� ������������������ � ���UNIVERSIDADE�ESTADUAL�PAULISTA� FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CAMPUS DE MARÍLIA LUCIANE SIMÕES DE ABREU PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DA ESTUDANTE NEGRA MARÍLIA 2009 LUCIANE SIMÕES DE ABREU PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DA ESTUDANTE NEGRA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Campus de Marília, para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais (Área de Concentração:Antropologia). Orientadora: Profº. Dra. Claúde Lepine MARÍLIA 2009 Abreu, Luciane Simões de. A162 Práticas pedagógicas e a formação identitária da estudante negra / Luciane Simões de Abreu. – Marília, 2009. 86 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2009. Bibliografia: f. 83- 86 Orientador: Profa. Dra. Claúde Lepine 1. Lei 10.639/03. 2. Discriminação em educação - Brasil. 3. Racismo. 4. Estudante negra. 5. Práticas pedagógicas. I. Autor. II. Título. CDD 379.260981 LUCIANE SIMÕES DE ABREU PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DA ESTUDANTE NEGRA BANCA EXAMINADORA Orientador(a):........................................................................... Prof. Dr. Claúde Lepine 2º Examinador:.......................................................................... Prof. Dr. Mauro Leonel 3º Examinador:......................................................................... Prof. Sebastião de Souza Lemes Suplentes:.................................................................................. 1) Prof. Edemir de Carvalho 2) Prof. Marcos Alvarez (USP) Este trabalho eu dedico à minha Mãe, que me ensinou que as pedras no caminho não seriam suficientes para deter minha caminhada. Agradecimentos Primeiramente a Claude, pela dedicação com a qual sempre orientou minha pesquisa, que fora mais que uma orientadora, uma segunda mãe, meu eterno carinho. À Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília, instituição sine qua non ao meu desenvolvimento pessoal e científico. A todos os docentes desta unidade universitária, pela instrução, aos funcionários pelo serviço prestado. Aos meus irmãos, em especial a Simone, maior incentivadora, nunca esquecerei sua orientação. Aos meus amigos que sempre terão meu carinho. A todos que direta ou indiretamente auxiliaram a consecução deste feito. Obrigado a Todos!!! RESUMO A mulher negra, desde sua mais tenra idade, é amplamente discriminada em nossa sociedade, onde se depara com entraves em qualquer âmbito das relações sociais. Como pontuam alguns teóricos, ela se defronta inicialmente no ambiente escolar com tais entraves. Nesse sentido, considerando a escola como formadora de personalidades e o período escolar do 3º ao 4º ciclo do ensino fundamental, como o momento no qual o contato com o mundo da leitura e escrita já deve estar constituído e sobretudo por estarem adentrando a fase da pré-adolescência, verificamos se as práticas pedagógicas desse nível de ensino contribuem de modo afirmativo para a formação da identidade da estudante negra. Averiguamos, contudo o fazer pedagógico dos docentes, que nesse nível de ensino lecionam, quanto à aplicação do que fora sancionado pela Lei 10.639/03 e pelo Parecer CNE/CP 003/2003, (que foi em março de 2008 alterada pela Lei 11.645, com a inclusão da temática indígena) que visam obter sobretudo, uma educação para a igualdade das diferenças étnico-raciais. Palavras-chave: Lei 10.639/03, preconceito racial, discriminação, práticas pedagógicas, estudante negra, identidade Abstract: The Black woman, since his early age, is widely discriminated in our society, where woman faces obstacles in any Field of social relations. As punctuated by some authors, she faces barriers in the school environment. In this sense, considering the school as a former of personalities and the 3 of the 4 th cycle of basic education, as the moment in wich the contact with the world of reading and writing should already be set up and especially for being entering the stage of pre-adolescence, it has verified if teaching this level of education in order to contribute to the formation of the black student identity. We investigate, but the teacher’s work, that teaching at this level of education, on the application of wich was sanctioned by Law 10639/03 and Opinion CNE/CP 003/2003, (wich was in March 2008 amended by Law 11645, with the inclusion of indigenous issues) which aim to get above all an education for equality of the ethnic-racial differences. KEYWORDS: LAW 10.639/03, RACIAL PREJUDICE, RACIAL DISCRIMINATION, PEDAGOGICAL PRATICE, BLACK STUDENT, IDENTITY. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................09 CAPÍTUL I: PESQUISA NA ESCOLA EE. PROFº ISALTINO DE ALMEIDA......................................................................................................................14 CAPÍTULO II: RACISMO, BRANQUEAMENTO E EXCLUSÃO.......................39 CAPÍTULO III: REALIDADE ESCOLAR, RACISMO E IMAGINÁRIO SOCIAL..........................................................................................................................53 3.1 LEI 10.639/03, Parecer CNE/CP/003/03 (alterada recentemente pela Lei 11.645) e sua aplicação no ensino brasileiro................................................................55 3.2 Lei e Formação docente..........................................................................................59 3.3 A educação à serviço da elite..................................................................................62 3.4 Lei10.639/03 entre o mito e a realidade:................................................................66 CAPÍTULO IV: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA ESTUDANTE NEGRA ..........................................................................................68 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................80 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................83 INTRODUÇÃO Meu interesse pela questão da aplicação da lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003 que manda incluir no ensino público temas relacionados ao negro brasileiro, a sua história, a sua condição sócio-econômica, a sua cultura, advém do meu questionar das relações raciais em nosso país. Sabemos que a questão racial brasileira ainda não está resolvida. As estatísticas divulgadas por Soares (1997) mostram que as condições de vida da maioria da população negra, sobretudo no caso das mulheres, continuam inferiores às da população branca no que diz respeito ao nível de escolaridade, de emprego e salário, saúde, esperança de vida, apesar do desenvolvimento econômico alcançado pelo país nas últimas décadas. A escola, que deveria fornecer às crianças e jovens uma formação para a cidadania e para a aceitação das diferenças, não consegue desempenhar a contento sua missão. Educadores com sobrecarga de aulas, frequentemente mal preparados, salas cheias, muitas vezes instalações precárias, crianças com dificuldades de apreensão e assimilação dos conteúdos apresentados, métodos pedagógicos e material didático inadequados, fazem da escola um ambiente onde reina a violência e a falta de envolvimento dos alunos no processo de aprendizagem. Será que nesse contexto o preconceito racial não continua se manifestando e reproduzindo? Será que as aulas de história continuam transmitindo a imagem do negro escravizado e maltratado e mostrando o negro em papéis subalternos? Será que se fala alguma coisa, como manda a lei, sobre as civilizações africanas de onde provinham esses escravos, sobre os conhecimentos, as artes, as técnicas que eles trouxeram com eles? O governo Fernando Henrique Cardoso admitiu que o Brasil não era uma democracia racial, que existia discriminação racial em nosso país e reconheceu a necessidade de se adotar políticas públicas visando reparar esta situação. Surgiu assim a lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996 que estabelecia as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Sob o governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, a lei 10.369 de 9 de janeiro de 2003 estabeleceu a obrigatoriedade na rede de ensino público do país, da inclusão de temas referentes à História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Em março de 2008, finalmente, esta lei foi alterada pela lei 11.645 que estendeu esta obrigatoriedade ao ensino da temática indígena e também no ensino particular. 9 Trata-se de uma conquista do movimento negro e de um momento extremamente importante da história do Brasil em que o país, mais de um século depois da Abolição da escravatura, resolveu enfim desmascarar o preconceito dissimulado, proibir as manifestações racistas, liquidar as seqüelas de 400 anos de tráfico e de escravidão negra. A lei deveria contribuir - junto com outras políticas afirmativas - para mudar este cenário de desigualdade racial, valorizar o negro, recompor sua auto-estima, reduzir o preconceito racial e a discriminação, permitindo o desenvolvimento de uma verdadeira democracia racial. A aplicação da referida lei deveria contribuir para a formação de valores, de posturas e atitudes que eduquem estudantes orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial, de maneira que os descendentes de africanos, indígenas, europeus, asiáticos, possam interagir na construção de uma sociedade democrática, com igualdade de direitos, e que possam reconhecer-se na cultura nacional e expressarem suas visões próprias.do mundo. Porém, após seis anos de vigência, desconhecemos a realização de amplas pesquisas sobre seu impacto na área da educação. Considerando que o ambiente escolar deve ser o lócus da produção do saber responsável pela formação da personalidade de indivíduos conscientes, livres de preconceitos, abertos à diversidade cultural e étnica, resolvemos investigar como se dá na prática esse processo educativo. A presente pesquisa, portanto, tem como objetivos, investigar como está sendo aplicada a obrigatoriedade da inclusão, no ensino fundamental e médio, de temáticas visando construir uma nova imagem da população negra, investigar se, ao concluir os quatro anos de estudo no ensino fundamental, os estudantes apresentam-se abertos à diversidade étnica, ou se revelam em suas práticas o preconceito racial e atitudes discriminatórias, verificar se a escola contribui de modo positivo nesse processo, e, finalmente, investigar como está sendo construída a identidade das estudantes negras, já que a falta de confiança em si e sentimentos de inferioridade contribuem para dificultar a inserção social. O trabalho foi realizado numa escola pública da cidade de Marília, no estado de São Paulo, a escola Prof. Isaltino de Almeida, que se localiza no bairro Aeroporto, um bairro de classe média, junto a professores e alunos do 3º e 4º ciclo do ensino fundamental. Infelizmente não tivemos tempo nem condições de estender a pesquisa a outras escolas para fins comparativos. 10 Procuramos observar como operam as relações professor/aluno, aluno/aluno, e verificar se as práticas pedagógicas atendem ao que foi promulgado pela Lei 10.639/03 e pelo Parecer CNE/CP003/03, que visam, sobretudo obter uma educação para a igualdade nas relações étnico- raciais. Resolvemos trabalhar apenas com as meninas, já que a mulher negra é a maior vítima do preconceito racial e da discriminação, sofrendo desde cedo os efeitos da intersecção da desigualdade de gênero, de raça e cor, e não raro também do nível sócio-econômico, uma vez que grande parcela da população negra feminina encontra-se nas classes sociais menos favorecidas. Essas estudantes negras de hoje serão as mulheres negras de amanhã, trazendo consigo todos os estigmas que sofreram desde a infância. Procuraremos perceber qual a visão de si e do mundo essas meninas estão construindo numa sociedade que tenta inculcar em seus membros a crença numa falsa democracia racial, e que supervaloriza padrões de beleza europeus. Será que a ação pedagógica é capaz de fornecer elementos para a libertação dos preconceitos, contribuindo assim para a formação de uma identidade afirmativa da estudante negra? De acordo com Santos, (1983, p.18) a descoberta de ser negra é mais que a constatação do óbvio (aliás o óbvio é aquela categoria que só aparece enquanto tal depois do trabalho de se descortinar muitos véus). Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades. Assim sendo fui buscar inicialmente, em bases históricas, explicações para a atual situação da mulher negra. Após o levantamento da bibliografia, leitura e análise bibliográfica referente à temática escolhida, iniciei a pesquisa empírica. Primeiramente escolhi como objeto os educadores do nível de ensino citado. Foram entrevistados cinco educadores da escola. Construímos um questionário; no entanto, sua aplicação deu-se em forma de diálogo de modo que esses docentes pudessem ficar à vontade, livres para se expressar. Procuramos investigar se as práticas pedagógicas na escola contribuem de modo afirmativo para a formação da identidade das alunas negras. Em um segundo momento, coletamos dados qualitativos através de conversas informais com doze alunas, negras e brancas. Posteriormente conversei apenas com as meninas negras de 11 todas as turmas do 3º ao 4º ciclo, porque acredito que quando elas se encontram entre si, elas ficam mais à vontade para falar. . Selecionei as meninas deste nível de ensino, pois estas séries correspondem ao momento no qual o contato com a leitura e com o mundo da escrita já deve estar constituído, e ao período no qual as estudantes iniciam a fase da pré-adolescência. Optei por esse nível de ensino, também, pois é no início da fase da pré-adolescência que os conflitos pessoais, a questão identitária são postas em cheque. Assim, procurei compreender como se dá esse processo de formação identitária da estudante negra. O método utilizado foi a pesquisa empírica, qualitativa. Como já foi dito, utilizei entrevistas não estruturadas, questionários que serviram de roteiro para conversas informais, além da observação das salas de aula. Estou ciente, portanto, que este é um trabalho de interpretação do discurso das pessoas. Logo, tudo isso consiste tão somente em interpretação das interpretações dos sujeitos envolvidos na pesquisa: as estudantes, os educadores, a pesquisadora. Como suporte metodológico utilizei o quadro conceitual elaborado pelos seguintes autores: Kabengele Munanga (1996, 1999, 2003) que discute políticas afirmativas e o conceito de democracia pluriétnica e pluricultural, Eliane Cavalleiro (2001) que analisa as manifestações do preconceito na escola, Gislene Aparecida dos Santos (2002) que reconstrói a construção do racismo no pensamento ocidental, Neusa Santos Souza (2001) que analisa o impacto do preconceito sobre a subjetividade da mulher negra, Nilma Lino Gomes (2005) que estuda a prática educativa dos professores, Florestan Fernandes (1972) que produziu na segunda metade do século passado análises fundamentais sobre a situação sócio-econômica do negro na época e sobre as manifestações do preconceito racial na sociedade brasileira, Rosangela P. Brito (1997) que analisa a tripla discriminação que incide sobre a mulher negra, Oracy Nogueira (1985) que descreve as particularidades do preconceito racial brasileiro. Estes autores forneceram as perspectivas e os principais conceitos que fundamentam nosso trabalho. No capítulo I. “A pesquisa na Escola E.E Profº Isaltino de Almeida”, farei um relato dos primeiros contatos com a escola, do percurso para conseguir uma autorização para aplicar a minha pesquisa; descreverei os dados coletados, (estando alicerçada, apoiada com os dados gerais da pesquisa bibliográfica) que analisarei a seguir. 12 No capítulo II. “Racismo, Branqueamento e Exclusão”,apresentarei um breve percurso das idéias que construíram no imaginário social a idéia de inferioridade do negro e de sua relação com a reprodução da desigualdade racial, e do desejo interiorizado do branqueamento. No capítulo III. “Realidade Escolar, Racismo e Imaginário Social”, abordarei a questão das manifestações do preconceito racial na instituição escolar, da maneira pela qual ele opera, é internalizado e reproduzido no imaginário de nossas crianças e adolescentes, entendendo que a exclusão escolar é o início da exclusão social do negro. Farei também a verificação da aplicação da lei 10.639/03 e do Parecer CNE/CP 003/2003 no interior da escola. No capítulo IV, “A formação da identidade da estudante negra”, analisarei o processo de formação identitária das estudantes negras, estando alicerçada na literatura e nos resultados da pesquisa realizada na escola E.E. Prof. Isaltino de Almeida, a influência da escola na construção da identidade destas alunas. Será que a instituição escolar apresenta subsídios para a formação afirmativa da identidade da menina negra? Nas “Considerações Finais. Reflexão sobre as práticas pedagógicas, a aplicabilidade da Lei 10.639/03 e do Parecer CNE/CP003/03”, reflito sobre os efeitos da lei na escola e sua relação com o estabelecimento de uma educação anti-racista, criadora de relações abertas à pluralidade cultural-étnica, e que possibilite a construção de uma identidade negra afirmativa. 13 C A P Í T U L O I PESQUISA NA ESCOLA ISALTINO DE ALMEIDA A adolescência, enquanto período de uma nova consciência de si próprio, acarreta uma aguda e não raro dolorosa, consciência de pertencimento racial. Ela também marca (...) nova postura diante de si próprio, enquanto raça e diante de seus iguais. Na adolescência, negros que procuravam negar ou ocultar seu pertencimento racial são postos em cheque. (SANTOS, 1999, p.65) Primeiros contatos Entre os meses de agosto e setembro de 2007, fui a Marília para fazer o trabalho de campo que foi realizado na escola pública estadual Prof. Isaltino de Almeida, localizada em um bairro de classe média da cidade de Marília, e funciona atendendo das 5ª à 8ª séries, turno diurno1. A cidade de Marília, cujo nome foi inspirado no poema de Thomaz Antônio Gonzaga “Marília de Dirceu”, está localizada no centro-oeste do Estado de São Paulo, sobre o antigo aldeamento dos índios Coroados que ocupavam no início do século XX a cabeceira do Ribeirão do Pombo. Marília é hoje uma cidade em pleno desenvolvimento, com destaque no ramo alimentício. Sua população é estimada em 223.454 habitantes2. No ano de 2005 a população urbana apresentava 211.477 e a rural com 6.510 habitantes. A população negra da cidade, demograficamente significativa, permanece quase invisível, relegada aos bairros mais pobres. Infelizmente não temos dados numéricos relativos a esta população. De acordo com convenções da ONU, Marília é uma cidade de porte médio. Apesar de relativamente nova, a cidade de Marília já sofreu variações demográficas muito significativas. É uma cidade típica de migrações 1 O nome da escola, bem como a identificação de todos os envolvidos na pesquisa de campo (alunos, professores) foram modificados por motivos éticos. 2 Estimativa IBGE 2008. www.nossosaopaulo.com.br/Reg_04 14 intra-urbanas e regionais onde ocorre a transferência de pessoas, mas também de necessidades, problemas, valores e expectativas. Segundo o IBGE, no período entre 1940 a 1991, o crescimento populacional foi de 133%. Esse crescimento desacelerou e na década de 1990 a média anual foi de 2,78%.De acordo com a fundação SEADE, entre 2000 e 2006, a taxa de crescimento caiu para 1,98% ao ano. Os indicadores de crescimento populacional apontam para a tendência da cidade de Marília em atrair população dos municípios circunvizinhos. Iniciei a pesquisa na escola Prof. Isaltino de Almeida no mês de agosto de 2007; entretanto, deparei-me antes com algumas dificuldades para conseguir a autorização da escola para a aplicação da minha pesquisa. Foram sete escolas que visitei e onde conversei sobre a possibilidade de realizar o trabalho. Obtive respostas negativas em seis instituições onde a direção mostrou-se categórica ao afirmar que era impossível realizar a pesquisa. As justificativas eram sempre as mesmas: na escola já havia muitos pesquisadores de outras universidades e, por essa razão não existia a possibilidade de aceitar mais um. Foram diversas tentativas, até que ao comparecer na escola Isaltino de Almeida, tive uma melhor recepção. Já estava na realidade desanimada em razão das outras tentativas em vão e com a recepção que obtinha em cada escola visitada. Uma amiga minha que fazia um estágio numa das escolas que visitei, informou-me que não existia nenhum pesquisador na mesma, e que não entendia o porque da diretora ter-me dito que já existiam vários realizando pesquisas ali. Analisando os motivos dessas negativas eu me senti uma fiscal, e na realidade era desse modo que me tratavam, como se eu fosse investigar, para multar, punir alguma possível irregularidade. Outro fator que me fez desanimar, foi o descrédito para comigo, tanto que em três escolas, solicitaram comprovantes de que eu era de fato estudante, pesquisadora. Foi com entusiasmo que realizei o trabalho na escola Isaltino de Almeida, pois dentre as sete escolas que procurei, foi a única onde obtive a permissão para pesquisar. O primeiro contato com a escola deu-se via telefone; entrei em contato com a direção da escola, identifiquei-me e perguntei à diretora se eu poderia fazer a aplicação de uma pesquisa naquela instituição. Neste primeiro contato, tive boa impressão; ela foi solícita, agradável. Deixei programada a minha primeira visita à escola para o dia seguinte. Ao chegar à escola, conversei com a diretora que pediu que eu apresentasse meu projeto de pesquisa. Após esses instantes, ela autorizou que eu entrasse na escola e fizesse os primeiros 15 contatos com os professores. Assim foi; no horário de intervalo dos professores consegui conversar com dois deles. Percebi que o intervalo era pequeno, cerca 40 minutos, e me dispus a voltar outros dias para que minha presença não fosse um incômodo para eles. Na semana seguinte, voltei à escola, pois estava residindo nesse momento em uma cidade vizinha de Marília, chamada Assis. Assim, para poder me deslocar de uma cidade para outra eu tinha gastos que pesavam em meu orçamento. Desse modo, nos dias em que me programava para ir até a escola, buscava obter o maior número possível de informações, de forma eficaz, para que também não se cansassem da minha presença. Os professores Sendo assim, no primeiro contato com os professores, apresentei-me e perguntei se poderiam me ceder dez minutos de seus respectivos tempos. Nesse primeiro momento, optei por fazer da pesquisa algo informal, dialogando com eles sobre a Lei 10.639/03, racismo, relações raciais, práticas pedagógicas e formação de identidade. Foram minutos valiosos para minha pesquisa; eles ficaram a vontade para falar, e pude observar e colher dados relevantes. Conversei com o professor de História, Rodrigo, e com a professora Luciana, de Português. Nosso bate-papo ocorreu em uma sala de aula, porque a sala dos professores estava em horário de intervalo, portanto sem espaço, cheia. A Profa. Luciana A Professora Luciana, que leciona Geografia, desconhece a Lei 10.639/03 e acredita que na atualidade não existe preconceito e que são os negros que se discriminam uns aos outros. Para reforçar sua argumentação ela citou um fato ocorrido em sua sala, (5º série E) em que um aluno negro, por sentar no fundo da sala, estava com dificuldades para enxergar na lousa, quando outra aluna também negra, volta do banheiro e vai em direção à professora, para conversar com ela. O aluno negro que estava com dificuldades para enxergar na lousa o conteúdo passado pela professora, de repente, levanta e diz: “Saí daí sua macaca, não ta vendo que eu to copiando da lousa".Eu perguntei a ela, “e você interveio nesse contexto?” a professora me disse que sim, que pediu para o aluno negro não falar daquela maneira com sua coleguinha, porque apesar de ela ser negra, merecia todo o seu respeito. 