LUCIANO APARECIDO VICENTE O DISCURSO DA AUTOAJUDA PRESENTE NA EDUCAÇÃO: uma leitura a partir da biopolítica foucaultiana PRESIDENTE PRUDENTE 2019 LUCIANO APARECIDO VICENTE O DISCURSO DA AUTOAJUDA PRESENTE NA EDUCAÇÃO: uma leitura a partir da biopolítica foucaultiana Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da FCT- UNESP, campus de Presidente Prudente, como requisito para obtenção do Título de Mestre, linha de pesquisa Desenvolvimento Humano, Diferença e Valores, sob orientação do Prof. Dr. Divino José da Silva. PRESIDENTE PRUDENTE 2018 Aos meus pais, Paulo e Isabel, Aqueles que, desde sempre, foram os meus primeiros mestres na arte de educar e me conduzir aos caminhos do conhecimento, me ensinando que, mesmo que eu saiba de tudo, sem amor eu não sou nada. Minha eterna gratidão por tudo que fizeram e fazem por mim! AGRADECIMENTOS Gratidão a Deus, pelo dom da minha vida e por tudo o que Ele fez e faz em minha existência. Sou o que sou pela graça de Deus! Aos meus pais, Paulo e Isabel, que me ensinaram que ainda que eu tivesse todo o conhecimento de todas as ciências, se não fosse para ajudar alguém ou para me tornar uma pessoa melhor, nada disso adiantaria. Aos meus irmãos, Paulo César e Isabel Cristina, os quais, mesmo distantes, sempre procuraram estar próximos de mim. Aos meus queridos sobrinhos José Augusto, Deise Mara, Augusto César, Vitória, Pedro Augusto, Isabela e Miguel, por ser sinal de amor e simplicidade em minha vida. À minha noiva Juliana, por sempre acreditar em meu potencial e compreender as minhas ausências, em tempos de dedicação para a pesquisa. Ao meu amigo e irmão Pe. Pedro Nilton Guarinão, por sempre me orientar em minhas questões existenciais, sejam pessoais, sejam profissionais. Aos meus incontáveis colegas de profissão docente, por serem exemplos de compromisso com a educação e com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Aos meus queridos estudantes, por me oportunizarem ótimas discussões e por me ensinarem o quanto ainda preciso construir novos conhecimentos. Às equipes gestoras das escolas em que lecionei, durante o decorrer desta pesquisa, por compreenderem algumas das minhas ausências, reconhecendo a importância da minha formação continuada. Gratidão em especial à Escola Estadual Maria Luiza Formozinho Ribeiro e à Escola SESI Antonio Scalon – CE423, situadas na cidade de Presidente Prudente- SP. Ao meu orientador, Divino José da Silva, por ser parceiro e amigo. Gratidão imensa pelo exemplo de pessoa e de profissional. Obrigado por todas as orientações, pois foram elas que me possibilitaram o meu amadurecimento e crescimento pessoal e acadêmico. Obrigado, de coração, por cada correção e por cada ajuda que me fizeram crescer muito ao seu lado. Aos professores Rodrigo Barbosa Lopes e Pedro Angelo Pagni, por excelentes contribuições em meu trabalho, no processo de qualificação. A todos os meus colegas professores, por serem agentes de transformação social, ao lutarem por uma educação de qualidade. Por fim, a todos os que, direta ou indiretamente, contribuíram para o meu processo formativo, pessoal e acadêmico. Com muitas pessoas, pude compreender que sempre temos algo para aprender e que o conhecimento é um movimento inacabado e encantador. Hoje eu gostaria de falar um pouco de um aspecto do neoliberalismo americano, a maneira como os neoliberais americanos tentam utilizar a economia de mercado para decifrar as relações não-mercantis, para decifrar fenômenos que não são fenômenos estrita e propriamente econômicos. (FOUCAULT, 2008, p. 329). O DISCURSO DA AUTOAJUDA PRESENTE NA EDUCAÇÃO: uma leitura a partir da biopolítica foucaultiana Resumo Esta pesquisa tem como objetivo discutir a emergência do discurso de autoajuda dirigido à educação escolar. Referimo-nos, especificamente, a algumas obras de Augusto Cury, que serão analisadas nesta Dissertação, cujo foco se volta para professores, alunos, pais e demais profissionais da educação. Analisamos esse discurso a partir dos conceitos de biopolítica e governamentalidade de Michel Foucault, para pensar de que maneira a autoajuda se transformou, hoje, num discurso que orienta o indivíduo a se transformar em um capital humano. A discussão da biopolítica, na perspectiva neoliberal, nos possibilita compreender que esse discurso orienta o indivíduo para que ele seja capaz de fazer render o seu corpo e seu valor – capital humano. Dentro do contexto contemporâneo, marcado por síndromes, ansiedades e processos de adoecimentos decorrentes das exigências competitivas do capitalismo, a busca pelos discursos de autoajuda tem-se apresentado como um fenômeno contemporâneo com forte ressonância, inclusive no âmbito educacional. Identificado como um discurso imperativo e com características específicas, ele visa a orientar e a treinar a conduta dos indivíduos em consonância com os interesses do empreendedorismo neoliberal. Identificamos, nas obras de Augusto Cury, com destaque para aquelas direcionadas à educação, as características assumidas pela literatura de autoajuda, em seus aspectos mais gerais. O intuito, nesta Dissertação, é compreender e explicitar o funcionamento dos discursos de autoajuda no contexto educacional e o quanto eles se articulam a modos de governo e condução de condutas, próprios às práticas neoliberais contemporâneas. Desse modo, essa literatura configura um tipo de tecnologia que objetiva a produção do si mesmo afinado com as ideias do mercado. Palavras-chave: Autoajuda. Biopolítica. Educação. Empreendedorismo. THE SELF-HELP DISCOURSE PRESENT IN EDUCATION: a reading from Foucault’s biopolitics Abstract This research aims to discuss the emergency of self-help discourse addressed to school education. We refer, specifically, to some works by Augusto Cury that will be analyzed in this dissertation, whose focus is directed to teachers, pupils, parents and other professionals of education. We analyze this discourse from Michel Foucault’s biopolitics and governmentality concepts, in order to consider how self-help has turned into a discourse that leads the individual to become a human capital. The discussion of biopolitics in the neoliberal perspective allows us to understand that this discourse guides the individual so that he is able to rise his body and his value – human capital. Within the contemporary context, marked by syndromes, anxieties and processes of illnesses resulting from competitive demands of capitalism, the search for self-help discourses has presented itself as a contemporary phenomenon with strong resonance, even in the educational scope. Identified as an imperative discourse with specific features, it aims to guide and train the behavior of individuals in accordance with the interests of neoliberal entrepreneurship. We identified in the works of Augusto Cury, especially those directed to education, the characteristics assumed by self-help literature in its broadest aspects. The purpose of this dissertation is to understand and explicit the operation of self-help discourses in the educational context and how they articulate themselves in terms of government and public policies, typical to contemporary neoliberal practices. Thus, this literature configures a sort of technology that aims for the production of oneself in tune with the ideas of the market. Key-words: Self-help. Biopolitics. Education. Entrepreneurship. SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1. OS DISCURSOS DE AUTOAJUDA À LUZ DA BIOPOLÍTICA FOUCAULTIANA................................................................................................................. 21 1.1. A biopolítica na perspectiva neoliberal ........................................................................ 26 CAPÍTULO 2. O DISCURSO DE AUTOAJUDA EM PERSPECTIVA......................... 43 CAPÍTULO 3. A AUTOAJUDA E EDUCAÇÃO NAS OBRAS DE AUGUSTO CURY...................................................................................................................................... 59 3.1. Conselhos e orientações sobre como lidar com os afetos e com as emoções na formação de líderes empreendedores................................................................................... 64 3.2. Biografias e exemplaridade............................................................................................ 74 3.3. Treinando as emoções......................................................................................................79 3.4. Foco na felicidade............................................................................................................ 82 3.5. Neoliberalismo, autoajuda e Coaching na educação.................................................... 84 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................ 88 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 94 11 INTRODUÇÃO Vivemos em uma sociedade caracterizada pela competitividade regida pela lógica do sistema capitalista, a qual demanda dos indivíduos alto desempenho no trabalho e no consumo, e exerce sobre eles eficientes formas de controle do tempo e da vida. Trata-se, conforme diagnosticou Deleuze (2010), da emergência de novos arranjos no âmbito das práticas do capitalismo, em que a fábrica, no sentido clássico, é substituída pelo espírito da empresa. Talvez o mais apropriado fosse dizer que o modelo disciplinar da fábrica convive hoje com o controle modular exercido pela administração empresarial, na qual se instaura a instabilidade e a flexibilidade no trabalho e se intensifica a competitividade entre os indivíduos. A exploração do trabalho não fica mais restrita à fábrica, mas se estende a todos os espaços, não havendo mais demarcações claras dos limites entre as instituições disciplinares. Essas fronteiras, em muitos casos, são apagadas, porque já não se sabe o que é a casa e o que é o trabalho (DELEUZE, 2010; PELBART, 2000). Nesse novo arranjo, exige-se do indivíduo que ele esteja à altura das novas demandas do mercado de trabalho, as quais requerem agora sujeitos flexíveis, adaptáveis e que saibam investir em si mesmos, fazendo da própria existência um empreendimento lucrativo. Por isso, o investimento em capital humano e o empresariamento de si, desde há muito, tornaram-se os bordões repetidos pelo mercado como a condição não apenas para que cada trabalhador, ou futuro trabalhador, sobreviva às crises econômicas e aos processos de expropriação do capital, mas também para alcançar um padrão de vida considerado de sucesso. Esse diagnóstico não é novo, pois essa realidade já fora analisada e criticada por certos pensadores, como Foucault, Deleuze e, em outro registro, pelos próprios pensadores da Escola de Frankfurt. O que há de novo talvez esteja na força desse diagnóstico para se interrogar acerca dos efeitos de tais arranjos sobre a vida, sobre os processos de constituição dos sujeitos e sobre os espaços formativos. Não há dúvidas de que o empresariamento da vida, nos termos rapidamente acima mencionados, os quais serão mais bem explicitados no corpo desta Dissertação, produz efeitos perversos sobre a saúde, portanto, sobre o corpo do trabalhador. Buyng-Chul Han (2017), numa continuidade aos diagnósticos feitos por Foucault e Deleuze, afirma que já não estaríamos mais vivendo numa sociedade disciplinar e de controle, porém, numa sociedade de desempenho. Ainda que Han (2017) não faça uma análise mais detalhada acerca dessa tese, evidenciando o quanto ela deve aos dois pensadores franceses, reconhece que os dispositivos disciplinares e de controle sustentam o que ele denomina sociedade do 12 desempenho. Essa sociedade de desempenho desencadeou, em razão da demanda produtiva e de suas formas de controle, algumas síndromes neuronais, tais como Burnout e TDAH, decorrentes da ansiedade e do estresse provocados por essas demandas. Assim, se o século XX pode ser caracterizado como bacteriológico ou viral, em