unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Câmpus de Araraquara–SP LÍVIAN MARIA DE SOUZA BARBOSA A ENEIDA E O SENHOR DOS ANÉIS: Eneias, Aragorn e o conceito de Pietas ARARAQUARA — S.P. 2024 LÍVIAN MARIA DE SOUZA BARBOSA A ENEIDA E O SENHOR DOS ANÉIS: Eneias, Aragorn e o conceito de Pietas Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) — Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestra em Estudos Literários. Linha de pesquisa: História Literária e Crítica Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) ARARAQUARA — S.P. 2024 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA A presente pesquisa tem como impacto potencial contribuir significativamente para o aprofundamento do estudo da Eneida, do poeta latino Virgílio, no campo das Letras Clássicas, uma obra de grande relevância na literatura latina antiga e na tradição literária ocidental. Além disso, visa fomentar o estudo comparado com O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, obra de grande marco na literatura do século XX, que teve impacto notável no desenvolvimento da literatura de fantasia e ampliou sua visibilidade. Ao propor essa abordagem comparativa, a autora busca explorar um campo de pesquisa ainda pouco desenvolvido no cenário acadêmico brasileiro, abrindo caminho para novas perspectivas de análise. O foco principal do estudo recai sobre as figuras de Eneias, da Eneida, e Aragorn, de O Senhor dos Anéis, incentivando que essa comparação seja expandida para outras obras e personagens de ambos os autores. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH This research aims to make a significant contribution to the study of Virgil’s Aeneid within Classical Studies, a work of great importance in both ancient Latin literature and the broader literary tradition. Additionally, it seeks to promote a comparative analysis with J. R. R. Tolkien’s The Lord of the Rings, a landmark work in 20th-century literature, which had a notable impact on the development of fantasy literature and expanded its visibility over the years. By taking this comparative approach, the author of this research aims to explore a relatively under-researched field in Brazilian academia, providing new perspectives for scholarly inquiry. The study focuses primarily on the characters Aeneas, from The Aeneid, and Aragorn, from The Lord of the Rings, with the intention of encouraging further comparisons between other works and characters from both authors. LÍVIAN MARIA DE SOUZA BARBOSA A ENEIDA E O SENHOR DOS ANÉIS: Eneias, Aragorn e o conceito de Pietas Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) — Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestra em Estudos Literários. Linha de pesquisa: História Literária e Crítica Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) Data da defesa: 30/08/2024 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________________________________________ Presidente e Orie Presidente e Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado UNESP – Faculdade de Ciências e Letras – Câmpus de Araraquara _____________________________________________________________________________________ Membro Titular: Membro Titular: Profa. Dra. Karin Volobuef UNESP – Faculdade de Ciências e Letras – Câmpus de Araraquara ____ Membro Titular: Prof. Dr. Cláudio Aquati UNESP – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Câmpus de São José do Rio Preto Membro Titu Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP — Câmpus de Araraquara AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais, Agnaldo e Luzimeire, pelo afeto e por sempre apoiarem meus sonhos. Pai, obrigada por ensinar-me que contos de fadas são verdadeiros e por apresentar- me aos “hobbits de pés peludos”. Mãe, obrigada pelo incentivo à leitura e por todas as velas acesas. Estimadas tias Lusiane e Luzilene: como as primeiras da família a conquistarem o ensino superior, vocês são minha inspiração para estar aqui hoje. Queridos avós, Margarida e Antônio, e demais familiares, sou profundamente grata por serem minha constante rede de apoio em cada etapa de minha vida. Pedro, obrigada pelo companheirismo, abraços quentes e boas risadas. Com você tudo é sempre mais fácil. Ao seu lado fui e sou mais forte. Andrezza, Beatriz e Isabela, queridas amigas que me apoiaram de todo o coração: obrigada por todos os bons momentos e suporte nos mais difíceis. Thaís e Carol, agradeço a paciência e o acolhimento durante minhas eventuais idas e vindas de Mordor. Agradeço ao meu orientador, João, por topar aventurar-se comigo e guiar-me do Mediterrâneo à Terra-média, pela acolhida e ensinamentos desde a graduação. Também sou muitíssimo grata pela sua amizade. Meus sinceros agradecimentos aos professores Márcio Thamos, membro titular da banca de qualificação, Karin Volobuef e Cláudio Aquati, membros titulares da banca de defesa. Suas orientações e conselhos compartilhados foram valiosos para o encaminhamento final deste trabalho. A todos os professores de Língua Portuguesa e Literatura da rede pública de ensino que contribuíram para minha formação, mesmo nas maiores adversidades: sou grata por incentivarem-me rumo a esta área tão transformadora. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso ― o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito ― por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia. João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas RESUMO Com esta pesquisa pretende-se, a partir de uma abordagem teórico-crítica, analisar o conceito de pietas, importante valor moral romano antigo, e sua construção na trajetória de Eneias, da epopeia latina Eneida, de Virgílio, e do herói Aragorn, do romance O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien. A pietas é um valor romano cuja definição comporta os sentimentos de submissão aos deuses, o respeito aos antepassados e o amor à pátria (Pereira, 1990) e, no contexto da Eneida, ela é a responsável pelo sucesso da empreitada do troiano Eneias, que recebe o epíteto de pius Aeneas, o “piedoso Eneias”. Não obstante, dada a permanência do mito na História, permitindo que autores de diferentes períodos sócio-históricos resgatem mitos antigos e lhe enderecem seus olhares (Eliade, 1983), pode-se cogitar que Tolkien, apaixonado por mitologia, dentre elas a greco-latina, e desejoso por criar uma mitologia própria para a Inglaterra (Tolkien, 2006a, p. 385), tenha reatualizado a pietas de Eneias na rota heroica de sua personagem, Aragorn. Sendo assim, além de analisar a importância da pietas representada pelos dois heróis para o destino de seus povos, por tratar-se de obras escritas em períodos diferentes, a pesquisa também ocupa-se com analisar as questões de forma e conteúdo intrínsecas ao gênero épico e romanesco, para investigar como a pietas de Aragorn interage com os espaços romanesco e épico (representado por Eneias) na jornada que decidirá o futuro dos povos da Terra-média. Palavras-chave: Pietas; Eneida; O Senhor dos Anéis; Epopeia; Romance. ABSTRACT Based on a theoretical-critical approach, the research aims to analyze the concept of pietas, an important ancient roman moral value, and its construction in the trajectory of Aeneas, from Virgil's Latin epic poem Aeneid, and the hero Aragorn, from J. R. R. Tolkien's novel The Lord of the Rings. Pietas is a Roman value whose definition is composed by the submission feelings to the gods, the respect for ancestors and the love for the country (Pereira, 1990). In the Aeneid’s context, it is responsible for the success of the endeavor by the Trojan Aeneas, who received the epithet of pius Aeneas, the “dutiful Aeneas”. However, as from the permanence of the myth in History allowing that authors from different socio-historical periods rescue ancient myths and turn the gaze to them (Eliade, 1983), it is possible to consider that Tolkien, in love with the mythology, among them the Graeco-Latin one, and interested in creating his own mythology for the England (Tolkien, 2006a, p. 385), has reused the pietas of Aeneas in the heroic course of his character, Aragorn. Therefore, as well as analyzing the importance of the pietas represented by both heroes for the fate of their own nations, since the works were written in different periods, the research will aim to analyze questions about form and content intrinsic in the epic gender and Romanesque, to investigate how the pietas of Aragorn interacts with the Romanesques spaces and the epic (represented by Aeneas) in the journey that will decide the future of the nations of Middle-earth. Keywords: Pietas; Aeneid; The Lord of the Rings; Epic; Novel. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 10 2. DA ROMA ANTIGA À TERRA-MÉDIA ................................................................. 18 2.1 Entre Épica e Romance: a Eneida e O Senhor dos Anéis ......................................... 19 2.2 Resgate de um mito para o Império .......................................................................... 31 2.3 Criação de um mito para a Inglaterra ....................................................................... 38 3. A PIETAS DE ENEIAS ................................................................................................. 49 3.1 O Conceito de Pietas ................................................................................................ 50 3.1.1 Pietas e Religio na Roma Antiga ............................................................................. 50 3.1.2 A conversão da Pietas na Idade Média .................................................................... 59 3.2 A representação da pietas na rota de Eneias ............................................................ 68 4. A PIETAS DE ARAGORN ........................................................................................... 91 4.1 O herói de mil faces e um dever ............................................................................... 92 4.2 A representação da pietas na rota de Aragorn ........................................................ 108 4.2.1 Coragem do Norte .................................................................................................. 128 4.2.2 Pistis e Estel ........................................................................................................... 132 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 143 REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 147 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ........................................................................... 154 10 1. INTRODUÇÃO 11 Vários elementos presentes na linguagem, na literatura, na arte, na música ou mesmo em formas sociais de entretenimento, por vezes registram traços herdados da mitologia clássica e com ela se relacionam, intencionalmente ou não. Essas manifestações, que demonstram que elementos míticos têm vivido e sobrevivido por gerações nas atividades humanas, desde que se pôde ter deles algum registro, podem ser encontradas nas muitas versões que uma determinada narrativa mítica recebeu com o passar dos séculos. Alguns exemplos podem ilustrar tais manifestações, como o mito de Medeia, que contou versões escritas durante a Antiguidade Clássica, ao menos por Eurípides, Ovídio e Sêneca1, e na pós-modernidade2 por Chico Buarque e Paulo Pontes3, e até mesmo o tratamento que as personagens dos mitos nórdicos receberam da parte de Richard Wagner, para a composição de suas óperas do ciclo chamado O Anel do Nibelungo [Der Ring des Nibelungen, 1848–1874]. Segundo Mircea Eliade, em Mito e Realidade (1986, p. 11–12), esse diálogo entre diferentes períodos é permitido por meio de um único mecanismo, que dá suporte à permanência do mito na História: a reatualização mítica4. Eliade (1986), em sua abordagem filosófica, trata o mito como o elemento fundamental para a prática ritualística de uma sociedade arcaica, ou seja, é uma história sagrada ou o modelo exemplar a ser imitado pelas atividades humanas, que visam a captar as forças do mito, do acontecimento primordial, para favorecer a agricultura, a pesca e ainda outras formas básicas de sobrevivência. Essa imitação ritualística é o que garantirá o processo da reatualização mítica, sendo assim, a reatualização do mito, para a prosperidade da tribo, não é possível se não existir um indivíduo que o imite, e os rituais são o recurso que implanta essa dimensão na realidade (Eliade, 1986, p. 17–18). Entretanto, o autor também aponta que as características míticas de renovação e reatualização se estenderam historicamente a outros ramos das atividades humanas — agora desprovidas da mentalidade arcaica do mito como manifestação religiosa — como, por exemplo, o literário, o das artes plásticas, o da música, o do cinema, formas artísticas de representação que acarretaram e acarretam novas construções imagéticas para formas 1 Os registros encontram-se nas tragédias homônimas de Eurípides e Sêneca, e nas Heroides, de Ovídio. 