16 Após esse comentário da professora Luciana, não fiz mais nenhum comentário a respeito do ocorrido, pois para mim, já havia percebido o seu posicionamento em relação à temática racial. Foi notório, para mim, o uso que ela fez da conjunção adversativa apesar no contexto de 'intervenção', que foi útil tão somente para reforçar preconceitos e desigualdades. No diálogo com os professores, eu iniciava o assunto e eles discorriam sobre o mesmo. Eles ficaram à vontade para expor seus respectivos pontos de vista. Percebi também que o fato de eu ser uma pesquisadora negra não os deixou incomodados sobre a temática a ser discutida. Ou melhor, minha presença não constituiu um entrave à colheita de informações, nem tão pouco para o debate. O Prof. Rodrigo O professor Rodrigo, que leciona História do Brasil, diz conhecer a Lei 10.639, a considera necessária, e disse que adotava uma prática pedagógica que buscava amenizar qualquer tipo de preconceito. Falou das dificuldades de relacionamento com os alunos do ensino fundamental, em todos os aspectos e disse que o fator preconceito dificultava a ação docente. É um professor que está na rede há 15 anos, e em toda a sala em que ele leciona ou lecionou, sempre esteve presente o preconceito, do qual as alunas negras eram as maiores vitimas, principalmente quando, acrescido ao fator racial, estava algum outro, como ser gorda por exemplo. O professor Rodrigo não entrou em maiores detalhes; não quis citar nenhum exemplo. Nesse instante, deu o sinal e ele teve que voltar ao trabalho. Após esse diálogo, agradeci aos professores, fui para casa e a partir desse instante, anotei todas as informações relevantes, pois o objetivo era que o diálogo fosse o mais espontâneo possível. Desse modo, após todas as conversas e observações realizadas, em casa sempre redigia as informações obtidas em cada dia pesquisado. Retornei à escola no dia seguinte e dessa vez entreguei um questionário aos professores, solicitando que me devolvessem na semana seguinte (porque gostaria que eles respondessem com calma, e assim eu poderia obter mais dados). Segue abaixo o questionário aplicado bem como os resultados da análise: 17 Questionário entregue aos professores: 1) Você conhece a Lei 10.639/03? 2) Qual a sua metodologia de trabalho com a temática racial? 3)Você já presenciou alguma situação de preconceito racial na sua sala da aula ou na escola? Você fez alguma intervenção? Como foi? 4) Eu poderia ter acesso ao seu planejamento curricular? 5)Quantos alunos negros têm em sua sala? Como é o aproveitamento, freqüência, rendimento deles na sala? Há alguma diferenciação? 6) E as relações raciais, entre professor/aluno, aluno/aluno: Como se opera na escola, na sala de aula? Respostas dos professores: A Profa. Naíra A professora Naíra que leciona na 5º série e também 8º série, ao responder ao questionário que eu propus, disse que desconhece a lei 10.639/03, que não possui nenhuma metodologia de trabalho com a temática racial, pois acredita que não há necessidade de um trabalho específico sobre isso. Portanto ela trabalha os conteúdos que estão propostos no plano de ensino de maneira igual, para cada série e para cada conteúdo, cada sala em que leciona. Ela informou que em quatro anos de trabalho na rede estadual de ensino nunca presenciou nenhuma atitude que ela chamou de "grandes discriminações", mas sim de "briguinhas de alunos" que, em sua opinião, são fases em que os alunos se encontram. Afirmou que a adolescência é uma fase difícil, e que temos que entender certas atitudes dos alunos. A partir da fala dessa professora percebi que é descompromissada com a proposta de uma educação para a igualdade das diferenças, não considera relevante trabalhar a temática racial no cotidiano escolar, e que também acredita que as manifestações preconceituosas entre os alunos são, como ela disse, coisas da idade, da fase adolescente pela qual eles estão passando. Ao fazer a análise do seu planejamento curricular, pude observar que ela de fato não contempla a temática racial em seus conteúdos, como ela mesma disse, "Não vi ainda nas escolas preconceito racial" e no diálogo que tive com ela, declarou inclusive que "isso é coisa que as pessoas colocam na cabeça, manias de perseguição, somos todos iguais, é bobagem essa coisa de achar que tem preconceito de raça". 18 Essa professora leciona em três 5º séries (A, B, C), ela me informou que na 5º série A, tem dois alunos negros e três meninas que ela chama de "mulatinhas". Na 5º série B, disse que há duas alunas negras e um aluno negro; na 5º série C, quatro alunos negros e uma aluna negra. Em relação aos rendimentos, fui informada que são similares, que os alunos negros e brancos se desenvolvem de modo similar, não havendo assim, segundo a professora, diferenças de produção por etnias. No que se refere às relações raciais, a professora me disse que entre os professores e os alunos a relação é amistosa, os professores procuram dar o melhor de si. Entre os alunos, ela me disse que às vezes eles se “estranham”, ocorrem briguinhas, mas ela considera isto normal, "coisas da idade". Há segundo ela, na 5º série B, um casal de namorados inter-étnico (a menina é "mulata" e o menino é branco); ao relatar esse fato, ela me disse que é mais uma prova de que é "uma bobagem esse negócio de preconceito, e que aqui em nosso país, não existe isso não". Ao analisar a fala dessa professora, percebi que ela acredita que vivemos em um país harmônico do ponto de vista das relações raciais, e com equidade social. O comportamento preconceituoso de alguns alunos para com outros não é visto por ela como um problema. A partir daí podemos perceber que a função da escola (a partir da análise da ação pedagógica desta professora), não vem sendo exercida, no momento em que teria que exercer o papel de formadora de personalidades, numa formação para a cidadania, como prescrevem os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). A escola é um espaço privilegiado para a promoção da igualdade e eliminação de toda a forma de discriminação e racismo. Entretanto, o preconceito e as manifestações de racismo são tratados como um problema do discriminado, sem incluir os discriminadores: os "privilegiados". Assim a fala da professora nos induz a concluir que o preconceito é algo que está no imaginário do negro, que ele mesmo se auto-discrimina, que ele mesmo se sente inferior, culpabilizado pela discriminação e pelas condições adversas de vida. Pude dessa maneira, tecer essas considerações a respeito da fala da professora, em função do questionário aplicado e também a partir de observações que realizei na escola e em suas aulas. 19 O Prof. Robson O professor de História, Robson, leciona na 5º série A e B, e também na 8º C. Respondeu no questionário que conhece a lei 10.639/03, que busca utilizar uma prática educativa de igualdade nas diferenças, sem homogeneização, mas sim a partir da valorização de cada grupo étnico e com respeito para todos. Ele citou um livro que gosta de utilizar em seu trabalho que é “Fé e Negritude”. Respondeu que já presenciou a prática do preconceito em várias salas, e que o mesmo se manifesta de maneira camuflada. Sua intervenção consiste em procurar esclarecer, mostrar que as diferenças estão aí para serem admiradas. Nas aulas de História, quando há algum gesto de preconceito dos alunos, ele se revela a propósito de regiões africanas, ou de imagens contidas nos livros. Disse que nessas ocasiões um olha para outro (geralmente é um aluno(a) branco(a) olhando para um negro, ou uma aluna negra) e começa a apontar para ele como se dissesse (e em algumas situações também dizem): esse é a tal pessoa ou imagem mostrada no livro, como pude presenciar ao assistir uma aula do professor. Ou seja, quando o professor fala da África, da escravidão negra e mostra por exemplo figuras do negro como escravo, como alguém que está em posição inferior, normalmente um(a) aluno(a) branco procura associar a um colega que também seja negro(a). Uma situação que presenciei na sala de aula, foi um aluno branco dizer que seu colega era o Zumbi dos Palmares, dando a seguir uma risada sarcástica. Percebi que o professor nem viu esse fato pois estava passando o conteúdo da aula na lousa. Nesse instante o aluno negro não comentou nada, apenas fez um gesto obsceno para esse colega de classe branco. A situação parou por aí, no entanto essa prática era comum, e poucas vezes o professor via o que estava se passando. Ou seja, o(a) aluno(a) que discriminava procurava ter essa atitude em momentos em que o professor não estava vendo. Isso nos faz pensar que a teoria de Florestan Fernandes segundo a qual o brasileiro tem preconceito de ter preconceito, é de fato aplicada. E na escola, os estudantes, desde as séries iniciais já dão provas que possuem essa prática e vão internalizando de maneira paulatina a idéia que o negro é inferior ao branco. No momento do intervalo comentei com o professor a respeito do ocorrido, e ele me disse que, muitas vezes, ele não faz nada porque esse tipo de trabalho, intervencionista, é altamente cansativo, que ele tem inúmeras salas, uma carga horária completa de aulas, que ele tem alunos que "não têm jeito", aí ele "larga mesmo". Nesse instante percebi que em algumas dessas 20 situações o professor fingia não ver a discriminação de um aluno para com outro, justamente pelo seu cotidiano de muito trabalho, pelo cansaço, como ele mesmo afirmou. Esse professor me contou que em 2007, ao defender uma aluna negra que havia sido extremamente humilhada por um aluno branco, ficou sabendo que este aluno a agrediu verbal e fisicamente na saída da escola. Disse que chamou seus pais na escola, e ao conversar com o pai do garoto, ele foi questionado sobre o que esta menina estava fazendo ao seu filho que o tirou do sério, entre outras perguntas. O professor me disse que o pai do garoto não estava preocupado com o que seu filho havia feito, mas com a razão pela qual este tinha sido chamado à atenção pelo professor, e com o que a garota negra havia feito ao seu filho. A partir daí o professor me disse que muitos alunos já vêm racistas de casa, que em casa, os pais já os ensinam a ter esse tipo de atitude, ou seja que era uma questão familiar, e que nesses casos ele já não vê alternativas de combate ao preconceito; por isso finge não ver certas atitudes. Analisando o planejamento curricular do professor, percebi que ele faz a inclusão da temática racial, de maneira implícita. Ele mesmo comentou comigo, que às vezes o acervo da biblioteca é precário, e incipiente, assim, ele muitas vezes traz material que ele prepara como textos auxiliares. Ele fez uma crítica aos livros de História disponíveis para o professor do ensino fundamental. Em seu planejamento curricular, ele faz uma divisão de conteúdos; na 5º série ele dá maior ênfase às diferenças de Trabalho Escravo e Assalariado; já na 8º série ele trabalha a maior parte do tempo com o tema Cidadania. No dia 20 de novembro, ele respondeu que no ano passado fez um trabalho com máscaras africanas, e depois uma aula expositiva, sobre os aspectos culturais e o porquê do Dia 20 de novembro. Na 5º A, tem quatro alunos negros, (sendo um menino e três meninas), na 5 º B tem dois alunos negros, na 8º A, tem duas meninas negras, na 8º B também dois (um menino e uma menina negra). É notório também que, independentemente da sala, quanto maior o nível de instrução, menor é a presença de alunos negros. Isso também é verificável nos níveis de instrução, nas pesquisas, estatísticas que comprovam essa constatação que fiz em minha pesquisa, ou seja, há no Brasil, diferenças de rendimento escolar entre negros e brancos. Podemos perceber que quanto maior é o número de anos de estudo, menor é a presença do negro. Em relação ao nível econômico, o professor respondeu que na 5º série A, tem uma aluna (que é negra) que é um 21 pouco mais abastada e apresenta um rendimento escolar melhor que os outros colegas negros. Na 8º série B, o aluno negro tem baixa auto-estima, e em sua disciplina geralmente tem dificuldades; falta às aulas quando o tema é Escravidão Negra. Já a aluna negra tem uma postura que ele chama de "superação", e