suas doenças, “[...] o começo do século XXI não é definido como bacteriológico nem viral, mas neural.” (HAN, 2017, p. 07). Identificamos que é nesse contexto que o discurso de autoajuda ganha o mercado e as almas desamparadas, com a promessa de acalantá-las, fortalecê-las e curá-las dos males que as afligem. Como esse propósito terapêutico e curativo, essas práticas passam a disputar e a orientar a conduta dos indivíduos, numa tentativa às vezes clara de fortalecer neles disposições que os ajudem a suportar o peso e as agruras da competividade, das demandas de trabalho e dos riscos do desemprego. Se autoajuda não é uma tecnologia nova no∕do mercado, hoje em dia, parece ter sido incorporada, mais do que em outras épocas, como um expediente ou uma tecnologia de produção do si mesmo que esteja em sintonia com o espírito empreendedor que visa a otimizar as forças do corpo e a evitar os adoecimentos gerados pelo próprio funcionamento da maquinaria do capital. A literatura de autoajuda tanto conquistou espaço nas estantes das livrarias quanto se tornou um discurso corriqueiro com grande profusão na atualidade, apresentando-se como guia para orientação de comportamentos, modos de viver e relacionar-se no trabalho, na vida amorosa, na orientação da educação dos filhos e na constituição de modos de ser e viver coordenados por práticas que se antecipem aos processos de adoecimento, amenizando os efeitos e as contradições inerentes às relações sociais, no capitalismo contemporâneo, de forma que esses discursos, a nosso ver, funcionam como um conjunto de práticas que têm como objetivo o governo da conduta dos indivíduos. Compreendermos que a autoajuda constitui um fenômeno social e cultural, com ampla repercussão sobre a vida do indivíduo, o qual ainda necessita ser investigado e analisado, sobretudo quando deixa de ser, aparentemente, práticas corriqueiras e despretensiosas, e passa a tecnologia que mobiliza o mundo editorial e empresarial, com forte presença nas diferentes mídias. Multiplicam-se assim as vozes dispostas a oferecerem conselhos, orientações, técnicas de treinamentos de aprimoramento mental, “mantras” que devem ser repetidos para manter-se com astral elevado, técnicas de reforço da autoestima. Todas essas práticas têm atrás de si expertise a ser investigado, principalmente aquelas direcionadas para a área educacional. 13 Como assinala Marín-Díaz (2015), investigar uma literatura pouco presente nas discussões acadêmicas e que é muitas vezes rejeitada por esse meio constitui um grande desafio, pois se trata de abordar um tema que predominantemente é fundamentado a partir de experiências, opiniões, aconselhamentos, os quais remetem a ideias e crenças que são assumidas e propostas como técnicas para a superação de problemas em diferentes campos da atuação dos indivíduos. Por essa razão, nós nos vimos provocados a investigar esse discurso que se tem tornado presente na educação escolar. Na realidade, a escola e seus atores têm se constituído como alvos desses discursos de autoajuda, de sorte que o projeto pedagógico de determinadas escolas passam a se orientar tendo como referência autores oriundos desse campo. As escolas privadas se utilizam muitas vezes desses recursos para atrair uma clientela de classe média desejosa de encontrar algo que faça a diferença na formação dos filhos e que os prepare, desde cedo, para a dura concorrência no mercado. Ao exigir do indivíduo que produza e gere lucro, independentemente das condições a que esteja submetido, o espírito empresarial capitalista busca pelo indivíduo capaz de se dedicar, de se adaptar e de se esforçar, sem que as adversidades o esmoreçam. Inclusive, sem que o corpo reclame. No fundo, o que se procura é a produção de processos de subjetivação que façam com que os sujeitos não rompam com a condição de subjugação e exploração. Desistir jamais! Este constitui o bordão favorito repetido, incansavelmente, nas entrelinhas dos livros de autoajuda. Nesse cenário, e segundo essa lógica, é fundamental se pensar num indivíduo que possa trabalhar e atingir um alto desempenho produtivo, mesmo que, para isso, ele tenha que dedicar todo o seu tempo ao trabalho. Sonha-se com um indivíduo, como escreveu Jonathan Crary (2016), em seu livro 24∕7: Capitalismo tardio e os fins do sono, que seja capaz de se dedicar ao trabalho 24 horas por dia sete dias por semana. Isso significa, como argumenta o autor, a necessidade de superação das barreiras do corpo. A barreira mais grave e mais limitante que deve ser superada, nesse processo, é a barreira do sono, que é visto como empecilho para a produtividade, pois, “[...] no paradigma neoliberal globalista, dormir é, acima de tudo para os fracos.” (CRARY, 2016, p. 23). Segundo Jonathan Crary (2016), na costa Oeste da América do Norte, em determinadas estações do ano, centenas de espécies de pássaros migram para o Norte e Sul. Uma dessas espécies é o pardal de coroa branca. “Diferente da maioria dos outros pássaros, esse pardal tem a capacidade extraordinária de permanecer acordado por até sete dias durante as migrações, o que permite voar e navegar de noite, e procurar por alimento de dia, sem 14 descansar.” (CRARY, 2016, p. 11). Esse pardal tem sido objeto de investigação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Compreender o funcionamento da atividade cerebral desse pássaro tem sido objetivo dessa pesquisa, com esperança de obter conhecimentos que possibilitem aos indivíduos suportarem longas jornadas sem dormir e produzir mais e de maneira eficiente. Este é, ressalta o autor, o sonho do sistema capitalista contemporâneo. Essa experiência mencionada acima é uma clara tentativa de aumentar a produção e o rendimento, no capitalismo atual. O anseio desse sistema tem exigido cada vez mais dos trabalhadores a capacidade de se autoconstruírem e de se refazerem segundo a lógica vigente e os seus interesses. Quando esses trabalhadores não conseguem acompanhar essas exigências, tendem a ser tratados como uma espécie de sujeitos fracassados, pessoal e profissionalmente. É nesse contexto que ocorre o aumento de pessoas acometidas por diferentes tipos de doenças e transtornos, e assim se tem a intensificação dos diagnósticos e dos discursos sobre como lidar com as chamadas patologias do século XXI. “Doenças neuronais como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), [...] Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem das patologias do começo do século XXI.” (HAN, 2017, p. 07). Diante desse cenário, observamos que há discursos e práticas disponíveis que orientam os indivíduos a lidar com essa realidade, dentre os quais temos os discursos classificados como de autoajuda, os quais têm ocupado espaço no mercado editorial, bancas de revistas e nas diferentes mídias, com orientações, conselhos postos em prática, que prometem aliviar o sofrimento e estresse, elevar a autoestima, melhorar o desempenho profissional ou amoroso, conquistar mais amigos, descobrir novas potencialidades, tornando-se mais criativo no trabalho e nas relações com os demais. Enfim, no fundo, é a promessa de que a felicidade está ao alcance da mão, bastando para isso que os sujeitos orientem suas vidas por uma série de bordões, códigos, treinos, ideias e crenças, que logo terão suas vidas modificadas. Tudo dependerá, obviamente, do esforço individual, da dedicação e da crença que se deposite nesses arranjos discursivos, embora saibamos que nem sempre isso é suficiente para o alcance da felicidade. Situada no campo da Filosofia da Educação, esta pesquisa busca analisar um tipo de discurso que, em algumas ocasiões, parece confundir-se com as práticas antigas no âmbito da filosofia. Em muitas ocasiões, a depender do tipo de literatura de autoajuda, fazem-se presentes referências a pensadores antigos gregos e romanos, como uma maneira de conferir 15 autoridade ao discurso. No entanto, as ideias de antigos pensadores são deslocadas e aplicadas em contextos que desvirtuam ou desrespeitam um trabalho sério de exegese e interpretação do texto filosófico. Aliás, esse tipo de leitura não difere em quase nada da interpretação fundamentalista que várias igrejas evangélicas fazem do texto bíblico, conferindo-lhe o sentido demandado pela ocasião. Digamos, assim, que a literatura de autoajuda funciona como uma espécie de pau para toda obra, remédio para todos os males e aflições, aos quais os indivíduos estejam submetidos. Esta investigação tem por objetivo analisar a emergência dos discursos de autoajuda, instaurada num espectro amplo do neoliberalismo contemporâneo, ao mesmo tempo em que procura compreender de que maneira esses discursos reverberam no âmbito das práticas escolares. Tendo em vista o desenvolvimento dessas duas perspectivas, iremos analisar algumas obras do escritor Augusto Cury, autor que tem publicado uma quantidade significativa de obras direcionadas aos educadores, com o foco no empreendedorismo. Ressalte-se aqui que Cury não só tem uma vasta publicação no campo da autoajuda, bem como é um autor de best sellers lidos, portanto, por milhares de pessoas. O tema da autoajuda será abordado, nesta Dissertação, tendo como referencial teórico principal as discussões de Michel Foucault (1926-1984) acerca da biopolítica e a arte de governar na modernidade, como forma eficiente de o Estado e de o mercado atuar na condução e orientação da conduta dos indivíduos, tendo como meta a constituição de um ethos adequado a um novo tipo de administração da vida, decorrente das demandas oriundas, sobretudo, dos campos da economia e da política. Esse novo arranjo biopolítico assume como prioridade intensificar as formas de controle da vida, via estímulo à competividade entre os indivíduos. O que importa, nesse jogo, é que cada um se transforme numa espécie de empreendedor de si mesmo, em empresário de si mesmo. Michel Foucault é escolhido pelo fato de trazer várias contribuições aos campos do saber, não se limitando apenas ao campo da Filosofia. Sem a intenção de fazer filosofia aos moldes clássicos dos seus antecessores, principalmente no que se refere à busca pela verdade, bem como a sua definição, Foucault procura compreender como a verdade foi construída e qual a sua relação com o poder. No conjunto de sua obra, encontram-se presentes discussões políticas, sociais, filosóficas, as quais são importantes para a análise dos fenômenos educacionais, na atualidade, consequentemente, “[...] seus livros era como uma caixa de ferramentas que os leitores poderiam vasculhar em busca daquela de que precisavam para pensar e agir.” (OKSALA, 2011, p. 07). E foi dessa caixa de ferramentas que retiramos o 16 conceito de biopolítica, para nos auxiliar a pensar e discutir a presença do discurso de autoajuda, no campo da Educação. “O conceito de biopolítica”, escreve Duarte (2010, p. 205), “[...] se tornou importante ferramenta conceitual para a compreensão e o diagnóstico das crises e mutações políticas do presente.” Tomamos como referência, para análise das práticas e enunciados dos discursos de autoajuda, o conceito de biopolítica de Michel Foucault, pois esse conceito nos possibilita compreender esse fenômeno como uma forma de governo dos indivíduos. Para a discussão do conceito de biopolítica, recorremos aos cursos “Nascimento da Biopolítica” e “Segurança, Território, População”, ministrados no Collège de France, em 1978 e 1979, respectivamente. Temos consciência de que esse conceito de governo biopolítico cobre um período, na obra de Foucault, que vai de 1975 a 1980, cujos resultados podem ser encontrados também nos cursos “Os Anormais” e “Em defesa da sociedade”. A opção pelos cursos “Segurança, Território, População” e “Nascimento da Biopolítica” se justifica pela maneira como essa noção de biopolítica passa a tratar das estratégias inerentes à racionalidade econômica do neoliberalismo e de suas formas de controle sobre a vida. Tal