vez que tentava a todo custo oralizar a criança. Com esse exemplo pude entender que o pleno desenvolvimento dos alunos surdos requer um caminho difícil e que não deve ser trilhado sozinho; é necessária a parceria entre família e escola apoiada de políticas públicas efetivas. Como autora da pesquisa, minha voz aqui não entra no mérito da surdez, mas como professora, minhas vivências no chão da escola me trouxeram até aqui por um caminho longo e, muitas vezes, solitário, diante do que me foi apresentado como inclusão. Diante do exposto este trabalho procurou debruçar-se na história do surdo até os dias atuais e na sua trajetória de luta e ressignificação, não apenas a partir do pensar da sociedade sobre ele, mas do olhar do surdo sobre si mesmo – o que o torna sujeito de sua própria vida e aprendizagem. Como resultado dessas lutas e discussões acerca da educação e de como ela deve ocorrer, surgiu o objetivo dessa pesquisa, que foi construir um e-portfólio que reúne recursos, leituras, histórias, atividades, aplicativos e a comunidade surda nas plataformas digitais para que professores e alunos sintam-se imersos na cultura surda e tornem o processo de alfabetização mais significativo. 16 1. INTRODUÇÃO A busca por recursos que possam auxiliar os alunos surdos no processo de ensino e aprendizagem tem crescido à medida que as políticas de inclusão são efetivadas no campo escolar (DEGRANDE, 2020). Existe uma crescente mobilização social que parte da comunidade surda e se estende à população através de ações como a inclusão do Tradutor Intérprete de Língua de Sinais (TILS) nas propagandas, nos encontros políticos, eventos acadêmicos e, recentemente, durante a pandemia da Covid 19, na contratação desses profissionais por músicos famosos, o que torna a divulgação da causa surda mais visível no cenário nacional. As tecnologias digitais tiveram um significativo avanço na década de 1990 com o uso dos celulares e a possibilidade de comunicação através de mensagens de texto. Com o advento da internet a comunicação passou a ser mediada pelo visual/imagem, o que possibilitou a inserção das pessoas surdas de forma mais abrangente na sociedade. Antes desse período a característica imagética da comunicação não era tão difundida com o intuito de incluir os surdos, mesmo sendo imprescindível a leitura de imagens para auxiliar na comunicação e alfabetização tanto de pessoas surdas quanto de ouvintes. Para que se estabeleça o que compreendemos sobre comunicação Freire (1982, p. 4) pondera que “a leitura do mundo antecede a leitura da palavra”. Fazemos leitura do mundo ao tentar compreendê-lo e, no contexto diverso da sala de aula, essas leituras de mundo tendem a ser plurais e, em sua grande maioria, imagéticas. Por isso é necessário um olhar atento e sensível do professor que, segundo Nietzche (2006) tem como primeira tarefa ensinar a ver. No âmbito da surdez a visão também faz parte da comunicação e pode ser considerada como uma ponte entre ensinar e aprender. Dessa forma, a leitura de uma imagem ou do próprio sinal é uma atividade que envolve cognição e sensibilidade na busca de significados. Dessa forma, a inclusão de surdos torna-se um desafio devido a suas características linguísticas e culturais fundamentadas na percepção visual e é através da Língua de Sinais (LS) construída em parâmetros visuoespaciais5, que o surdo se 5 O uso do espaço com valor sintático e topográfico e a simultaneidade dos aspectos gramaticais são algumas das restrições impostas pelo tipo de modalidade viso-espacial (sic) e determinam sua diferença estrutural em relação às línguas auditivo-orais. (SKLIAR, 1997, p.49) 17 comunica e percebe o mundo à sua volta. Além disso, é importante considerar que a utilização de recursos e metodologias que explorem a linguagem visuoespacial é de suma importância para o ensino e aprendizagem da LS. Castro e Marques (2017, p. 37) defendem que a pedagogia visual na educação “utiliza recursos imagéticos da própria língua de sinais como recurso didático, favorecendo a representação e a compreensão das diversas disciplinas”. Nesse sentido, a tecnologia tem papel fundamental nesse processo, pois pode contemplar a aprendizagem sensorial dos surdos. O uso das redes sociais, computadores, softwares e aplicativos amplia os espaços da comunidade surda na sociedade, o que pode contribuir para que seus anseios sejam vistos e replicados por seus pares e pelos ouvintes. Os aplicativos de tradução da Língua Brasileira de Sinais (Libras) para o Português e vice-versa são exemplos de contribuições da tecnologia que ajudam na comunicação do surdo e na difusão da Libras entre os ouvintes. Esses aplicativos podem e devem ser utilizados na escola. Segundo Nascimento e Liz (2017), a inserção da tecnologia na sala de aula gerou a necessidade de se realizar pesquisas, bem como metodologias de ensino que atendam às especificidades do aluno surdo, de modo que a tecnologia pode ser vista como mais uma ferramenta na promoção da inclusão. E também, como todo processo social, faz-se de forma gradual. O processo de inclusão se faz de forma gradual e não se faz de um dia para o outro (BARBOSA, 2012). Como afirma Oliveira (2015), estar na escola não significa fazer parte dela. É direito de toda criança ter acesso à escola, ser valorizada e ter a sua individualidade respeitada em um ambiente inclusivo que promova o desenvolvimento intelectual, físico e socioafetivo. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), de julho de 2015, possui como principal objetivo “assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”. Segundo o artigo 2º da LBI: Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2015) 18 A LBI teve um papel importante no avanço das políticas para os surdos, não apenas no âmbito educacional, mas mudou a forma como empresas e outras instituições, sobretudo privadas, viam as pessoas com deficiência, no que tange a sua capacidade laboral e de produção. Em relação aos surdos, a barreira comunicação pode ser suavizada com intérpretes ou recursos que viabilizam a participação do surdo na sociedade e a entrada no mercado de trabalho de forma mais justa. O cenário ainda precisa melhorar, mas não há dúvidas de que os avanços lhes dão lugar de fala para que possam lutar por melhorias. O ponto de partida dessa pesquisa é a inquietação acerca da inclusão dentro da sala de aula regular e de como ela vem acontecendo nos anos iniciais da alfabetização no município de Monte Santo - BA. A realidade vivida pelos professores de sala regular preocupa no sentindo de que, principalmente nas cidades do interior e nas comunidades rurais, as políticas públicas demoram a serem implementadas. Esses professores enfrentam no seu dia-a-dia outras mazelas da educação como a evasão, a falta de material, o ambiente físico da escola, turmas multisseriadas, dentre outras questões urgentes ao ensino público. Eles também têm mais dificuldade de investir em formação continuada, uma vez que ficam distantes dos grandes centros. Um curso de mestrado, por exemplo, que demanda dedicação exclusiva e encontros semanais presenciais ainda é um sonho distante para muitos professores, pois ainda precisam lutar pela licença no trabalho, que nem sempre é concedida, o que faz com que a proposta do Mestrado Profissional em Educação Inclusiva – Profei seja um divisor de águas nas universidades e na vida desses professores, dando-lhes acesso à formação em universidades públicas de grande renome. Esta pesquisadora é fruto desse olhar cuidadoso e responsável da universidade pública para com os professores. Com base no exposto pode-se evidenciar que o projeto de inclusão no ensino regular precisa de atenção e políticas mais efetivas pois em alguns casos os alunos com deficiência vivenciam o projeto de inclusão apenas no que diz respeito ao acesso à escola, corroborando o estudo de Santos e Mendes (2021) que em seus resultados apontam: (...) que os alunos PAEE na classe comum eram submetidos às mesmas condições de ensino dos demais alunos, e se precisassem 19 de alguma medida de equiparação para tornar o ensino mais efetivo, essas medidas não eram adotadas, possivelmente porque professores do ensino comum não sabiam como responder à diversidade desses alunos. (SANTOS; MENDES, 2021, p. 1336-1337) Diante dessa afirmação pode-se se levantar a hipótese de que, na realidade, a educação especial na perspectiva da educação inclusiva não está ainda em sua plenitude prática, uma vez que as discussões podem ou não acontecer no campo teórico e há uma preocupação por parte das esferas maiores do poder público em desenvolverem atitudes e meios que possam subsidiar o trabalho dos professores. Pois, não são apenas os alunos com deficiência que despendem cuidados pedagógicos, os demais alunos também apresentam dificuldades e necessidades que precisam ser supridas pelo professor no âmbito da sala de aula. Essas dificuldades se manifestam na organização do trabalho pedagógico, voltado para resultados e cumprimentos de metas associado ao número excessivo de alunos que, por vezes, é um condicionante para que o fazer pedagógico fique prejudicado. Ao aluno