2 Neste trabalho, o termo “pós-modernidade” será empregado para descrever o período histórico e ideológico que se estende do pós-1950 até o presente momento. Não será utilizado como sinônimo de “pós-modernismo”, que se refere especificamente ao movimento estético-literário. Por outro lado, quando mencionarmos “modernismo” ou “modernista”, estaremo-nos referindo ao movimento estético-literário do século XX, caracterizado pela literatura de Vanguarda, cujas produções artísticas aliaram-se a suas propostas estéticas. 3 Na peça teatral Gota d’Água (1975). 4 Algumas passagens desta introdução e outros dados fornecidos ao longo do trabalho já haviam sido descritos no processo de desenvolvimento da dissertação, cujo resultado parcial foi publicado no segundo volume da coletânea Parafernália Literária: Estudos sobre crítica, poesia, drama e relações intersemióticas (2023), pela editora Pangeia. Disponível em: https://editorapangeia.com.br/product/parafernalia-2-critica-poesia-drama-e- intersemiose-estudos-literarios-unesp-copia/. Acesso em: 17 out. 2024. https://editorapangeia.com.br/product/parafernalia-2-critica-poesia-drama-e-intersemiose-estudos-literarios-unesp-copia/ https://editorapangeia.com.br/product/parafernalia-2-critica-poesia-drama-e-intersemiose-estudos-literarios-unesp-copia/ 12 tradicionais de mitos, consoante o ideal vivido por determinada época ou autor (Eliade, 1986, p. 159). Desse modo, em se tratando de tais atividades humanas, a reatualização do mito está condicionada àquele que o reinterpreta ou reapropria, de maneira similar ao papel do imitador ritual nas sociedades tradicionais, levando em conta toda a bagagem sócio-histórica e cultural que compõe sua realidade. É isso que torna o diálogo entre diferentes períodos possível, bem como o constante reaproveitamento das produções artísticas por parte do período histórico mais recente, o que faz com que o mito adquira novas características e seja reaproveitado para diferentes fins artísticos em períodos sucessivos. Essa abordagem torna possível aproximar duas obras de grande valor para os diferentes períodos em que foram escritas e cujos temas se relacionam: a epopeia latina Eneida (29–19 a.C.), de Virgílio (70 a.C. — 19 a.C.), e o romance de fantasia épica O Senhor dos Anéis (1954– 1955), de J. R. R. Tolkien (1892–1973), que resgatou muitos elementos míticos da epopeia virgiliana — como também de diversas outras mitologias, além da greco-latina — a fim de dar à luz raízes míticas para a cultura inglesa através da literatura fantástica. Em uma carta a Robert Murray, Tolkien escreve que foi “educado nos Clássicos, e descobri[u] pela primeira vez a sensação do prazer literário em Homero” (Tolkien, 2006a, p. 289). Apesar de nunca se ter referido a seus trabalhos publicados com o termo “épico” (Parry, 2012, p. 5), é notável que o gênero esteve presente em diferentes momentos de sua vida e de sua formação acadêmica, seja nas palavras de Homero, seja nas de Virgílio, ou mesmo nas de Sturluson e tantos outros autores anônimos de textos antigos. Difícil seria se esse “prazer literário” não fosse impresso, ainda que minimamente, em suas produções, sobretudo em sua obra máxima O Senhor dos Anéis. Embora não se configure como uma epopeia clássica, e sim como um romance, O Senhor dos Anéis possui características marcantes do primeiro gênero. Entre elas, destaca-se o estilo elevado no uso da linguagem, a noção de uma perspectiva histórica ampla e as aventuras heroicas que exaltam as conquistas de grandes figuras em tempos remotos (Parry, 2012, p. 5-6). A influência que Tolkien recebeu de diversos gêneros literários para sua criação ficcional, incluindo a poesia épica, conforme mencionado por ele mesmo ao citar Homero, sugere que, segundo as considerações de Eliade (1986), ele reatualizou essas narrativas, mas não como mera releitura ou alegoria (termo este particularmente rejeitado pelo escritor), mas sim ao amalgamar essas fontes numa rica sopa de inspiração literária, dando origem a um novo e vasto universo ficcional de mitos e lendas inter-relacionados, a que chamou Legendarium (“Legendário”). Tendo em vista que Tolkien manteve estreito vínculo com narrativas míticas, incluindo a Eneida de Virgílio, em sua educação e formação acadêmica, a autora desta pesquisa 13 empenhou-se em investigar em quais aspectos temáticos e composicionais sua obra se assemelha a essa tradição literária antiga. O recorte específico na mitologia greco-latina foi motivado por dois fatores: primeiro, pela formação acadêmica da autora na área das Letras Clássicas e, segundo, pela escassez de trabalhos acadêmicos que exploram o entrelaçamento das obras de Tolkien com a Antiguidade Clássica, especialmente a Roma Antiga. Na Eneida conta-se a trajetória de Eneias, um príncipe troiano, filho da deusa Vênus com o humano Anquises, que escapou da Guerra Troia com a missão de fundar as bases de Roma no Lácio. O sucesso de sua empreitada pode ser atribuído a uma de suas principais qualidades morais, a pietas (“piedade”), um dos principais valores da Roma Antiga, da qual deriva o epíteto pius Aeneas, “o piedoso Eneias”, com que ele é continuamente identificado no poema de Virgílio. Durante a Graduação, em uma das aulas de literatura latina, ao discorrer acerca do entrecho do poema, o docente responsável mencionou a pietas como o valor que move toda a perseverança de Eneias. Por tratar-se de valor moral que se refere ao ideal de responsabilidade e submissão social, o que, na mentalidade romana antiga, inclui os deuses, a pátria e a família, logo veio à mente da autora desta pesquisa a personagem Aragorn, de O Senhor dos Anéis, cujo comportamento reflete valores muitas vezes análogos aos de Eneias. Na obra máxima de Tolkien, Aragorn descende de uma antiga linhagem de Reis e tem como principal propósito assumir seu reinado sobre as terras de Arnor e Gondor e proteger seu povo da iminente ameaça de Sauron, o inimigo dos Povos Livres da Terra-média. Devido à responsabilidade do herói em proteger todo um povo e, em consequência, auxiliar na luta pela Terra-média, formulou-se a hipótese de que ele também pudesse ser aquilatado com a qualidade de pius, uma vez que, tal qual Eneias, esse valor moral foi determinante para o sucesso de sua empreitada. No ano de 2021, uma Iniciação Científica foi realizada com esse tema, o que permitiu descobrir, não sem espanto, o quão pouco eram discutidas, seja na abordagem crítica estrangeira, seja na brasileira, as relações e influências literárias que Tolkien recebeu da Antiguidade Clássica e imprimiu em suas obras. A despeito do pouco tempo disponível para desenvolver um trabalho dessa natureza e envergadura, a pesquisa de IC terminou por evoluir para um projeto de mestrado, cujos resultados, ainda que não totalmente acabados (fechados), são apresentados nesta dissertação. No âmbito dos estudos acadêmicos sobre Tolkien, observa-se que, no contexto brasileiro, seu início remonta a um período relativamente recente, em 1984, com um impacto significativo somente a partir dos anos 2000 (Rossi; Stainle, 2021, p. 23). Enquanto Tolkien já era conhecido, em âmbito internacional, tanto por O Hobbit (1937) como por O Senhor dos Anéis (1954–1955), foi esta última a primeira de suas obras a chegar no Brasil, pela editora 14 ArteNova, entre os anos de 1974 e 1979. Rossi e Stainle (2021, p. 23) consideram que, a partir de 1974, o público brasileiro começou a se familiarizar com a obra e que, provavelmente, pode ter sido a partir dessa popularização inicial que Lúcia Lima Polachini desenvolveu sua dissertação de mestrado O Senhor dos Anéis: Estrutura e Significado (1984), trabalho acadêmico que inaugurou os estudos tolkienianos em solo brasileiro. O impacto de Tolkien no meio acadêmico nacional, no entanto, só se manifestou significativamente a partir do século XXI, quando da recente segunda tradução de O Senhor dos Anéis pela editora Martins Fontes, em 19945 e, principalmente, com a popularização das adaptações cinematográficas de Peter Jackson (2001–2003) (Rossi; Stainle, 2021, p. 26). Desde então, o interesse dos pesquisadores tem crescido gradualmente, alcançando um ponto de inflexão em 2016, como verificado por Rossi e Stainle (2021, p. 51), com um total de 11 publicações. Dos dados coletados pelos autores até 2020, há um total de 108 trabalhos publicados, incluindo 47 dissertações e 6 teses. Embora esses números sejam significativos e representem um avanço notável na produção acadêmica brasileira, eles ainda são modestos quando comparados às publicações estrangeiras sobre Tolkien e sua obra. A situação torna-se mais preocupante ao considerar os estudos comparativos que exploram traços de narrativas épicas em O Senhor dos Anéis ou outras obras do Legendarium. No material reunido por Rossi e Stainle (2021) não se identificou nenhum trabalho nacional — a partir dos resumos dos trabalhos citados pelos autores que esta autora pôde consultar — que proponha uma comparação específica de alguma obra de Tolkien com outra do gênero de narrativa épica, com as únicas exceções de trabalhos de conclusão de curso (TCCs) mais recentes que não são ali mencionados, como A cosmogonia em Hesíodo, Ovídio e Tolkien: a eterna contemporaneidade da mitologia na compreensão de universos (2018), de Larissa Candido da Silva, e Uma Odisseia na Terra-média: uma análise do arquétipo do Herói e do Sábio sob a perspectiva da fantasia e do maravilhoso (2023), de Rayssa Batista Araújo. Além das comparações derivadas dos épicos de Homero e Ovídio, não se identificou nenhum outro trabalho nacional que tenha tomado também a Eneida de Virgílio. Polachini (1984), cuja dissertação inaugurou os estudos de Tolkien no Brasil, foi muito perspicaz ao dedicar uma parte de seu trabalho para comparar as personagens de O Senhor dos Anéis com aquelas de outras narrativas épicas, embora de maneira concisa, mas muito eficiente (Polachini, 1984, p. 27–40). No entanto, em relação ao tema desta pesquisa, ela observa, por exemplo, semelhanças entre Eneias e Aragorn, sem destacar a pietas como um dos traços mais relevantes 5 Tanto trabalhos inéditos de J. R. R. Tolkien estão sendo lançados, quanto os já publicados estão sendo relançados pela editora HarperCollins Brasil, filial da editora britânica, desde 2018 até o presente. 