suas notas ficam na média dos demais alunos. A Profa. Margarida A professora de Geografia, Margarida, respondeu que conhece a Lei 10.639/03, que sempre procura intervir quando percebe estar havendo qualquer tipo de manifestação de preconceito na sala. Ela relatou que na 6º série D ela fez um aluno pedir desculpas ao colega negro e disse a este que não se pode discriminar alguém pelo tom de pele. Esta professora ficou muito tempo de licença médica, e respondeu que não se preocupa em incluir a temática racial, que ela o faz em caráter informativo, em momento oportuno. Relatou ainda que um aluno perguntou-lhe se foi Machado de Assis que assinou a lei áurea. Ao ouvir essa pergunta do aluno, dialoguei com a professora a respeito. Ela me disse que tem aluno que é “burro” mesmo, que “não tem jeito”, por mais que os professores se esforcem; tem alguns que não "vão". Ou seja, de acordo com ela, há estudantes, que não progredirão intelectualmente, e nestes casos, após diversos esforços tomados na tentativa de auxiliá-los, a atitude que ela adota é excluí-los do processo de ensino/aprendizagem, já que fazem questionamentos inoportunos, que não apresentam rendimentos apropriados, que são como ela afirmou “burros”. Na 5º série F ela tem quatro alunos negros (um menino e três meninas negras), na 6º série C, dois alunos negros, que segundo ela, possuem traços mais fortes do "afro-imigrante". Afirmou que o aproveitamento escolar de negros e brancos é equiparado e ela fez elogios dos alunos negros que ela tem, “são negros, mas muito inteligentes e esforçados”. No dia 20 de novembro, a professora destacou que sempre organiza alguma atividade cultural em comemoração ao dia, sempre com apresentações de capoeira. No que se refere às relações raciais, a professora afirmou que são boas no geral, tanto dela com os alunos, como deles entre si, e que quando ocorre o caso de um discriminar o outro, seja qual for o tipo de discriminação, ela sempre intervém. Segundo ela, grande parte dos alunos 22 da 6º série já estão namorando, mas ela percebe que as meninas negras ficam mais sozinhas na hora da paquera; como ela disse, "as bonitinhas, já estão todas namorando". Foi possível observar que a professora Margarida se esforça para ter uma ação educativa anti-racista. No entanto, em suas falas, percebi que ainda carrega embutido em seu imaginário, o preconceito. Seja nas suas intervenções diante de práticas preconceituosas dos alunos, ou quando ela faz alusão às meninas que já estão namorando, na afirmação "as meninas negras ficam mais sozinhas, na hora da paquera, "as bonitinhas, já estão todas namorando", até mesmo no instante em que ela disse que a capoeira era sempre apresentada no dia 20 de novembro, o que revela, que segundo essa visão, a cultura afro-brasileira, se limita à capoeira, ao samba, à feijoada, entre outros estereótipos aplicados à população negra; e também no momento em que ela afirma que o aproveitamento dos alunos, independentemente da etnia, é similar, que tem alunos que apesar de serem negros, são inteligentes e esforçados (ou seja, ser negro, em sua visão é no mínimo problemático). Após os contatos com a direção, a secretaria da escola, com os professores, após as observações realizadas na escola e em sala de aula, após receber as respostas aos questionários e as falas dos professores, direcionei a pesquisa aos alunos. A diretora me autorizou a conversar com eles na hora do intervalo das séries que eu desejava pesquisar. Desse modo procurei chegar na escola no início das aulas para poder observar e analisar desde a chegada dos alunos, a formação das filas (o que ocorria em algumas séries), o café que era distribuído pelas merendeiras, a merenda que era dada no intervalo, as aulas, os professores em seus momentos de intervalo, o que eles comentavam na sala de professores sobre prática pedagógica, sobre os alunos, sobre as situações vivenciadas em sala de aula, o relacionamento dos alunos entre si bem como com os agentes educacionais. As alunas No dia 14 de setembro de 2007, numa manhã chuvosa, com dificuldades para me locomover para a escola, cheguei às 8:50, horário de intervalo das 5º séries, e pude selecionar alunas destas séries para conversar. A inspetora, chamada Lurdes, me disponibilizou uma sala para eu poder conversar com os alunos. 23 Chamei em primeiro lugar as alunas brancas e negras das 5º séries. Não foi necessário me apresentar porque elas já estavam habituadas a me ver na escola. Quando eu ia para suas respectivas salas, elas procuravam sempre conversar comigo; gostavam de falar de suas paqueras com garotos, de alguns professores. Eu disse que gostaria de 'bater um papo' com elas. Nesse instante percebi que elas ficaram à vontade para falar comigo, não me viram como uma "fiscal", ou alguém que fosse avaliá-las de algum modo. E assim foi; conduzi o diálogo, a pesquisa de maneira informal, descontraída. Pude perceber que o processo foi interessante para ambas as partes. Preparei um questionário e fui perguntando, descontraidamente, de modo que elas se sentissem à vontade para falar. Para as alunas, fiz as seguintes questões: Questionário apresentado às alunas : 1) Qual seu nome? 2) Qual sua série? 3) Como você se define fisicamente? 4) Qual ator, atriz, pessoa famosa você considera bonito(a), porquê? 5) Você se acha bonita? 6)O que você mais gosta e menos gosta em você? 7) Como os professores trabalham os temas relacionados à escravidão, racismo, história da África? 8) Como é a atuação deles diante de uma situação de racismo? 9) As relações raciais na escola, como se dão? Você já presenciou alguma manifestação de preconceito na escola, na sala de aula, foi feita alguma intervenção? Respostas e análise do diálogo com as alunas das 5º e 8º séries: Conversei, com todas as garotas das 5º e 8º séries; vou descrever abaixo os relatos que mais se destacaram, pois se descrevesse todos teria que me alongar demasiado, já que são seis salas de 5º, e cinco de 8º séries. Reuni inicialmente todas as garotas brancas e não brancas. Em um segundo momento, num outro dia, reuni apenas as alunas negras das 5º e 8º séries para conversar. 24 Os diálogos eram abertos, embora tivesse previamente feito um roteiro selecionando as questões que faria às alunas, informais para que elas pudessem ficar à vontade, espontâneas nas suas respostas. A escola, inclusive, me disponibilizou uma sala para que eu pudesse fazer minha pesquisa. Chamava-as para a sala que havia sido disponibilizada para mim, conforme a liberação dos professores. Segue abaixo o diálogo mantido com as garotas das 5º séries. Camila À primeira pergunta, quem respondeu foi Camila, que está na 5º série A. Ela se definiu como "normal", nem bonita nem feia. Tem cabelos castanhos, é branca, de estatura mediana para sua faixa etária. A atriz que ela disse considerar mais bonita é Angelina Jolie, por ela ser "linda, ter tudo em cima", ser segundo ela, perfeita. O ator que ela acha maravilhoso é o Brad Pitt, por ser como ela mesma afirmou perfeito: lindo, alto, loiro e de olhos claros. O que ela mais gosta nela é o cabelo, mas ela está se achando um pouco gorda, acima do peso. Gostaria de ter três quilos a menos para se sentir bela. Ela me disse que nas aulas de História, sobretudo as que abordam o tema escravidão, sempre ocorrem comentários preconceituosos por parte de alguns alunos. Ela me disse que o professor "manda eles pararem” e diz a eles que "é racismo e que vão para diretoria se continuarem a falar essas coisas". Segundo ela o professor não tem que ficar só ameaçando, tem que pôr para fora mesmo. Ela acrescentou que o professor de inglês diz palavrões em sala de aula Nesse momento todas as alunas, entraram na conversa e foram categóricas em dizer que era de fato verdade, que o professor de inglês dava maus exemplos na sala de aula, que sempre falava palavrões. Ela acredita que isso contribui para que alguns alunos fiquem como ela afirma, “do jeito que estão”. Essa frase da aluna se refere ao mau comportamento de alguns alunos, em situações em que eles desrespeitam seja os agentes educacionais, seja os alunos. Grace Grace, está na 5º série F, se considera bonita, apenas não gosta de suas pernas por considerá-las finas. Ela é negra, tem cabelos compridos, alisados. 25 A atriz que ela acha mais linda, é Taís Araújo. Ela me disse que, inclusive, se acha parecida com a atriz. Ela me falou ainda que desde a infância a mãe dela sempre a educou bem, valorizando sua beleza, mas que ela vê muitas meninas negras que se acham feias só porque são negras, meninas que segundo ela, não se valorizam. Um ator que ela admira por seu talento e beleza, é o Bruno Galiasso da rede Globo. No ano passado, nas despedidas de fim de ano em que os alunos dão suas camisetas uns aos outros para escrever frases, mensagens de boas festas, despedidas, desejos bons uns aos outros, um colega fez em sua camiseta um símbolo do nazismo em sua camiseta. Ela ficou bravíssima e brigou com o garoto, mas me contou que na escola nada foi feito; o professor apenas disse que o aluno deveria pedir desculpas a ela. Ao contar isso, ela me falou: "Como se fosse assim: discriminou, pediu desculpas e pronto tá tudo bem", criticando a atitude do professor. Em casa a sua mãe disse que ela era uma garota incrível, que o garoto era um imbecil e que não era para ela se importar com isso. Essa aluna me disse que já sofreu preconceito em sala de aula, que ela foi chamada de preta, macaca. Na 3 º série era mais freqüente que agora; a mãe dela sempre ligava ou comparecia à escola quando a filha era discriminada. Ela me disse que gosta do jeito da mãe dela agir, mas que às vezes ela tem até vergonha, porque acha que a mãe nunca leva desaforo para casa; se preciso "arma em qualquer lugar, com qualquer um, barraco para defender seu ponto de vista e sua família". Essa mãe sempre comparece às reuniões de pais e mestres, busca auxiliar quando a filha reclama por ajuda se lhe acontece qualquer tipo de problema na escola. Grace se acha bela, tem grande preocupação com a estética, mas nem por isso - afirmou - sofre menos discriminação na escola que as outras alunas negras que possuem menos condições financeiras ou são menos vaidosas. Bruna Bruna e Tamires, 5º série B, negras, também foram discriminadas na aula de educação física por dois meninos brancos. Ao terminar a aula, elas chamaram a diretor; esta por sua vez, conversou com os garotos, pediu mais respeito. No entanto os meninos esperaram a diretora falar, pediram desculpas na frente das meninas, mas após a aula, fora da escola, continuaram com as ofensas. Perguntei o que mais as ofendia quando eram discriminadas. 26 Independentemente de quem fosse o agente da discriminação, elas me disseram que o que mais ofendia era, quando falavam de seus cabelos, que a cor não era o maior problema e sim, o cabelo, por não ter praticidade, não ser solto como o das meninas brancas e não ter como disseram: “beleza”. Bruna, não se acha bonita, gostaria de ter nascido diferente, de ter "pelo menos o cabelo liso", ser negra segundo ela, é muito ruim. O que ela gosta nela, fisicamente, são os olhos e o corpo por ter bumbum grande, definido e cintura fina. Disse-me ainda que odeia seus cabelos, principalmente quando a mãe os trança, fato que ocorre todos os dias. Ela relatou que dói, que solto fica "horrível" porque fica para cima, armado, e ainda, não cresce, não fica comprido como das outras meninas brancas; revolta-se. Ela me disse que gosta muito de Adriane Galisteu, que gostaria de ter os cabelos compridos como os da artista, e o artista famoso que ela admira é o ator Marcio Garcia. Tamires Tamires disse-me que na hora do intervalo e na educação física, quando não há ninguém por perto, alguns meninos, com grande freqüência, se aproximam dela e ficam chamando-a de beição, de pau-de-fumo, pinche, e outras palavras, frases preconceituosas. Ela me disse que a professora de educação física, um certo dia, viu, mas não fez nada. Ela (a aluna) ficou furiosa e foi ao banheiro e começou a chorar de raiva. Ao chegar em casa ela contou o episódio à mãe dela e esta, por sua vez, ligou para a escola e conversou com a professora. Tamires relatou que esta última defendeu os meninos e não ela, acrescentando que eram coisas da cabeça de Tamires, que nunca havia presenciado nenhum tipo de racismo na escola, que aquilo não existia, sobretudo em suas aulas. A partir desse dia, Tamires, começou a ignorar os meninos, fingindo que não dava a menor atenção para o que eles diziam. Ela percebeu que a partir de então eles pararam um pouco com as falas preconceituosas. As alunas Bruna e Tamires são de classe social menos favorecida; elas enxergam a vida de uma maneira diferente da de Grace, que tem condições econômicas melhores. Ambas têm baixa auto-estima; disseram não gostar de sua origem étnica nem de ser pobres. 