surdo, é necessário estabelecer acesso a alfabetização. Para Soares (2018, p.36) é “a aprendizagem do sistema alfabético-ortográfico, que conduz à habilidade de leitura e produção de palavras escritas”, sendo um grande desafio trabalhar com alunos nesta fase, pois quando não há na escola um profissional que trabalhe com a Libras, não se oportuniza a alfabetização em Libras, que é a primeira língua dos surdos, sendo estes alfabetizados na escrita da língua portuguesa, a L2. (FREITAS, 2020). Porém, é importante evidenciar que, afirmar que um indivíduo fluente em Libras é alfabetizado em Libras constitui-se um erro conceitual (FREIRAS, 2020), sendo que a aquisição da linguagem – oral ou de sinais – não é sinônimo de alfabetização. Os surdos aprendem a sinalizar de forma natural, não dependendo de ensino formal e, sim, da inserção na comunidade surda (QUADROS, 1997). A alfabetização em Libras requer um aprofundamento não apenas linguístico, mas lexical, semântico, o que não ocorre nos moldes atuais. Apesar de alguns autores defenderem que a Libras é ágrafa, entende-se que a Signwriting6 é uma opção viável de escrita da Libras que considera sua própria estrutura e morfologia e que é capaz de propiciar aos surdos a dimensão escrita da Libras sem a necessidade de transmissão para a língua oral. A respeito disso Stumpf (2016) argumenta: 6 Escrita de Sinais – Sistema de escrita de sinais criado por Valerie Sutton. 20 [...] os linguistas que trabalham com língua de sinais concordam, em sua grande maioria, que ele é o único, dentre os já criados, que se presta para a comunicação entre pessoas, haja vista que o sistema de Stokoe, assim como outros, tem o objetivo de anotar a língua para pesquisa, sendo muito limitados e focados na notação do sinal, não do contexto. (STUMPF, 2016, p.86-114). Esta pesquisa não pretende mostrar os benefícios da Signwriting na alfabetização de surdos uma vez que ela não é regulamentada em lei, ou seja, aplicada nas escolas – sejam elas regulares ou especiais –, embora haja pesquisas e escolas de surdos que utilizam esse sistema in loco. No entanto é relevante trazer a informação pois ao pensar na alfabetização de surdos em Libras é necessário ter um aporte maior no suporte à língua de sinais, para que suas especificidades não sejam perdidas em uma escrita por meio da qual a maioria dos surdos não aprende português ou em uma intepretação superficial, quando o intérprete não consegue captar as nuances da língua. Dessa forma é possível entender que a Libras, enquanto uma língua de modalidade corpóreo-visual, não é inteiramente contemplada em uma escrita alfabético-ortográfica e é nesse ponto que se deve haver clareza nas formações de professores e nas metodologias empregadas para alfabetização desses alunos. Reconhecer as limitações na escrita da língua portuguesa pelos alunos surdos na transcrição do seu pensamento é fundamental para que os professores tenham êxito. O termo limitação não se refere à incapacidade cognitiva, mas à incapacidade do aluno surdo em fazer a correspondência grafo-sonora, que pode ser feita por uma criança ouvinte em determinados momentos, pelo uso da fala, em fase de alfabetização, quando “começa a perceber a lógica do sistema alfabético e a segmentar as palavras adquirindo consciência da dimensão metalinguística fonêmica da escrita” (FREITAS, 2020). Para a criança surda não há essa consciência porque o registro da escrita da maioria7 das línguas orais é feito de forma gráfica (SOARES, 2018). Para Freitas (2020, p.7) essa representação visual da fala está inacessível ao surdo “pela obviedade da sua condição sensorial – ser surda”. 7 Algumas línguas orais possuem registro ideográfico, como a língua japonesa, por exemplo. 21 Diante do atual cenário em relação à educação inclusiva em nosso país, fez-se necessário tentar responder a seguinte questão: qual a atual situação do município de Monte Santo - Ba frente à implementação e execução de políticas públicas para educação de surdos? E para isso foi necessário identificar os documentos orientadores relativos à educação especial e inclusiva de surdos no município de Monte Santo - BA, relacionando-os aos documentos norteadores estaduais e federais. O resultado da pesquisa, bem como documentos e ferramentas para educação de surdos serão indicados em um portfólio digital, que será apresentado como produto educacional do curso de Mestrado Profissional de Educação Inclusiva, que deverá subsidiar o trabalho dos professores que atuam em sala regular com alunos surdos. Ademais a presente pesquisa foi estruturada em 4 tópicos: Procedimentos metodológicos, Fundamentação teórica, Resultados e discussões e Considerações finais. O tópico Procedimentos metodológicos traz o percurso metodológico da pesquisa apresentando sua abordagem e natureza, o local onde a pesquisa ocorreu, o seu desenvolvimento, demonstrando os critérios de busca, palavras-chave e a análise dos dados. Na Fundamentação teórica foram introduzidos os temas relevantes à pesquisa. Em três tópicos, inicialmente faz-se um breve percurso histórico da educação de surdos no mundo e no Brasil. O segundo tópico aborda a aprendizagem do surdo e como se dá a aquisição da linguagem – a etapa anterior à alfabetização – sua relevância para entendermos a alfabetização de surdos e a importância da tecnologia nesse processo. O terceiro tópico discorre sobre a importância de alguns recursos tecnológicos utilizados para a comunicação e educação dos surdos. O tópico Resultados e discussões traz a análise documental sobre a implementação da Educação especial no município de Monte Santo - BA e o panorama de como ela se constitui no ensino regular. Para finalizar, no último tópico são trazidos ao leitor as considerações finais da pesquisadora, onde se conclui que o munícipio ainda não conseguiu cumprir a Meta 4 do PME, no entanto apresenta propostas, ainda que tímidas, de adequação do munícipio às leis nacionais que regem a educação especial e inclusiva. Como principal resultado da pesquisa foi construído o e-portfólio: “possibilidades e recursos na educação de surdos no ensino regular” como forma de apresentar sugestões ao munícipio de como subsidiar o trabalho do 22 professor no ensino regular por meio de atividades, leituras, aplicativos, recursos tecnológicos e documentos norteadores desse processo. 1.1 OBJETIVOS 1.1.1 Objetivo geral Identificar as orientações oficiais e o procedimento para o planejamento de aulas com alunos surdos no município de Monte Santo – BA, afim de produzir um portfólio de materiais didáticos e recursos tecnológicos que possam ser indicados para a alfabetização de surdos. 1.1.1.1 Objetivos específicos - Relacionar as políticas públicas de educação especial e inclusiva adotadas no município de Monte Santo – BA, em associação à legislação estadual e federal; - Apresentar um portfólio digital com indicações de ferramentas, atividades, legislação e estudos que contribuam para a alfabetização do aluno surdo. 23 2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Este capítulo apresenta o tipo de pesquisa realizada, seus instrumentos de coleta de dados e o delineamento da pesquisa. 2.1 Tipo de pesquisa Para alcançar o objetivo de pesquisa a abordagem utilizada foi a pesquisa qualitativa: bibliográfica e documental. A pesquisa qualitativa permite o conhecimento e análise dos contextos onde o lócus da pesquisa se desenrola e como se dá a relação ensino-aprendizagem entre professores e alunos surdos do ensino regular. Para Minayo (2009, p. 21) a pesquisa qualitativa “[...] trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes”. Diante da premissa, a abordagem qualitativa possibilita ao pesquisador uma ampla gama de procedimentos e a análise de dados. O procedimento inicial foi realizar a pesquisa bibliográfica que, segundo Lakatos e Marconi (2003, p. 183) tem a finalidade de “colocar o pesquisador em contato direto com tudo o que foi escrito, dito ou filmado sobre determinado assunto” enquanto que Moreira e Caleffe (2008, p.74) apontam que ela se dá “a partir de materiais já elaborados, constituídos principalmente de livros e artigo científico”. A pesquisa documental também foi utilizada nesta pesquisa e assemelha-se à pesquisa bibliográfica, sendo que sua principal diferença é que ela direciona outra fonte de pesquisa. Segundo Moreira e Caleffe (2008) além de realizar pesquisas em bibliografias a pesquisa documental também nos permite levantar dados por meio de acervos e documentos de locais específicos. Neste caso, foram o Referencial Curricular de Monte Santo e as diretrizes e PME. Essa análise documental segundo Bardin: A documentação trabalha com documentos, a análise de conteúdo com mensagens (comunicação); a análise documental faz-se principalmente por classificação-indexação, a análise categorial temática, é entre outras, uma das técnicas da análise de conteúdo. O objetivo da análise documental é a representação condensada da informação, para consulta e armazenagem, o da análise de conteúdo, 24 é a manipulação da mensagem (conteúdo e expressão desse conteúdo), para evidenciar os indicadores que permitam