15 que este carrega a partir daquele. A primeira observação nesse sentido é creditada a David Paul Pace, no artigo The Influence of Vergil's Aeneid on The Lord of the Rings (1979), ao que dedica não mais que um parágrafo. Posteriormente, Robert E. Morse retoma essa associação em Evocation of Virgil in Tolkien’s Art: Geritol for the Classics (1986), dirigindo-se à crítica especializada ao mencionar sentir falta de estudos que busquem se aprofundar nas contribuições da Eneida para a obra de Tolkien, sobretudo no que diz respeito à construção do ethos heroico das personagens: “A maioria dos comentadores simplesmente ignora uma contribuição especificamente romana. Onde está o conceito de dever a que os romanos chamavam pietas?” (Morse, 1986, p. viii, tradução nossa)6. Essa discussão só seria retomada de forma mais incisiva por Austin M. Freeman, no extenso artigo Pietas and the Fall of the City: A Neglected Virgilian Influence on Middle-earth’s Chief Virtue (2021), que, além de ser o mais recente contributo científico no assunto, oferece uma excelente revisão bibliográfica sobre as conexões entre Tolkien e Virgílio no meio acadêmico internacional, concentrando sua análise em episódios específicos de O Silmarillion e O Senhor dos Anéis. Nota-se, a partir dessas poucas contribuições, que a proposta desta pesquisa contém boa dose de ineditismo, já que seu tema fundamental ainda não foi muito estudado no meio acadêmico, o que aponta um campo vasto a ser explorado. Por tais razões, o objetivo central da pesquisa visa a investigar a presença da pietas, encarada como o valor que move a perseverança das personagens Eneias e Aragorn, quer na Eneida, quer em O Senhor dos Anéis. No primeiro tópico do capítulo Da Roma Antiga à Terra-média, realizou-se uma introdução sucinta aos gêneros épico e romanesco, por serem respectivamente aqueles do córpus de análise, para que melhor se possam compreender suas características. Além disso, discutiu-se brevemente como Tolkien utilizou a maleabilidade do romance para incorporar elementos da epopeia em sua obra. Para o estudo do mito e da epopeia foram convocados à reflexão Jaa Torrano (2017), Jean-Pierre Vernant (2000 e 2001), Marcel Detienne (1988) e Mircea Eliade (1986); para o estudo do romance e seu uso por Tolkien, convidou-se Aparecido Donizete Rossi (2009), Ian Watt (2010), Lúcia Lima Polachini (1984), Mikhail Bakhtin (1988), Roland Bourneuf e Réal Ouellet (1976) e Stéfano Stainle (2016). Nos dois últimos tópicos do capítulo, Virgílio e Tolkien são apresentados juntamente com o contexto sócio-histórico de suas produções literárias. Isso proporciona ao leitor deste trabalho uma melhor compreensão — ainda que sumária — dos autores e da importância de suas obras, tanto 6 “Most commentators simply ignore the specifically Roman contribution. Where is the concept of duty the Romans called pietas?” (Morse, 1986, p. viii). 16 para seus respectivos períodos históricos e cenário literário em que produziram, como para a literatura universal. No terceiro capítulo, A Pietas de Eneias, é apresentada a definição do conceito da pietas latina e como ela se relacionava com o contexto religioso da Roma antiga, sobretudo durante o Principado de Augusto. Em seguida, propõe-se também a discussão, ainda que muito breve, sobre seu processo de conversão durante a Idade Média, para aprofundar a discussão a respeito de sua tradução por “piedade”, além de pontuar que, mesmo tendo profuso conhecimento do medievo e ainda que tenha imprimido muitos de seus aspectos em sua obra, a piedade que Tolkien registra no texto original de O Senhor dos Anéis, pity (“piedade” do inglês), não remete ao significado exato da piedade latina, a pietas, que se busca aqui analisar. Toda a discussão que abarca a pietas encontrou apoio, principalmente, nos textos de Marco Túlio Cícero, no Eutífron de Platão, e nos autores James Garrison (1992), John Scheid (2014), Louise Bruit Zaidman (2001), Maria Helena da Rocha Pereira (1990 e 1997), Mary Beard, John North e Simon Price (2010) e T. Christopher Hoklotube (2017). Por último, é apresentada uma análise crítico-teórica de como a pietas aparece nas ações e feitos do percurso narrativo de Eneias, tomando-se como principal referencial teórico a dissertação de Vivian Salema, A representação da Pietas, Fides e Virtus na epopeia virgiliana (2012), a partir da qual se delimitou o método de análise da personagem. No quarto e último capítulo, A Pietas de Aragorn, empregou-se o método de análise da personagem virgiliana para investigar a personagem tolkieniana, buscando identificar tanto semelhanças quanto diferenças no tratamento da pietas de Aragorn em relação a de Eneias. Esse capítulo retoma a discussão do primeiro, ao explorar como o gênero romanesco influencia e modifica algumas das características do valor moral latino. A análise foi amplamente embasada em estudos estrangeiros, uma vez que não foram identificados trabalhos nacionais significativos sobre Aragorn muito menos que explorassem essa abordagem específica de comparação com a mitologia greco-latina ou com a Eneida de Virgílio. Autores que contribuíram muito para a análise foram Angela P. Nicholas (2017), Austin M. Freeman (2021), David Paul Pace (1979), György Lukács (2000), Hannah Parry (2012), Luz Pepe de Suárez (2006), Lynn Forest-Hill (2008), Mária Baranová (2014), Paul H. Kocher (1977), Rosa Silvia López (2004), Tom Shippey (2003) e Verlyn Flieger (2004 e 2008). Por contar com o estudo de obras estrangeiras, foi integrado, em nota de rodapé, o texto original das passagens mencionadas das obras que compõem o córpus de análise, com sua respectiva tradução em português no corpo do trabalho, por acreditar ser possível acercar-se do texto de modo mais profundo, propiciando um estudo atento e uma leitura mais crítica. Para os 17 textos originais foi utilizada a mais recente edição de estabelecimento do texto latino da Eneida, editada por Gian Biagio Conte (2005), e a edição inglesa de O Senhor dos Anéis, revisada pela editora HarperCollins (2005). Para a tradução em português, foram utilizadas, para a Eneida, a tradução de Carlos Ascenso André (2020) e, para O Senhor dos Anéis, a de Lenita Maria Rímoli Esteves e Almiro Pisetta (2000), por julgá-las mais fluidas e próximas do original. Com propor um estudo em que se comparam aspectos de duas obras importantes e oriundas de tempos muito diferentes, esta pesquisa pretende não só contribuir para a expansão do alcance dos estudos sobre a Eneida, na área das Letras Clássicas, evidenciando como a obra dialoga e contribui com as produções artísticas da pós-modernidade, mas também melhor entender como elementos da clássica epopeia virgiliana forneceram bases composicionais para a obra-prima de Tolkien. Afinal, como salienta Eliade (1986), já citado no início desta introdução, as produções sociais estão em constante relação, e estudar o passado, nesse caso os mitos clássicos, auxilia muito na compreensão do presente. 18 2. DA ROMA ANTIGA À TERRA-MÉDIA 19 2.1 Entre Épica e Romance: a Eneida e O Senhor dos Anéis que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto. (Manoel de Barros, Despalavra) O mito, µῦθος, ου (ὁ), (mỹthos), designa fala, palavra, discurso (Malhadas; Dezotti; Neves, 2010, p. 185). É um discurso que não se trata apenas de narrativa, mas de uma narrativa sagrada que espelha a realidade experimentada por dada comunidade. O mito é sempre a narrativa de uma “criação”: ele relata algo que foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou completamente. […] Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora [dos deuses] e desvendam a sacralidade […] de suas obras. […] É o “modelo exemplar” de todas as atividades humanas (Eliade, 1986, p. 11). Segundo Eliade (1986), o modelo exemplar a ser seguido nas atividades humanas sugere que o mito implica a imitação desse modelo pelo homem. Quando o sacerdote expunha o mito da origem do mundo com seu discurso, sua origem era novamente cumprida. Nas sociedades tradicionais, para que houvesse prosperidade nos rituais que visavam a captar as forças divinas para que fossem favorecidas a agricultura, a pesca, e outras necessidades básicas de sobrevivência, era necessária a imitação perfeita do mito, isto é, a recitação e atualização do discurso em que se relata a primeira vez que aquilo que se deseja obter aconteceu (Eliade, 1986, p. 17–18). Conhecer esse discurso é conseguir manipular as coisas criadas e participar do poder da palavra que narra eventos sagrados de tempos imemoriais, quando deuses participavam ativamente na construção do mundo tal como ficou conhecido. O mito informa o discurso, no sentido de realizar aquilo que é falado, e também de mostrá-lo, no sentido do que é e será verdadeiro. O mito era a religião da Antiguidade. Era um culto essencialmente verdadeiro para o homem. Suas narrativas relatam não apenas a origem do mundo ou de sua natureza, que é visível e experimentada na realidade, mas também a origem de cidades e de costumes da comunidade; relata também grandes feitos heroicos, numa ocasião sem respaldo histórico ou científico verificável, mas ainda assim tomados como verdadeiros e dignos de serem lembrados e celebrados como parte da história coletiva. Para Vernant (2001) o mito é “o aspecto mental da vida coletiva, ele trabalha para estruturar, classificar, sistematizar, tornar assimilável, edificar um pensamento comum, um saber compartilhado” (Vernant, 2001, p. 291–292). 20 Apesar de já ser matéria predileta nas formas de narrativa das sociedades tradicionais, a invenção da escrita proporcionou à mitologia uma nova forma de expressão, expandindo seu alcance para além do âmbito estritamente oral. Na Antiguidade Clássica, os mitos foram registrados originalmente por diferentes autores em vários gêneros literários e contextos socioculturais, baseando-se nas histórias míticas que eram oralmente compartilhadas pelos aedos, no caso grego, e pela comunidade em seu cotidiano (como em festivais, cerimônias e tradições religiosas, por exemplo). Isso quer dizer que os novos registros de mitos surgiram em uma fase da história em que a mitologia já desempenhava um papel fundamental na vida social, religiosa e cultural dos indivíduos, bem como da estruturação das sociedades antigas (Vernant, 2000, p. 12). Além disso, tendo em vista o longo arco de tempo abarcado pelo desenvolvimento de duas grandes culturas, a grega e a romana, não é de se surpreender que os mitos tenham conhecido diversas versões ao longo do tempo, com diferentes autores e em diferentes gêneros, acabando por se tornar tradicionais e reconhecidos até hoje. Na Grécia Antiga, os mitos não apenas ofereciam uma explicação para a cosmogonia, mas também desempenhavam um papel fundamental na organização da realidade social, religiosa, política e cultural (Vernant, 2001, p. 229–230). Eles desempenhavam um papel multifacetado, moldando a visão de mundo, influenciando a moralidade, a religião, a arte, fornecendo um meio para que o homem grego pudesse compreender e interpretar sua própria existência e o mundo ao seu redor. A organização hierárquica de sua sociedade, as disputas travadas por territórios, as penosas viagens marítimas, tudo isso essas narrativas refletiam como uma verdadeira miríade de aventuras, nas quais deuses e heróis participavam e moldavam, nesse tempo mítico, a crença e futura história do povo: E na forma de relatos que contam suas aventuras lendárias, ao longo de acontecimentos dramáticos que, desde seu nascimento, marcam a carreira dos deuses que as Potências do além são visadas, expressas, pensadas em suas relações recíprocas, nas zonas de ação que lhes são atribuídas, nos tipos de poder que as caracterizam, em suas oposições e seus acordos, em seus modos particulares de intervenção sobre a terra e de afinidade com os homens (Vernant, 2001, p. 230). A existência e sobrevivência dos relatos míticos que aponta Vernant (2001), no entanto, devem muito ao poeta, cujo ancestral é o aedo. Inspirado pela deusa Memória (Mnemosyne), o poeta era a figura central no processo de transmissão e aprendizagem da sabedoria mítica. Sobre a importância de seu ofício, Torrano (2017), tomando por referência a Teogonia de Hesíodo, acrescenta que [o] poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas). […] O