análise última que Foucault faz da noção de biopolítica amplia a compreensão acerca dos modos de administração da vida, na atualidade. André Duarte (2009, p. 47) apresenta esse movimento interno da noção de biopolítica em Foucault, nos seguintes termos: Se Em defesa da sociedade e no volume I da História da sexualidade Foucault considerava a biopolítica a partir da capacidade do poder estatal de agir a fim de incentivar a vida e aniquilar suas partes consideradas perigosas por meio de políticas públicas dirigidas a esse fim, em Nascimento da biopolítica ele centra a atenção na caracterização dos sutis processos de governamento econômico dos indivíduos e da população, os quais decidem regrar e submeter sua conduta pelos princípios do autoempreendedorismo, tornando-se, assim, presas voluntárias de processos de individuação e subjetivação controlados flexivelmente pelo mercado. Nas últimas quatro aulas que estão no livro Nascimento da biopolítica, Foucault analisa as tecnologias neoliberais de governo, evidenciando de que maneira o mercado funciona como instrumento de governamentalização da população. Ao se ocupar dessa problemática, Foucault (2008) centra sua análise nos conceitos de homo oeconomicus, capital humano, sociedade empresarial, no registro adotado pela Escola de Chicago, em que o homem é compreendido como agente econômico, como “[...] um empresário, e empresário de si mesmo [...] sendo ele próprio o seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de sua renda.” (FOUCAULT, 2008, p. 311). Essa renda decorre da venda de 17 certo capital (capital humano) que precisa se valorizar e ampliar suas competências, capacidades e habilidades profissionais, para concorrer no mercado de trabalho da sociedade empresarial. Trata-se de uma multiplicidade de competências requeridas àqueles que queiram se lançar à concorrência, que vão desde a [...] gestão de recursos humanos nas empresas à problematização da aprendizagem através de competências, ou ainda a interação humana focada no desenvolvimento das competências emocionais e coletivas. Competências que visam produzir pessoas “saudáveis, sadias e produtivas”. Ou melhor, sujeitos flexíveis e adaptados. (ROSA, 2009, p. 378). Assim, a biopolítica neoliberal se constituirá a partir da articulação entre a figura do homo oeconomicus 1 e a teoria do capital humano. A questão, portanto, é saber de que modo podemos nos equipar, a fim de nos tornarmos competitivos na sociedade empresarial. A literatura de autoajuda, sobretudo aquela voltada para o mundo empresarial e para o mercado de trabalho, tem como foco indicar soluções, conselhos, orientações que respondam a essa questão e aos anseios de uma população que se encontra desamparada, no jogo flutuante da economia. Há, nas análises que Foucault realiza da sociedade disciplinar e acerca dos processos de governamentalização do Estado, as quais lançam luzes sobre os processos educacionais, em que são evidentes as articulações existentes entre as denominadas instituições disciplinares e as formas amplas de governamento da vida. Michel Foucault nos oferece algumas ferramentas conceituais para análise dos discursos de autoajuda: Estudiosos como Jorge Larrosa, entre tantos outros de vários países, também aqui no Brasil, já nos têm mostrado como Michel Foucault oferece inúmeras ferramentas, teóricas, metodológicas e mesmo temáticas para nossos estudos em educação: as práticas de vigilância na escola, a construção disciplinar dos currículos, as relações de poder no espaço da sala de aula, a produção de sujeitos confidentes – são apenas alguns dos muitos temas que há pelo menos dez anos têm sido estudados em nossa área, com base no pensamento do filósofo. (FISCHER, 2012, p. 99-100). 1 Embora Foucault (2008) faça uma longa discussão acerca dessa noção de homo oeconomicus e de seu funcionamento, no contexto das teorias econômicas clássicas e modernas, retomamos, por ora, alguns esclarecimentos do autor, os quais são úteis para elucidação desse termo: “O homo oeconomicus é aquele que aceita a realidade. A conduta racional é toda conduta sensível a modificações nas variáveis do meio e que responde a elas de forma não aleatória, de forma portanto sistemática, e a economia poderá portanto se definir como ciência da sistematicidade das respostas às variáveis do ambiente” (p.368). Mais adiante dirá Foucault: “[...] esse homo oeconomicus aparece justamente como o que é manejável, o que responde sistematicamente a modificações sistemáticas que serão introduzidas artificialmente no meio. O homooeconomicus é aquele que é eminentemente governável. De parceiro intangível do laissez-faire, o homo oecomicus aparece agora como o correlativo de uma governamentalidade que vai agir sobre o meio e modificar sistematicamente as variáveis do meio.” (p. 369). 18 Levando em consideração os objetivos da nossa pesquisa, tomamos como referência, para a nossa análise, o conceito de biopolítica em Michel Foucault, o qual fora discutido pelo filósofo em suas pesquisas, especificamente na fase denominada Genealógica. Conforme Silveira (2005), as obras de Foucault são divididas em três fases: a Arqueológica, na qual Foucault discute os saberes e a verdade; a Genealógica, onde o eixo das discussões se encontra no poder; e, por fim, a fase Ética. Ainda que haja essa divisão das obras, “[...] arqueologia, genealogia e ética não são estanques e rígidas entre si. Ademais, não há entre estas etapas rompimentos bruscos, senão deslocamentos [...] entre suas ênfases metodológicas.” (SILVEIRA, 2005, p. 41). Ao tomarmos a complexidade da obra do autor e visando a delimitar nossa análise, nosso intuito foi construir nossa discussão a partir dessa fase genealógica foucaultiana. Não tivemos por objetivo elaborar uma história e análise do pensamento foucaultiano, mas fazer um recorte para o que nos propomos acerca dos efeitos de poder e verdade que a autoajuda busca produzir sobre os sujeitos, particularmente aquela dirigida aos sujeitos no contexto escolar. De acordo com Duarte (2010), o legado teórico de Foucault não se esgota na renovação de áreas do conhecimento, já estabelecidas, todavia, o filósofo tem a capacidade de formular conceitos e modos de problematização. É nesse registro que se situa o conceito de biopolítica, o qual foi apresentado em 1976, no último capítulo da obra História da Sexualidade, volume 1, e discutido de maneira mais ampliada, por Michel Foucault, nos cursos ministrados pelo filósofo, nos anos seguintes, no Collège de France. Inicialmente, ao pensarmos nesse conceito de biopolítica, podemos nos remeter ao seu significado etimológico de política da vida, e ao compreendermos o termo política como arte de governar, podemos assim entender, de maneira geral, o conceito de biopolítica como o governo da vida. Será dessa perspectiva que abordaremos a discussão feita por Foucault, na qual vai pensar as formas de controle e governo da vida, em suas relações com os saberes que nos governam. O que interessa a Foucault, nessa análise, não é realizar uma analítica da verdade, mas pensar uma política da verdade. Ou seja, importa mais compreender a emergência dos saberes e pensar os efeitos que eles produzem sobre a vida (DUARTE, 2010; VEIGA-NETO, 2004). 19 O objetivo, por conseguinte, é compreender os discursos de autoajuda enquanto uma tecnologia que emerge atrelada aos interesses do empreendedorismo do mercado. Por outro lado, esses discursos se apresentam como saberes especializados que pretendem dizer aos sujeitos o modo como devem viver e se adequar às demandas do Estado e do mercado no tempo presente. Importa, portanto, pensar os discursos de autoajuda enquanto uma maneira explícita de condução de condutas indutores de processos de subjetivação e subjugação dos indivíduos aos interesses do mercado. Tendo em vista o nosso propósito, dividimos a Dissertação em três capítulos. No primeiro capítulo, sob o título “O discurso de autoajuda à luz da biopolítica foucaultiana”, examinamos o conceito de biopolítica em Foucault, apropriando-nos assim desse conceito, visando a um embasamento teórico para compreendermos a perspectiva desse discurso de autoajuda e a sua presença na educação, como uma forma de condução de condutas. No segundo capítulo, intitulado “O discurso de autoajuda em perspectiva”, fizemos uma retomada histórica de alguns aspectos da autoajuda, cuja preocupação foi identificar os precursores do discurso de autoajuda e quais as suas particularidades. Foi realizado também, nesse capítulo, um esforço em estabelecer as possíveis relações, almejando compreender algumas distinções entre o discurso motivacional, o qual se caracteriza como científico, e o discurso de autoajuda. No terceiro capítulo, intitulado “A autoajuda e Educação nas obras de Augusto Cury”, apresentamos algumas das principais obras de Cury; nesse sentido, selecionamos e analisamos algumas delas, direcionadas à educação, procurando identificar a estrutura e características desses discursos, bem como a sua relação com o discurso de autoajuda em perspectiva, focalizado no capítulo anterior. Buscamos demarcar, nessas obras, grupos de enunciados em torno dos quais seja possível identificar modos de aconselhamento, orientações, exercícios e estratégias, com o objetivo de produzir disposições, comportamentos, humores, nos leitores∕consumidores, que os preparem para o enfrentamento dos desafios cotidianos postos pela competividade do mercado e interesses neoliberais. Por fim, ainda no terceiro capítulo, identificamos a autoajuda enquanto uma expressão do Coaching, que visa a treinar e melhor preparar os indivíduos, e que é abordado por Cury a partir da idealização da escola Coaching emocional. Essa escola constitui um método direcionado para o trabalho de desenvolvimento e ampliação de competências, para um 20 melhor rendimento no processo educacional de alunos, pais e professores. Nossa análise ocorrerá a partir da identificação de alguns eixos, muito presentes nesse tipo de discurso. Interessa-nos indicar que a autoajuda emerge como um tipo de discurso de expertise que tem a pretensão de verdade, que se coloca como um “discurso competente”, embora sob a roupagem do aconselhamento e de uma espécie de acolhimento afetuoso. Trata-se de um discurso que deseja governar os indivíduos, de acordo com interesses específicos que estão, a nosso ver, em consonância com o ideário neoliberal. É nesse registro que acreditamos se situar os discursos de autoajuda de Augusto Cury, na atualidade. Em tempos de ampla presença desse discurso de autoajuda, no campo da educação, acreditamos ser fundamental realizar esse trabalho de análise e investigação, procurando identificar quais seus reais interesses e possibilitando, dessa forma, uma reflexão a todos aqueles que, de maneira direta ou indireta, estão envolvidos com o processo educacional. 21 CAPÍTULO 1 OS DISCURSOS DE AUTOAJUDA À LUZ DA BIOPOLÍTICA FOUCAULTIANA Segundo Silveira (2005), Foucault se apoiará na genealogia de Nietzsche, a fim de investigar e problematizar as relações entre valores, teoria, verdade e instituições. Nessa discussão, o filósofo atenta para as questões que têm relação com o poder. Esse tema será um eixo central em várias obras de Foucault, “[...] a análise desse tema mereceu atenção de Michel Foucault, em grande parte de seus discursos no Collège de France (1971-1980).” (SILVEIRA, 2005, p. 43). Em tal análise, Foucault aborda o poder com base nos diferentes contextos em que foi exercido nas sociedades. “Historicamente, ele distingue três regimes de poder que se apoiaram uns aos outros” (BERT, 2013, p.115), o poder soberano, no qual o rei tem o direito de vida e morte sobre os seus súditos; o poder disciplinar, no qual os indivíduos são inventados e produzidos no contexto das instituições disciplinares, e o poder biopolítico, no qual o governo recai não sobre o corpo do indivíduo, mas sobre a população, como um fenômeno que deve ser examinado à luz das ciências estatísticas, das ciências médicas e das ciências biológicas. A população passa a ser analisada e investigada em seus movimentos, em função de um espectro amplo de ciências. Enfim, o que passa a ganhar destaque, nesse novo arranjo, é o governo da vida da população, a qual se dá a partir de um cálculo político e científico. Distinto do poder do soberano e do poder disciplinar, sem exercer um poder sobre território e sem vigiar e punir, o poder biopolítico tem características específicas, sendo uma delas a técnica e o exercício do poder sobre a população, por meio de uma série de dispositivos. Não superando o poder disciplinar, uma vez que não são excludentes, na biopolítica, haverá uma nova forma de exercício do poder, o qual não se exercerá sobre o corpo individual, todavia, sobre o corpo da população. Teremos, nessa forma de poder, a racionalização e a preocupação com a administração da vida da população. 