inferir sobre uma outra realidade que não a da mensagem (BARDIN, 1977, p.46). Dessa forma tornou-se um importante instrumento de pesquisa a análise documental para que diante dos documentos já existentes pudesse ter um vislumbre do que já estava em execução e o que ainda precisava de ajustes e implementação na rede municipal 2.2 Local da pesquisa O lócus da pesquisa situa-se no âmbito da rede regular de Monte Santo, um município localizado no Estado da Bahia, distante 363 km da capital baiana, parte da microrregião geográfica de Euclides da Cunha e situado no Território Identidade do Sisal8. Com uma população estimada para 2022 de 49.000 habitantes, sendo 43.493 mil habitantes na zona rural e 8.845 mil habitantes na zona urbana (IBGE, 2010), apresenta IDH baixo9, com 8 mil alunos matriculados no ensino fundamental e IDEB de 4,4 (IBGE, 2021). Faz-se importante elucidar que Monte Santo possui uma particularidade genética. Foi detectada por pesquisadores uma alta concentração de doenças genéticas raras10 nessa região. Segundo Fioravanti (2014, s/p), as pesquisas de rastreamento puderam diagnosticar: 13 pessoas com mucopolissacaridose tipo 6, uma proporção 240 vezes maior do que a média nacional, 84 com deficiência auditiva de possível origem genética, 12 com hipotireoidismo congênito, nove com fenilcetonúria, que pode causar deficiência intelectual se não tratada, quatro com osteogênese imperfeita, marcada pela extrema fragilidade 8 O Território do Sisal, possui um grau de urbanização muito baixo (37% IBGE 2000) o que corresponde a praticamente a metade do grau de urbanização do Estado (64,9 % IBGE 2000), um dos fatores que retratam bem a identidade da região sisaleira. Um território rural (BAHIA, 2013). 9 Segundo o IBGE, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal em 2010 estava em 0,506. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/monte-santo/panorama Acesso em: 06 jul. 2022. 10 Que, se não tratadas precocemente, podem desenvolver deficiências físicas, intelectuais, auditivas, visuais, sensoriais ou múltiplas devido às comorbidades. De acordo com (FIORAVANTI, 2015) na Revista Pesquisa FAPESP, em 2006, médicos e pesquisadores de Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre vieram à Monte Santo e fizeram rastreamento em cerca de 20% da população de habitantes, se espantando com o grande índice de doenças raras em um único lugar (MONTE SANTO, 2020, p.83). https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/monte-santo/panorama 25 dos ossos, e quatro com síndrome de Treacher Collins, que prejudica a formação dos ossos do crânio. Ter esse panorama é significativo para entender o campo da pesquisa, pois no município, além das causas da surdez mais comuns descritas pela medicina, também existem casos associados a uma variação genética que é endêmica devido aos casamentos consanguíneos realizados ao longo dos anos, os quais os pesquisadores consideram como um dos fatores determinantes para o elevado número de doenças raras congênitas (FIORAVANTI, 2015). 2.3 Desenvolvimento da pesquisa A priori será feita uma pesquisa bibliográfica acerca do tema da pesquisa, utilizando o Scopus, Scielo, Web of Science e Repositório da Capes, afim de selecionar artigos, teses e dissertações que estejam dentro do recorte de 5 anos. Para a busca foram utilizados os seguintes termos de pesquisa: alfabetização de surdos, tecnologias na alfabetização, surdez, Libras e tecnologia assistiva. Dentre os critérios de inclusão destacam-se: a) teses, dissertações e artigos publicados em periódicos e eventos acadêmicos b) o período de levantamento abarcado é de 5 anos, de 2017 a 2022; c) documentos relativos a Educação Especial no estado (BA) e no munícipio Monte Santo – BA. E como critérios de exclusão: a) Duplicidade de artigos/teses/dissertações ou resultados, ou seja, artigos sob a mesma autoria publicados em diferentes periódicos com títulos diferentes, mas com os mesmos resultados; b) Artigos inconsistentes, ou seja, com resultados não conclusivos. Algumas obras anteriores ao período de 5 anos foram utilizadas como referências devido a sua importância e contribuição ao tema estudado, como é o caso de Strobel, Perlin, Quadros, entre outros autores que se fazem presentes no texto. Essas referências são atemporais em virtude de sua relevância basilar para os estudos em questão. A pesquisa bibliográfica é de fundamental importância para 26 situar o pesquisador na conjectura atual do objeto da pesquisa. O levantamento de dados para a pesquisa documental utilizou os documentos relativos à Educação Especial no estado (BA) e no munícipio Monte Santo – BA. Com a pesquisa pronta, uma análise documental dos dados e informações foi feita, com o objetivo de entender qual é a proposta metodológica e de que forma ela vem sendo aplicada no ensino regular no Munícipio de Monte Santo – BA. 2.4 Análise dos dados A análise foi qualitativa de modo a descrever e discutir sobre os dados objetivos dos documentos. Segundo Moreira e Caleffe (2008, p. 221) “é um processo indutivo, inovador, emergente, exploratório e criativo”, que envolve trabalhar novamente com os dados e as anotações, possibilitando a descrição-análise. 27 3 EDUCAÇÃO DOS SURDOS: BREVE HISTÓRICO Os dados do Censo Demográfico de 2010 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE revelaram que 23,9% da população do país tem algum tipo de deficiência. Di Benedetto, Santos e Schlünzen, (2013) relatam que entre os séculos XII e XV os surdos eram tidos como seres não pensantes. A linguagem falada simbolizava o domínio da capacidade de raciocinar, portanto, era o que caracterizava os seres humanos como seres normais. Segundo as autoras, a língua de sinais surgiu somente no século XVI através da dedicação e interesse de diversos estudiosos como Ponce de Leon, Girolamo Cardano e Charles-Michel de L’Epée. A história da humanidade revela que as pessoas com deficiência ocuparam papéis distintos, os quais fundamentaram o tratamento desigual que estas receberam no decorrer dos séculos. Lançando mão da compreensão desse tratamento desigual, Pereira (2011) revela que na antiguidade grega, cuja sociedade baseava-se em um modelo agrícola exportador e a produção da riqueza estava fundamentada no trabalho manual dos escravos, as pessoas com deficiência com comprometimentos mais severos, cognitivos e físicos, eram cuidadas pela família e não tinham função social. Para transformar essa visão o cristianismo teve papel fundamental ao atribuir a deficiência às causas divinas e ao conceber que todos nascem com almas e, por conseguinte, as pessoas com deficiência merecem tratamento caridoso, já que também possuem alma. Contudo, apesar de ser alvo de ações caridosas, os surdos no período feudal não tiveram um reconhecimento maior por parte da sociedade. Com a queda do feudalismo, transforma-se a visão de mundo, de homem, de sociedade e de natureza, pois conforme Baleotti e Omote (2014, p.72) “o natural, e não mais o divino, passa a ser critério de norma e valor, sendo, portanto, valorado ou (des) valorado tudo aquilo que é conforme a natureza”. Associadas a esse fato, iniciam-se tentativas de compreender a sua natureza e buscar explicações científicas e tratamento específico para os que eram acometidos de deficiência. Baseada na compreensão de que a deficiência possuía uma natureza e, portanto, devia ser respeitada, refletida e analisada, a sociedade passa a buscar um lócus para confinar a pessoa com deficiência e tirá-la de circulação. Para tanto, cria- se o primeiro hospital psiquiátrico para confiná-los no século XVI. Essa medida representou a primeira tentativa de tratamento da deficiência e também uma forma de 28 as famílias deixarem aqueles que tinham alguma deficiência, considerados inválidos, em um local onde receberiam tratamento baseado na alquimia, na magia e na astrologia. A sociedade antiga compreendia que os surdos deviam ser tratados com piedade e compaixão. Outrossim, havia o entendimento de que essas pessoas eram castigadas pelos deuses, portanto deviam ser abandonadas ou sacrificadas, reforçando a crença de que não poderiam ser educadas (BALEOTTI; OMOTE, 2014). Contudo, a partir do século XVI educadores começam a trabalhar com surdos, sendo Cardano o primeiro a afirmar que o surdo poderia ser instruído (BALEOTTI; OMOTE, 2014). Nesse sentido, tais educadores criam metodologias para ensinar os surdos. Algumas metodologias se basearam na linguagem oral, outras na língua de sinais ou em códigos visuais. Durante o século XVI um monge beneditino espanhol ensinou surdos a falar grego, latim e italiano, além de fazê-los estudar os conceitos de Física, Astronomia, escrita e oralização. No ano de 1620, século XVII, na Espanha, Juan Martin Pablo Bonet publicou um livro chamado Reduccion7 de las letras y artes para enseñar a hablar a los mudos, no qual Bonet discutia sobre a invenção do alfabeto manual de Ponce de Leon, onde cada palavra seria trocada por um símbolo visual e foi a base para a criação de outros alfabetos. Ainda no século XVII, em 1644 em Londres, Bulwer publica Chirologia, o primeiro livro em inglês sobre