27 Foi perceptível na observação do comportamento e nas falas destas meninas, que desde muito criancinhas, foram muito discriminadas, rechaçadas, tanto na comunidade onde moram, na escola, na igreja, na rua, enfim sempre se depararam com o choque do racismo. Em função disso, hoje elas têm consciência de que suas origens social e étnica são a razão pela qual se deparam com entraves em qualquer âmbito das relações sociais. Bianca Bianca é loira, alta, magra, considerada pela turma da 5º série F, a mais bela aluna. Ela também se acha bonita, mas como disse, gostaria de ser mais magra, de ter cinco quilos a menos. A artista que ela mais admira é Gisele Bündchen. Bianca disse que gostaria de ter o corpo dela. Ela faz trabalhos como modelo desde a infância. E o artista que ela acha mais lindo é o Rodrigo Santoro que representa para ela o protótipo do garoto perfeito, lindo, famoso, bem sucedido. Bianca gosta muito de seu cabelo loiro, mas não gosta de ser tão alta; gostaria de ser mais baixa porque percebeu que sua altura, às vezes, é incômoda, sobretudo na escola, pois alguns (as) garotos (as) fazem piadinhas sobre sua estatura e seu biotipo. Essa aluna disse não ter presenciado nenhum tipo de preconceito, só brincadeirinhas, mas ela acredita que é coisa de menino infantil, que não deve se levar em consideração, porque quando eles amadurecerem esse tipo de atitude também deverá desaparecer. Ela me falou que já foi discriminada, que foi vítima das brincadeiras dos meninos por ser loira magra e alta. Mas ela disse que não se preocupa muito com isto. Com relação aos professores, quando as aulas são sobre racismo, escravidão sempre surge piadinhas na classe por parte de alguns alunos e alunas, geralmente brancos. Ela contou que uma vez o professor ouviu um aluno chamando o outro de Zumbi e outras coisas ofensivas e não fez nada, continuou passando a lição na lousa. Poliana Poliana é da 8º série D, é branca, tem cabelos e olhos pretos. Disse-me que se considera bela, mas que gostaria de ter mais seios. 28 O dançarino do ex-grupo de axé “É o tchan”, Jacaré, e o ator global Lázaro Ramos, são para ela dois ícones de beleza. Juliana Paes, atriz da Globo, é para ela também muito linda. No que se refere às relações raciais estabelecidas no cotidiano da escola, essa aluna disse que não vê com freqüência práticas preconceituosas dos agentes educacionais em relação aos alunos; percebe que quando há alguma coisa nesse sentido, em geral é dos alunos (as) para com os aluno (a)s. Afirmou que os agentes educacionais, sobretudo os professores, embora não tenham o hábito de discriminar os alunos, não costumam defender os discriminados, sendo muitas vezes coniventes. Silenciam diante de algumas atitudes preconceituosas, racistas de uns alunos para com outros não brancos, são portanto, segundo a aluna, muitas vezes omissos. Daniela Daniela da 8º série B, é descendente de orientais, afirmou que tem auto-estima baixa. Gostaria de ser fisicamente como as "brasileiras". Não gosta de seu biotipo, gostaria de ter seios maiores, bumbum grande, olhos maiores, maior estatura, cabelos mais volumosos. Considera-se inteligente, mas não bela; acredita que seu biótipo é destoante do padrão brasileiro e isso a incomoda em demasia. Os personagens famosos que ela admira são a modelo Daniela Sarayba, Gisele Bundchen, o cantor Latino e outros. Daniela percebe que quando ocorre qualquer problema a direção da escola sempre apóia somente o professor, nunca o aluno. Afirmou inclusive que certo professor se sente superior por ser rico, que não intervém, deixa os alunos se "matarem", e que já até humilhou um aluno em sala de aula. A fala de Daniela foi marcante; ela me contou que sempre foi muito observadora, ela acredita que as pessoas que são como ela destaca "diferente”, são discriminadas, deixadas de lado. Ela se incluiu nessa lista de pessoas diferentes; ela disse que os negros sofrem mais ainda porque são diferentes fisicamente e também são pobres em sua maioria. Na fala dessa estudante, percebi que é uma aluna notoriamente observadora, porque com quatorze anos, ela já possui consciência dessa problemática. A observação da aluna é interessante quando ela verifica que independentemente do problema que ocorra nas aulas, a 29 direção sempre dá razão aos professores. Estes, segundo ela, podem estar ou não com a razão nos diversos contextos, mas o aluno nunca tem vez nem voz. Cristiane Cristiane está na 8º série A. Ela se auto-define como branca, (possui traços negróides e tom de pele clara); se considera bela, mas disse não gostar do seu nariz, cabelos, nem de seus pés por achá-los muito largos, achatados. Essa aluna tem quinze anos e já namora. O rapaz se chama Rodrigo está na 8º série C, (o garoto é descendente de japoneses); é o seu primeiro namorado. Ela me disse que gosta de descendentes de japoneses, e que quer se casar com Rodrigo porque além de amá-lo, ela acredita que terá futuramente filhos lindos com ele. Pretende ter duas filhas com ele; quer que ambas possam nascer com os cabelos como os de Rodrigo, que são lisos, motivo pelo qual ela disse que nunca namoraria um garoto negro. Informou-me que sua mãe é "morena", que os cabelos dela são muito crespos e que é por isso que ela nasceu com os cabelos "assim, pixaín”. Disse ainda que os seus cabelos dão muito trabalho na hora de cuidar, que ela tem que ficar horas tentando deixá-los bonitos, tem que alisá-los, enfim que é difícil ter cabelos crespos, e que não desejaria isso para suas filhas nem para ninguém. Cristiane admira muito a beleza da modelo e apresentadora da Rede Record Ana Hickmann, de Thiago Lacerda, e de Reinaldo Gianechini. Para essa aluna, não há grandes problemas de preconceito na escola, na sala de aula, que tudo é uma questão de postura. Acredita que as meninas negras que estudam em sua sala, às vezes ouvem algumas piadinhas dos meninos, mas segundo ela, é porque elas não se cuidam, elas vão para escola de qualquer jeito, não cuidam do cabelo, "aí depois reclamam que os meninos ficam xingando, que ninguém as paquera, que os outros as discriminam..." Ela me disse que nunca viu, na sua sala, os professores terem atitudes preconceituosas como os aluno (a)s negro(a)s, que muitos destes têm mania de perseguição, pensam que tudo é preconceito, que tudo é racismo. O desejo de branqueamento é nítido no discurso de diversas alunas, sobretudo na fala de Cristiane que, por ter a pele mais clara, se define como branca. Ela desenvolveu uma identidade racial branca, e nesse processo, ela procura aniquilar em si os traços negróides, de modo que nas próximas gerações seus descendentes também não apresentem tais caracteres físicos. 30 Ela acredita que o preconceito não é racial, mas sim uma questão de postura. Segundo sua análise, bastaria as garotas negras ficarem produzidas, isto é procurando ficar o mais próximo possível do padrão europocêntrico de estética, alisando o cabelos, distanciando-se ao máximo de suas origens étnicas, de modo a não serem mais discriminadas. Elas poderiam, como ela, já ter um paquera, um namorado, como ela o tem. Esse argumento entra em contradição com o depoimento de Grace que alisa os cabelos, é muito vaidosa, pertence a uma classe social alta e, no entanto, afirmou que isso não a faz deixar de ser discriminada. Num dos dias em que fui à escola, ela se aproximou de mim na hora do intervalo e perguntou: - Tia, eu sou bonita não sou? E eu respondi a ela: - Sim, Grace claro que sim, você é linda. E nesse momento ela indagou: - Então porque só as meninas brancas são vistas como bonitas; porque que os meninos discriminam a gente, que é negra? Eu conversei com ela alguns instantes sobre o preconceito no Brasil, sobre o padrão de beleza branco que é valorizado em nosso país, sobre a internalização do preconceito racial, sobre identidade racial, procurando, sobretudo, esclarecê-la de maneira didática e de forma a elevar sua auto-estima. Juliana Juliana estuda na 8º série D, é negra, gorda, e tem surdez leve. Ela faz leitura labial para se comunicar, faz uso do aparelho de amplificação sonora e tem dificuldades de acompanhamento dos conteúdos trabalhados em virtude da surdez. Juliana me disse que sofreu muito desde os primeiros anos de estudo, que antes de ingressar na escola ela não tinha tantos problemas, tantos traumas, que por isso começou a comer bastante, e ficou como está agora, obesa. Ela está com 16 anos, e atribui a origem dos sus problemas ao fato de ser negra, obesa e deficiente auditiva. Disse que gostaria de ser “normal”: de ser magra, ouvinte, e branca e não pobre. Um fato que a marcou foi o de ter se apaixonado por um garoto da 7º série E, que segundo ela não era bonito, mas foi o garoto pelo qual ela se encantou. Ela pensou que teria possibilidades de namorá-lo; após 6 meses flertando o garoto, muito envolvida por ele, ela resolveu se declarar; arrumou-se com sua mais bela roupa, e foi à escola. Na hora do intervalo 31 ela o chamou para conversar, declarou-se, disse tudo o que estava sentindo por ele. No entanto ficou chocada com a atitude do garoto. Ele simplesmente riu de sua cara, e disse: "É impossível ficarmos juntos, você não tem o perfil de garota que eu costumo sair, é melhor você desencanar, você é bonitinha, vai arrumar outro cara que goste de você". Juliana ficou muito mal e teve certeza que quando ele disse que ela não possuía o perfil de garota que ele gostava, estava-se relacionando a sua cor de pele, a sua surdez e ao fato de estar obesa. Juliana, a partir de então, revoltou-se, começou a comer mais, engordar cada vez mais. Esse fato ocorreu no ano passado, e ela explicou-me que desde então já engordou 10 quilos. Hoje essa aluna é levada semanalmente à psicóloga, serviço que é oferecido gratuitamente aos alunos com dificuldades auditivas, disciplinares, comportamentais na cidade. Sua mãe a acompanha porque não aceita ver a filha deprimida, e utilizando a comida como válvula de escape para seus problemas. Com relação aos professores, Juliana, não teve problemas sérios, apenas acredita que dois professores são um tanto quanto hostis no que se refere a suas dificuldades. E ela gostaria que lhe fosse dado mais atenção, na explicação dos conteúdos. Principalmente quando os professores vão explicar a lição, ela esclarece que alguns, ao fazer a explanação da matéria, não olham para ela, e ela só consegue entender quando a comunicação é estabelecida no instante em que o interlocutor a olha e fala frente a frente. Por ser de classe social baixa, ela não tem condições de pagar aulas particulares. Sua família também não a auxilia em casa com as tarefas; em razão disso, está fazendo a 8º série pela terceira vez. O discurso de Juliana foi interessante para podermos analisar a pseudo-inclusão existente, uma vez que essa aluna, que apresenta necessidades educacionais especiais, (NEE), não é contemplada no que se refere à forma de trabalhar os conteúdos. Ela está cursando pela terceira vez a oitava série e não há questionamento sobre a eficácia das práticas pedagógicas; com isso ela vai permanecendo na mesma série por anos consecutivos. As dificuldades, os obstáculos que esta aluna encontra são múltiplos, ela é quadruplamente discriminada, por ser negra, pobre, gorda e deficiente auditiva. E a escola tem sido mais um ambiente produtor e reprodutor de preconceitos. 