22 No contexto biopolítico surge uma nova preocupação, segundo Foucault. Não cabe ao poder fazer morrer, mas sobretudo fazer viver, isto é, cuidar da população, da espécie, dos processos biológicos, cabe ao poder otimizar a vida. Gerir a vida em todas as suas dimensões, mais do que exigir a morte. (PELBART, 2007, 59). Conforme Pelbart (2007), diferenciando ainda o poder num regime de soberania de um poder biopolítico, observa-se que este investe na vida e não na morte, que outrora era ritual no poder soberano. A esse novo poder, inaugurado no final do século XVII e início do século XVIII, Foucault denominou governamentalização do Estado, indicando que, a partir desse momento, há uma nova maneira de pensar o governo da população, a qual passa pela construção de uma razão de Estado que investe de forma calculada no controle dos fenômenos populacionais. Decorre disso o que Foucault irá nomear como governamentalidade, enquanto uma arte de governar (FOUCAULT, 1988, 1999). Diferente do poder do soberano, que pode “fazer morrer ou deixar viver” e exerce seu poder sobre um território específico, no biopoder, o poder será calculado e sutilmente planejado, com fins de conduzir a vida do conjunto da população. Compreendemos assim que, durante muito tempo, para Foucault (2014), o poder soberano tivera o direito de vida e morte, derivado da velha pátria potestas, a qual concedia ao pai de família romana todo o direito sobre a vida dos seus filhos e escravos. Caberia ao pai quem deveria viver e/ou morrer. Se foi o pai que concedera a vida, ele poderia tirá-la. Esse direito de decidir a vida ou morte foi adotado pelo soberano do Estado, o qual, em diferentes situações, seja de ameaça ao Estado, seja de infração às leis, pode exercer o poder sobre a vida do súdito, matando-o ou castigando-o. “Encarado nesses termos, o direito de vida e morte na não é um privilégio absoluto: é condicionado à defesa do soberano e à sua sobrevivência enquanto tal.” (FOUCAULT, 2014, p. 143). No poder soberano, conforme Foucault (2014), a instância principal é a do confisco, em que o poder soberano pode subtrair e se apropriar de riquezas, tais como produtos, serviços, bens e trabalho pertencentes aos súditos. “O poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la.” (FOUCAULT, 2014, p. 146). Entretanto, assinala Foucault (2014), houve uma transformação nesse mecanismo de poder, e o confisco não é mais a forma principal, mas apenas uma peça num todo de controle e organização das forças submetidas. Não cabe mais destruir, porém, reforçar e fazer crescer. 23 Assim, o direito de morte que o soberano tinha sobre o súdito passa a ser deixado de lado, em detrimento de um poder que gerasse a vida. Trata-se, a partir desse momento, de um exercício positivo de poder sobre a vida, passando a empreender sua gestão e multiplicação. Portanto, as guerras não visam mais a defender o soberano, mas a defender um território. Se ocorrer a morte, será para defender a vida, como ocorrerá com vários regimes. Os Estados que hoje combatem não almejam a questão jurídica, como no poder soberano, contudo, o que está em jogo é o corpo biológico da população. “Se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque o poder se situa e é exercido no nível da vida.” (FOUCAULT, 2014, p. 148). Para exemplificar a discussão acima, Foucault (2014) cita a pena de morte, a qual fora ao longo dos anos forma de direito de fazer morrer ou deixar viver, executada pelo soberano. Porém, ao visar à gestão da vida, não de uma perspectiva humanitária, mas a partir da própria lógica do exercício do poder, é que se dificultou a pena de morte. Matar, nessa nova espécie de poder, é contraditório, e apenas legítimo em caso de risco biológico para a população. “Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte.” (FOUCAULT, 2014, p.148-149). A morte é analisada e compreendida em razão de novos vieses. Segundo Foucault (2014), esse poder e cuidado sobre a vida se desenvolveram desde o século XVII, em duas formas principais. Essas formas não são contrárias e se desenvolveram interligadas, por meio de um feixe, no qual um dos polos se centrou como máquina, no corpo, e visava ao adestramento e ampliação de aptidões, focando na extorsão de forças, tendo em vista o crescimento útil e a docilidade, “[...] na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano.” (FOUCAULT, 2014, p. 150). Já o outro polo, formado posteriormente, no século XVIII, “[...] centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos.” (FOUCAULT, 2014, p. 150). Esse polo atentava para questões relacionadas ao nascimento e mortalidade, saúde, duração da vida, levando em conta suas variantes. Nesse sentido, a estatística e a demografia tornam-se fundamentais. Para tanto, assume-se esse processo por meio de intervenções e controles reguladores, enfim, por uma biopolítica da população. Disciplinar o corpo e regular a população são os polos em que se organizou e se desenvolveu o poder sobre a vida (FOUCAULT, 2014). 24 Assim, conforme Foucault (2014), a vida passa a ser gerida e calculada, numa espécie de administração. Inaugura-se a era do biopoder, em que se conjugam controle disciplinar do corpo e controle das populações. Esses tipos de controle vão se valer de várias instituições denominadas disciplinares e de saberes científicos, através dos quais se exerce um cálculo sobre a vida. Isso teria ocorrido, sobretudo, a partir do século XIX. Assim afirma Foucault: Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi, é o que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico. (FOUCAULT, 2014, p. 285-286). Sem precisar nos alongar muito sobre essa passagem do governo disciplinar dos indivíduos para um governo biopolítico da vida da população, e para nos determos mais à questão da biopolítica, retomamos no trecho abaixo a maneira como Foucault a caracteriza: Depois da anatomopolítica do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anatomopolítica do corpo humano, mas que eu chamaria de um “biopolítica” da espécie humana. De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que está se instalando? Eu lhes dizia em duas palavras agora há pouco: trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de um população, etc. (FOUCAULT, 2014, p. 204). De acordo com Foucault (2014), os processos mencionados acima, juntamente com os problemas políticos e econômicos, são os alvos de controle da biopolítica. Com isso, surge a estatística, a demografia, com o objetivo de produzir mapeamentos, os quais são fundamentais para o controle do homem-espécie. Essa biopolítica cuida das doenças (em suas causas, formas, intensidade, duração) que afetam a população. Nesse sentido, a medicina introduzida ao final do século XVIII preocupa-se mais com higiene, centralização de informação, normalização do saber e medicalização da população. A biopolítica irá intervir também, segundo Foucault (2014), em todo o conjunto de fenômenos, quer acidentais, quer universais, não compreensíveis inteiramente, mesmo que acidentais, todavia, que acarretam consequências semelhantes e incapacidades dos indivíduos, neutralizando ou colocando o indivíduo fora de circuito. É o caso da velhice e dos acidentes e enfermidades. Foucault (2014) destaca, em relação a esses fenômenos, que a biopolítica introduzirá mecanismos sutis e racionais. “Vamos ter mecanismos mais sutis, mais racionais, 25 de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade.” (FOUCAULT, 2014, p. 205). Essa biopolítica se preocupará com as relações entre a espécie humana, seu meio de existência e os efeitos hidrográficos e climáticos sobre os seres humanos. Eu lhes assinalo aqui, simplesmente, alguns dos pontos a partir dos quais se constituiu essa biopolítica, algumas de suas práticas e as primeiras das suas áreas de intervenção, de saber e de poder ao mesmo tempo: é a da natalidade, da morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos efeitos do meio, é disso tudo que a biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu poder. (FOUCAULT, 2014, p. 206). Nessa nova tecnologia de poder se lida com um novo corpo, que não é o indivíduo- corpo, mas é um corpo múltiplo, com várias cabeças. É a população. “A biopolítica lida com a população.” (FOUCAULT, 2014, p. 206). Além da população, importa também a natureza dos fenômenos, os quais são coletivos, aparecendo com seus efeitos econômicos e políticos. Trata-se de fenômenos imprevisíveis e aleatórios presentes no coletivo. “São fenômenos que se desenvolvem essencialmente na duração, que devem ser considerados num certo limite de tempo relativamente longo; são fenômenos de série.” (FOUCAULT, 2014, p. 207). O direcionamento da biopolítica será aos acontecimentos aleatórios ocorridos numa população. Essa nova tecnologia do poder, ressalta Foucault (2014), implantará mecanismos que têm funções distintas dos mecanismos disciplinares. Na biopolítica, os mecanismos implantados tratarão de estimativas estatísticas, previsões, medições globais. Não visará a modificar o fenômeno ou o indivíduo, porém, a intervir naquilo que os fenômenos têm de global. Esses novos mecanismos são reguladores, procurando conservar equilíbrio, manter média, assegurar compensações, otimizar a vida. Não se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas, pelo contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação. (FOUCAULT, 2014, p. 207). Objetiva não o individual, contudo, a segurança do conjunto e sua previdência, por meio de processos de regulamentação e com atenção ao fazer viver e deixar morrer. Por isso, “[...] a partir do século XIX, já não importava mais apenas disciplinar as condutas individuais, mas também implantar um gerenciamento planificado da vida das populações.” (DUARTE, 2010, p. 222). 26 Em “Segurança, território, população”, Foucault volta a discutir o poder como uma biopolítica, porém, agora a partir da noção de governamento, levando em consideração os procedimentos destinados a conduzir a conduta dos homens. “O exercício do poder consistiria em conduzir condutas e em ordenar possibilidades, estruturando o eventual campo de ação dos outros. Tal exercício é da ordem do governo.” (SILVEIRA, 2005, p. 92). Esse governo utilizará alguns procedimentos, tais como saberes, táticas e técnicas, almejando percorrer uma análise da governamentalidade e compreendendo-a como arte de governar. Nessa perspectiva, é possível afirmar que ela possui característica fundamental, sendo uma arte de governo, que é geral, mas também individual: A governamentalidade concerne à natureza da prática de governar (quem pode governar, o que é governar, o que o quem é governado). Ela também diz respeito a como se governa. A sua característica fundamental é ser uma prática de soberania política que busca governar as pessoas, em conjunto, ao mesmo tempo em que se preocupa com cada indivíduo, o que evidencia uma gestão que procura ser totalizante e individualizante. (SILVEIRA, 2005, p. 92-93). Michel Foucault, na aula de 8 de fevereiro de 1978, inicia a discussão justificando a importância de se pensar na governamentalidade. De acordo com o pensador, governar não é o mesmo que reinar, comandar ou fazer leis, assim como governar não é ser soberano, senhor, juiz ou general. Por isso, partindo do princípio de que há uma especificidade no ato de governar, é preciso compreender essa noção. Assim, é possível identificar em Foucault a preocupação em pensar sobre as formas com que nós somos governados. Em sua discussão genealógica acerca do poder, o filósofo irá refletir sobre as técnicas de condução a que os indivíduos estão submetidos. 