FLÁVIA NEVES FERREIRA FENOMENOLOGIA E LOGOTERAPIA: análise do conceito de hiper-reflexividade ASSIS 2023 FLÁVIA NEVES FERREIRA FENOMENOLOGIA E LOGOTERAPIA: análise do conceito de hiper-reflexividade Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de Doutora em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientador: Danilo Saretta Veríssimo Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Número do Processo 88882.432663/2019-0. ASSIS 2023 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ana Cláudia Inocente Garcia - CRB 8/6887 F383f Ferreira, Flávia Neves Fenomenologia e logoterapia: análise do conceito de hiper-reflexividade / Flávia Neves Ferreira. — Assis, 2023 123 f. : il. Tese de Doutorado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Prof. Dr. Danilo Saretta Verissimo 1. Psicopatologia. 2. Hiper-reflexia. 3. Psicopatologia fenomenológica. 4. Logoterapia. 5. Psicoterapeuta e paciente. I. Título. CDD 616.89 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis FENOMENOLOGIA E LOGOTERAPIA: análise do conceito de hiper-reflexividadeTÍTULO DA TESE: CERTIFICADO DE APROVAÇÃO AUTORA: FLÁVIA NEVES FERREIRA ORIENTADOR: DANILO SARETTA VERISSIMO Aprovada como parte das exigências para obtenção do Título de Doutora em Psicologia, área: Psicologia e Sociedade pela Comissão Examinadora: Prof. Dr. DANILO SARETTA VERISSIMO (Participaçao Virtual) Departamento de Psicologia Social / UNESP/FCL-Assis Prof. Dr. GUSTAVO BONINI CASTELLANA (Participaçao Virtual) FMSUSP / São Paulo Prof. Dr. HERNANI PEREIRA DOS SANTOS (Participaçao Virtual) PUCPR / Londrina Prof. Dr. GILVAN DE MELO SANTOS (Participaçao Virtual) UEPB - Universidade Estadual da Paraíba Prof. Dr. ADRIANO HOLANDA (Participaçao Virtual) Instituto de Psicologia / UFPR Assis, 09 de fevereiro de 2023 Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis - Avenida Dom Antonio, 2100, 19806900, Assis - São Paulo www.assis.unesp.br/posgraduacao/psicologia/CNPJ: 48.031.918/0006-39. AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. A Deus, meu guia, que ilumina meu caminho e fortalece meu existir. À minha mãe, Andréa, pelo seu amor incondicional, zelo, paciência e acolhimento em todo o processo de elaboração da tese. À minha avó, Jussara, minha primeira professora, pelos incentivos constantes e, por algumas vezes, ter custeado as aventuras acadêmicas, livros, congressos, especializações etc. Ao meu pai, Luciano, pelas possibilidades que ofereceu à minha educação. À minha irmã, Lais e prima, Bianca, por trazerem leveza para minha vida. À Ana Claudia pelo companheirismo e apoio constante, especialmente quando parecia impossível seguir em frente com a pesquisa. Aos meus alunos e meus estagiários que despertam a “vontade de sentido” à vida. À coordenadora, Michelle, aos colegas professores da UCA e da UNICV, pela gentileza e preocupação com minha saúde e com o andamento da tese. Aos colegas do Grupo de Pesquisa pelas discussões e pelos materiais disponibilizados. Ao meu orientador, Professor Danilo Saretta Veríssimo, por sua disponibilidade e confiança. Aos professores Gustavo Bonini, Adriano Holanda, Gilvan de Melo Santos e Hernani Santos pela solicitude que demonstraram ao aceitarem o convite para participarem da Banca Examinadora da presente tese. Enfim, a todos os professores, fontes de inspiração à minha prática docente. A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho (LISPECTOR, 1999, p. 66). RESUMO O caráter temático desta tese envolveu o exame conceitual das manifestações da hiper- reflexividade, tendo como norte, essencialmente, as teorias de Thomas Fuchs e Viktor Frankl, orientadas para o campo da psicopatologia e da psicoterapia. O cenário descritivo foi empreendido pela composição de quatro capítulos que buscaram enredar, de início, uma contextualização histórica das epistemologias, em seguida, as seções apresentaram algumas definições de termos importantes ao nosso objeto de estudo e, então, foi finalizado com a reflexão da prática clínica psicoterápica. O âmbito da Psicopatologia Fenomenológica contemporânea relaciona os fenômenos psicopatológico às estruturas básicas da consciência, tais como: a autoconsciência ou self (ipseidade), a corporeidade (embodiement), a espacialidade, a temporalidade, a intencionalidade e a intersubjetividade. Nesse horizonte, demos destaque a teoria ecológica de Thomas Fuchs que compreende a hiper-reflexividade tanto na alteração o self pré-reflexivo nos quadros de esquizofrenia, como também uma característica de outros quadros psicopatológicos. Para a Logoterapia de Viktor Frankl, a hiper-reflexão é facilitada pelo círculo vicioso de uma ansiedade antecipatória, cuja luta pelo prazer, ou luta por potência fazem com que a vontade do prazer force uma hiperintenção do prazer que não somente tira o prazer da pessoa, como traz uma hiper-reflexão também forçada, acabando com a espontaneidade. As técnicas da intenção paradoxal e da derreflexão servem para quebrar os círculos viciosos da neurose, uma vez que a intenção paradoxal permite ao paciente mudar de atitude pela proximidade do que lhe causa medo ou aversão, visando superar os sintomas; e a derreflexão, por sua vez, faz com que o paciente retire o foco de si mesmo. Embora tenhamos descrito essas técnicas, a psicoterapia deve levar em consideração a individualidade da pessoa, a primazia do encontro na relação terapeuta-paciente e, sobretudo, a busca pelo sentido da vida em cada situação. Palavras-chave: Hiper-reflexividade; Psicopatologia Fenomenológica; Logoterapia. ABSTRACT The thematic character of this thesis involved the conceptual examination of the manifestations of hyper-reflexivity, having as its north, essentially, the theories of Thomas Fuchs and Viktor Frankl, oriented towards the field of psychopathology and psychotherapy. The descriptive scenario was undertaken by the composition of four chapters that sought to enmesh, at first, a historical contextualization of the epistemologies, then, the sections presented some definitions of important terms to our object of study it was finalized with the reflection of the practice psychotherapy clinic. The scope of contemporary Phenomenological Psychopathology relates psychopathological phenomena to