32 Raquel Raquel estuda na 8º série C, é negra, de classe social baixa. Contou-me que vive em uma favela próxima à escola; disse que o preconceito é algo muito comum em seu cotidiano, tanto que está habituada a ouvir dizeres ofensivos. Ela explicou-me que seus pais a ensinaram a jamais levar desaforo para casa, que eles falavam que ela deveria estar sempre preparada para as dificuldades da vida, porque com certeza elas viriam mesmo, já que eram pobres, negros e viviam na favela. Com relação aos professores, ela me disse que nunca teve problemas, mas que não era “idiota”, portanto percebia que às vezes os professores ignoravam as queixas dos alunos negros nas situações em que eram discriminados pelos brancos. Entre os negros, acrescentou, às vezes existe um que tem o tom de pele mais claro ou o cabelo “melhorzinho” e que quer “crescer” para cima dos mais escuros. Os artistas famosos que ela admira são a atriz global Letícia Sabatela e também o cantor Felipe Dilon. Relatou-me que os alunos brancos mantinham certa distância física dela; nesse momento fez uma exclamação: - peraí tia, os meninos mantém distância de mim, sim porque eu moro na favela, mas já vi alunos torcendo o nariz para as outras meninas negras também. Raquel disse ainda: Os meninos, principalmente os brancos,( porque os neguinhos são mais de boa, com certeza tia, porque também sofrem, menos que a gente que é menina mas também sofrem, é difícil os neguinhos querem crescer, mas quando fazem isso, se eu to perto, já bato boca mesmo, se precisar desço o braço também não aceito patifaria) mantêm distância principalmente nas aulas de educação física porque todos suam, mas os meninos dizem que as meninas negras quando suam, elas fedem, o tia fiquei mó brava, mas não foi só isso não, ouvi, eles dizerem também que nunca paquerariam uma menina negra, porque além de feder elas são feias e têm cabelo ruim. Eu ouvia tudo o que as alunas me diziam, pois era útil, sempre auxiliava meu trabalho. Quando necessário eu fazia comentários, aconselhava, questionava para melhor entender o que 33 se passava com cada uma, o modo como funcionavam as relações no interior da escola. Em determinados momentos eram elas que se aproximavam, para perguntar, saber mais de mim, chegaram até a perguntar se eu daria aulas ali na escola. Provavelmente essa pergunta, feita por Juliana, se deu porque já estava fazendo um mês que estava freqüentando a escola, e havíamos construído, eu e as estudantes, uma amizade. Dialogando com as alunas das 5º e 8º séries percebi que elas já possuem preocupação com a estética, com a imagem a ser transmitida. A adolescência se caracteriza por ser uma das etapas mais críticas do desenvolvimento humano, porque é justamente nessa fase que o adolescente inicia a sua maturação sexual. Nos meninos, há o surgimento de barba, pêlos, no peito, voz grossa, alargamento dos ombros, quadril estreito; nas meninas, surgem os seios, voz feminina, ombros estreitos, quadris largos. Internamente, os principais órgãos reprodutores, testículos e ovários, também começam a sofrer alterações. Enquanto nas meninas os seios começam a se desenvolver, o mesmo ocorrendo com os testículos dos meninos, denunciando seu crescimento, alguns de seus comportamentos permanecem infantis. Em geral, nas meninas esse processo começa cedo, em torno dos nove anos. Juntamente com todas essas mudanças sexuais ocorrem mudanças psicológicas "junto com pêlo e seios, nascem muitas outras coisas, especialmente nas cabeças das nossas ex-criancinhas. A principal delas é o surgimento do pensamento abstrato". (TIBA, 1994, p.37). Segundo Tiba, (1994) as fases do desenvolvimento do adolescente são subdivididas em: - Confusão Pubertária, momento em que a cabeça de nossos adolescentes fica cheia de hipóteses que atuam como verdades, regendo comportamentos diferenciados dos da criança e do adulto. - A segunda fase, é denominada de Onipotência Pubertária; ocorre por volta dos treze anos nos meninos e nas meninas entre dez e onze anos, é a fase da oposição e a agressão usados para defender-se diante das novas situações; - A terceira fase caracteriza-se como Estirão. Nos meninos ocorre entre catorze e dezesseis anos e nas meninas entre onze e doze anos. É a fase em que mais se cresce, nos meninos para cima, nas meninas para os lados. - Nos meninos a fase final é a mutação em que as partes cartilaginosas do rosto crescem rapidamente, em desarmonia com a parte óssea, a voz engrossa, as vezes, some e afina, e há o 34 aparecimento de espinhas. O pênis recebe finalmente o acabamento biológico final atingindo as proporções e funções de adulto.Na menina a fase final é a primeira menstruação, também chamada de menarca. A menina ingressa no mundo da fertilidade podendo ocorrer ainda nessa fase, crescimento em média de mais sete centímetros. É a partir desse momento que os problemas referentes à cor e o processo de pertencimento racial por parte das adolescentes negras parece ser mais doloroso, pois é nesse momento que elas perceberão o quanto os caracteres físicos influenciam nas relações interpessoais da turma, da paquera, do namoro e do primeiro beijo. Essa discussão ajuda a desvendar o rosto do racismo. Os efeitos da prática racista são tão perversos que, muitas vezes, o próprio negro é levado a desejar, a invejar e projetar uma identificação com o padrão hegemônico branco, negando a história do seu grupo étnico-racial e dos seus antepassados. Esse é um dos mecanismos por meio do qual a violência racista se manifesta. (CAVALLEIRO, 2001, p.93) O ambiente escolar é o espaço onde há o encontro diário entre os meninos e as meninas, e onde passam parcela significativa de suas vidas. Assumir-se perante a "turma" enquanto negra é uma das tarefas mais difíceis para a adolescente negra, uma vez que assumir sua identidade significa enfrentar todos os estigmas impostos ao negro na sociedade. Conversando com as garotas, pude perceber que independentemente das séries em que estejam, as garotas negras, até o ingresso na instituição escolar, não conseguem perceber nitidamente o preconceito, a discriminação racial e o racismo, pois até então encontram-se protegidas no seio de sua família, e suas relações são mais restritas à família, ao meio social em que vivem. As garotas negras relataram que ao ingressar na escola, já nos primeiros anos de estudo, começaram a sentir o preconceito contra seu cabelo, sua cor, seus caracteres físicos. 35 Janaína Janaína, da 8º série A, me contou que quando estava na pré-escola, em uma instituição particular, uma das funcionárias que eram responsáveis por cuidar do banho, do penteado, da higiene das crianças, não gostava de pentear seus cabelos. Ela percebia que era tratada diferentemente, de uma forma com a qual não se sentia bem. Certo dia sua mãe chegou à creche e viu essa mulher comentando com a colega de trabalho que "não ia pentear aquela esponja não". A mãe de Janaína, ao ouvir isso, foi à direção, (não quis dialogar com a funcionária) pedir explicação do por que daquela atitude, por que sua filha estava sendo tratada daquela maneira na creche, e também o motivo por ela chegar em casa todos os dias com os cabelos despenteados quando as outras crianças sempre iam para suas casas penteadinhas, enfim por que sua filha estava sendo vítima de preconceito na creche. Janaína me contou que a diretora chamou a funcionária, conversou com ela, e que após esse fato ela começou a chegar em sua casa penteada. Mas isso não por muitos dias, pois a menina voltou logo a ir para casa despenteada. A mãe da aluna, decepcionada, para evitar problemas, resolveu tirar a sua filha daquela instituição e a matriculou em outra. Essa aluna falou-me da dificuldade de ser negra, sobretudo de ter cabelo “duro”. A fala de Janaína denota o anseio de grande parte das jovens negras da escola Isaltino de Almeida. Gostaria de chegar aos lugares e ser olhada com bons olhos. Tipo, não gostaria de chegar em uma loja por exemplo ser vigiada pelos seguranças, pelas funcionárias como se eu fosse roubar alguma coisa. Gostaria de ser olhada pelos garotos de despertar desejo e não repulsa, de ser motivo de chacota, de piadinhas preconceituosas.É horrível ter que ficar ouvindo das colegas brancas que já são paqueradas, de que já beijou, já ficou com um, dois, três, e eu nunca nem fui xavecada por ninguém.. Se ao menos tivesse grana para freqüentar academia, ir ao salão de beleza para dar jeito nesse meu cabelo, me sentiria melhor, pelo menos teria auto-estima para chegar em qualquer lugar.Tem dias que acordo que tenho vontade de tacar fogo no cabelo, de tanta raiva que me dá, às vezes fico horas no espelho tentando deixá-lo bonito, mas é foda, porque nunca fica do jeito que eu quero; sempre arma, daí os meninos tiram sarro na escola. Já teve dias que cheguei da escola, fui para casa e xinguei tanto a minha mãe, afinal de contas 36 porque que ela não tinha casado com homem branco de cabelo liso, porque daí sim eu teria um cabelo melhor e não essa bucha dura na cabeça. A sociedade brasileira, ao prestar um culto a um arquétipo estético que diz que o melhor é ser branco, relega a mulher negra ao confinamento da exclusão em todo âmbito social. Essa hegemonia estética branca produz impactos perversos nas relações sociais. A ordem: quanto mais clara melhor, revela um eufemismo que esconde a discriminação étnico-racial, presente no imaginário social. As mulheres negras, desde a mais tenra idade, são amplamente discriminadas em nossa sociedade. Isso fica perceptível no instante em que elas iniciam - principalmente as meninas das oitavas séries - a fase da adolescência em que a imagem passa a exercer grande valor. A estudante negra carrega esse trauma, e superá-lo é algo que parte de uma consciência racial e cultural, e essa é construída através da família, seguida da escola e da comunidade, atingindo os meios de comunicação. Sendo assim, a escola como já pontuado acima, é produtora e reprodutora de preconceitos e desigualdades sociais e raciais. Ela fomenta o racismo, incutindo nas crianças, nos adolescentes e sobretudo nas alunas negras, o complexo de inferioridade. Nesse cenário, a construção da identidade étnica destas garotas fica comprometida. Os relatos, os diálogos que tive com as alunas, evidenciam o quão preteridas são em todo âmbito social. Na fase da pesquisa em que apliquei o questionário às alunas, quando perguntei sobre pessoas famosas que elas consideravam bonitas, a maioria das estudantes disseram que as mais belas são as loiras, como Gisele Bündchen, Ana Hickman, Adriane Galisteu. Apesar de termos poucos exemplos de artistas negras na mídia brasileira, somente uma aluna citou uma atriz negra como referencial de beleza, no caso a atriz Taís Araújo; é, na opinião de Grace, uma das mais belas artistas da televisão nacional. A mídia e a imprensa são instrumentos do racismo. Existe um padrão que diz que o melhor é ser branco. O corpo humano para além de seu caráter biológico é afetado pela religião, grupo familiar, classe, cultura e outras intervenções sociais. Assim cumpre uma função ideológica, isto é: a aparência funciona como garantia ou não da integridade de uma persona, em termos de grau de proximidade ou de afastamento, em relação ao conjunto de atributos que caracterizam a imagem 37 dos indivíduos em termos do espectro das tipificações. É assim que em função das aparências (atributos físicos) alguém é considerado como um indivíduo capaz ou não. (NOGUEIRA, 1998, p. 12). Dessa maneira, em função do passado histórico marcado pela desumanização, coisificação de sua pessoa, presentificado no pensamento social, atualizado no preconceito, na discriminação racial, o negro, é proclamado como a anomia social que a cultura afasta pela negativização. Sendo assim, o pleno desenvolvimento de nossas estudantes negras, de suas potencialidades, de sua auto-estima, da imagem afirmativa de si, fica comprometido, ao passo em que se inscreve na figura do execrável; e as instâncias sociais, particularmente a escola, têm contribuído para a manutenção dessa representação. As práticas pedagógicas, como pude verificar na pesquisa, não atendem ao que fora sancionado pela Lei 10.639/03 e pelo Parecer CNE/CP 003/2003, (que foi em março do ano de 2008 alterada pela Lei 11.645, com a inclusão da temática indígena ) que visam obter sobretudo uma educação para a igualdade das diferenças. Em função de longos anos no magistério, do cansaço com os anos de trabalho, do estresse, da indisciplina, das dificuldades de aprendizagem dos alunos, grande parte dos professores observados adotou práticas pedagógicas acríticas, o que tem contribuído para a formação de indivíduos preconceituosos. Parte deste alunado, quando se forma e conclui o ensino médio por exemplo, sai deste na categoria de semi-analfabetos. A grande preocupação de grande parte dos professores observados é com o cumprimento da jornada de trabalho e com o salário a ser recebido. Do 5º ao 8º ano do ensino fundamental, não há o contemplar de conteúdos, de um fazer pedagógico anti-racista. Os alunos com o passar das séries não aprendem a ter uma consciência cidadã que possibilitaria a libertação de preconceitos, nem tão pouco lhes é oferecida uma educação para a igualdade nas relações étnico-raciais. 