1.1.A biopolítica na perspectiva neoliberal No curso “Nascimento da biopolítica”, Foucault abordará a biopolítica a partir do neoliberalismo americano, construindo uma noção de biopolítica relacionada à racionalidade econômica do neoliberalismo: O curso deste ano foi finalmente dedicado, em sua totalidade, ao que devia constituir apenas a introdução. O tema escolhido foi, portanto, a “biopolítica”: entendida por “biopolítica” a maneira pela qual se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas propostos à prática governamental, pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, raças... Sabe-se o 27 lugar crescente que esses problemas ocuparam, desde o século XIX, e as questões políticas e econômicas em que eles se constituíram até os dias de hoje. (FOUCAULT, 1997, p. 89). No presente curso, Foucault (2008) inicia a abordagem do neoliberalismo americano, diferenciando-o do neoliberalismo alemão. O filósofo apresenta os elementos de contexto em que o neoliberalismo americano se desenvolveu. São três os principais elementos: a) a existência do plano New Deal e a crítica a esse plano, o qual consiste num acordo com o objetivo de recuperação e reformulação da economia americana, após a grande depressão; a política keynesiana, liderada pelo presidente Roosevelt; b) o plano Beveridge, elaborado em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, pelo economista William Henry Beveridge, e que tinha por objetivo um projeto de intervenção social, como, por exemplo, o pagamento de uma taxa semanal ao Estado, valores esses que seriam utilizados como subsídios para os necessitados, como os doentes; e, por fim, um terceiro elemento seriam os programas associados à pobreza, educação e segregação, os quais se desenvolveram durante a administração do presidente americano Harry Truman, na década de 1940, até o mandato do presidente Lyndon Baines Johnson. Segundo Foucault (2008), esses elementos podem ser chamados de pactos de guerras, em que os governos comunicavam as pessoas, após passarem por uma crise, que era momento de elas entregarem a sua vida, em troca da manutenção do emprego para a vida toda. Esses pactos objetivavam uma organização econômica e social, além de garantir a segurança do emprego, enfrentar as dificuldades diante das doenças e cuidar da aposentadoria: Creio que esses três elementos – a política keynesiana, os pactos sociais de guerra e o crescimento da administração federal através dos programas econômicos e sociais –, foi tudo isso que constitui o adversário, o alvo do pensamento neoliberal, que foi aquilo em que ele se apoiou ou a que ele se apôs, para se formar e para se desenvolver. (FOUCAULT, 2008, p. 299). Ainda diferenciando o neoliberalismo europeu do americano, identificamos que, para Foucault, o liberalismo americano, em sua formação, surge no início do século XVIII e com viés econômico, tornando-se um legitimador do Estado, isto é, o Estado organiza-se a partir dele. Nesse sentido, o liberalismo é semelhante a uma grade, através da qual o Estado pensa em suas atribuições e responsabilidades. Ademais, o liberalismo americano sempre esteve no centro das discussões políticas dos Estados Unidos, em diversos âmbitos, como em discussões sobre a escravidão, o funcionamento das instituições e a relação entre os indivíduos. “Podemos dizer que a questão do liberalismo foi o elemento recorrente de toda a discussão e 28 de todas as opções políticas dos Estados Unidos.” (FOUCAULT, 2008, p. 300). E, por fim, as políticas intervencionistas, o não-liberalismo e os programas sociais e econômicos representaram, no século XX, uma ameaça, pois introduziam objetivos socializantes e bases imperialista e militar. Embora ancorado pela direita ou esquerda, fora aplicado e reativado em ambas as linhas. Ou seja, se, numa perspectiva europeia, consistia numa opção de organização política e econômica, nos Estados Unidos, o liberalismo será uma maneira de pensar e de ser (FOUCAULT, 2008): O liberalismo americano, atualmente, não se apresenta apenas, não se apresenta tanto como uma alternativa política, mas digamos que é uma espécie de reivindicação global, multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à esquerda. É também uma espécie de foco utópico sempre reativado. É também um método de pensamento, uma grade de análise econômica e sociológica. (FOUCAULT, 2008, p. 301). Como traços gerais, que permitem distinguir o neoliberalismo americano do europeu, alemão e francês, Foucault (2008) apresenta dois elementos, os quais, segundo o filósofo, são métodos de análise e tipos de programação: a teoria do capital humano e o programa da análise da criminalidade e da delinquência. Destacamos, a seguir, a teoria do capital humano, a qual é central em nosso trabalho: Essa teoria representa dois processos, um que poderíamos chamar de incursão da análise econômica num campo até então inexplorado e, segundo, a partir daí e a partir dessa incursão, a possibilidade de reinterpretar em termos econômicos e em termos estritamente econômicos todo um campo que até então, podia ser considerado, e era de fato considerado, não- econômico. (FOUCAULT, 2008, p. 302). Foucault (2008) ressalta que houve uma incursão da análise econômica, em campos os quais não eram propriamente econômicos. Os neoliberais americanos afirmam que, na economia política, a explicação para a produção de bens dependia de três fatores, a terra, o capital e o trabalho. Entretanto, asseguram que o trabalho nunca fora explorado por essa economia, isto é, os economistas nunca escreveram nada sobre isso. Embora alguns teóricos, como Adam Smith, tenham discutido sobre o trabalho, ele não fora abordado de maneira neutra e exclusiva com respeito ao fator tempo. Além do mais, mesmo que Marx tenha tratado do trabalho, os neoliberais não discutem com Marx, pois o pensador mostra a mecânica econômica do capitalismo, numa lógica que retém do trabalho a força e o tempo. Para Marx, a abstração do trabalho decorre do capitalismo. Assim, os neoliberais, numa crítica à economia clássica, irão reintroduzir o trabalho no campo da análise econômica, o que fizera Theodore Schultz. Segundo eles, a análise econômica não deve se voltar ao estudo dos 29 mecanismos de produção, troca e de consumo, mas à análise de como os recursos raros são alocados pelos indivíduos. A análise econômica deve levar em consideração os cálculos desses recursos, isto é, trata-se de uma economia que analisa o comportamento humano. “A economia já não é, portanto, a análise da lógica histórica de processo, é a análise da racionalidade interna, da programação estratégica da atividade dos indivíduos.” (FOUCAULT, 2008, p. 307). Logo, ao se pensar no trabalho, a preocupação em torno dele não será, para os neoliberais, segundo Foucault (2008), situar seu lugar na relação entre capital e produção, mas saber como aquele que trabalha se utiliza dos recursos que ele tem. “Ou seja, será necessário, para introduzir o trabalho no campo da análise econômica, situar-se do ponto de vista de quem trabalha; será preciso estudar o trabalho como conduta econômica praticada, aplicada, racionalizada, calculada, por quem trabalha.” (FOUCAULT, 2008, p. 307). O trabalho será analisado a partir de uma racionalidade estratégica e, nesse sentido, aquele que trabalha, o sujeito trabalhador, não é um objeto de oferta e procura, entretanto, conforme Foucault (2008), um sujeito econômico ativo. A Teoria do Capital Humano está relacionada ao surgimento da disciplina Economia da Educação, e teve a sua emergência em meados dos anos 1950, com o economista Theodore W. Schultz, do Departamento de Economia da Universidade de Chicago, Escola de Chicago. Schultz, no decorrer nos anos 1950-60, publicara vários artigos, todos presentes no livro Investment in Human Capital, de 1971. Assim, ele é considerado o criador dessa Teoria do Capital Humano. Nessa teoria, o sujeito econômico ativo, aquele que trabalha, trabalha para ter um salário, o qual nada mais é do que uma renda, a qual “[...] é simplesmente o produto ou o rendimento de um capital.” (FOUCAULT, 2008, p. 308). Por conseguinte, o capital gera uma renda e, nessa perspectiva, todos os fatores que levam uma pessoa a ganhar um determinado salário estão associados ao seu capital, competência e aptidão. O sujeito é uma “máquina”, cuja competência produtiva se define pelo seu capital humano. De acordo com Foucault (2008), a decomposição do trabalho em capital e renda leva a algumas consequências. Primeiramente, se o capital é o que possibilita uma renda, que é um salário, logo o capital não está indissociável daquele que o tem. A competência para um determinado trabalho não está separada do trabalhador e, por isso, a competência do trabalhador produz, e ele é assim compreendido como uma máquina que produz renda, e a produzirá conforme a sua capacidade, aumentando ou diminuindo os salários, de acordo com o tempo. Por isso, não está relacionado à força de trabalho, porém, à competência. 30 Não é uma concepção da força de trabalho, é uma concepção do capital- competência, que recebe, em função de variáveis diversas, certa renda que é um salário, uma renda-salário, de sorte que é o próprio trabalhador que aparece como uma espécie de empresa para si mesmo. (FOUCAULT, 2008, p. 310). Esse elemento da teoria do Capital Humano nos permite compreender, a partir de Foucault (2008), que a análise econômica, no neoliberalismo, deve tomar como base não tanto o indivíduo, processos ou mecanismos, mas as empresas. Ou seja, toma o indivíduo como uma pequena empresa. Levando em consideração o elemento da Teoria do Capital Humano, Foucault (2008) afirma que o neoliberalismo retorna ao homo oeconomicus, mas não de acordo com a concepção clássica, em que esse homem é parceiro de troca, em que era analisado em seus comportamentos e utilidades. No neoliberalismo, “[...] o homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo” (FOUCAULT, 2008, p. 311) e, nesse sentido, ele será visto como aquele que possui o seu próprio capital, o seu próprio produtor, e assim consequentemente, fonte de sua própria renda. Por isso, o salário, a renda, está relacionado ao capital desse indivíduo, e por isso se chamará capital humano, o qual, para Foucault (2008), é composto por elementos inatos e adquiridos. De acordo com Schultz (1973), nessa Teoria do Capital Humano, os trabalhadores detêm o capital, definindo assim o seu valor dentro do mercado de trabalho. Portanto, o salário do trabalhador é um produto do seu capital, é consequência de um investimento em si mesmo. Considerando a Teoria do Capital Humano, tem-se a concepção de sujeito ativo, responsável pelo seu salário. Conforme Foucault (2008), essa teoria tem como princípio, grade, para compreender as condutas dos indivíduos no mercado. Na economia neoliberal, o mercado torna-se um instrumento para governar as pessoas, e o homem se transforma, assim, em um agente econômico e dono do seu próprio capital: A teoria do Capital Humano, ao adotar o mercado como princípio de inteligibilidade e/ou chave de decifração, toma os comportamentos e as condutas dos indivíduos como objeto genuínos de uma análise econômica. Nessa perspectiva, por um lado, os comportamentos e as condutas dos indivíduos passaram a ser analisados sob a forma de cálculos racionais da relação custo-benefício dos investimentos feitos por esses indivíduos, particularmente no que diz respeito à sua formação técnica e/ou profissional, tendo em vista um retorno posterior, na forma de fluxos de renda (salários). (GADELHA, 2010, p. 128). 