a língua de sinais. Ele acreditava que “a língua de sinais era universal e icônica, pois os seus sinais imitavam os objetos reais do mundo, não havendo abstrações” (Mori; Sander, 2015, p.4). Bulwer publicou em 1648 o segundo livro chamado Philocopus afirmando que esta é capaz de expressar conceitos similares à língua oral. Goldfeld (1997) aponta que na França em 1750, o Abade Charles Michel de L’Epée cria os Sinais Metódicos, combinando a língua de sinais com a gramática sinalizada francesa. O Abade acreditava que todos os surdos deveriam ter acesso à educação pública. Em 1778, na Alemanha, criam-se as primeiras noções de uma educação de base oral, rejeitando a língua de sinais e tentando reabilitar a fala dos surdos numa perspectiva clínica. Esse movimento é liderado por Samuel Heinicke (MORI; SANDER, 2013, p.4). De acordo com Goldfeld, (1997), 29 “as metodologias do francês L’Epée e do alemão Heinicke se confrontaram e ambas foram submetidas à análise da comunidade científica europeia da época. Os argumentos de L’Epée foram mais convincentes e por isso tiveram larga aceitações pelas demais escolas de surdos pela Europa, enquanto que para Heinicke os recursos para a ampliação de seu instituto foram negados.” (GOLDFELD, 1997, p.26) Na Europa, apesar dos avanços na tentativa de integrar os surdos no meio social e educacional terem sido presentes, existiram muitas barreiras nesse processo, como por exemplo, o questionamento a respeito da origem da surdez, fato que acabou incentivando a realização de experiências torturantes com pessoas surdas, aumentando a sua marginalização (SASSAKI, 2003). No entanto é possível observar que, nos Estados Unidos, em 1821 os estudos e pesquisas sobre a educação de surdos foram promissores e as escolas utilizavam os sinais para a comunicação entre professores e alunos – a Língua de Sinais Americana (ASL). Assim como a Libras, a ASL sofreu grande influência da Língua de Sinais Francesa através da metodologia trazida por Thomas Hopkins Gallaudet e Laurent Clerc da França, que contribuiu com a alta escolarização dos surdos no país (MORI; SANDER, 2013) A escola de Gallaudet, atual Universidadde Gallaudet para surdos, única universidade no mundo onde os programas e serviços são desenvolvidos para pessoas surdas, começou a conferir títulos universitários em 1864. Nesse período na Europa, havia as duas vertentes, o método francês de L’Epée e o Oralista de Heinicke, ou seja, as duas vertentes, língua de sinais e o oralismo coexistiam. Já no Brasil, a primeira escola para pessoas surdas foi fundada em 1857, mas o então chamado Instituto dos Surdos-Mudos acolhia apenas meninos surdos. Acreditava-se, na época, que as meninas surdas eram consideradas “dóceis e pacientes”, portanto, não precisariam ser ensinadas. Apesar das descobertas do século XVI de que a língua falada não era o único mecanismo de comunicação e nem o único método de ensino para pessoas surdas, em 1880, no II Congresso Internacional de Milão, a língua de sinais foi banida. Nesse momento, o Oralismo (modelo de ensino através da fala) foi implantado e defendido como o mais novo referencial educacional para pessoas surdas por quase um século (LACERDA, 1998). Segundo Skliar (2005), o Congresso de Milão constituiu não o começo do oralismo, mas a sua legitimação oficial. De acordo com Strobel (2009), 30 O evento contou com 164 delegados, em sua maioria de franceses e italianos a favor do oralismo. Apenas os Estados Unidos e a Inglaterra eram a favor do uso da língua de sinais e não foi permitido que os educadores surdos votassem. O cenário pós congresso resultou em anos de atraso nas pesquisas e na difusão das línguas de sinais, sem citar ainda as perdas morais dos surdos em relação a obrigatoriedade do desenvolvimento da fala uma vez que o método oralista era hegemônico e por definição bania as línguas de sinais e qualquer gestualização dos surdos. (STROBEL, 2009, p.33). Essa situação se estendeu por um século, quando os estudos de Stokoe, professor na Universidade Gallaudet, mostraram que a língua de sinais americana possuía aspectos linguísticos. Stokoe se deu conta de que a língua de sinais americana é uma língua natural, completa e complexa, usada pela sociedade surda americana e que possuía aspectos linguísticos de estruturas da linguagem humana como aponta Quadros e Karnopp: As línguas de sinais são, portanto, consideradas pela linguística como línguas naturais ou como um sistema linguístico legítimo e não como um problema do surdo ou uma patologia da linguagem. Stokoe, em 1960, percebeu e comprovou que a língua de sinais atendia a todos os critérios linguísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe, e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças. (QUADROS e KARNOPP, 2004, p. 30) Com o passar dos anos foram se percebendo os insucessos pedagógicos atrelados ao modelo oralista e a ideia de que a língua oral seria a melhor metodologia educacional para as pessoas surdas foi finalmente derrubada. Para Almeida (2015) esse modelo de educação oralista voltava-se mais para o desenvolvimento da comunicação do que para a transmissão de conhecimento. Desse modo, esse conhecimento e acesso à educação não estariam ligados aos ideais de liberdade e igualdade. Em 1971 foi realizado em Paris um novo congresso – Congresso Mundial dos Surdos –, onde foram apresentados estudos, principalmente da Universidade de Gallaudet, sobre a Comunicação Total, modelo de comunicação onde o oralismo e a língua de sinais são utilizados de forma concomitante. Segundo Mori e Sander (2015, p.22), o surdo é definido como “uma pessoa, e a surdez como uma marca que repercute nas relações sociais e no desenvolvimento afetivo e cognitivo dessa pessoa”. Contudo essa adoção de múltiplos métodos (oralismo, língua de sinais, gestos) para facilitar o aprendizado não reconhecia a 31 língua de sinais como única e atuante língua e sim como um instrumento que traduz a língua oral para os sinais, como acontece com o português sinalizado. No ano de 1975 em Washington, ocorreu outro congresso onde foi evidenciado o efeito negativo do oralismo na educação da comunidade surda, após quase 100 anos do Congresso de Milão. Amparados por esse pensamento, a formação e o desenvolvimento dos surdos passaram a trilhar um novo caminho, o bilinguismo. Nessa perspectiva o surdo passa a aprender sua língua natural como L1 e o português escrito como L2, tornando-se bilíngue. Quadros (1997) afirma que: Se a língua de sinais é uma língua natural adquirida de forma espontânea pela pessoa surda em contato com pessoas que usam essa língua e se a língua oral é adquirida de forma sistematizada, então as pessoas surdas têm o direito de ser ensinadas na língua de sinais. A proposta bilíngue busca captar esse direito. (QUADROS, 1997, p.27) Com o novo cenário mundial no final da década de 1990 e a possibilidade de discussão e utilização das línguas de sinais novamente, através do método educacional Comunicação Total, e das dificuldades escolares dessa proposta, os movimentos surdos puderam exigir que sua condição linguística fosse preconizada na educação escolar, através de sua língua natural (DIAS; NEVES, 2021). Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a interpretação da desigualdade social e do acesso por parte das minorias e desfavorecidos a bens e serviços trouxe definições mais claras. Os documentos oficiais internacionais como a Declaração Mundial sobre Educação para Todos (1990) que aconteceu em Jontien na Tailândia, na qual debate os direitos educacionais de todos os cidadãos contribuiu para um olhar mais inclusivo e voltado para a diversidade no ambiente escolar. A Declaração de Salamanca (1994) promovida pela Unesco tinha como objetivo fornecer diretrizes básicas para a formulação e reforma de políticas e sistemas educacionais de acordo com o movimento de inclusão social. A declaração é um marco histórico sobretudo porque incluiu, além das crianças com deficiência, aquelas que não conseguem ter êxito na escola, quaisquer que sejam os motivos conforme corrobora o documento: “[…] proporcionou uma oportunidade única de colocação da educação especial dentro da estrutura de “educação para todos” firmada em 1990 (…) promoveu uma plataforma que afirma o princípio e a discussão da prática de garantia da inclusão das crianças com necessidades educacionais especiais 32 nestas iniciativas e a tomada de seus lugares de direito numa sociedade de aprendizagem”. (UNESCO,1994) A Declaração de Salamanca “Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais”, foi um marco histórico para alavancar o paradigma de inclusão social e Educação Inclusiva e, segundo Dias e Neves (2021, p.5), “trata-se do paradigma de uma escola para todos, acessível e apta a abarcar as diferenças físicas, cognitivas, socioeconômicas, raciais, culturais, entre outras, incluindo as linguísticas”. A declaração também reconhece a língua de sinais como garantia de acesso da criança surda ao ensino na língua de sinais de seu país, como condição básica para uma aprendizagem significativa. (CARVALHO, NASCIMENTO e GARCIA, 2015). E, com base no que foi acordado em Salamanca, os países tomaram para si a missão de analisar suas leis garantindo assim os direitos enaltecidos na Declaração e se comprometendo a erradicarem as condições desiguais às quais as pessoas com deficiência eram submetidas (DIAS; NEVES, 2021). A Convenção de Guatemala (1999), que foi promulgada no Brasil pelo Decreto nº 3.956/2001, estabeleceu que pessoas com deficiência têm os mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais que as demais pessoas, definindo como discriminação, com base na deficiência, toda diferenciação ou exclusão que possa impedir ou anular o exercício dos direitos humanos e de suas liberdades fundamentais (BRASIL, 2001), o que influenciou na elaboração de leis e ações relacionadas às políticas públicas de educação inclusiva. Os referidos documentos citados são marcos relevantes para a organização dos países signatários na criação e efetivação de leis e documentos norteadores dos processos educacionais inclusivos das pessoas com deficiências. 