38 C A P Í T U L O II RACISMO, BRANQUEAMENTO E EXCLUSÃO O racismo como hoje o conhecemos, não surgiu de um momento para o outro, possui toda uma história. Bernard Lewis, (1982) amplia o espaço geo-histórico do racismo, incluindo nele os países do Islã e desfazendo o monopólio ocidental desse fenômeno. Teria sua origem na Antiguidade, passando pela Idade Média, pelos Tempos Modernos, perpetuando-se na Contemporaneidade. O racismo e a desigualdade precedem a origem da palavra. O proto-racismo é justamente isso, a existência do racismo antes mesmo de sua nomenclatura. O conceito de raça hoje difere do conceito de raça discutido nos séculos anteriores. Raça, advém do latim, categoria, espécie; este termo foi utilizado na biologia para poder classificar as espécies vegetais e animais. Na Idade Média o termo raça era usado para fazer referência a descendência, linhagem e foi com o tempo adquirindo outros sentidos, até que no século XVII, passou a ser utilizado para diferenciar as classes sociais. Munanga (apud LEWIS 1982) faz essa discussão; assim, de acordo com este autor, a diferençiação que se fazia nesse momento era social. A hierarquização, a associação entre raça e cor da pele é atual; classifica-se para hierarquizar grupos étnico-raciais. A antropometria, mais tarde, foi aplicada para fazer a classificação científica, precisa, das diferenças biológicas entre branco, negro e amarelo. Ainda de acordo com Munanga, na primeira década do século XX, através da serologia (estudo do sangue e do solo), os cientistas fizeram estudos para verificar diferenças, características próprias aos grupos raciais, mas perceberam que em todos esses grupos os diferentes tipos de sangue (A, B, AB, O) estavam presentes. Posteriormente, através da genética, percebeu-se também que o patrimônio genético de um branco e o de um negro podem ser muito mais próximos do que se pensava. Foram muitas as tentativas infrutíferas; usando critérios biológicos, todos fracassaram. Sendo assim, concluiu-se que raça não existe do ponto de vista biológico; o que existe é a desigualdade e o racismo. O racismo independe de aspectos biológicos porque se assim fosse ele já teria deixado de existir. 39 Este fenômeno global chamado racismo pode-se decompor em três elementos distintos e inter-relacionados. Por um lado, nós temos uma ideologia racista que é uma doutrina, uma concepção do mundo, uma filosofia da história, às vezes apresentada como uma teoria científica ou como uma filosofia. O mesmo fenômeno se decompõe também em preconceito racial, que é simplesmente uma disposição afetiva imaginária, ligada aos estereótipos étnicos; uma atitude, uma opinião, que pode ser verbalizada ou não. Pode-se tornar uma verdadeira crença. Há pessoas que crêem mesmo que os negros são inferiores aos brancos; é uma crença comparável a uma crença religiosa. Finalmente a discriminação racial, que é um comportamento coletivo observável. Os três elementos são interligados, pois para discriminar alguém concretamente, tem-se que ter preconceito, e a ideologia racista, enquanto doutrina reforça e legitima as práticas discriminatórias. A partir do momento em que uma pessoa, que já tinha disposições preconceituosas, lê um livro e encontra nele a idéia das raças, hierarquizadas em superiores e inferiores e a afirmação de que existe uma relação entre inteligência, cultura e herança genética, esta pessoa simplesmente vai legitimar, a partir desta doutrina, os preconceitos que já tinha na cabeça. Os três elementos estão portanto, interligados, mas é possível que haja um sem a presença do outro, como por exemplo, no caso de algumas pessoas brancas que viveram na África do Sul durante o apartheid. Estas pessoas, que não teriam recebido da educação familial essa predisposição que chamamos preconceito, mas que foram obrigadas a discriminar os negros para não entrar em conflito com as leis do país. (HASENBALG, MUNANGA, SCHWARCZ, 1998, P.47) Dessa forma, raça é uma construção social e política, uma categoria que esconde uma relação de dominação. É uma categoria ideológica difundida pelas classes dominantes para manter a relação dominador/dominado (branco/negro). O dominador impõe sua dominação de modo que naturalize a desigualdade escondendo sua origem, para assim poder perpetuar essa relação. Assim, de acordo com esta perspectiva, Basta transformar a estrutura da sociedade e não haverá mais racismo, não haverá mais discriminação de gênero; mulheres e negros se tornam iguais ao homem e ao branco. Mas como então, a partir desta perspectiva de luta de classes que é uma perspectiva marxista, explicar as manifestações racistas contra os judeus na antiga União Soviética e em outras partes do mundo? Como explicar o surgimento do racismo popular na Europa atual e em outras partes do mundo? É para mostrar que esta perspectiva marxista tem limites. Não há como explicar o racismo enquanto fenômeno global, simplesmente a partir do ponto de vista da exploração e luta de classes. (MUNANGA; HASENBALG; SCHWARCZ, 1998, p. 54). 40 O racismo serve para mascarar a desigualdade, a injustiça. As necessidades da exploração capitalista contribuem para difundir uma ideologia que inferioriza o negro, e justifica sua condição subalterna de escravo, de dominado. A partir dessa leitura o negro tem que ser educado e civilizado pelo branco 'superior'. O Brasil sendo o último país da América a abolir a escravidão, ato que ocorreu tão somente em 1888, mais de quatro milhões de africanos vindos para cá, construíram através da força de seu trabalho riquezas que hoje constituem o patrimônio das atuais elites econômicas brasileiras. Num cenário mais amplo, foi o mundo árabe o último a abolir a escravatura. Os árabes acreditavam ser contra os mandamentos bíblicos abolir a escravatura. Entretanto após a Abolição os negros viram-se livres desse regime de trabalho, porém sem norte, já que estavam condicionados há muito àquele modo de vida. Viram-se sem labor, sem moradia, não sabiam sequer como regiam os mecanismos de contrato de trabalho, um dos fatores que tornariam inclusive difícil sua inserção no meio social, pois não sabiam minimamente como lidar com a liberdade que há tanto lhes fora negada. O negro tornou-se assim a própria personificação da miséria social e moral; a Abolição conferiu-lhe apenas uma pseudo-liberdade. Por outro lado, a vinda dos imigrantes que foram paulatinamente ocupando os espaços sociais e os postos de trabalho, provocou, com o apoio de todos os segmentos sociais, a definitiva exclusão dos ex- escravos. Aos negros restou tão somente a periferia, tanto do sistema de produção, quanto de moradia. Assim, após o término do regime escravista, embora a sociedade brasileira tenha passado por profundas mudanças, algumas das quais pretensamente afirmativas, a população negra permaneceu excluída. A herança desse sistema influenciou o grau de marginalização dessa população e sua maciça participação em condições de vida abaixo da linha de pobreza. Mesmo sabendo que essa parcela da população brasileira foi vítima de todo um sistema social e político, a sociedade de um modo geral passa a jogar sobre ela a responsabilidade pela situação de miséria na qual se encontra. Os negros passam então a ser o próximo indesejável, o conhecido que ninguém quer conhecer, saber ou se preocupar com suas mazelas. A dificuldade de se lidar com o diferente engendra estereótipos que facilmente se tornam consenso. 41 Assim, são as mediações sociais, em suas mais variadas formas, que geram as representações sociais. Por isso elas são sociais – tanto na sua gênese como na sua forma de ser. Elas não teriam qualquer utilidade em um mundo de indivíduos isolados, ou melhor, elas não existiriam. As representações sociais são uma estratégia desenvolvida por atores sociais para enfrentar a diversidade e a mobilidade em um mundo que, embora pertença a todos, transcende a cada um individualmente. Nesse sentido, elas são um espaço potencial de fabricação comum onde, cada sujeito vai além de sua própria individualidade para entrar em domínio da vida comum, o espaço público. Dessa forma, elas não apenas surge através de mediações sociais. E enquanto mediação social, elas expressam por excelência o espaço do sujeito na sua relação com a alteridade, lutando para interpretar, entender e construir o mundo (JOVCHELOVICH, 1995, p.81). Dessa maneira, por sua visibilidade imediata, o principal parâmetro utilizado para a explicação do racismo, passou a ser a diferença fenotípica, a distância do padrão europeu visto como o belo. Diferentemente, a classificação empregada nos Estados Unidos opera pela hipodescendência, No Brasil, o preconceito racial é de marca e não de origem. O preconceito e a discriminação são maiores quando este último apresenta traços muito diferentes do fenótipo branco e aproxima-se mais daquele típico do homem negro: cabelo crespo, nariz largo, lábios grossos, cor escura. Não se considera a ascendência do indivíduo, tida como algo não muito importante. Por outro lado no Brasil, a percepção da cor depende da percepção de outros elementos, sociais, culturais, psicológicos: maneiras, educação, formação profissional, estilo de vida. Dependendo de sua aparência, do seu sucesso no processo de ascensão social, o mestiço pode facilmente passar a fronteira da cor e reclassificar-se na categoria dos brancos. (NOGUEIRA, 1985, p. 124). Será que com esse raciocínio é possível entendermos o racismo brasileiro? Ou conteria ele ainda outros ingredientes? Provavelmente sim. Continua predominando no senso comum o mito da democracia racial, a idéia segundo a qual não existem no Brasil preconceito ou discriminação racial, idéia reforçada pela comparação que se costuma fazer com a situação racial dos Estados Unidos. Contudo passou-se a estudar a situação racial no Brasil, na ótica da situação racial dos Estados Unidos. Por isso rapidamente aceitaram a idéia de que o problema no Brasil é o preconceito de classe e não o de etnia ou casta. Quase que parece um acidente, sem especial relevância o fato de que o negro e o mestiço concentram-se nas classes proletárias, ou mais pobre, no campo e na cidade, na pequena aglomeração urbana. Inclusive tomaram essa distribuição do negro mestiço e branco na estrutura social como indicação segura de que há discriminação, preconceito ou segregação fundamentalmente de classe e, secundariamente de raça ou casta. (IANNI, 1988, p. 39). 