aedo (Hesíodo) 21 se põe ao lado e, por vezes, acima dos basileîs (reis), nobres locais que detinham o poder de conservar e interpretar as fórmulas pré-jurídicas não-escritas e administrar a justiça entre querelantes e que encarnavam a autoridade mais alta entre os homens. Esta extrema importância que se confere ao poeta e à poesia repousa em parte no fato de o poeta ser, dentro das perspectivas de uma cultura oral, um cultor da Memória […]. Então, a palavra tinha o poder de tornar presentes os fatos passados e os fatos futuros […], de restaurar e de renovar a vida […] (Torrano, 2017, p. 16–19, grifos nossos). O poder conferido pela Memória permitia ao poeta entrar em outro mundo, na dimensão do mítico e atemporal, acessível apenas pela benção da deusa. O poder, não só da Memória em si, para acessar e transmitir eventos do passado, confere ao verbo poético, à palavra, o “estatuto de mágico-religioso” (Detienne, 1988, p. 17), isto é, a eficácia do discurso, que nomeia e revela os segredos escondidos do sagrado. A memória, a oralidade e a tradição são elementos cruciais para a existência e perenidade dos mitos (Vernant, 2000, p. 12). Como guardião da tradição, intérprete cultural e mestre da linguagem poética, o poeta ajuda a manter viva a rica herança mitológica de sua cultura, principalmente quando registrada. Nesse contexto, o gênero da epopeia emerge como um veículo poderoso para a transmissão e a preservação desses mitos, por permitir a criação de narrativas grandiosas que capturam a essência da memória coletiva e da tradição cultural. O gênero épico é a fonte das narrativas de eventos que constituem a herança de um povo. Ao descrever as façanhas de heróis lendários, a epopeia age primeiramente como uma expressão de poesia oral, elaborada e recitada por várias gerações de aedos, e “só mais tarde é tomada como objeto de redação, cujo objetivo é estabelecer e fixar o texto oficial” (Vernant, 2000, p. 12). A Ilíada e a Odisseia, de Homero, são consideradas os primeiros grandes modelos ocidentais da poesia épica na Antiguidade Clássica. Ambos os poemas fornecem um panorama abrangente da vida e dos valores do povo grego e, através deles, o heroísmo é celebrado como um ideal a ser seguido nas ações cotidianas. Os deuses e heróis retratados agem como propulsores de um acontecimento (ou de vários) que refletem muitas vezes as glórias e o valor cívico da comunidade grega (Lesky, 1989, p. 31–35). Enquanto Homero glorifica os feitos de homens que pertencem a uma idade heroica, séculos mais tarde, em Roma, Virgílio inspirar-se-ia nas epopeias homéricas (e em outras que vieram depois delas), para compor seu próprio poema épico, a Eneida, visando a projetar uma condição mítica sobre a história romana e sua contemporaneidade. O poema narra as jornadas e feitos de Eneias, um proeminente herói troiano, em sua peregrinação pelo Mediterrâneo, culminando em sua chegada à península itálica, onde funda as bases de Roma. Perseguindo um modelo estabelecido inicialmente pelos poemas de Homero, a Eneida desempenha um papel crucial na transmissão dos valores e da mitologia da cultura romana. Por meio de uma narrativa 22 densa, repleta de personagens emblemáticos, eventos significativos e intervenções divinas, a obra de Virgílio apresenta uma visão grandiosa e épica da fundação das bases de Roma e de sua conexão intrínseca com o Destino e a História. Ademais, o poema também reafirma a importância do heroísmo e da virtude cívica como elementos centrais na construção da identidade e glória da Roma Antiga. A construção de um passado mítico para uma nação, como o faz Homero e, principalmente, Virgílio, é um dos três traços constitutivos do gênero épico, como o elenca Bakhtin (1988, p. 405): 1. O passado nacional épico, o “passado absoluto” […], serve como objeto da epopeia; 2. A lenda nacional (e não a experiência pessoal transformada à base de pura invenção) atua como fonte da epopeia; 3. O mundo épico é isolado da contemporaneidade, isto é, do tempo do escritor (do autor e dos seus ouvintes), pela distância épica absoluta (Bakhtin, 1988, p. 405). O primeiro traço equivale ao tempo em que se situa a epopeia, que seria, segundo as próprias palavras do autor, o mundo do passado heroico nacional, das “origens”, dos “primeiros e melhores”, ou seja, é um tempo construído no passado, que narra feitos passados, sagrados e inacessíveis, destinados exclusivamente aos descendentes de uma determinada nação (Bakhtin, 1988, p. 405). Além disso, o discurso épico possui um repertório imagético que está sob orientação de um autor que fala sobre o passado inacessível, o “passado absoluto”. Desse modo, por representar um evento em um único nível axiológico e temporal específicos, Bakhtin ressalta que o passado épico é fechado em si, pois tudo o que é preparado pela tradição épica permanece imutável, “seus traços são a conclusão absoluta e o caráter acabado” (Bakhtin, 1988, p. 408). O segundo traço assinalado, a lenda nacional, também atua como constituinte do gênero épico e serve de apoio para sustentar o passado absoluto, dado que a apreciação de uma lenda nacional evoca uma profunda veneração não apenas pelo objeto de representação em si, como também pelo próprio discurso que o sustenta (Bakhtin, 1988, p. 408), fazendo com que ela também permaneça no passado absoluto, imutável e indiscutível. O “passado absoluto” da epopeia, portanto, condiciona sua existência a uma temporalidade fixa. No caso da Eneida, Virgílio concentra-se em narrar não a fundação de Roma em si, mas um acontecimento ainda mais longínquo e grandioso: a fundação das bases do que seria seu Império por um herói singular dentre os demais (a “lenda nacional”), de atitudes superiores aos do próprio Aquiles e de linhagem divina, da qual o próprio César, figura histórica do tempo do poeta, o poema faz descender. Virgílio, então, fixa a temporalidade de sua obra no 23 mito, a fim de fundi-lo com o passado histórico e o momento presente de Roma, procurando refletir as virtudes da nacionalidade de seu povo. Ao passo que os dois primeiros traços podem ser considerados quantitativos do gênero épico (tempo e espaço longínquos), o terceiro traço assinalado por Bakhtin (1988), a distância épica, pode ser vista como qualitativa, pois equivale ao bloqueio instaurado entre o material épico, isto é, a lenda nacional da epopeia, e o autor e seus leitores/ouvintes, pois não é uma narrativa passível de ser reavaliada ou reinterpretada por eles, uma vez que, como consta nos tópicos anteriores, se encontra distante, e elevada ao nível axiológico e temporal, da realidade humana. A partir disso é possível concluir que a distância épica não existe somente em relação ao material épico, “mas também em relação ao ponto de vista e ao julgamento sobre eles” (Bakhtin, 1988, p. 409). É interessante aproximar as ideias de Bakhtin (1988) ao que faz Virgílio na Eneida, pois, ao mesmo tempo que o poeta estabelece uma temporalidade fixa no mito de Eneias, narrando como o herói fugiu de Troia para salvar seus penates7 e fundar as bases de Roma, há referências a eventos históricos passados e presentes à contemporaneidade do autor e de seus ouvintes, mas que, na narrativa, são colocados como eventos futuros, como quando Júpiter e Anquises, nos Cantos I (vv. 257–296) e VI (vv. 752–885), respectivamente, antecipam o futuro glorioso dos romanos. Então, ainda que mencione figuras e eventos históricos de seu tempo, eles são fundidos no texto literário com o mito, e funcionam como uma espécie de profecia dita pelo Destino e pelos deuses. São acontecimentos futuros prefigurados em um passado nacional épico impossíveis de serem alterados ou revisados, e a realidade factual do poeta, que foi inspirado pela Musa a conhecer e transmitir tais segredos, pode prová-los verdadeiros. Quando discorre sobre as características do gênero épico, Bakhtin o faz com o intuito de elaborar uma teoria do romance como gênero literário, considerando a relação histórica de ambos durante o desenvolvimento da literatura. Para ele, uma das principais diferenças entre os dois gêneros está no uso da linguagem (Bakhtin, 1988, p. 397). Enquanto no gênero épico há apenas uma voz dominante que prevalece sobre todas as outras, ou seja, uma linguagem que tende a ser monológica, uniforme e unidirecional, o romance, por sua vez, abre espaço para a coexistência e interação de múltiplas vozes, porque ele parodia os outros gêneros (justamente como gêneros), revela o convencionalismo de suas formas e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção particular, reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom (Bakhtin, 1988, p. 399). 7 Trata-se, entre romanos e etruscos, dos ancestrais mortos alçados à categoria de divindades tutelares (Grimal, 2005, p. 364). 24 Ao longo de sua história o romance foi — e continua sendo — moldado por uma série de influências, estilos e técnicas narrativas, selecionados e reimaginados por diferentes autores para testar e explorar os limites dessa expressão literária. Defini-lo como gênero acabado é uma tarefa árdua, pois o romance é como o estudo das línguas vivas (Bakhtin, 1988, p. 397), ele é maleável, modifica-se com a história, é movido pelo presente, pela experiência e, por isso, sua linguagem não pode ser simplificada ou estendida linearmente. “Trata-se de um sistema de planos que se intercruzam” (Bakhtin, 1998, p. 370), pois possui a aptidão para integrar, segundo dosagens diversas, os elementos mais díspares — documentos em bruto, fábulas, reflexões filosóficas, preceitos morais, canto poético, descrições —, a sua ausência de fronteiras, numa palavra, contribui para fazer o seu sucesso — cada um acaba por nele encontrar o que procura — e para lhe assegurar longa vida: a extrema maleabilidade permitiu-lhe sair triunfante de todas as crises. Estes mesmos traços tornam aventurosa toda a tentativa para definir o género (Bourneuf; Ouellet, 1976, p. 27). A maleabilidade romanesca mencionada por Bourneuf e Ouellet (1976) é fundamental para a compreensão da narrativa de O Senhor dos Anéis. Embora não seja o objetivo desta pesquisa explorar detalhadamente a extensa discussão que envolve os estudos dos gêneros épico e romanesco, a compreensão sumária das características formais e temáticas de cada um é importante para elucidar o fazer literário na Eneida e n’O Senhor dos Anéis. Isso se deve ao fato de que a linguagem, ou melhor, a manipulação da palavra, concebida como instrumento na criação de realidades ficcionais, apresenta características singulares dependendo do gênero literário no qual é empregada. Nesse sentido, da mesma forma que Virgílio utiliza a epopeia para a criação de um passado épico nacional a Roma, tomando o mito de Eneias como matéria literária, J. R. R. Tolkien sustenta propósito semelhante, embora se tenha valido da maleabilidade de que dispõe o gênero romanesco para a criação de todo seu universo ficcional, o Legendarium (o “Legendário”), do qual faz parte O Senhor dos Anéis. Enquanto autores do século XX preocupavam-se “em retratar a humanidade e o planeta Terra sob um viés tecnológico e futurista” (Stainle, 2016, p. 16), Tolkien buscava “criar uma mitologia para o povo inglês que os [ligasse] aos antigos deuses celtas e nórdicos, dando-lhes uma herança divina” (Polachini, 1984, p. 24). Essa vontade surgiu, primeiramente, por sua predileção em inventar idiomas, o que o levou, depois, à criação de uma história na qual pudesse implementá-los; só então passou a objetivar a construção de um passado épico para a Inglaterra por notar a falta de mitos especificamente ingleses, como ele mesmo afirma em uma de suas cartas: “Tendo designado a mim mesmo uma tarefa […], sendo precisamente a de restaurar aos 25 ingleses uma tradição épica e de apresentar-lhes uma mitologia deles próprios” (Tolkien, 2006, p. 385). Para