33 3.1 EDUCAÇÃO DOS SURDOS NO BRASIL No Brasil a educação para surdos iniciou por intermédio de Dom Pedro II, que em 1855 promoveu uma comissão para a promoção de um instituto destinado a educação de pessoas surdas, chamado de Imperial Instituto de Surdos-Mudos (INSM)11. Dom Pedro trouxe ao Brasil Ernest Huet, professor surdo francês que em 1857 iniciou um trabalho com a língua de sinais Francesa, na qual a Libras tem sua origem (MORI; SANDER, 2015,). O instituto publica em 1875 o primeiro documento relativo à Língua de sinais no Brasil – o “Iconographia dos Signaes dos Surdos- Mudos”, pela autoria do surdo Flausino José da Gama, aluno do INSM –, um dicionário que fora traduzido da obra de outro surdo, o francês Pélissier (SOUZA, 2018). A partir dos desdobramentos do Congresso de Milão, onde a maioria ouvinte vota a favor do método oralista e proíbe o uso da língua de sinais pelos surdos, essa proibição, apesar de ter sido feita na Europa, conseguiu disseminar o acordo em muitos países em outros continentes. Enquanto o Brasil passava por um processo de libertação12 entre 1888 e 1889, os surdos, estavam presos a um método perverso de privação da sua língua de instrução priorizando a oralidade em detrimento da língua de sinais, . Segundo Mori e Sander (2015) para que os surdos se manifestassem através da oralidade, suas mãos eram atadas para traz de forma que não pudessem utilizar a língua de sinais. Em 1951 foi regulamentado o Curso Normal de Formação de Professores para Surdos-Mudos13, que tinha como objetivo alfabetizar as pessoas surdas em todo o território brasileiro. No entanto, a alfabetização era condicionada ao método oralista, o que demandava tempo e esforço. (SOUZA, 2018). Em 1911 o método oralista foi instituído no INES com grupos de funcionários e ex-alunos resistentes ao método e que, de forma escondida, utilizavam os sinais. Apenas em 1957 a Língua de sinais foi oficialmente proibida na sala de aula e essa proibição perdurou até a década de 1980 (RAMOS, 2003). 11 Atualmente - Instituto Nacional de surdos – INES 12 Assinatura da Lei Aurea e a instauração da República 13 Esse termo utilizado erroneamente no passado, não deve ser mais utilizado. É de conhecimento público que os surdos não são mudos, pois inexiste em sua maioria, problemas com o aparelho fonador, responsável pela articulação da fala. Os surdos não falam devido a sua condição auditiva, uma vez que os seres humanos reproduzem os sons da fala ao ouvirem. 34 Na década de 1970, a partir de um congresso em Washington, com o oralismo em declínio, houve maior abertura para a utilização das línguas de sinais. O uso de novas correntes como a Comunicação Total e o bimodalismo14 permitiam o uso de todos os recursos para a comunicação dos surdos, inclusive a língua de sinais e, em seguida, o Bilinguismo. A Constituição Federal do Brasil, de 1988, define no seu artigo 205 a educação como um direito de todos. No artigo 206, inciso I, estabelece a “igualdade de condições e de acesso à escola como um dos princípios para o ensino” (BRASIL,1988). Ainda em 1994 foi criada a Política de Educação Especial (PEE) com a finalidade de “garantir o atendimento educacional do alunado portador de necessidades especiais” (BRASIL, 1994, p.7), que conforme asseguram Dias e Neves (2021, p.5), esse trabalho está centrado na “integração escolar centralizada na definição dos serviços especializados e salas de recursos para atendimento às necessidades específicas indicadas pelos estudantes, incluindo aqueles com deficiência presentes nas escolas comuns”. Segundo as autoras o documento impulsionou a utilização instrumental da Libras, tornando-a um meio de ensino para a consolidação da Língua Portuguesa como língua de acesso ao conhecimento (DIAS; NEVES, 2021). O documento elaborado pela comunidade surda no V Congresso Latino- Americano de Educação Bilíngue para Surdos, realizado em 1999, na cidade de Porto Alegre – RS, intitulado “A educação que nós surdos queremos” buscou privilegiar princípios culturais, humanísticos e artísticos, promovendo o desenvolvimento de indivíduos cidadãos e a produção da identidade e cultura surdas (FENEIS, 1999). Diante dessa perspectiva Quadros (2006) argumenta que os surdos têm como anseio aprender a língua de sinais em escolas bilingues voltadas para a identidade surda onde a interação linguística e cultural entre seus pares seja efetiva sem a mediação de intérpretes. Nessa esteira, as mudanças eram lentas, apesar de a LDB - Lei de Diretrizes e Bases Educacionais (BRASIL,1996), em seu artigo 58, definir a educação especial como uma modalidade de educação escolar oferecida, preferencialmente, em escolas de ensino regular, onde devem ser oferecidos os meios necessários ao 14 É também chamado de português sinalizado, onde a língua de sinais e a língua oral são utilizadas de forma simultânea. 35 desenvolvimento do público atendido bem como as garantias de que o ensino deve ser contínuo, perpassando todas as etapas da educação escolar. “Nesse período histórico, percebemos um contexto educacional desenvolvido em ambientes segregacionistas/excludentes, com abordagem clínico- terapêutica, passando pelo movimento de integração e, atualmente, chegando à proposta de inclusão de pessoas deficientes no sistema regular de ensino.” (SALES, 2013, p.28) De acordo com o autor as instituições de ensino recebiam os alunos com deficiência por ordens da justiça, sem que de fato o ambiente escolar estivesse preparado para recebê-lo, não oferecendo condições para sua aprendizagem e nem o atendimento educacional especializado (AEE) no contraturno. A Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, conhecida como a Lei de Libras (Língua Brasileira de Sinais), foi um importante marco na história dos surdos no Brasil, reconhecendo a Libras como forma de comunicação e expressão de um sistema linguístico de natureza visual (BRASIL, 2002), a língua natural dos surdos. O Decreto n° 5.262, de dezembro de 2005, regulamenta a Lei de 2002, torna obrigatória o ensino da Libras como disciplina curricular nos cursos de licenciatura e de fonoaudiologia e salienta a importância do bilinguismo ao regulamentar a Língua Brasileira de Sinais e a obrigatoriedade de garantia de acesso à educação através desta (BRASIL, 2005). Ainda sobre o decreto, Dias e Neves (2021) complementam que pela primeira vez, referências e orientações para a formação de profissionais para a educação bilíngue, mencionando cursos de Pedagogia Bilíngue e de Letras Libras; e também referências para a organização de escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues, na educação infantil, ensino fundamental, ensino médio ou educação profissional (DIAS; NEVES, 2021, p.7). Foi estabelecida também a presença de tradutores e intérpretes de Libras na educação de surdos, bem como profissionais cientes da “singularidade linguística dos alunos surdos” (BRASIL, 2005, p.8). A educação bilingue e a educação inclusiva ganham mais destaque no Brasil com a elaboração da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), em 2008, em substituição da PEE de 1994. A política é um marco na história dos surdos pois dispõe, dentre outras coisas que, considerando a diferença linguística, o estudante surdo deve estar 36 com outros surdos em turmas comuns na escola regular (Brasil, 2008). A regulamentação da profissão de intérprete pela lei 12.319/2010 foi de suma importância na garantia do direito aos surdos de permanecerem na escola regular. Segundo Souza (2018, p. 8), “o intérprete educacional é o mediador da aprendizagem ao interpretar a fala do professor e traduzir os conteúdos apresentados nos livros, para a língua de sinais usada pelos alunos surdos.” Nesse sentido a Lei nº 13.146/2015 afirma que o surdo terá a “oferta de educação bilíngue em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas” (BRASIL, 2015, p. 7). O sistema conceitual da criança, formado de início através das Libras, é estruturado de forma natural, semelhantemente ao que acontece com as crianças ouvintes. É primordial que o estudante aprenda os dois sistemas conceituais, o de sinais e o oral, não criando sinônimos entre as duas línguas (TEIXEIRA, 2021). O ensino de estudantes surdos na educação básica, incluindo os alunos surdos que cursam o ensino médio, deve adotar métodos individualizados e coletivos de aprendizagem cujo objetivo é maximizar o desenvolvimento acadêmico e social do aluno surdo (BRASIL, 2015). 