42 Não houve no Brasil uma institucionalização do racismo como no Sul dos Estados Unidos, na África do Sul, na Alemanha nazista. Existe no Brasil um racismo de fato. Embora não houvesse no Brasil uma Lei segregacionista havia um conjunto de normas escritas e não escritas, cujo nível de racismo e exclusão não deixa nada a perder ao segregacionismo anglo-saxônico, ao apartheid na África do Sul que são tão humilhantes quanto este por nós experimentado. No Brasil, temos mecanismos subreptícios, velados de exclusão, como entraves à população negra em qualquer âmbito das relações sociais. O racismo no Brasil, segundo Kabengele Munanga, difere do sistema segregacionista adotado nos Estados Unidos onde o Estado declara abertamente que por lei, os negros não terão os mesmos direitos fundamentais assegurados aos cidadãos brancos. Ao negar à população negra o status de cidadão, o Estado retira-lhe oficialmente o acesso aos direitos fundamentais para sua sobrevivência e a garantia de uma vida digna, ou seja, o negro deixa de ter acesso a direitos elementares como saúde, educação, emprego, igualdade salarial, por exemplo. Assim, a população negra americana fica oficialmente alijada de seus direitos civis, estes contudo, plenamente assegurados à população branca americana. No Brasil, embora de direito, o Estado não diga oficialmente que os mais pobres e negros não terão acesso a estes direitos constitucionalmente assegurados a todos os brasileiros, todavia, de fato, pela inexistência de políticas públicas mais específicas e abrangentes, impede que a população negra usufrua destes direitos. Isto é, assegura os direitos apenas na constituição, por direito, e deixa de assegurá-los de fato, já que esta população não tem acesso a estes serviços básicos. Desta forma, o racismo no Brasil, quando comparado com a política segregacionista americana, é mais danosa, pois os negros brasileiros por desconhecerem quais são seus verdadeiros ‘inimigos’, ao contrário da população negra americana que percebia com absoluta transparência, quais eram e como agiam seus opressores, e porque não dizer ‘inimigos’, a população negra brasileira não reconhece que o estado está em geral a serviço das elites, da classe hegemônica branca, exatamente para manter a população afro-brasileira afastada de seus direitos fundamentais. Desta maneira, o racismo à brasileira muito se assemelha às práticas racistas e segregacionistas praticadas no passado pelos estados americanos e sul-africanos. Carmichael & Hamilton em seu livro “Black Power” (1967), nos informam que alguns brancos, algumas vezes 43 não serão capazes de jogar uma pedra em uma casa ou igreja de negros, contudo podem produzir uma violência mais eficaz, na medida que apóiam e votam em candidatos brancos que irão no parlamento legislar contra a população negra. Ou melhor, eles pessoalmente não fazem nada, contudo dão suporte para que outros o façam em seu nome. Podemos observar que tal procedimento também ocorre no Brasil com freqüência e uma naturalidade que beira o deboche, pois aqui os mais ricos e brancos pedem os votos da população negra, exatamente para trabalharem contra ela. Em outras palavras, institucionalizam o racismo, dando-lhe um caráter legalista, embora seus eleitores jamais os tenham autorizado a legislarem contra os interesses da maioria pobre e negra. Estes, ainda que discordem das leis, contribuíram voluntariamente para que seus opressores legalmente exerçam sobre esta população vulnerável à exclusão de seus direitos, mas jamais de seus direitos, no entanto a exclusão do cumprimento de seus deveres. Esta diferença fundamental entre o Brasil e outros países levou alguns autores bem conceituados a afirmarem que no Brasil não existe racismo, justamente porque não foi institucionalizado, mas existe racismo de fato. Outro traço peculiar ao preconceito racial brasileiro é ser dissimulado e até mesmo inconsciente. O brasileiro, disse Florestan Fernandes (1972, p.23), “tem o preconceito de ter preconceito”. Preconceito é vergonhoso, incompatível com o espírito cristão e com o ideal de democracia racial. O preconceito racial consolidou-se no período escravocrata mas sobreviveu em outra roupagem e com novos mecanismos, às transformações pelas quais passou a sociedade brasileira, e persiste nas relações capitalistas de produção. Modificou-se o sistema econômico, modificaram-se as relações de trabalho, porém os negros continuam distantes das posições ditas de prestígio social. A ideologia do embranquecimento possui longa tradição. Remonta ao período da Abolição quando nasceu a necessidade de se redefinir o Brasil e, portanto, o desejo de uma nova composição étnico-racial que garantiria, de acordo com as elites intelectuais brasileiras do período de 1870 a 1930, o progresso e o desenvolvimento da nação. As elites brasileiras eram influenciadas pelas concepções racistas da época, como as de Nina Rodrigues que postulava a inferioridade do negro e a degeneração do mestiço. Já que, a negros e indígenas atribuía-se o atraso da nação, isto se efetivaria através do branqueamento da população. Desse modo, a partir 44 de medidas políticas imigratórias, com a vinda de trabalhadores europeus, após algumas gerações, teríamos aqui - de acordo com essa ideologia - a tão almejada “raça branca”. O imigrante veio então, não somente ocupar os espaços de trabalho e nos “enriquecer” com a substituição de um tipo de trabalhador considerado social e racialmente marginalizado e desqualificado – o negro-, que nem mesmo havia participado da integração da nova fase da economia brasileira, ou seja, o capitalismo dependente. Dessa forma, o preconceito e a discriminação racial foram dinamizados no contexto capitalista. O capitalismo no Brasil, além de ser marcado pela exploração econômica que está no seu cerne, ainda traz um aspecto marcante: a subordinação racial. O desenvolvimento da ideologia do branqueamento no Brasil ocorreu a partir de influências de linhas teóricas racistas européias. Dentre estas destaca-se a doutrina de Joseph Arthur de Gobineau, às vezes chamada de arianismo, que defende a desigualdade entre as raças e é contrária ao cruzamento das etnias. Segundo este autor, o grupo étnico-racial superior é o ariano, representado pelo europeu puro. A essência dessa doutrina se encontra nos efeitos da mistura racial que, para Gobineau era condição sine qua non para o progresso, para a passagem do estado de “selvagem” para o estado de “civilizado”.Gobineau (1982) afirma que, os brancos ultrapassam todos os outros em beleza física. Os povos que não têm o sangue dos brancos aproximam-se da beleza, mas não a atingem. De todas as misturas raciais, as piores do ponto de vista da beleza, são as formadas pelo casamento de brancos e negros (apud MUNANGA, 2004, p.49). Munanga, (1999, p.52) observa a contradição existente no pensamento do Conde, no momento em que ele defende a pureza ariana, ao mesmo tempo em que considera a mistura racial o essencial fundamento das civilizações, e essa mesma mistura a origem da degeneração da raça superior e do declínio da cultura. Seguindo ainda o pensamento de Gobineau, verifica- se que este sacerdote do racismo afirma que os mestiços eram um grupo étnico-racial degenerado e decadente. Houve no Brasil uma internalização das teorias racistas; vários intelectuais adaptaram estas teorias e as introduziram no contexto brasileiro. Consumidoras da literatura estrangeira, as elites intelectuais brasileiras faziam da questão racial o ponto central para a produção de análise social (MORITZ-SCHWARCZ, 1993). 45 Podemos visualizar teorias racistas nas obras de diversos cientistas tais como Raimundo Nina Rodrigues, Oliveira Viana, Silvio Romero, João Baptista de Lacerda, Alberto Torres, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e outros. Raimundo Nina Rodrigues, (1894/1957) defendeu a tese da desigualdade das raças, da degeneração da mestiçagem, denunciou suas consequências na ordem política e social. Os negros e mestiços, segundo ele, eram a anomia social e incapazes de desenvolver uma cultura “elevada”. Francisco José de Oliveira Vianna, (1883-1951) foi um dos teóricos de maior notoriedade nos estudos sobre a formação social brasileira. Foi defensor do ideário de branqueamento, leitor do Conde Gobineau, referia-se às raças em categorias inferiores e superiores, aludindo respectivamente ao negro e ao branco. A diferença entre José de Oliveira Vianna e Nina Rodrigues é perceptível na medida em que o primeiro acreditava que com a mistura racial, paulatinamente, o negro desapareceria. O “mulato” incorporaria os padrões de conduta e moralidade dos brancos e com a miscigenação alcançar-se-ia o branqueamento. Já o segundo afirma que o mestiço é um tipo racial degenerado. Oliveira Vianna é um autor fenotipicamente mestiço, resultado da mistura de branco com negro, é visto como o teórico mais racista. A análise de suas teses, revela, para além da existência de um conflito existencial em razão de seu pertencimento étnico-racial, a legitimação do pensamento racista, a difusão e a internalização do mesmo no imaginário social. O intelectual cívico, Silvio Romero, adota uma abordagem histórica que revela a sua preocupação com a imagem do Brasil no exterior e com a conseqüente dependência em relação aos valores europeus. Possuía o desejo de um país “civilizado”, tal como os países europeus, alcançando o mesmo desenvolvimento das nações européias. A teoria de Sílvio Romero está eivada de determinismo do meio e da raça. E embora a adoção de modelos externos seja, de acordo com Carvalho (1990, p. 43), uma prática universal, o interesse manifestado por Romero em adotá-los com certas adaptações, evidencia a disputa de força política e intelectual e o desejo de alcançar o desenvolvimento. O atraso cultural segundo Romero deve-se a três variantes: racial, climática e histórica (política, legislativa, usos e costumes). Assim as mudanças sociais para ele, obedeciam a um processo natural de adesão, adaptação de novas idéias e miscigenação 46 racial. A idéia defendida por esse “intelectual cívico” era que o ideal de um povo mestiço e em harmonia racial levaria a sociedade brasileira ao progresso. Percebe-se que as elites intelectuais brasileiras incorporaram uma ciência positiva e determinista e o darwinismo social como modelo de análise social para explicar as diferenças sociais internas. O darwinismo social consiste numa tentativa, por parte de alguns pensadores, no sentido de aplicar à ordem social a teoria biológica de Charles Darwin (1859). As expressões “luta pela existência” e “sobrevivência do mais capaz” foram tiradas da obra deste último para apoiar a defesa que faziam do individualismo econômico. O darwinismo social fortalecia o imperialismo, o racismo, o nacionalismo e o militarismo. Como afirma Silvio Romero (1980, p.45), negros e mestiços passaram a ser “objetos da sciencia”. E era a partir da ciência que se reconheciam as diferenças e se determinavam inferioridades. Assim, os cientistas, intelectuais brasileiros ao utilizarem os discursos mencionados acima em contexto brasileiro, concluíram que a origem do atraso brasileiro estava na composição étnica, na grande massa de africanos e mestiços, que impedia o país de alcançar o tal almejado grau de civilização. Gilberto Freyre deu uma 'nova' versão dessas interpretações do Brasil, com o elogio à mistura racial. Oliveira Vianna, anteriormente a Freyre, também exaltava a mestiçagem, no entanto com um diferencial: objetivava com a mistura racial, alcançar o branqueamento da população brasileira. Tese esta que já fora defendida por João Baptista Lacerda em 1911, no Congresso Internacional das Raças. Ele declarou que: “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução”. Verifica-se assim que estaria resolvida a defasagem da adoção das teorias advindas da Europa e da América do Norte, na medida em que, alcançada esta perspectiva de branqueamento, a adaptação dos modelos imperialistas não seriam mais discrepantes quando aplicados a um Brasil “branco”. . A ampla miscigenação na população brasileira, na verdade não é prova de ausência de discriminação, mas pelo contrário revela o desejo de embranquecimento. Desde os primórdios da história do Ocidente encontramos a associação simbólica das cores “negro” e “branco”, respectivamente ligadas ao mal, ao condenável, ao v