concretizar seu desejo, ele se propôs a criar um corpo de lendas mais ou menos associadas, que abrangesse desde o amplo e cosmogônico até o nível do conto de fadas romântico — o maior apoiado no menor em contato com a terra, o menor sorvendo esplendor do vasto pano de fundo — que eu poderia dedicar simplesmente à Inglaterra, ao meu país (Tolkien, 2006a, p. 243). O corpo de lendas ficcionais criado por Tolkien recebeu o nome de Legendarium8, uma compilação que abrange uma ampla gama de fontes mitológicas, desde a mitologia greco-latina até as mitologias nórdica, celta, finlandesa, entre tantas outras. Sua inspiração derivou de uma variedade de textos antigos, tais como Beowulf (XI d.C.9), A Saga dos Volsungos [Völsunga saga, XIII d.C.], Kalevala (1835), O Anel dos Nibelungos [Das Nibelungenlied, 1275 a 1300], as Eddas nórdicas (XIII d.C.) (Stainle, 2016, p. 16), bem como as clássicas epopeias de Homero e Virgílio, com as quais teve contato ao longo de sua vida e carreira acadêmica (Carpenter, 2018, p. 34–102). Contudo, a reunião de diferentes materiais, bem como sua profusa criatividade, não foram as únicas ferramentas usadas por ele para dar forma ao rico e intrincado universo de sua própria mitologia: Tolkien também reuniu diferentes temas, gêneros literários, inventou novas criaturas, línguas, mapas, árvores genealógicas, calendários, apêndices, todos descritos de maneira minuciosa e detalhista. Para Watt (2010), a descrição minuciosa é um importante traço constitutivo do gênero romanesco e que o diferencia dos demais, justamente por atribuir à narrativa um elevado “grau de atenção que dispensa à individualização das personagens e à detalhada apresentação de seu ambiente” (Watt, 2010, p. 19). No caso de Tolkien, Stainle (2016), em acréscimo ao crítico britânico, pontua que [a] ferramenta essencial para a criação do universo de Tolkien foi a precisão, o detalhamento, a paciência para descrever, quase pintar, tudo aquilo que aparece na narrativa. Criaturas novas e lugares por ele imaginados deveriam ser muito bem descritos para que a história pudesse ser lida e credibilizada sem problemas de coerência interna (Stainle, 2016, p. 18). 8 As obras ficcionais que derivam do Legendarium de Tolkien são: O Hobbit [The Hobbit, 1937], O Senhor dos Anéis [The Lord of the Rings, 1954–1955], As Aventuras de Tom Bombadil [The Adventures of Tom Bombadil, 1962] (publicadas durante a vida do autor), O Silmarillion [The Silmarillion, 1977], Contos Inacabados de Númenor e da Terra Média [Unfinished Tales of Númenor and Middle-earth, 1980], A História da Terra-média [The History of Middle-Earth, 1983–1996], Os Filhos de Húrin [The Chrildren of Húrin, 2007], Beren e Lúthien [Beren and Lúthien, 2017] e A Queda de Gondolin [The Fall of Gondolin, 2018] (organizadas por seu filho Christopher Tolkien e publicadas postumamente). 9 Segundo Stainle (2016, p. 16), a data é imprecisa, pois estudiosos também afirmam a obra ter sido escrita entre os séculos V e X d.C. 26 Diante da complexidade do Legendarium de Tolkien, Rossi (2009), também apoiando- se em Bakhtin (1988), discute a difícil classificação do gênero d’O Senhor dos Anéis, uma vez que, segundo ele, a obra possui característica híbrida, ou seja, apresenta intersecções com gêneros diferentes, motivo pelo qual o autor sugere que a obra poderia ser definida como um romance com características da épica, porque, além de o conteúdo ser bastante próximo aos temas do gênero, o intuito de Tolkien em recriar um passado épico ficcional, inspirando-se nas epopeias clássicas, conferiu-lhe um caráter elevado (Rossi, 2009, p. 158–159). Devido a essa característica híbrida, O Senhor dos Anéis permite que traços dos dois gêneros apareçam, seja a partir de elementos estilísticos, como a mistura entre o tom mítico e o do conto de fadas, no plano da linguagem10, seja pela inserção de cantigas, personagens e relatos que remetam a um tempo primordial. Ao integrar características de gêneros já estabelecidos, como, no que interessa a esta discussão, a épica, a obra de Tolkien adquire peculiaridades distintas no âmbito discursivo, que se aproximam dos elementos constituintes do romance, conforme delineados por Bakhtin (1988, p. 399). Não obstante, ao retomar a definição bakhtiniana mencionada há pouco (p. 23), de que o romance “parodia os outros gêneros (justamente como gêneros)” (Bakhtin, 1988, p. 399), poderia sugerir que esse hibridismo presente na obra de Tolkien ocorre porque a própria constituição do gênero romanesco o permite, como uma característica já “programática” do gênero, isto é, inata a ele, o que implicaria dizer que, no caso de O Senhor dos Anéis, trata-se apenas de um romance “tradicional” — uma vez que a inserção de vários gêneros, não só o épico, já estaria pressuposta em sua constituição —, que tematizaria um universo ficcional fantástico. Em outras palavras, pela definição de Bakhtin, de que o gênero épico (bem como outros gêneros) já estaria previsto na constituição do romance justamente por ser essa sua natureza, a classificação do gênero de O Senhor dos Anéis que sugere Rossi (2009) não estaria bem colocada. No entanto, a definição proposta pelo autor justifica-se logo adiante no ensaio de Bakhtin (1988), quando o crítico russo retoma a questão da “parodização” ao pontuar que é através da paródia que o romance demonstra sua capacidade de absorver e ressignificar uma ampla gama de gêneros e estilos literários (Bakhtin, 1988, p. 399). Dessa forma, o romance adapta-se aos modos literários predominantes de cada época, o que lhe permite constante mudança ao longo da História: As estilizações paródicas dos gêneros diretos e dos estilos ocupam lugar essencial no romance […]. É característico que o romance não dê estabilidade a nenhuma de suas 10 Estilos que também caracterizam as obras O Silmarillion (1977) e O Hobbit (1937), cuja narrativa se passa cronologicamente depois do primeiro. 27 variantes particulares. Em toda a história do romance desenrola-se uma parodização sistemática ou um travestimento de suas principais variantes de gênero, predominantes ou em voga naquela época, e que tendem a se banalizar (Bakhtin, 1988, p. 400). Essa falta de estabilidade em suas próprias variantes faz com que o romance ganhe nomenclaturas diversas, dadas para classificar os diversos tipos de romance, nomenclaturas estas que identificam os gêneros ou as características dos gêneros parodiados pela forma romanesca: romance histórico, romance epistolar, romance romântico, romance gótico, romance de ficção cientifica etc. (Rossi, 2009, p. 149). Por isso, apontar O Senhor dos Anéis como um romance com fortes características da épica, conforme sugerido por Rossi (2009, p. 158–159), está em consonância com a definição bakhtiniana do gênero. A obra não só se encaixa nos critérios tradicionais de um romance em termos de espaço, tempo e personagens (Bourneuf; Ouellet, 1976, p. 130–280), por exemplo, como também apresenta características qualitativas e estilísticas que reforçam sua natureza épica, algumas delas já mencionadas ao longo desta discussão, como, por exemplo, o tom mítico, elevado, da linguagem, a presença de personagens que advêm de um tempo remoto, a temática da jornada heroica11 e da guerra, e, até mesmo, o intento de Tolkien, à semelhança dos antigos poetas, na criação de um passado épico nacional para a Inglaterra. Embora não siga à risca os moldes clássicos das narrativas da tradição literária antiga, O Senhor dos Anéis ressignifica e transforma o gênero épico, fazendo emergir várias de suas características sobre o texto de maneira tão cristalina que é quase impossível ao leitor, já familiarizado com esse gênero, não as perceber. Enquanto a épica é movida pela memória, isto é, pelo passado, que se revela ao poeta como verdade indiscutível, o romance é movido pela experiência. Por ser como o estudo das línguas vivas, o romance se liga ao tempo presente, ao tempo da atualidade em que se narra, como um tempo que é passível de identificação, julgamento e revisão pessoais (Bakhtin, 1988, p. 411); há uma cisão, portanto, em relação à distância épica e o passado absoluto. Desse modo, o caráter “inferior” do discurso romanesco em relação ao “elevado” do gênero épico, se dá por ele estar associado aos elementos vivos da palavra (Bakhtin, 1988, p. 413), que, em sua primeira etapa de formação, eram fundamentais para superar a distância épica e dar um passo à frente em direção ao “estabelecimento do livre conhecimento científico e para a criação artisticamente 11 A jornada do herói na literatura de fantasia é conhecida por quest fantasy. Trata-se, como na jornada clássica do herói, de uma fantasia de busca, “no sentido de empreitada, empresa, jornada” (Stainle, 2016, p. 13). 28 realista da humanidade europeia” (Bakhtin, 1988, p. 414), uma vez que tomavam a atualidade (o tempo presente) por objeto de representação, tendo a liberdade de questioná-la e revisá-la, por não ser mais imutável nem estar distante em um nível axiológico-temporal. Acontecimentos em um passado distante e “fantasioso” deram lugar a tramas ambientadas no presente ou no passado recente. Essa mudança reflete o drama dos indivíduos diante dos desafios práticos e plausíveis da vida cotidiana, em que as experiências passadas são causa da ação presente (Watt, 2010, p. 13–22). A mudança hierárquica dos tempos, portanto, também representa uma mudança na estrutura da representação literária, porque o romance não se contenta apenas em representar o presente em que está inserido, mas apresenta, enquanto característica formal, uma busca pelo desconhecido, por aquilo “que vem depois”, já que deseja delinear um final em decorrência do contato com seu tempo (presente) inacabado (Bakhtin, 1988, p. 420). Em outras palavras, a mudança hierárquica dos tempos altera o fechamento que antes havia no gênero épico, pois no romance não há mais uma palavra primordial que decrete um fim acabado à história do sujeito; ele não mais se conhece, pois reavalia e reinterpreta sua realidade constantemente e, devido à experiência do não-fechamento de seu tempo, ele não sabe o que virá em seguida, logo, não há um final inescapável. É por isso que quanto mais o presente busca o futuro, mais inacabado ele se torna. Conforme afirma o autor: O romance tem uma problemática nova e específica; seus traços distintivos são a reinterpretação e a reavaliação permanentes. O centro da dinâmica da percepção e da justificativa do passado é transferido para o futuro (Bakhtin, 1988, p. 420, grifos nossos). Ao submeter a obra de Tolkien à teoria bakhtiniana do romance, Stainle (2016) destaca que, quando se considera o Legendarium como um todo, ou ao menos as obras de mais relevo que o compõem (O Silmarillion, O Hobbit e O Senhor dos Anéis), é possível tomar as afirmações do crítico russo como verdadeiras se analisados o passado mítico de O Silmarillion como o tempo épico e o início da narrativa de O Hobbit como o tempo presente, isto é, o estilo narrativo (não formal, mas conteudístico) de O Silmarillion aproxima-se do caráter épico e as narrativas de O Hobbit e de O Senhor dos Anéis configuram esse presente aberto e inacabado onde todo o passado se reavalia e se reinterpreta para dar continuidade à história (Stainle, 2016, p. 24, grifos do autor). No Legendarium, O Silmarillion posiciona-se como uma narrativa de criação. Trata-se da cosmogonia do universo tolkieniano, desde a concepção do Mundo até os eventos anteriores às histórias de O Hobbit e de O Senhor dos Anéis. Ao retratar os feitos de um tempo em que os 29 deuses desempenhavam papel ativo na configuração do Mundo e eram presentes no cotidiano de seus habitantes, o autor situa O Silmarillion no passado mítico, absoluto e imutável, em que cada aspecto, do discurso à construção de personagens e espaços, é imbuído de grandeza e antiguidade, refletindo a