31 A Teoria do Capital Humano, que enfatiza a necessidade de o sujeito investir sobre si mesmo, em função da análise custo-benefício, tem sido muito enfatizada nos discursos de autoajuda e empresarial; direcionada aos empresários e aos trabalhadores, tem reverberado no debate educacional. Para que o sujeito se torne competitivo, é necessário investir em si mesmo, a fim de que o seu capital humano seja potencializado. É dessa perspectiva que a educação, de um modo geral, e a educação escolar, em particular, transformaram-se num espaço de investimento em capital humano: “Formar capital humano, formar portanto essas espécies de competência-máquina que vão produzir renda, ou melhor, que vão ser remuneradas por renda, que dizer o quê? Quer dizer, é claro, fazer o que se chama de investimentos educacionais.” (FOUCAULT, 2008, p. 315). O discurso de autoajuda, apropriando-se da lógica da Teoria do Capital Humano, não se tem restringido apenas ao campo empresarial, mas tem sido direcionado a pais e professores, orientando-os por meio de “dicas” e exercícios para que os filhos e educandos sejam sujeitos realizados, na medida em que desenvolvam suas potencialidades em consonância com as demandas do tempo presente: Livros de autoajuda circulam amplamente como livros para consumo massivo nas prateleiras dos supermercados, como livros de textos nas salas de aula tanto no ensino fundamental quanto no espaço universitário, assim como nos processos de formação inicial e permanente de professores – nas faculdades de educação, nos programas de pós-graduação e nos cursos e seminários de aperfeiçoamento profissional oferecido pelas escolas, ministérios e secretarias de educação. (MARÍN-DÍAZ, 2015, p. 205). Os discursos de autoajuda direcionados à educação, como é o caso das obras de Cury, apresentam-se também com enfoque empreendedor, no qual se reforça a ideia de que o indivíduo precisa investir em si mesmo, desenvolvendo competências e habilidades. Trata-se de um trabalho de autoconstrução em que cada um saiba se transformar, controlando seus pensamentos e emoções, potencializando-os positivamente. Aqui, como lembra Foucault (2008), investir em capital humano é algo que vai além dos aspectos relacionados às atividades estritamente educacionais, mas vai demandar de todo um cálculo que leve em conta o ambiente educacional, a maneira como se lida com os afetos e estímulos, ao mesmo tempo em que são indicadas uma série de estratégias e técnicas para a condução eficiente dos processos de adaptação ao meio ambiente. O sucesso ou o fracasso irão depender, assim se espera, do investimento que o sujeito faz em si mesmo. Se, nessa teoria, o indivíduo é uma “máquina”, ele precisa ser e estar cada vez mais equipado. Diante das mudanças ocorridas no 32 mercado de trabalho e no consumo, o sujeito que não “equipar” a sua “máquina”, isto é, aquele que não investir em si mesmo, não conseguirá alcançar um emprego e um bom salário, uma renda, pois o seu capital poderá perder a raridade no mercado. Esse discurso da produção de mais capital humano, como assinalamos, se mescla aos discursos de autoajuda voltados ao campo pedagógico. Essa prática constitui uma estratégia de governamento biopolítico, no contexto neoliberal. Esse discurso, segundo Marín-Díaz 2015, p. 206), “[...] aparece como uma narrativa estruturada a partir das situações atuais para o momento de sua produção, atrelada a saberes relativos ao “eu” que são validados pelas comunidades acadêmicas.” Para Marín-Díaz (2015), há três características da narrativa da autoajuda que nos permitem compreender a emergência desse discurso, em meio às práticas pedagógicas, quer institucionais, quer não. São elas: novidade e atualidade, vínculo com saberes acadêmicos e ligados às práticas escolares. Veremos essas características adiante. Uma primeira característica da autoajuda que nos leva a compreender a sua emergência no campo educacional, na visão de Marín-Díaz (2015) é o seu caráter de atualidade e novidade, o qual nem sempre é um aspecto presente no processo formativo. Uma vez ligado à experiência de vida das pessoas, esse discurso apresenta-se com possibilidades de ser transmitido e aprendido pelos leitores, bastando apenas utilizarem exercícios, técnica e seguir os conselhos. Esse discurso ensina a lidar com as emoções e habilidades sociais, as quais não são ensinadas pela escola, mas acabam entrando nela, por meio de projetos, cursos e formação. Essa é uma das vias pela qual a autoajuda é introduzida na escola. Não é a única, todavia, talvez seja a mais eficiente, pois passa a figurar no rol de atividades didático- pedagógicas da escola ou nos momentos de planejamento do ano escolar, É por esse caminho que Augusto Cury, assim como outros autores, chega à escola. No entanto, o caminho que torna mais profícua a presença desses discursos na escola, sobretudo nas escolas privadas, se efetiva pela venda de projetos pedagógicos. Cury tem vendido às escolas privadas o “Escola da Inteligência”, o qual é comprado por essas instituições, com o objetivo de ensinar aos alunos a se tornarem líderes de si mesmos, principalmente devido ao cuidado com as emoções. No site oficial da Escola da Inteligência (https://www.escoladainteligencia.com.br/), é possível identificarmos um link em que figuram a escolas conveniada, e, inclusive, possibilita uma busca para sabermos qual é a escola mais próxima de nós que possui o convênio, além de um convite para o educador levar o programa “Escola da Inteligência” para a escola. https://www.escoladainteligencia.com.br/ 33 Uma segunda característica, segundo Marín-Díaz (2015), é que esses discursos são apresentados e vinculados às disciplinas acadêmicas, sobretudo àquelas fundamentadas em saberes psicológicos, as quais têm orientado o mundo social e, por conseguinte, têm forte incidência sobre os indivíduos. Assim, abordar assuntos relacionados aos interesses do aluno, reconhecendo-os como o foco para o qual se deve voltar a motivação e a produção de disposições, sentimentos e emoção é condição para o sucesso do aluno, no processo educativo, o qual se estende para a vida toda. Ao procurar se referendar em discursos científicos, particularmente naqueles oriundos do campo das ciências Psi, a autoajuda busca- se autovalidar como um saber científico. Augusto Cury é um psicoterapeuta, e esse constitui um dos motivos pelos quais seu discurso é validado e aceito pela comunidade educacional, especialmente por aquelas instituições privadas preocupadas em vender, para uma clientela de classe média, as promessas de uma educação empreendedora, em sintonia com as novidades profissionais do mercado. Cury é um dos escritores mais requisitados para dar palestras, seminários e cursos de formação em escolas e empresas, além de prestar assessoria para essas instituições, vendendo seus produtos∕projetos. Segundo o site oficial da “Escola da Inteligência”, o autor tem suas obras publicadas em mais de setenta países e foi considerado o escritor mais lido da década, com mais de 24 milhões de livros vendidos. Por fim, uma última característica desses discursos, de acordo com Marín-Díaz (2015), e que nos permite compreender o surgimento e difusão dos mesmos, é que eles são apresentados como conhecimentos abrangentes e amplos, uma vez que abordam diferentes assuntos, pois neles podemos encontrar “dicas”, conselhos e regras para resolver os nossos problemas. Desse modo, esses autores se colocam como uma espécie de expertise pedagógica, pois assumem uma posição de quem sabe orientar na resolução de problemas, presentes, cotidianamente, no ambiente escolar. “São discursos com uma visão suficientemente panorâmica, que se oferecem com um razoável efeito explicativo e interpretativo para serem usados em um amplo leque de situações das quais as práticas escolares e formativas não escapam.” (MARÍN-DÍAZ, 2015, p. 207). Buscamos, até o momento, evidenciar os vínculos existentes entre neoliberalismo, biopolítica e autoajuda. Esta última é pensada neste trabalho como tecnologia por meio da qual o mercado busca gerir e organizar a vida dos indivíduos, em que os mesmos são pensados como uma “competência-máquina”. É dessa perspectiva que o discurso de autoajuda, em sua face empresarial, direcionada à educação, é examinado nesta Dissertação como aliado dessa lógica do capitalismo neoliberal. Com orientações de construção do 34 próprio Eu e transformação de si mesmo, a autoajuda, nos termos aqui sugeridos, busca estimular e convencer os leitores a serem empresários de si. Desse modo, a autoajuda passa a figurar como um dispositivo, como uma prática, que compõe o amplo repertório da governamentalização da vida, na atualidade. Talvez ela configure mesmo a face mais sedutora dos processos de subjetivação e de governo da vida pelo capital. Ao tratar dos processos de governamentalização da vida, Foucault (2008) acredita que essa ideia de governo, em sua gênese, precisa ser buscada no Oriente, nos períodos pré e pós- cristão. Para o pensador francês, essa ideia “[...] sob duas formas: primeiramente, sob a forma da ideia e da organização de um poder tipo pastoral, depois sob a forma da direção de consciência, da direção das almas.” (FOUCAULT, 2008, p. 166). Na aula de 8 de fevereiro do curso “Segurança, Território, População”, Foucault (2008) analisa o nascimento da governamentalidade, a partir da ideia da pastoral cristã, a qual secularizou o poder pastoral, que, por sua vez, consiste num poder com características específicas. De acordo com o filósofo, os líderes, chefes de Estado ou os deuses são apresentados como os pastores e os homens, o seu rebanho. Isso pode ser observado no Oriente antigo, especificamente no Egito, como, por exemplo, na coroação do faraó, o qual recebe as insígnias de pastor. Mas é entre os Hebreus que essa ideia do poder pastoral é intensificada. Na tradição hebraica, segundo Foucault (2008), o poder do pastoreio pertence a Deus e o povo constitui o seu rebanho. Os profetas que têm a incumbência do pastoreio a recebem apenas como um cargo, o qual deve ser devolvido, pois a relação primeira é entre Deus e o seu povo, compreendida como Deus sendo o pastor e o povo, o rebanho. Diferentemente dos gregos, para quem os deuses, ainda que fundem cidades, protejam os humanos e os aconselhem, jamais os conduzem como ovelhas. Ou seja, as características do poder pastoral dos gregos são diferentes do pastorado dos hebreus, o qual tem marcas específicas: Esse poder do pastor, que vemos tão alheio ao pensamento grego e tão presente, tão intenso no Oriente mediterrâneo, principalmente entre os hebreus, como ele se caracteriza? Quais são seus traços específicos? Creio que podemos resumi-los da seguinte maneira. O poder do pastor é um poder que não se exerce sobre um território, é um poder que, por definição, se exerce sobre um rebanho, mais exatamente sobre o rebanho em seu deslocamento, no movimento que o faz ir de um ponto a outro. O poder do pastor se exerce essencialmente sobre uma multiplicidade em movimento. O deus grego é um deus territorial, um deus intramuros, tem seu lugar privilegiado, seja sua cidade, seja seu templo. O Deus hebraico, ao contrário, é o Deus que caminha, o Deus que se desloca, o Deus que erra. Nunca a 35 presença desse Deus hebraico é mais intensa, mais visível, do que, precisamente, quando seu povo se desloca e quando, na errância do seu povo, em seu deslocamento, nesse movimento que o leva a deixar a cidade, as campinas e os pastos, ele toma a frente do seu povo e