3.2 A APRENDIZAGEM DO SURDO A Libras é considerada a língua natural dos surdos. As línguas de sinais “são línguas espaço visuais, ou seja, as realizações dessas línguas não são estabelecidas através dos canais oral e auditivos, mas através da visão e da utilização do espaço” (QUADROS, 1997, p. 46). Sendo a língua portuguesa considerada como uma segunda língua na sua forma escrita. A Libras é reconhecida pela Lei n° 10.436/2002, funcionando como meio de comunicação recorrente nas comunidades surdas do Brasil. (SOUSA; SENA; MARQUES, 2018). A língua de Sinais passou a ser sistematizada com base nos sinais usados pelas comunidades surdas de cada país. Assim como a Língua Portuguesa, a Língua de Sinais também obedece a uma gramática própria com níveis linguísticos correspondentes aos das línguas orais auditivas. Nesse sentido o alfabeto da Língua de Sinais é formato por diferentes imagens das mãos, representando as letras do 37 alfabeto (SOUSA; SENA; MARQUES, 2018). No entanto a aprendizagem dos alunos surdos não depende necessariamnete da Libras e de seu uso na escola pois é preciso considerar que muitos surdos não têm acesso à língua de sinais, fazendo uso da leitura labial e da oralização e/ou o uso de aparelho auditivo e implante coclear. Nesse sentido a experiência com a Libras dependerá do meio em que o surdo está inserido, de suas experiencias e dificuldades e, nesse ponto, a família tem papel fundamental. Essa afirmação se reflete em Lodi e Lacerda (2009) que associam as dificulades dos surdos ao fato de estarem inclusos em escolas com a perspectiva oralista sem terem acesso à educação que considere sua necessidade linguística. Essa dificuldade vivenciada pela escola regular deixa evidentes os desafios de se ofertar uma educação bilíngue à qual os surdos têm direito. A proposta bilíngue traz uma grande contribuição para o desenvolvimento da criança surda, onde visa permitir que o aluno surdo, construa uma autoimagem positiva, pois além de utilizar a língua de sinais como língua materna, terá também a possibilidade de recorrer à língua portuguesa para inseri-lo na cultura ouvinte onde irá favorecer o desenvolvimento cognitivo e a ampliação de vocabulário da criança surda. No entanto é fundamental que a criança adquira primeiro a língua de sinais e depois a língua portuguesa. (SOUSA; SENA; MARQUES, 2018, p. 506). É necessário reforçar que a metodologia bilíngue deve se desenvolver dentro da perspectiva de que a pessoa surda seja participante de sua própria comunidade, mas que ao mesmo tempo integre a comunidade ouvinte, respeitando assim, a característica bicultural, no sentido de se pertencer às duas culturas linguísticas existentes no país (SACKS, 1998). O bilinguismo estimula a aprendizagem da língua de sinais pelo surdo, que é adquirida mais rapidamente que a língua oral, como corroboram os estudos de Rodriguero e Yaegashi: Como a língua de sinais é sempre mais rapidamente adquirida que a oral, o sistema conceitual da criança, de início, é formado principalmente através dela. Assim, a aquisição da língua de sinais pela criança surda em idade semelhante à aquisição da língua oral pela criança ouvinte tende a evitar o atraso de linguagem e suas consequências no desenvolvimento infantil (RODRIGUERO; YAEGASHI, 2013, p. 54). As leis do país que refletem a Educação inclusiva garantem aos educandos uma educação plena e significativa, no entanto a maior inquietação em relação aos 38 surdos é saber se quando estão sendo inseridos na escola regular, os meios para garantir a sua permanência estão sendo assegurados. A LDBEN/96, em seu artigo 59, discorre que os sistemas de ensino precisam assegurar currículo, recursos, métodos e organização específicos, capazes de atender às necessidades dos educandos. Dias e Negreiros apontam que nesta configuração a escola inclusiva “não é um espaço educacional que atende às necessidades educacionais de pessoas com surdez.” (2020, p.151) os autores ponderam que os conhecimentos que são produzidos e reproduzidos na escola são mediados pelo português, mesmo existindo ali a figura do intérprete pois a língua de instrução dominante (falada pela maioria) prevalece sobre a língua de sinais. A escola nesse sentido continua oferecendo programas educacionais, voltados unicamente para pessoas ouvintes. Os programas voltados efetivamente à participação de surdos e que considerem o seu modo de viver, tal como sua cultura, língua e necessidades, são raros e, em sua maioria, acontecem fora da sala de aula, no AEE ou nas escolas bilíngues, onde o currículo é pensado para atender a especificidade não apenas da língua (Libras), mas da cultura surda, através da interação entre seus pares. O reconhecimento da Libras como forma legal de comunicação e expressão das pessoas surdas brasileiras foi regulamentado pelo Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que definiu as formas institucionais no uso e difusão da Libras para um maior acesso das pessoas surdas à educação. Nesse contexto Dias e Neves (2020) concluem que os documentos legais, apesar de importantes, têm interpretações subjetivas, sem a definição clara de qual língua deve ser utilizada, ou trazem a visão simplista de que a Libras seja apenas um recurso para o aprendizado do português. Com efeito, a concepção bilingue na escola inclusiva deveria se estender a todos e não apenas a um grupo. A inserção do intérprete em sala de aula como forma de minimizar as dificuldades de comunicação do surdo, devido à predominância da língua utilizada no espaço escolar, é relevante para o aprendizado do aluno surdo. No entanto, o auxílio do intérprete ainda é uma ferramenta entre o signo e o significado, ou seja, o aluno surdo não usufrui da prática social de sua própria língua em sua concretude uma vez que existe sempre alguém intermediando o discurso – o intérprete. Em diálogos surdos não há necessidade dessa intermediação, uma vez que a comunicação entre seus pares acontece de forma natural. 39 Há que se considerar também a pouca qualificação dos intérpretes, bem como o fato de que há poucos desses profissionais disponíveis para atendimento da população que dele necessita (CARVALHO; NASCIMENTO; GARCIA, 2015). Logo a inclusão desejada e como descrita na legislação ainda está longe de ser alcançada, ou seja, “a escola que os surdos precisam, defendida no Decreto nº 5626 e a escola real oferecida aos surdos ainda são bastante diferentes” (LACERDA, 2015, p.27). No entanto é importante ressaltar que as leis que fundamentam e reconhecem a condição linguística dos surdos bem como o uso e difusão da Libras, foram fundamentais para o avanço das pautas referentes à acessibilidade educacional e de comunicação das pessoas surdas. 3.3 ALFABETIZAÇÃO EM LÍNGUA DE SINAIS Os primeiros estudos acerca da aquisição da linguagem foram norteados pela visão teórica behaviorista de Skinner (1974), que entendia que a aprendizagem de uma língua se dava pela exposição ao meio social, pela imitação e pelo reforço. O principal argumento teórico behaviorista defendia que o ser humano aprende por condicionamento, assim como qualquer outro animal. Os estudos de Noam Chomsky alavancaram os trabalhos em aquisição da linguagem, tendo como pressuposto de que a linguagem é inata. Para Chomsky a linguagem é uma dotação genética do ser humano. Segundo a teoria inatista, o ser humano nasce com uma Gramática Universal (GU) que depende de um dispositivo inato, de modo que basta que a criança fique exposta aos inputs (entradas) necessários para a ativação desse dispositivo para que se desenvolva a linguagem. A visão cognitivista construtivista de Piaget (1936) condiciona a aquisição da linguagem ao desenvolvimento da inteligência da criança. É necessária a mediação do outro entre a criança e o mundo (Scarpa, 2003). Porém a criança não é passiva. Ela constrói o conhecimento a partir das relações estabelecidas através dessa mediação. A visão interacionista social de Vygotsky (1936) considera os fatores sociais, comunicativos e culturais para a aquisição da linguagem, estudando as características da fala dos adultos. Vygotsky acredita que a interação social e a troca comunicativa 40 são pré-requisitos básicos para a aquisição da língua. Nessas perspectivas a criança se constrói como sujeito. A aquisição da linguagem dos surdos acontece de maneira natural, assim como os ouvintes aprendem. Mediante inputs15 linguísticos assimilados pelo sentido da visão, os surdos são capazes de adquirir uma língua, desde que estejam imersos em ambientes linguísticos que potencializem suas experiências visuais. É como no caso das crianças ouvintes que aprendem a falar porque estão imersas em ambientes que favorecem a assimilação da língua na modalidade oral, sem que estas precisem passar pelos bancos da escola (OLIVEIRA, 2015). A partir dos