magnitude dos eventos primordiais. Por outro lado, O Hobbit e O Senhor dos Anéis, embora também situados no passado do autor/leitor, focalizam as aventuras de seus protagonistas, Bilbo e Frodo Bolseiro, respectivamente, em um passado que está acontecendo enquanto narrado, algo mais próximo da civilização da Terra-média, não uma narrativa dos deuses, mas uma narrativa dos homens, hobbits, anões, elfos etc. (Stainle, 2016, p. 24). A mescla entre os traços acabados do gênero épico e os inacabados do romanesco estão presentes não só no conjunto das obras que compõem o Legendarium, como também no próprio O Senhor dos Anéis, quando analisado isoladamente. Como Stainle (2016) também observa, a presença de personagens d’O Silmarillion, como Sauron, Saruman, Gandalf, Tom Bombadil, Celeborn e Galadriel, na trama d’O Senhor dos Anéis, trazem ao tempo atual da narrativa o passado mítico, não só porque sua presença e habilidades superiores aos demais evocam um tempo remoto, mas também por serem responsáveis “por, além de narrar o que já aconteceu, mostrar como esse passado remoto influenciou a história para que se chegasse aos elementos constituintes da situação atual” (Stainle, 2016, p. 24). Isso faz com que O Senhor dos Anéis se oriente tanto pelo passado quanto pelo presente/futuro. O passado aparece de duas maneiras: primeiro, por tratar-se de uma história que, enquanto projeto literário-ficcional de Tolkien, se constrói como o passado mítico-lendário da Inglaterra, através da literatura fantástica; segundo, por incluir, no curso próprio da narração dos eventos, personagens de um passado ainda mais remoto, isto é, mítico, que influenciam tanto o presente quanto o futuro da história. Gandalf, por exemplo, é o Mago responsável por orientar os membros da Comitiva do Anel. Seu vasto conhecimento sobre a história e a natureza da Terra-média, além de suas habilidades superiores, são essenciais para auxiliar os demais a tomarem decisões importantes e a mantê-los unidos em face de desafios e perigos. Ao conhecerem a elfa Galadriel, Senhora da floresta de Lothlórien, os membros da Comitiva admiram sua beleza e sabedoria magníficas (Tolkien, 2000a, p. 376–377). Assim como Gandalf, ela possui uma compreensão profunda do poder e perigo do Um Anel, carregado por Frodo, e por isso seus conselhos e presentes com propriedades mágicas são de grande valia não só a ele como também ao restante do grupo para seguirem em frente com sua missão (Tolkien, 2000a, p. 399–401). 30 A inserção do tempo mítico, que ocorre pela presença das personagens mencionadas, age como responsável pelo desenrolar da situação no tempo presente, uma vez que todo o motivo da trama (a busca pela destruição do Um Anel e de seu Senhor e a consequente restauração do equilíbrio da Terra-média) origina-se, anteriormente, de acontecimentos retratados n’O Silmarillion. Ele não está fechado em si mesmo, talvez somente se se considera a narrativa d’O Silmarillion como única referência. No entanto, ao ser integrado ao contexto narrativo de O Senhor dos Anéis, o tempo mítico torna-se o centro da dinâmica atual, o motivo e também a consequência pela qual agora Aragorn, Boromir, Frodo, Sam, Merry, Pippin, Legolas e Gimli empenham suas vidas em uma missão tida como potencialmente suicida. Em um tempo em que deuses não mais atuam ao lado de heróis, nem mesmo as personagens mais elevadas, dotadas de profundo conhecimento antigo e habilidades de previsão, podem antecipar o desdobramento das escolhas feitas; assim, o passado se torna simultaneamente a justificativa para o presente e o futuro. Em outras palavras, por não fornecer as respostas do que acontecerá, uma vez que se baseia na experiência, no presente inacabado, o romance anuncia a dúvida, a dedução, o anseio e a apreensão por parte das personagens, que se manifestam, também, no tempo da leitura. Na tessitura de narrativas que exploram as profundezas do passado nacional, Virgílio e Tolkien dominaram a arte de utilizar a palavra não meramente como forma de expressão, mas como um meio poderoso de criação de realidades. O mito, que na Antiguidade Clássica era tomado como uma história sagrada (Scheid, 2014, p. 27–28), que contava eventos desde a criação do mundo até aventuras heroicas, modificou-se, tornando-se sinônimo de “ficção, de criação fabuladora que conserva, contudo, como ponto de partida, uma realidade vivida” (Bourneuf; Ouellet, 1976, p. 18, grifos nossos). Tanto Virgílio como Tolkien utilizam o mito como componente literário para alcançarem objetivos muito parecidos: a reinvenção do passado para suas nações. A “realidade vivida” de Virgílio é articulada ao mito, tomado como matéria literária, política e religiosa, para reinventar o passado de sua nação e glorificar seu presente através da poesia heroica. Já Tolkien, buscou resgatar e preservar, através do gênero romanesco e da literatura de fantasia épica, uma realidade vivida seja na época medieval seja já na época das nações em que as respectivas mitologias existiram e que receberam influência da época anterior, para inventar algo novo: um passado nacional de esplendor, perigo e aventura para seu país, a Inglaterra. 31 2.2 Resgate de um mito para o Império Considerado, ainda hoje, como um dos maiores expoentes da literatura latina, Virgílio (Publius Vergilius Maro), foi um importante poeta romano. Nasceu em Pietole, a cidade italiana que, em sua época, era conhecida como Andes, em 70 a.C., e faleceu em Brindisi, uma comuna italiana, em 19 a.C. Três foram suas grandes obras: as Éclogas [Eclogae, 37 a.C.] (ou Bucólicas), as Geórgicas [Georgicon, 30 a.C.] e, sua obra-prima, a Eneida [Aeneis, 19 a.C.], poema épico composto por 12 Cantos e escrito ao longo dos 10 últimos anos da vida do poeta (Albrecht, 1997, p. 622). Pouco se sabe sobre a infância de Virgílio e muitos dos dados biográficos fornecidos pelos seus biógrafos podem não ser considerados completamente verídicos. Além das escassas informações extraídas das Bucólicas e Geórgicas, as principais fontes para a biografia de Virgílio “são constituídas por testemunhos dispersos de autores contemporâneos, de tradição essencialmente oral, recolhidos por eruditos da primeira fase do Império, e principalmente pelas Vitae12 e por comentários tardo-antigos à obra do poeta” (Citroni et al., 2006, p. 447). Por isso, as informações sobre a vida e obra do autor serão extraídas de Albrecht (1997), Citroni et al. (2006), Grimal (1992) e Pereira (1990), que sistematizaram, em seus respectivos trabalhos, os dados que geralmente são de consenso entre os estudiosos do poeta. Acredita-se que o pai de Virgílio tenha sido um pequeno proprietário rural, com condições financeiras suficientes para proporcionar-lhe bons estudos (Citroni et al., 2006, p. 447), os quais ele iniciou em Cremona, região da Gália Cisalpina, onde se aventurou pelas gramáticas latina e grega. Após receber a toga viril, foi para Mediolano (atual Milão) em 55 a.C., aos 15 anos, para estudar retórica, e, por fim, mudou-se para Roma para instruir-se em oratória (Grimal, 1992, p. 23–30). Virgílio desiste da oratória e, ao que indica as composições do Catalepton13, decidiu ir para Nápoles, a fim estudar a filosofia epicurista, difundida nos círculos intelectuais romanos (Grimal, 1992, p. 40–41). Grimal afirma não ser possível afirmar quando exatamente tenha ocorrido o contato do poeta com a doutrina de Epicuro, mas acredita que tenha sido por volta de 49 a.C. (Grimal, 1992, p. 40–41). Nesse meio filosófico, Virgílio não aprenderia apenas com o mestre Sirão, filósofo epicurista que ensinava em Nápoles, mas também com os ensinamentos do Da Natureza das Coisas [De rerum natura, 50 a.C.], de 12 As Vitae são as biografias de Virgílio. As mais conhecidas são as de Suetônio e Donato, mas também existe a de Sérvio, que precede seu comentário à Eneida (Citroni et al., 2006, p. 447). 13 Catalepton é uma coleção de poemas curtos atribuídos ao jovem Virgílio, embora a autoria de alguns continue sendo questionada. Além do Catalepton também são conhecidos o Priapea, Dirae, Aetna, Moretum, Copa, Ciris, Culex e Eligiae in Maecenatem e seu conjunto é chamado de Appendix Vergiliana (Albrecht, 1997, p. 657–661). 32 Lucrécio, famoso epicurista romano, e, mais tarde, frequentaria a escola encabeçada pelo filósofo e poeta Filodemo, em Herculano (Citroni et al., 2006, p. 448). Antes que Júlio César, líder militar e político da República Romana, fosse assassinado em 44 a.C., existia em Roma, sobretudo nos círculos epicuristas aos quais aderiu Virgílio em seus primeiros anos de estudo, a ideia de que o ditador devolveria à Roma a prosperidade e a felicidade, pondo em prática as máximas fundamentais de sua doutrina comum [epicurismo]: a recusa de tudo o que contrariasse ou excedesse a “natureza” […]; da cidade também seriam banidas as ambições funestas, geradoras de discórdia, pondo-se fim à fúria da disputa eleitoral, que envenenava a vida pública (Grimal, 1992, p. 46). O período descrito há pouco se refere aos conflitos internos de Roma, intensificados desde o fim do Primeiro Triunvirato (59–53 a.C.), i.e., a aliança informal entre Crasso, Pompeu e César, idealizador do acordo, que marcou a entrada dos militares na política romana. Quando da morte de Júlia, filha de César e esposa de Pompeu, e, em 53 a.C., a de Crasso, rompe-se a aliança entre os triúnviros restantes. Em 49 a.C., uma guerra civil é desencadeada entre Pompeu e César pela disputa ao poder, saindo-se este vitorioso um ano depois, na Batalha de Farsalos, na Grécia. Nesse período, Roma encontrava-se terrivelmente abalada pelos desgastes dos conflitos e, à vista disso, César passou a ser visto pelo povo como aquele que traria de volta, nas palavras supracitadas de Grimal (1992, p. 46), a “prosperidade e a felicidade”. Nos primeiros anos de poder legislativo, César iniciou profundas reformas sociais e políticas em Roma, tais como a distribuição de trigo aos mais pobres; a atribuição de terras da Campânia e da Etrúria a diversas famílias; a concessão da cidadania romana e latina a colônias fora da Itália; além disso, também planeou a construção de uma biblioteca pública sob a supervisão do filósofo Varrão, entre muitos outros feitos (Citroni et al., 2006, p. 254). No entanto, as feridas desencadeadas pela guerra civil ainda se encontravam abertas e, em 44 a.C., César foi assassinado no próprio senado por um grupo de senadores republicanos, sob o comando de Bruto e Cássio, que conspiravam sua morte. O fim do poderio do ditador configurou em Roma grande instabilidade interna, que acabaria por desencadear, após reaberta a cadeia de guerras civis, o nascimento do Império (Citroni et al., 2006, p. 254). Com a morte de César, as esperanças do povo romano recaíram sobre a figura de Caio Otávio, sobrinho-neto, filho adotivo e herdeiro de César, que derrotou os assassinos do tio-avô com a ajuda dos cônsules Marco Antônio e Lépido, com os quais formou o Segundo Triunvirato e deu início à restauração de Roma (Grimal, 1992, p. 49–50). A vitória sobre os conjurados traidores foi na Batalha de Filipos, em 42 a.C.; um ano depois, Virgílio principiou a escrita das Bucólicas (ou Éclogas), obra que reúne dez composições poéticas. 