mostra a direção que este deve seguir. (FOUCAULT, 2008, p. 168). Na ideia do pastoreio hebraico, de acordo com Foucault (2008), o poder não é exercido sobre um território, mas sobre uma multiplicidade em movimento. Além do mais, uma ideia que não podemos deixar de mencionar nesse poder pastoral é a sua função benfazeja, é um poder que faz bem àqueles que a ele são submetidos, pois “[...] o objetivo essencial, para o poder pastoral, é a salvação do rebanho.” (FOUCAULT, 2008, p. 170). Esse poder é assim caracterizado como um poder que sustenta e que cuida, não se manifestando pela força e superioridade, porém, pela dedicação, de sorte que o pastor é o zelador, preocupado com as ovelhas e a serviço delas. Conforme Foucault (2008), o poder pastoral caracteriza-se também como um poder individualizante, ou seja, o pastor é aquele que cuida, conta e zela por cada uma das ovelhas e, ainda que esteja olhando todas as ovelhas do rebanho, ele olha individualmente e, por isso, tem um poder finalizado sobre a ovelha. A introdução do poder pastoral no mundo ocidental, na perspectiva hebraica, se deu através da igreja cristã, a qual organizou esse poder por meio de dispositivos. “Nesta tecnologia de poder, o cristianismo dos primeiros séculos introduz significativas transformações em, pelo menos, quatro planos.” (KOHAN, 2003, p. 85). Seguimos aqui os comentários de Kohan (2003). A primeira transformação se dá na ordem da responsabilidade do pastor pelo rebanho e por cada um dos membros, estabelecendo um vínculo moral entre ambos; na segunda, a relação entre ambos é de dependência, e a obediência consiste numa virtude; na terceira, o conhecimento individualizante do pastor em relação aos membros, tais como o saber acerca das suas necessidades, suas ações, e o conhecimento revelado por cada indivíduo, sobre a verdade e seus segredos, isto é, precisa conhecer o interior de cada um, “[...] para o que o cristianismo apropria-se de dois instrumentos essenciais do mundo helênico: o exame e a direção da consciência” (KOHAN, 2003, p.85); e, por fim, a quarta mudança, as técnicas da obediência, confissão, exame e direção da consciência objetivam a induzir o rebanho a se mortificar para o mundo terreno, renunciando a si mesmo e a esse mundo, de maneira constante. Toda a tecnologia pastoral é adaptada pelo Estado para atender às suas necessidades. 36 Segundo Duarte (2010), essa concepção de poder pastoral será apropriada pelo Estado, para que o mesmo possa conduzir seus súditos. Tal como o pastor fizera com a ovelha, a razão do Estado moderno terá como objetivo exercer o poder de “[...] maneira meticulosa, combinando as técnicas de vigilância policial das condutas humanas com o controle da atividade econômica dos produtores e comerciantes.” (DUARTE, 2010, p. 247). Ocorre, desse modo, a laicização do poder. Na análise do poder pastoral, Foucault encontra o ponto para compreender a governamentalidade do Estado moderno, o qual se apropria das técnicas do pastoreio para exercer o seu poder sobre a população e sobre os indivíduos. Na modernidade, conforme assinalamos, o poder pastoral se laiciza e adquire uma nova racionalidade, a qual se distribui por diversas instituições estatais e empresas privadas. Nesse caso, já não se trata apenas de exercer o governo da população nos moldes mais amplos da biopolítica emergente no final do século XVII e início do século XVIII, contudo, com o processo de industrialização e com o avanço recente das inovações tecnológicas e, por conseguinte, com a sofisticação das formas de controle sobre a vida. Dessa forma, o exercício do governo das condutas dos indivíduos, por parte do Estado e sobretudo do mercado, tornou-se mais refinado e mais incisivo. Ao abordar a sofisticação das formas de governo da vida na atualidade, recorrendo a Deleuze e a Foucault, Pelbart (2007) a examina em termos de uma tendência do poder em penetrar as diferentes esferas da existência. O nosso corpo, os nossos afetos, a nossa inventividade, imaginação, sonhos, o nosso psiquismo e inteligência, enfim, todas essas instâncias foram colonizadas pelos poderes do capital, das ciências e do mercado. É dessa perspectiva que discursos de autoajuda se apresentam como uma das formas contemporâneas de exercício do biopoder, o qual se impõe através de uma série de dispositivos indutores de processos de subjetivação que visam a transformar os indivíduos em empreendedores. Esse processo se dá via uma governamentalidade educacional, mediada pelo discurso de autoajuda, aos modos do poder pastoral. De acordo com Kohan (2003), assim como a velha forma de poder, o poder pastoral, não está isenta de racionalidade, o poder pastoral contemporâneo, mesmo que não se exerça, necessariamente, a partir da figura e presença físicas do pastor, se espraia por diferentes esferas da existência e se faz ouvir pela voz de expertises que se escondem por trás das especialidades dos saberes. Nikolas Rose (2013) nomeia essas novas expertises de “peritos da vida em si mesma” (p. 47) e de “novos poderes pastorais” (p. 48). O autor apresenta uma lista longa do que ele chama de “peritos somáticos”, os quais têm como tarefa indicar aos 37 indivíduos os cuidados que devem ser tomados com o corpo, enfim, com a saúde. No final dessa lista, ele inclui os conselheiros: “E há os conselheiros – conselheiros de toxicodependentes, conselheiros sexuais, conselheiros de família e de relacionamentos, conselheiros saúde mental, conselheiros educacionais [...].” As expertises em autoajuda poderiam ser incluídas nessa lista, no rol dos conselheiros educacionais, fazendo parte, portanto, dos “novos poderes pastorais”. A atuação desses “novos poderes pastorais”, incluídos aí as expertises em autoajuda, se dá através do consentimento esclarecido e da autonomia dos sujeitos, os quais devem assumir a responsabilidade pelo próprio futuro. Por isso mesmo, investe-se pesadamente em tecnologias para administrar a comunicação e a informação com um caráter normativo, portanto, claramente direcional. Na verdade, as fronteiras entre a coerção e consentimento ficam obscurecidas. A comunicação e a informação, assinala Rose (2013, p. 49), “[...] transformam as subjetividades daqueles que são aconselhados, oferecendo-lhes novas linguagens para descrever suas situação [...]” Nos casos específicos analisados por Rose (2013), trata-se de pensar os efeitos dos discursos dos neurocientistas da medicina sobre a vida dos indivíduos. De todo modo, é importante destacar que as expertises da autoajuda proliferam através das mídias sociais, periódicos, palestras, encontros e personagens midiáticas. Cada um desses especialistas está cercado “[...] por um rebanho de popularizadores, escritores e jornalistas [...] dos quais tal expertise depende.” (ROSE, 2013, p. 49 – grifo do autor). O esforço em aproximar ou incluir a autoajuda no rol dos novos poderes pastorais tem como objetivo deixar claro que há, nesses discursos, uma racionalidade, a qual fica mais evidente quando estes são direcionados à educação. “É possível perceber na narrativa da autoajuda algumas características que expressam essa articulação dos discursos de autoajuda com práticas pedagógicas e de ambos com a racionalidade liberal e neoliberal.” (MARÍN- DÍAZ, 2015, p. 205). Existem, nesses discursos, uma intencionalidade, pois há neles o claro interesse em prescrever “[...] normas de conduta para agir no social, operando no plano individual.” (TURMINA, 2014, p. 272). Almejando a produção do eu e a sua transformação, aliadas às demandas do tempo presente, o pastor que conduz sua ovelha perscruta sua alma. Obviamente, nesse caso, não se trata de um exercício que se dá na proximidade física, conforme demarcamos acima. No entanto, a maneira como o discurso é pronunciado visa a todos e a cada um, em particular. Ao 38 orientar o indivíduo, o discurso de autoajuda estabelece condutas, e o leitor, ao adotá-las para si, produz novos vínculos e novas relações consigo e com os outros. Há, sem dúvidas, uma intenção de cooptar o leitor ou ouvinte. De qualquer maneira, há um apelo dirigido ao sujeito, convocando-o a tomar uma atitude, a corrigir seus hábitos, pensamentos e ações, ao mesmo tempo em que tenta convencê-lo de que a busca pela felicidade e pela realização pessoal é imprescindível. A relação entre o discurso e o ouvinte é uma relação de saber-poder e, por isso, a obediência, tal como no poder pastoral secularizado, é uma virtude. Aqueles que são obedientes serão capazes de alcançar o sucesso e a felicidade. Com várias orientações apresentadas no discurso, o indivíduo que as segue e tem disciplina para segui-las é capaz de alcançar uma vida de sucesso no trabalho, na educação dos filhos, na vida amorosa e em qualquer outro empreendimento. Do mesmo modo que o poder pastoral tenciona dirigir as consciências e produzir nos sujeitos disposições no acatamento das orientações, essas orientações podem não ser aceitas, mas podem ser rejeitadas, contraditas ou podem contrapor-se a certas condutas. Assim também parecem funcionar os discursos de autoajuda: por mais incisivos que sejam, por mais que prometam, em termos de resultados futuros, os indivíduos podem recusá-los, podem lê- los e não se sentir convencidos, embora haja neles a promessa de felicidade e de apaziguamento. No entanto, é importante sublinhar que, em ambos os casos, o que se busca é conduzir as consciências pela força individualizante que apresenta o discurso. É o discurso que quer sempre o bem de cada indivíduo. Em hipótese alguma, o pastor – a autoajuda – conduz as ovelhas para lugarejos em que possam correr algum perigo. Entretanto, para que a direção do pastor seja eficaz, é necessário que o membro do rebanho seja capaz de confessar suas necessidades, a fim de que, sendo conhecidas pelo pastor, este possa conduzi-lo da melhor forma possível. Temos aqui um elemento essencial do poder pastoral, que é a ideia de confissão. A confissão se faz presente no instante em que o indivíduo reconhece suas necessidades e, nesse sentido, procura as orientações e os conselhos dos manuais de autoajuda. As necessidades são como que confessadas pelo próprio mercado, o qual passa a demandar dos indivíduos determinadas competências e habilidades. Faz isso incutindo nos sujeitos a culpa por não estarem à altura das exigências contemporâneas. O fenômeno de consumo de autoajuda talvez se deva a essa confissão pública, ou se coloca como uma espécie de confissão pública, que vai ao encontro da alma do penitente. Na realidade, parece ocorrer uma inversão nos papéis confessionais. Já não é mais o penitente que confessa os pecados, mas o pastor, como expertise, que se apresenta e se antecipa, num 39 misto de intuição e sabedoria, dizendo como os indivíduos devem conduzir suas vidas em consonância com o espírito do tempo: O livro de autoajuda não é novo, mas só no século XX ele se tornou um fenômeno de massa. O número exato de exemplares vendidos é impossível de calcular, mas só os 50 clássicos desta seleção ultrapassaram a barreira dos 150 milhões de cópias. Se considerarmos os milhares de outros títulos, o número final passa de meio bilhão. Eles são comprados por pessoas comuns, interessadas em fazer algo de suas vidas e dispostas a acreditar que o segredo do sucesso pode ser encontrado num livro de bolso. (BUTLER-BOWDON, 2006, p. 10). Levando-se em consideração esse fenômeno, a autoajuda constitui uma saída e uma salvação para aqueles que aceitam ou que passam a ver nela a última ilusão travestida de promessa de sucesso no trabalho, quando já não há mais trabalho para todos. De promessa de felicidade, quando estamos condenados a ela, e que tudo depende do esforço pessoal e da disposição de cada um em se adequar à precariedade do mundo do trabalho e da expropriação de direitos, como tem acontecido na versão do capitalismo neoliberal. O discurso de autoajuda se coloca como a voz