conhecimentos linguísticos assimilados na primeira língua (L1), torna-se mais fácil o aprendizado da segunda língua (L2), que seria aquela oficial de um país. Dessa forma, no Brasil, a Libras, é a primeira língua dos surdos e o Português a segunda língua, ou seja, o aluno surdo se apropria da sua língua materna pela qual todas as suas necessidades linguísticas são supridas, para só depois, aprender uma nova língua. Nesse sentido se caracteriza o bilinguismo que é facilitador do aprendizado de sinais e do português. No bilinguismo as pessoas podem aprender a falar, mas a ênfase está em ser alfabetizado no português depois de aprender, com fluência, a língua de sinais, respeitando a sua estrutura. Essa perspectiva reconhece o surdo na sua diferença e especificidade (OLIVEIRA, 2015). É necessário entender que a aquisição do português escrito para os surdos é a aquisição de uma língua estrangeira e para que o aprendizado seja significativo é muito importante que tenham sua língua materna bem definida e assimilada, pois através dela eles terão subsídios linguísticos em níveis de comparação e análise da nova língua a ser aprendida. Quadros (2017), para exemplificar que a aquisição da linguagem com seus estágios acontece da mesma forma entre crianças surdas e ouvintes, relata o balbucio nos primeiros anos de vida que ocorre nos dois casos, independentemente da surdez. Quadros (1997) destaca quatro estágios no processo de aquisição de uma língua linguagem (língua de sinais), a saber: período pré- linguístico, estágio de um sinal, estágios das primeiras combinações e estágio das múltiplas combinações. O período pré-linguístico, entre o nascimento e os 14 meses de vida, é marcado pelo balbucio oral e manual para todos os bebês e, com o tempo, de acordo com o input oferecido no meio familiar em que a criança está inserida, será 15 “Input” designa o que a criança ouve ao seu redor, ou seja, as sentenças da língua que está adquirindo 41 interrompido no bebê surdo o balbucio oral e no bebê ouvinte o balbucio manual (Quadros,1997). A família da qual a criança surda faz parte é decisiva nesse processo. Segundo Quadros e Cruz (2011) há diferentes contextos de aquisição de uma língua para a criança surda e isso tem a ver com o meio em que a criança está inserida e se relaciona, podendo os pais serem ouvintes fluentes na Libras, surdos usuários da língua ou que apenas um dos pais seja surdo. Há também a possibilidade de que ambos os pais sejam ouvintes que não saibam a língua de sinais, o que pode levar a uma aquisição tardia na linguagem da criança surda, uma vez que ela não tenha contato com práticas socias da língua. O estágio de um sinal, conforme Quadros (1997), tem início aos 12 meses de vida e se estende até os dois anos de idade. Crianças de até um ano costumam apontar quando querem algo ou alguém. No entanto quando elas passam desse estágio elas substituem o apontamento pelo que pode ser chamado de primeiros sinais – o equivalente às primeiras palavras no ouvinte. O estágio das primeiras combinações se dá a partir dos dois anos. As crianças surdas começam a utilizar os sinais fazendo uso da ordem gramatical da Libras SV (sujeito-verbo), VO (verbo-objeto) ou SVO (sujeito-verbo-objeto). No estágio das múltiplas combinações (período de dois anos e meio aos três anos de idade), para Quadros (1997), a criança amplia seu vocabulário e eventuais erros gramaticais acontecem como ocorrem também entre as crianças ouvintes. Um exemplo é o erro “eu sabo” que ocorre na língua oral também pode ocorrer na língua de sinais. A partir dos 3 anos ela já faz uso da iconicidade e concordância. Aos 5 anos de idade conta histórias e fatos complexos e aos 6 e 7 anos consegue fazer inferências sobre suas experiências (Quadros,1997). Essas etapas da aquisição de linguagem são muito importantes para o desenvolvimento linguístico das crianças surdas. Goldfeld (2002, p. 41) salienta que a “língua de sinais é a única língua que de fato pode suprir as necessidades de uma pessoa surda por completo, sejam elas na interação, na comunicação, sem prejuízos cognitivos”. A autora lista as consequências da não exposição à língua de sinais: [...] se a criança surda não for exposta à língua de sinais desde seus primeiros anos de vida sofrerá várias consequências. São elas: a) Este (o surdo) perde a oportunidade de usar a linguagem, senão o mais importante, pelo menos um dos principais instrumentos para a solução de tarefas que se lhe apresentam no desenvolvimento da ação inteligente; b) o surdo não há de recorrer ao planejamento para a solução de problemas; c) não supera a ação 42 impulsiva; d) não adquire independência da situação visual concreta; e) não controla seu próprio comportamento e o ambiente; não se socializa adequadamente (GOLDFELD, 2002, p. 41). De acordo com Vilela e Martins (2019) a interação e o desenvolvimento se dão no meio em que as crianças se encontram mediante os estímulos linguísticos oferecidos, de forma que, para a assimilação da língua de sinais, é necessária sua exposição a ela. A respeito disso Dizeu e Caporali argumentam que: “Há então a necessidade de se colocar a criança surda próxima de seus pares o mais rápido possível, ou seja, em contato com um adulto surdo, fluente em Libras, que será para essa criança o meio mais fácil de propiciar sua aquisição de língua. Nestas condições, adquirindo a Libras, ela se tornará capaz de significar o mundo. As experiências mais promissoras indicam para a necessidade de atuação direta dos adultos surdos sinalizadores com os surdos que não têm acesso à língua de sinais, para que esse se dê de forma rápida e eficiente, além de isso contribuir para a formação da identidade de pessoa surda desses sujeitos”. (2005, p. 588) A criança surda nasce com as mesmas potencialidades de uma criança ouvinte. Por muito tempo houve a estigmatização da surdez devido aos abusos que ocorreram no passado. A desumanização das pessoas surdas e seu isolamento contribuíram para que houvesse um atraso na sua entrada nos ambientes sociais, na convivência familiar e na escola. Esses entraves são responsáveis pela aquisição tardia da língua natural, trazendo consequências emocionais, sociais ou cognitivas (GOLDFELD, 2002). Ou seja, quando a criança surda é privada de sua língua natural, há um atraso na linguagem que impacta na sua comunicação e, como consequência, na organização do pensamento. Nesse cenário o surdo não possui uma língua que lhe garanta subsídios para formular e expressar seu pensamento. Trazendo essas afirmações para a problemática do surdo, percebe-se que os problemas comunicativos e cognitivos da criança surda não têm origem na criança e, sim, no meio social em que ela está inserida, o qual frequentemente não é adequado, ou seja, não utiliza uma língua que possibilite a essa criança condições de adquirir de forma espontânea, a língua de sinais (GOLDFELD, 2002). 43 3.3.1 ALFABETIZAÇÃO A criança surda tem o direito de ser alfabetizada na idade esperada dentro do processo de escolarização e com todos os recursos que viabilizem e facilitem seu aprendizado. A diversidade no contexto escolar nos leva a uma discussão profunda nos âmbitos social e cultural, uma vez que os sujeitos, apesar de semelhantes, possuem suas diferenças e especificidades, o que constitui o ser social. Botelho (2002) traz importantes contribuições nas discussões acerca das políticas educacionais inclusivas voltadas para os surdos, onde se relativiza o letramento como prática social entre os sujeitos surdos privilegiando assim as interações com ouvintes. O letramento possibilita ao aluno refletir sobre seu próprio aprendizado e, nesse sentido, Soares (2003, p. 35) afirma que: “Letramento é o estado em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive.” Como Massone e Simon (1999 apud BOTELHO, 2002, p. 64) destacam, [...] outras definições enfatizam o letramento como uma construção de natureza política, com a utilização social da leitura e da escrita como forma de tomar consciência da realidade e transformá-la, o que não tem acontecido no caso dos surdos, inseridos em uma pedagogia que os imobiliza politicamente. Nessa visão, alfabetizar vai além da simples decodificação da escrita. É importante proporcionar aos alunos atividades contextualizadas que exijam a interpretação e compreensão e que promovam efetivamente o desenvolvimento da aprendizagem da leitura e escrita. A sociedade pensa e constrói conhecimento incansavelmente, o que torna necessário formar pessoas críticas e reflexivas. No entanto, a discussão acerca da alfabetização de surdos na perspectiva bilíngue não tem visibilidade, criando assim um desconhecimento sobre a identidade surda e sobre como o processo de alfabetização das crianças surdas acontece de fato, privando-os de uma efetiva participação social. O contexto histórico, no que diz respeito à educação de surdos, contribuiu significativamente para a discriminação e é responsável pelas baixas taxas de escolaridade entre os surdos. A educação de surdos é um tema que tem gerado diversas discussões no decorrer da história por suas dificuldades e limitações. Inicialmente