33 Inspirado nos Idílios do poeta helenístico Teócrito, os poemas bucólicos de Virgílio abordam assuntos variados do campo rural e pastoril, sem deixar de referenciar o período turbulento pelo qual passou Roma a partir de 44 a.C., presenciado pelo poeta ainda muito jovem (Albrecht, 1997, p. 624). Na Écloga I, por exemplo, Melibeu, prestes a deixar suas terras, que haviam sido empossadas, queixa-se de seu destino a Títiro, outro pastor, que conseguira preservar as suas. Já na Écloga IX, Méris, que também havia sido desapossado de suas propriedades, conta a Lícidas que Menalcas, talentoso poeta, também havia perdido as suas, vendo-se obrigado a deixá-las para um novo proprietário. De acordo com Citroni et al. (2006, p. 448), é possível inferir que a recorrência da temática abordada nos dois poemas seja uma referência às expropriações de terras pelos triúnviros depois da Batalha de Filipos, que confiscaram as terras no norte da Itália para atribuí-las a seus soldados veteranos. Ao que tudo indica, Virgílio também foi desapossado de suas propriedades, que lhe foram devolvidas em 40 a.C., por Otávio (Citroni et al., 2006, p. 448). Apesar da união inicial, o Segundo Triunvirato terminou em 33 a.C. em decorrência da disputa pelo poder entre Marco e Otávio, sagrando-se este como vencedor, após vários embates (Citroni et al., 2006, p. 435). É no contexto de uma Roma arrasada pela instabilidade das contendas partidárias que Otávio, agora nomeado Augustus14 e exercendo pleno poder sobre o Senado, percebe a urgência de recuperar os valores tradicionais romanos, a fim de restaurar a paz em Roma, e, com isso, construir a imagem “de um príncipe cuja vitória não era a afirmação de um chefe militar […], mas antes a restauração da ‘res publica’, o resgatar de todas as tradições nacionais, a salvação e a prosperidade do Estado” (Citroni et al., 2006, p. 482). Durante essa iniciativa, a literatura desempenhou um importante papel na restauração da antiga moralidade romana e do sentimento de orgulho patriótico, alinhados conforme as convicções sociais e políticas de Augusto (Citroni et al., 2006, p. 442). Foi assim que Mecenas, conselheiro e amigo do princeps, formou seu cenáculo artístico-literário (conhecido a partir daí como Círculo de Mecenas), visando a apoiar financeiramente e incentivar grandes poetas do período a assegurarem os interesses comuns de seu líder (Citroni et al., 2006, p. 442). Desse círculo fez parte Virgílio, que, devido ao sucesso das Bucólicas no panorama literário e cultural, foi apresentado a Mecenas pelo cônsul Asínio Polião. Dedicado a contribuir com os esforços do princeps na restauração de Roma, Virgílio escreveu as Geórgicas, inspirando-se, desta vez, em obras como o longínquo Os trabalhos e os dias, do poeta grego Hesíodo, ou mesmo as Histórias dos Animais, de Aristóteles, e a História das Plantas, de 14 Segundo Pereira (1990, p. 219), a palavra Augustus possui significado religioso que singulariza aquele que o porta acima dos demais. Otávio recebeu esse título em 27 a.C., quatro anos após a Batalha do Áccio. 34 Teofrasto (Pereira, 1990, p. 239). Nos poemas das Geórgicas, Virgílio celebra a agricultura, a natureza, aprecia a apicultura, o cultivo do gado, dos cereais e das árvores, e enaltece, ainda, a figura do próprio Augusto, cujos ideais, que muito provavelmente também eram os seus, demonstra apoiar (Pereira, 1990, p. 239–243). Tamanho foi o prestígio que recebeu com a publicação dessas duas obras muito esmeradas, que Virgílio foi incentivado por Augusto a escrever um poema que evocasse a gens romana, que exaltasse a glória da linhagem de César — da qual o próprio princeps descendia — e que restituísse aos cidadãos o sentimento patriótico de pertencimento e orgulho das virtudes romanas. Para alcançar a proposta, nos últimos 10 anos de sua vida, o poeta visou a recobrar o mito de Eneias, príncipe troiano que, na versão de Virgílio, escapa da Guerra de Troia para salvar seus penates e no Lácio fundar as bases de Roma. Eis que nasceu, então, a Eneida, “a gesta de Eneias”, epopeia da paz e da conciliação que evocaria a glorificação de todo o Império (Pereira, 1990, p. 244). As primeiras menções a Eneias na literatura greco-latina remontam a Homero. No Hino Homérico V (a Afrodite)15 conta-se que Eneias é filho de Afrodite (deusa correspondente à Vênus na mitologia romana), deusa do amor, com o humano Anquises, troiano que pastoreava o gado quando viu a deusa e se apaixonou perdidamente por ela. Eneias nasceu no Monte Ida e foi criado por ninfas, antes de ser levado a Troia por seu pai. Já na Ilíada, poema em que o herói recebe maior destaque, sua presença, ainda que secundária, é notória de modo a destacá-lo como exímio comandante do exército troiano. Ainda que destemido o suficiente para desafiar os inimigos e a fúria do próprio Aquiles durante a Guerra de Troia, sempre que corria perigo iminente, como ocorre, por exemplo, nos Cantos V (vv. 305–318, 2013, p. 211) e XX (vv. 301– 308, 2013, p. 556), os deuses aliados vinham em seu auxílio para afastá-lo do campo de batalha, pois sabiam que a ele estava predestinado um grande futuro, que não seria narrado, no entanto, pelo poeta grego. No contexto da épica latina, Eneias seria mencionado primeiro por Névio, na Guerra Púnica (Bellum Punicum), que, segundo gramáticos antigos, em alguns fragmentos do poema daria continuidade à Ilíada, narrando Eneias ter deixado Troia depois de sua queda (Jones, 2011, p. 9). Depois de Névio, Ênio foi outro poeta romano a escrever uma epopeia, os Anais (Annales), obra que deixa de lado o metro satúrnio, empregado antes pelo primeiro, para resgatar e aclimatar em latim o hexâmetro datílico grego, empregado por Homero; não apenas isso: no que toca à narrativa, também resgata a própria Ilíada, com o intuito de relatar os 15 Embora tenham sido creditados a Homero na Antiguidade Clássica, os poemas, na verdade, variam em suas datas e sua autoria é desconhecida (Lesky, 1989, p. 107). 35 primórdios solenes de Roma até o presente do poeta, a partir da queda de Troia. Embora não tenha dado ênfase na mitologia e em heróis, Ênio principia sua obra fazendo apelo direto às Musas, como o fizera Homero na Odisseia e na Ilíada, e, depois de um longo proêmio, apresenta Eneias como o príncipe que escapou da queda de sua cidade para fundar, na Itália, uma cidade que daria origem, muito depois, à Roma (Jones, 2011, p. 10–11). Ainda que a fuga de Eneias, nos dois poemas épicos supracitados, seja tomada como uma pequena ação — uma vez que a epopeia de Névio é uma narrativa sobre a Primeira Guerra Púnica, e a de Ênio, sobre a história de Roma — Virgílio atribui a ela o motivo de sua épica: a fuga da cidade de Troia é a ação que impulsiona toda a árdua jornada do herói na busca pela terra prometida pelos Fados (Freitas, 2021, p. 52). Eneias é um fugitivo, que encontra no exílio a maturidade necessária para compreender a razão de sua missão e realizá-la assim que aportasse no Lácio. O exílio é a consequência necessária da fuga para que a pietas, a “piedade” do herói, seu máximo valor, seja testada em meio às dificuldades impostas (Salema, 2012, p. 37), a fim de que ele possa arcar com os desafios de ser, além de pius, o pater responsável pela existência de toda uma nação. Desse modo, muito antes de sua publicação, a expectativa e a ansiedade pela Eneida eram tão grandes entre a elite intelectual romana, que Propércio, poeta elegíaco e membro do Círculo de Mecenas e que provavelmente tivera acesso prévio a trechos da obra, anunciava, com palavras de entusiasmo, a grandiosidade que esse opus magnum alcançaria quando fosse finalmente publicado: e que Virgílio cante o mar Ácio de Febo guardião junto às fortes naus de César: ele recorda as armas do Troiano Eneias e os muros feitos em Lavínias praias. Cedei, poetas Gregos, Romanos, cedei! Pois nasce um não-sei-quê maior que a Ilíada (Propércio, II, 34, vv. 61–66, 2014, p. 216)1617. Propércio não se equivoca ao comparar a superioridade que a Eneida alcançaria sobre a já tão grandiosa Ilíada, de Homero. No século I a.C., o conhecimento de cultura e literatura gregas, sobretudo acerca das narrativas homéricas, estavam bem consolidadas em Roma, e 16 Traduzido por Guilherme Gontijo Flores (2014). 17Actia Vergilium custodis litora Phoebi, Caesaris et fortis dicere posse ratis, qui nunc Aeneae Troiani suscitat arma iactaque Lauinis moenia litoribus. Cedite Romani scriptores, cedite Grai! Nescio quid maius nascitur Iliade (Prop., II, 34, vv. 61–66, 2014, p. 154). 36 certamente Virgílio não só as conhecia como se inspirou nelas para a composição dos 12 Cantos de seu poema épico. Albrecht (1997, p. 628–629) afirma a Eneida ser a contraparte invertida das epopeias de Homero, no sentido de que a primeira metade do poema latino (Cantos I-VI), corresponde à Odisseia, por consistir em aventuras de viagem, e a segunda metade (Cantos VII- XII) corresponde à Ilíada, por consistir em guerras. Junto a Homero, Névio e Ênio, o crítico alemão (1997, p. 629) menciona o épico helenístico de Apolônio de Rodes, As Argonáuticas, tomando-o como outra possível inspiração de Virgílio ao comparar a caracterização do amor desvairado da rainha Dido pelo troiano, no Canto IV da Eneida, com a de Medeia por Jasão no poema grego. Ainda com relação a Homero, a brilhante originalidade de Virgílio, que o diferencia do poeta grego, é a de ter escrito um poema que restitui não apenas um passado nacional épico, como acontece na Odisseia e na Ilíada, mas um passado ancorado no futuro, ou melhor, no presente de sua época, seja ao transformar figuras do passado de Roma em símbolos eternamente vivos, seja ao reforçar antigos ideais e valores de toda a comunidade romana, como a virtus18, a humanitas19, a clementia20 e, principalmente, a pietas (sobre a qual se falará mais adiante), todas elas gravadas no escudo de ouro que Augusto recebera do Senado (Pereira, 1990, p. 219) e representadas por Eneias como o exemplum de uir romanus na Roma Augustana. Quando Eneias carrega seu velho pai, Anquises, nas costas, junto de seus penates e seu filho Ascânio, sem mencionar os demais fugitivos que os acompanham para escapar da Guerra de Troia (Ver., Aen., II, vv. 707–729), demonstra seu ideal de responsabilidade e submissão social, que inclui os deuses, a pátria e a família, sendo, portanto, a encarnação dessa qualidade, a pietas, projetada em Augusto e na gens romana, necessária para a restauração da paz em Roma. Virgílio faz do mito, que representa o passado, a narrativa principal, e da história, futuro- presente, o subtexto. Sobre essa relação, Jones (2011, p. 13) concorda e acrescenta que, na Eneida, passado e presente estão indissoluvelmente ligados, um formando uma espécie de modelo alegórico contra a qual o outro pode ser visto. Os muitos anacronismos 18 Valor complexo, que abarca significados gregos e latinos. O desenvolvimento da virtus foi fortemente influenciado pela areté grega, compreendendo qualidades tais como a coragem e a valentia suscitadas em campo bélico, mas compreende, também, ações que se coadunam com as do homem romano, ou seja, o serviço para com o Estado, com o coletivo, e ser justo e honesto nas ações (Pereira, 1990, p. 399–409). 19 Valor a ser discutido ao longo do próximo capítulo, para os romanos a humanitas abarca noções de civilidade, cultura, instrução, benevolência, humanidade, entre outros (Pereira, 1990, p. 417–423). 20 A clementia é um termo situado na esfera de ação política, primeiramente associado a César, durante as guerras civis, e depois a Augusto. É um valor indispensável a um líder político e que se define por uma inclinação do espírito para a brandura e o perdão em relação aos inimigos na guerra (Pereira, 1990, p. 360–365). 