redentora, a luz que ilumina as trevas. Quando as saídas políticas, econômicas e sociais não se apresentam à vista e há dificuldades em construí-las, o solo para a proliferação e a aceitação desses discursos está preparado: Para os desesperados, que já fazem qualquer negócio, autoajuda é tábua de salvação, porque aparece como promessa primeira, e talvez última, à mão. Para os piedosos, que pretendem alimentar o espírito próprio e dos outros com salmos e outras invocações, autoajuda é reza de toda hora e corresponde a expectativa do milagre. Ao fundo, porém, a autoajuda é a transudação natural de um ser extremamente frágil, que não dá conta de si mesmo, precisa de transcendência e tende a colocar seu destino em mãos que imagina superiores. (DEMO, 2005, p. 09). Imersos em tempos onde a autoajuda parece conduzir uma grande parcela dos indivíduos, ao menos se tivermos em vista o volume de publicação dessa literatura, parece- nos que o desafio é pensarmos nas formas de resistência ou contraconduta com relação a esse discurso. Talvez a questão central seja: por quem queremos ser governados? Na análise do poder pastoral, Foucault (2008) aborda as formas de contracondutas desse poder pastoral, as quais demandariam maneiras novas de redistribuir, inventar, anular e desqualificar o poder dessa literatura, na economia do governo de condutas e na produção de verdades e produção da obediência. Portanto, a ideia de governamentalidade, compreendida como uma arte de governar, foi desenvolvida por Foucault para pensar o problema do Estado e da população. Nessa 40 perspectiva, segundo Foucault (2008), é necessário supor que governar não seja sinônimo de reinar ou comandar, e que vai além do domínio sobre um território e nem fica restrito apenas às práticas disciplinares. Além do mais, a palavra governar pode se referir a diferentes significados, entre os quais o de conduzir alguém, impor regime, conduta. “Governar pode se referir também a uma relação entre indivíduos, relação que pode assumir várias formas, seja a relação de mando e de chefia: dirigir alguém, controlá-lo.” (FOUCAULT, 2008, p. 163). Conforme Foucault, governar engloba uma ideia clara, a de que se governam homens e indivíduos e não estruturas ou território, ou seja, “[...] os homens é que são governados.” (FOUCAULT, 2008, p. 164). Tratando-se de um governo biopolítico, consiste numa espécie de governo que ultrapassa espaços físicos, mas é um poder disseminado em meio à população. Nessa análise do poder, Foucault pensa o governo da vida também pela lógica neoliberal econômica, tendo por referência a Teoria do Capital Humano, a qual, em nosso entendimento, tal como o poder pastoral, se encontra presente no discurso de autoajuda. Ao realizarmos uma análise da sociedade, fundamentada nessa discussão do poder pastoral, podemos afirmar que hoje estão visíveis, em nosso contexto, os elementos desse poder. Há uma multiplicidade de novos poderes pastorais, os quais se organizam a partir do sistema neoliberal. Em diferentes contextos, contudo, seguindo a mesma lógica do poder neoliberal, é possível identificar novas formas de condução, que estão articuladas aos rearranjos do capitalismo contemporâneo. Nesse contexto, o poder é o mercado, o qual sintetiza a forma de organização do sistema econômico capitalista. Não é de estranharmos a definição do mercado enquanto um deus, em nossos tempos, o qual funciona como uma grade por onde passam todas as decisões (FOUCAULT, 2008). A noção de mercado é muito ampla, no entanto, é oportuno frisar que ele ganha forma nas empresas que ordenam o sistema econômico capitalista – empresa entendida como uma alma, como um gás, que impregna todos os espaços (DELEUZE, 2010), incluindo a educação escolar. A empresa é instituição representante e modelo. Diferente da fábrica, que se centra em apenas reproduzir artigos manufaturados, a empresa, antes, vende um mundo e posteriormente o materializa em produtos e serviços (VEIGA-NETO, 2011) Cabe à empresa gerenciar, via organização, o poder que lhe é delegado pelo mercado. É nesse sentido que o poder empresarial, enfim, a racionalidade empresarial, torna-se pastor no sistema capitalista 41 contemporâneo. Esse poder serve de modelo para outras áreas e instituições que, por muito tempo, não estavam submetidas aos interesses da economia (FOUCAULT, 2008). As empresas atuais, em suas organizações, antes mesmo de exercer o poder, para fins de melhor conduzir o rebanho, procuram estabelecer vínculos com os indivíduos. É muito comum, conforme menciona Veiga-Neto (2011), que as empresas tenham se caracterizado por pesquisas e desenvolvimento de comunicação e marketing. “O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores.” (DUARTE, 2010, p. 264). Não se trata de uma condução sem intenções; pelo contrário, é necessário conhecer para cuidar e conduzir. O poder pastoral não se limita a um território, assim como a empresa, a qual “[...] flutua no ciberespaço, tendo apenas uma frágil ancoragem num ponto do espaço material” (VEIGA-NETO, 2011, p. 40). Isso podemos identificar com as transnacionais, as quais estão presentes em diferentes espaços do planeta Terra, embora com a mesma marca, missão, visão e valores. Independentemente de quais produtos ou serviços ofereçam, essas empresas se reconhecem como logos ou marcas que cuidam do indivíduo, e que, por conseguinte, têm o melhor a oferecer-lhe para a sua realização, felicidade, saúde e conforto. É dessa perspectiva que atuam as estruturas de marketing. O movimento realizado no presente capítulo teve como objetivo indicar alguns possíveis vínculos entre governo da vida, poder pastoral e a autoajuda. Não nos ocupamos em caracterizar de forma detalhada os enunciados e características da autoajuda, particularmente o modo como ela aparece nas obras de Augusto Cury, em suas interfaces com a educação escolar. Isso será feito num capítulo posterior. A relação entre autoajuda e os elementos mais amplos do governo biopolítico contemporâneo passa pela forma como o poder econômico, em sua racionalidade empresarial, invade diferentes esferas da existência. Podemos enfatizar, seguindo Foucault (2008), que o capitalismo não atua somente na exploração da força de trabalho, no registro da produção da mais-valia no contexto do modelo de fabril inaugurado pelo fordismo: atua agora no âmbito da produção de capital humano, na qual o que mais importa é a produção de capital raro para concorrência no mercado. O que interessa, nesse novo contexto da exploração da racionalidade do empreendedorismo empresarial, é a produção de competências e habilidades flexíveis que possibilitem a adaptação dos indivíduos aos novos modelos de produção. É nesse contexto que a autoajuda emerge como um conjunto de saberes, práticas e técnicas discursivas as quais buscam, explicitamente, mobilizar, nos sujeitos, afetos, disposições, desejos e competências que estejam em sintonia com a nova maquinaria do capital. 42 No capítulo seguinte, focalizaremos os elementos da autoajuda e, no terceiro e último capítulo, faremos essa abordagem seguindo algumas obras de Augusto Cury, as quais nos ajudam a explicitar melhor essa trama. 43 CAPÍTULO 2 O DISCURSO DE AUTOAJUDA EM PERSPECTIVA “Suba ao palco e determine ser alegre, tranquilo, conquistar o que mais ama, ser líder de si mesmo.” (CURY, 2012, p.63). Essa é uma das falas de Augusto Cury, encontrada numa de suas principais obras, Seja líder de si mesmo, publicada pela editora Sextante. Nessa obra, Cury estabelece uma comparação entre a mente humana e um fascinante e belo teatro e, logo de início, convida os seus leitores a pensarem em que lado eles estão, no palco, sendo autores da própria peça, ou sendo espectadores passivos. No decorrer do livro, Cury identifica o quanto nós não somos preparados para sermos líderes do nosso mundo psíquico. De acordo com o escritor, precisamos investir em nós mesmos. Voltaremos a discutir sobre essa temática no próximo capítulo. A frase de Augusto Cury, com que iniciamos esta discussão, circula de diferentes maneiras e formatos: cursos, palestras, vídeos e livros. Em todo esse material, há uma característica que se repete em forma de bordão, segundo o qual “[...] a força do indivíduo vem de sua capacidade de exercitar o seu pensamento positivo.” (MARTELLI, 2006, p. 15). Com o intuito de aprofundar nossa discussão acerca do discurso de autoajuda, buscamos compreender a sua história e gênese, a partir do levantamento de obras que tivessem tratado desse assunto. A seguir, apresentamos dez livros e uma tese de doutorado sobre a temática. A ideia não é fazer um estudo do tipo estado da arte, mas apresentar um panorama que nos possibilite situar os aspectos gerais desse discurso, sem a intenção de esgotá-lo. Os critérios para a escolha dessas obras foram definidos a partir da abordagem ampla e informativa sobre o tema, a qual trouxesse uma visão acadêmica, investigativa e crítica sobre o assunto. OBRA REFERÊNCIA A essência da Auto-ajuda: a essência da sabedoria CARVALHO, Paulo de Barros. A essência da 44 dos grandes gênios de todos os tempos. Auto-ajuda: a essência da sabedoria. São Paulo: Martin Claret, 2004 (Coleção Pensamentos e Textos de Sabedoria, v. 18). Auto-ajuda e gestão de negócios: uma parceria de sucesso.. MARTELLI, Carla G. Giani. Auto-ajuda e gestão de negócios: uma parceria de sucesso. Rio de Janeiro: Azougue, 2006. Literatura de auto-ajuda e individualismo: contribuição ao estudo da subjetividade na cultura de massa contemporânea. RÜDIGER, Francisco. Literatura de auto-ajuda e individualismo: contribuição ao estudo da subjetividade na cultura de massa contemporânea. Porto Alegre: UFRGS, 1996. Autoajuda nas relações de trabalho: formação ou conformação. TURMINA, Adriana Cláudia. Autoajuda nas relações de trabalho: formação ou conformação? São Paulo: SENAC São Paulo, 2014. O sujeito imaginário no discurso de Auto-Ajuda CHAGAS, Arnaldo Toni Sousa das. O sujeito imaginário no discurso de auto-ajuda. Ijuí: Unijuí, 2002. A ilusão no discurso da autoajuda e o sintoma social. CHAGAS, Arnaldo Toni Sousa das. A ilusão no discurso da autoajuda e o sintoma social. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2001. Autoajuda, educação e práticas de si: genealogia de uma antropotécnica. MARÍN-DÍAZ, Dora Lilia. Autoajuda, educação e práticas de si: genealogia de uma antropotécnica. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. O seu último livro de auto-ajuda: reprima sua raiva, pense negativamente, culpe os outros, sufoque sua criança interior. PEARSALL, Paul. O seu último livro de auto- ajuda: reprima sua raiva, pense negativamente, culpe os outros, sufoque sua criança interior. Tradução de Helena Maria Nascimento. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. Prática de subjetivação e construção identitária: o sujeito no entremeio da autoajuda e da ciência. DUARTE, Sirlene. Prática de subjetivação e construção identitária: o sujeito no entremeio da autoajuda e da ciência. 2008. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa – Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, 2008. Autoajuda em conflitos: uma metodologia para reconhecimento e solução de conflitos em organizações. GLASL, Friedrich. Autoajuda em conflitos: uma metodologia para reconhecimento e solução de conflitos em organizações. Tradução de Karin Stasch. São Paulo: Antroposófica: Adigo, 2012. 50 clássicos de auto-ajuda: dos sábios da antiguidade aos gurus contemporâneos, 50 livros para transformar sua vida. BUTLER-BOWDON, Tom. 50 clássicos de auto- ajuda: dos sábios da antiguidade aos gurus contemporâneos, 50 livros para transformar sua vida. Tradução de Pedro Jorgensen Junior. Rio de Janeiro: Sextante, 2006. De acordo com Dooley (2014), há quatro dimensões dos discursos a) a forma de produção, que se refere ao número de falantes, podendo ser monólogo ou diálogo; b) o tipo de conteúdo, que é