considerados não 44 educáveis, os surdos foram privados do acesso à educação ou submetidos a métodos educacionais pautados, basicamente, na aquisição da oralidade e que não apresentaram resultados satisfatórios. Uma realidade que comprometeu seriamente o processo educacional das pessoas surdas, o qual foi orientado por uma cultura de segregação social e intelectual (TEIXEIRA, SILVA e BRITO, 2016). A discussão sobre a educação para surdos numa perspectiva bilíngue, perpassa todos os âmbitos do sistema educacional. A maioria dos professores dos surdos é composta de ouvintes e não usuários da Libras, que até mesmo não a conhecem. Diante desse contexto, é necessário rever antigas concepções acerca do surdo, de modo que este não se veja como sujeito deficiente e incapaz. Desmistificando essas concepções errôneas, surge a Pedagogia Surda e com ela destaca-se o espaço surdo, proporcionando trocas culturais e linguísticas, apresentando a urgência de práticas educativas fora dos contornos do ouvintismo16. Apesar da pedagogia surda se contextualizar na comunidade surda (tendo o usuário nativo da cultura surda como professor), professores ouvintes podem, dentro da perspectiva da pedagogia surda, tornar-se fluentes na língua e lecionar a partir das experiências com a cultura visual. A cultura surda, através da sua língua, estabelece processos de prática social. Pois “ao integrar-se à cultura surda e interagir com seus pares – a partir de uma ordem visual estabelecida pelos próprios surdos – apresenta- se ao surdo a possibilidade não de se tornar aceitável aos ouvintes, mas de aceitar- se em sua diferença” (PEREIRA e PERLIN, 2016, p.286). Há uma necessidade de garantir que a surdez não seja objeto de penalização do sujeito surdo evidenciando a deficiência que encobre e satiriza a diferença. É importante ressaltar que a alusão que a escola faz da pessoa surda contribui e reforçam o estigma a superestimação do indivíduo e sua deficiência, “fazendo parecer que, o corpo “defeituoso” do surdo sobrepõe-se ao direito de construção da subjetividade e da crença na capacidade da pessoa surda” (PEREIRA e PERLIN, 2016, p.285). 16 O ouvintismo deriva de uma proximidade particular que se dá entre ouvintes e surdos, na qual o ouvinte sempre está em posição de superioridade [...]. Em sua forma oposicional ao surdo, o ouvinte estabelece uma relação de poder, de dominação em graus variados, onde predomina a hegemonia através do discurso e do saber. Academicamente esta palavra – ouvintismo – designa o estudo do surdo do ponto de vista da deficiência da clinicalização e da necessidade de normalização) (PERLIN, 2010, p.58 45 A Pedagogia Surda parte da Pedagogia da diferença e não vê o surdo como uma alteridade maléfica. Muito pelo contrário, desmistifica as representações do ator surdo como deficiente, celebra as “vozes” vistas pela sociedade como dissonantes, indo ao encontro dos artefatos culturais surdos, enfatizando a cultura e a língua de sinais. (PEREIRA, 2016) A Pedagogia Surda não vê o surdo como um indivíduo pormenorizado. Muito pelo contrário, acaba com as representações do ator surdo como deficiente indo ao encontro aos manifestos culturais surdos. A proposta de educação bilíngue para surdos vai além das questões linguísticas para que se afaste o risco da utilização de pedagogias baseadas no diferencialismo17, enfraquecendo a concepção de sujeito surdo. Desta forma, o bilinguismo é de suma importância para a emancipação das práticas pedagógicas voltadas para os artefatos culturais surdos, desviando-se de práticas que infelizmente são empregadas nas escolas e outros espaços sociais e que ainda estão marcadas pela busca da corrigibilidade, da recuperação, da normalidade (PEREIRA e PERLIN, 2016). 4 TECNOLOGIA E A EDUCAÇÃO DE SURDOS As inovações para os surdos se afirmam por meio da criação de tecnologias de comunicação e informação, em especial pelo uso da Internet. De acordo com Borges (2017), a internet se estrutura como ferramenta que potencializa a ação do surdo em sua relação com o mundo. Por meio da internet, o surdo pode encontrar textos com imagens e efeitos visuais que facilitam a compreensão. Além disso, existe a possibilidade da escrita em sinais veiculada por meio de sites em língua de sinais gestual. Na educação de surdos os recursos tecnológicos aliados a estratégias educativas adequadas fomentam o aprender de forma interativa e para isso acontecer é necessário que se reconheçam as potencialidades da tecnologia e que se tome consciência da realidade em que a escola está inserida (SANTOS e FAVERO, 2014). Os impactos proporcionados pelas tecnologias digitais nas práticas cotidianas já se 17 O diferencialismo presente na educação dos surdos, de que Skliar fala, visa excluir o aspecto cultural dos surdos considerando como desnecessário e colocando uma cultura que não pertence ao surdo; isso acaba gerando sujeitos incapazes de escolhas de vida, e, por isso mesmo, indivíduos incapazes. (PERLIN; MIRANDA, 2011, p. 105) 46 apropriaram de todas as formas de comunicação realizadas em dispositivos de redes (BARTON e LEE, 2015), sobretudo no que diz respeito às possibilidades de ensinar e aprender, não restando dúvidas de que as práticas escolares não deveriam ficar à margem dessas mudanças (NOGUEIRA e CABELLO, 2017). As tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC) são potencializadoras para a instauração de interações sociais cada vez mais amplas e permitem, por meio das ferramentas de comunicação mediadas por computador (e- mail, chat, lista de discussão), uma multiplicidade de dinâmicas linguístico discursivas que possibilitam o uso da linguagem (ARCOVERDE, 2006). As TDIC vieram para melhorar o desempenho na capacidade do surdo, proporcionando à pessoa com deficiência maior independência, qualidade de vida e inclusão social, através da ampliação de sua comunicação, mobilidade, controle de seu ambiente, habilidades de seu aprendizado e trabalho (GÓES; BARBOSA; COSTA, 2017). As oportunidades de comunicação oferecidas pelas tecnologias digitais permitem novas possibilidades de interagir e de aprender com muitos outros, diferentes e singulares, que se somam, compartilham e coexistem na imensa diversidade que institui a sociedade em rede (ARCOVERDE, 2006). No entanto como disse Oliviera (2016, p.16), “apesar desses recursos tecnológicos auxiliarem a pessoa com deficiência, a interação pessoal torna-se indispensável em alguns casos, como por exemplo, para pessoa com deficiência auditiva”. O uso das redes sociais e de aplicativos de mensagens proporcionaram aos surdos uma maior independência na sua comunicação, uma vez que essa comunicação nem sempre acontece de forma oral. Aplicativos como o Instagram, WhatsApp e Youtube são, em síntese, meios de comunicação onde atualmente os surdos vêm ganhando maior destaque, principalmente pelo uso da sua língua natural. Dentro da rede social Instagram, por exemplo, destacam-se perfis de pessoas surdas que utilizam essa plataforma para ensinar sobre a cultura surda, sobre a Libras, desmistificando preconceitos e naturalizando o ser surdo. A comunicação no espaço digital possibilita tanto a “mediação da comunicação entre surdos e ouvintes, quanto o contato entre surdos de diferentes regiões, nacionalidades e estágios linguísticos” (PEREIRA e PERLIN, 2015, p.584). Existe um mundo dentro das redes, que é compartilhado com outros cuja a interação se dá por meio da comunicação, seja ela oral ou visual. Dentro desse contexto os surdos não só interagem com ouvintes, mas também com outros surdos, sendo possível 47 reconhecer elementos dos quais eles partilham, como a língua, a cultura e a arte. Em muitas ocasiões as interações no espaço digital são a única forma de interação entre surdos. Segundo Oliveira (2010, p. 116) o uso da internet e o suporte utilizado para adentrar na rede “promovem práticas socioculturais que estimulam o refinamento de competências cognitivas de seus usuários” de forma que a partir dessas práticas novos formatos de construção do saber sejam criados. Diante do exposto é evidente que a TDIC tem dado contribuições no âmbito da alfabetização de surdos por meio de suas ferramentas ancoradas nos recursos visuais e na facilidade de interação entre os pares através de múltiplos sistemas sígnicos que, por sua vez, podem também motivar os professores a se tornarem bilingues enxergando os benefícios para sua prática pedagógica. 4.1 Aplicativos que podem auxiliar na comunicação e aprendizagem O espaço digital pode estar inserido no espaço tridimensional – 3D. Santos (2020), compreende que o espaço digital não é um espelho do espaço tridimensional, podendo destacar-se neste, as seguintes características: Densidade – o espaço digital é denso, mas não sofre saturação. Ou seja, possui uma alta capacidade de armazenamento de informações, mas não se satura, pois sempre é possível estender-se esse espaço, o que ocorre, por exemplo, toda vez que se cria um novo sítio web, ou um material multimídia em CD; ubiquidade – uma mesma informação está em lugares distintos; deslocação – é possível deslocar-se rapidamente neste espaço, de um end