37 encontrados no poema ajudam a refletir esse sentido de conexão e continuidade entre o histórico e o contemporâneo (Jones, 2011, p. 13, tradução e grifos nossos)21. No passado épico absoluto da Eneida, é possível vislumbrar o presente a partir da mistura entre o mítico/divino e a História: Vênus, divina mãe do herói e adorada pelos romanos, assegura, durante toda a narrativa, que o destino de Roma não seja desviado independentemente do curso que Eneias tomasse. É Júpiter, o grande deus do panteão romano, quem revela as visões do futuro glorioso de Roma até os dias atuais do poeta, ressaltando a grandiosidade do próprio Augusto que, por ser da família Iulia (Júlia), de César, descendia da linhagem de Iulo (Júlio), filho de Eneias (Ver., Aen., I, vv. 286–288). Na Eneida, deuses e outras figuras mitológicas não são personagens completamente inacessíveis no imaginário “fantasioso” da narrativa, mas aquelas que, “alinhadas às figuras humanas e com os processos históricos que elas expõem, são projetadas a contribuir substancialmente à função histórica da narrativa” (Boyle, 1996, p. 82, tradução nossa)22. Retomando o contexto biográfico e de produção literária do poeta, quando perto de finalizar a Eneida, Virgílio empreendeu uma viagem de estudo à Grécia e à Ásia Menor para percorrer os lugares que Eneias teria visitado durante sua jornada, a fim de poder contemplar, com seus próprios olhos, os cenários que só podia imaginar e descrever em seus hexâmetros. Em Atenas, Virgílio encontrou-se com Augusto, que voltava do Oriente, e com a comitiva do princeps regressou a Roma. Contudo, ao visitar a cidade de Mégara, o poeta adoeceu e o estado de sua saúde piorou durante a viagem de retorno, acarretando sua morte em Brundísio, no dia 21 de setembro de 19 a.C.. A Vita de Suetônio-Donato relata que, antes de falecer, o mantuano solicitou que a Eneida fosse queimada caso algo lhe acontecesse (Citroni et al., 2006, p. 450). Em Nápoles ele foi sepultado, com as devidas honras, mas sua vontade de não publicar o poema foi superada pelo próprio imperador Augusto, que encarregou Vário Rufo, um dos amigos do poeta, de velar pela publicação póstuma (Citroni et al., 2006, p. 450). Logo, Virgílio, exercendo influência permanente na literatura posterior, personifica, ao lado de exímios poetas de seu tempo, a Idade de Ouro da literatura latina. Com a Eneida ele propiciou à poesia épica romana outro grande momento depois do lapso criado pela produção épica pós-eniana. A composição de seu épico se destaca dentre os demais, não apenas por relatar a história de um mito, mas por misturá-lo com a História, diferenciando Eneias de Ulisses ou 21 “past and present are indissolubly connected, the one forming a sort of allegorical template against which other can be viewed. The many anachronisms to be found in the poem help to reflect this sense of the connection of, and continuity between, the historic and contemporary” (Jones, 2011, p. 13). 22 “but ones which, aligned with the human figures of the epic and the historical processes they lay bare, are designed to contribute substantially to the narrative’s historical function” (Boyle, 1996, p. 82). 38 Aquiles pela qualidade da pietas, e dando-lhe caráter outro de identificação nacional, alinhado aos ideais e valores de seu período. 2.3 Criação de um mito para a Inglaterra John Ronald Reuel Tolkien nasceu na cidade de Bloemfontein, África do Sul, no ano de 1892, e faleceu em Bournemouth, na Inglaterra, em 1973. Devido à frágil saúde do filho, que não lhe permitiu adaptar-se ao clima da África, Mabel, mãe de Tolkien, resolveu voltar à Inglaterra levando-o junto de seu irmão mais novo, Hilary. Pouco depois da partida, quando Tolkien tinha quatro anos, seu pai, Arthur, faleceu de febre reumática, e sua mãe decidiu se mudar para Sarehole, uma pequena cidade na zona rural, perto de Birmingham, para criar os filhos sozinha. Após a morte de seu marido, Mabel converteu-se ao catolicismo juntamente de sua irmã May, uma decisão que foi duramente contestada por sua família, que era metodista. Apesar das objeções, ela permaneceu fiel a sua fé e educou seus filhos na religião recém- abraçada (Carpenter, 2018, p. 19–38)23. Aos quatro anos Tolkien já sabia ler e escrever. A paixão devotada pelos desenhos, pelos idiomas, pela literatura e pela caligrafia foi, de modo geral, incentivada por sua mãe, que o iniciou em latim, francês e na leitura de contos de fadas. Além da educação, Mabel também incentivava os filhos a explorarem os arredores do campo onde moravam. Como Sarehole era afastado da zona urbana, seu ambiente era como um verdadeiro paraíso natural: no lugar de ruídos de carros, havia o ruído do rio e do moinho que ficava a sua margem; no lugar da poluição das fábricas, havia o vento limpo, que agitava as plantas e as copas das árvores tão amadas por Tolkien desde a infância. Os poucos anos que passou com sua família nesse lugar seriam, como ele mesmo afirmaria já mais velho, os mais importantes de sua formação (Carpenter, 2018, p. 39). Aos oito anos, ele passou a frequentar a King Edward’s School, em Birmingham, Inglaterra, onde teve contato com o grego e o inglês medieval. A partir daí, seu contato com as línguas foi-se tornando cada vez mais variado e seus professores o encorajavam no estudo da linguística clássica e dos princípios gerais da linguagem. Tudo ia bem até abril de 1904, aos seus 12 anos, quando sua mãe foi hospitalizada com diabetes e faleceu cinco meses depois. Desde então, ele e seu irmão ficaram sob a tutela do padre católico Francis Morgan, amigo de 23 A maioria das informações biográficas sobre Tolkien mencionadas neste tópico é baseada em Humphrey Carpenter (2018), uma referência fundamental para a compreensão da vida e obra do escritor. 39 Mabel, que, assim como ela, também teve papel significativo na fé e na formação de Tolkien, até sua maioridade aos vinte e um anos (Carpenter, 2018, p. 39–46). Em 1910, Tolkien obteve uma bolsa para estudar Inglês na Universidade de Oxford, Exeter College, onde permaneceu até sua maioridade. Lá concentrou-se no estudo de idiomas, literatura e filologia. Em seus primeiros anos em Oxford, Tolkien conheceu o professor Joseph Wright, professor de filologia, que lhe transmitiu o entusiasmo pela disciplina. Já fascinado pelo anglo-saxão e pelo inglês medieval, através dos quais tivera contato com os antigos poemas Beowulf (XI d.C.) e Sir Gawain and the Green Knight (XIV d.C.), Tolkien interessou-se pela filosofia e gramática finlandesas após conhecer o Kalevala (1835), uma compilação de poemas que é o principal repositório da mitologia da Finlândia. O estudo da gramática finlandesa, a partir do Kalevala, teve um impacto tão significativo em seu processo de criação de línguas, iniciado desde a infância, que Tolkien passou a criar uma língua particular, muito influenciada pelo finlandês, a qual ele mais tarde chamou de Quenya ou “Alto-Élfico”. Essa é uma das várias línguas inventadas por ele e que foi implementada no universo ficcional do Legendarium (Carpenter, 2018, p. 72–86). A partir daí, germinaria na mente do autor a ideia de fornecer à Inglaterra uma mitologia parecida com o que o Kalevala fornecera à Finlândia: Sentia que era “um passatempo tão louco” e não esperava encontrar um público para ele. Ainda assim, às vezes escrevia poemas nela [língua inventada] e, quanto mais trabalhava com a língua, mais sentia que precisava de uma “história” que lhe desse sustentação. Em outras palavras, um idioma não podia existir sem uma raça de pessoas que o falasse. Estava aperfeiçoando a língua; agora tinha de decidir a quem ela pertencia (Carpenter, 2018, p.108, grifos nossos). Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, Tolkien continuou seus estudos na Inglaterra, mas foi eventualmente enviado para o treinamento militar e depois para o front francês, onde participou da Batalha de Somme (1916), sendo posteriormente dispensado em razão de ter contraído a febre de trincheira. As experiências de Tolkien durante a Primeira Guerra Mundial influenciaram fortemente sua obra futura. Ao passo que a paisagem amistosa e verde do Condado foi provavelmente inspirada nos campos de Sarehole, onde viveu quando criança, o cenário obscuro, a terra infértil, má cheirosa e pútrida de Mordor, arduamente desbravada por Frodo Bolseiro e Samwise Gamgi, em muito se assemelha ao cenário devastador que só uma guerra poderia oferecer (Polachini, 1984, p. 5). Após retornar à vida civil, ainda convalescendo da doença, em 1917 Tolkien deu um início concreto à mitologia necessária para fazer suas línguas ganharem vida, intento imaginado por ele desde o estudo do Kalevala. Começou, então, a escrever um relato, ao que chamou de The Book of Lost Tales (O Livro dos Contos Perdidos), o pontapé inicial para o que seria mais tarde O Silmarillion: 40 As primeiras “lendas” que compõem O Silmarillion falam da criação do universo e do estabelecimento do mundo conhecido, que Tolkien, relembrando a Midgard nórdica e as palavras equivalentes no inglês arcaico, chama de “Middle-earth” [Terra-média]. Alguns leitores interpretam isso como uma referência a outro planeta, mas Tolkien não teve tal intenção. “A Terra-média é nosso mundo”, escreveu (Carpenter, 2018, p. 129, grifo do autor). Além de voltar com seus estudos e projetos pessoais após a guerra, Tolkien trabalhou na elaboração do New English Dictionary, atualmente conhecido como Oxford English Dictionary. Após a conclusão do dicionário, ele assumiu o cargo docente como professor de Inglês, na Universidade de Leeds, Yorkshire (Carpenter, 2018, p. 141–144). Em Leeds, Tolkien colaborou de forma muito produtiva com E. V. Gordon, renomado acadêmico britânico especializado em estudos medievais, com foco particular em língua e literatura anglo-saxônicas. Juntos publicaram uma nova edição do poema medieval Sir Gawain and the Green Knight, com o qual Tolkien já tivera contato em seus anos como estudante de Oxford (Carpenter, 2018, p. 147). Ao longo de sua carreira acadêmica, também publicou traduções de outros poemas clássicos da literatura inglesa, como Sir Orpheo (XIII d.C.) e Pearl (XIV d.C.) (Carpenter, 2018, p. 194–195). Por volta de 1926, começou a traduzir o poema anglo-saxão Beowulf, que levou muitos anos de revisão e refinamento, sendo publicado postumamente apenas em 2014. Enquanto isso, a escrita das histórias do The Book of Lost Tales continuava. Nessa época, Tolkien já tinha quatro filhos e sua função como pai foi de grande incentivo para sua criação literária. Além do apoio e opiniões dos amigos escritores — entre eles C. S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia [The Chronicles of Narnia, 1950–1956] — com os quais formara um grupo informal, os Inklings, e no qual discutiam literatura e suas produções individuais, Tolkien passou a escrever contos infantis para seus filhos. Foi no ano de 1928, um pouco antes da formação do grupo, que ele descobriu que uma de suas histórias infantis fazia parte da grandiosa Terra-média de sua mitologia: sentado à janela do gabinete enquanto corrigia provas, topou com uma página em branco e nela escreveu “Numa toca no chão vivia um hobbit” (Carpenter, 2018, p. 235–236, grifos do autor). Curioso com o que seria esse tal “hobbit”, buscou descobrir mais sobre ele e seu modo de vida enquanto escrevia. A ideia de descobrir uma história, e não meramente inventá-la, é característica do imaginário tolkieniano, e o processo de escrita de O Hobbit se deu na “descoberta” do que estava oculto em sua imaginação: As próprias histórias eram o ponto principal. Elas surgiam em minha mente como coisas “determinadas” e, conforme vinham, separadamente, assim também as ligações cresciam. Um trabalho cativante, embora continuamente interrompido (especialmente porque, mesmo à parte das necessidades da vida, a mente esvoaçava para o outro polo e esgotava-se na linguística); porém, sempre tive a sensação de registrar o que já 41 estava “lá” em algum lugar, e não de “inventar” (Tolkien, 2006a, p. 243–244, grifos nossos). A narrativa, iniciada como mera diversão, foi incorporando elementos da mitologia de Tolkien. Inicialmente o autor não almejava ambientar o hobbit na Terra-média, mas foi o que descobriu em sua imaginação. Embora não explicitamente nomeada em O Hobbit, a Terra- média é sugerida por meio de referências a lugares e personagens que remontam aos contos d’O Silmarillion (ainda em desenvolvimento naquela época). Mesmo assim, o autor não abandonou o estilo dirigido aos leitores infantis e, em 1937, a obra ganhou vida nas livrarias (Carpenter, 2018, p. 248). Quem vivia numa toca