the basic structures of consciousness, such as: self-consciousness or self (ipseity), corporeality (embodiment), spatiality, temporality, intentionality and intersubjectivity. In this horizon, we highlighted the ecological theory of Thomas Fuchs, which includes hyper-reflexivity both in the alteration of the pre-reflexive self in schizophrenia, as well as a characteristic of other psychopathological conditions. For Viktor Frankl's Logotherapy, hyper-reflection is facilitated by the vicious circle of anticipatory anxiety, whose struggle for pleasure, or struggle for potency, makes the will for pleasure force a hyperintention of pleasure that not only takes away the person's pleasure, as it brings a hyper-reflection that is also forced, putting an end to spontaneity. The paradoxical intention and dereflection techniques serve to break the vicious circles of neurosis, since the paradoxical intention allows the patient to change his attitude by proximity to what causes him fear or aversion, aiming to overcome the symptoms; and dereflection, in turn, causes the patient to withdraw the focus from himself. Although we have described these techniques, psychotherapy must take into account the individuality of the person, the primacy of the encounter in the therapist-patient relationship and, above all, the search for the meaning of life in each situation. Keywords: Hyper-reflexivity; Phenomenological Psychopathology; Logotherapy. 9 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Estrutura piramidal do self .............................................................................. 46 Figura 2 – Dimensão paradoxal do self ............................................................................ 50 Figura 3 – Aspecto dual do ser ........................................................................................ 51 Figura 4 – Tridimensionalidade ........................................................................................ 59 Figura 5 – Três aspectos do distúrbio da ipseidade ......................................................... 71 Figura 6 – Classificação nosológica ................................................................................. 78 Figura 7 – Círculo de ansiedade antecipatória ................................................................. 80 Figura 8 – Ciclo da neurose obsessiva ............................................................................ 81 Figura 9 – Círculo vicioso ................................................................................................. 83 Figura 10 – Facticidade e existência ................................................................................ 89 10 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12 1.1 Contextualização temática ........................................................................................ 12 1.2 Recorte epistemológico ............................................................................................ 15 1.3 Justificativa da pesquisa .......................................................................................... 17 1.4 Metodologia e estrutura da pesquisa ...................................................................... 19 2 A IMAGEM DE SUJEITO NO SISTEMA DE RACIONALIDADE OCIDENTAL ............. 21 2.1 O paradigma do sujeito racional na filosofia .......................................................... 21 2.2 O paradigma da racionalidade médica na psicopatologia .................................... 25 2.3 O paradigma da revolução tecnocientífica ............................................................. 34 2.4 Novo(s) paradigma(s) para a psicopatologia .......................................................... 41 3 O SUJEITO DA EXPERIÊNCIA NA FENOMENOLOGIA .............................................. 45 3.1 Consciência: o polo de experiência intencional ..................................................... 45 3.2 Revisão conceitual de self ........................................................................................ 53 3.3.1 O paradoxo da subjetividade .................................................................................... 57 3.3.2 O self corporificado ................................................................................................... 59 3.3.3 O caráter de tensão existencial ................................................................................ 63 3.3 Da vulnerabilidade existencial à restrição noológica ............................................ 65 4 MANIFESTAÇÕES DA HIPER-REFLEXIVIDADE ........................................................ 72 4.1 Hiper-reflexividade na psicopatologia fenomenológica ........................................ 73 4.2 As formas de hiper-reflexividade ............................................................................. 75 4.2.1 Modelo do distúrbio da ipseidade ............................................................................. 79 4.2.2 A hiper-reflexividade em Thomas Fuchs .................................................................. 83 4.2.3 A hiper-reflexividade em Viktor Frankl ...................................................................... 84 4.3 Os padrões patogênicos da hiper-reflexividade ..................................................... 87 4.3.1 Neurose de angústia ................................................................................................. 88 4.3.2 Neuroses obsessivas ................................................................................................ 89 4.3.3 O terceiro padrão de neurose ................................................................................... 91 4.4 O paradoxo do vazio e a sociedade dos excessos ................................................ 92 4.4.1 O hedonismo e o paradoxo do vazio ........................................................................ 92 11 4.4.2 Sociedade hiper-acelerada ....................................................................................... 93 5 HIPER-REFLEXIVIDADE E PSICOTERAPIA ............................................................... 96 5.1 A LOGOTERAPIA NA CLÍNICA DAS “NEUROSES” ................................................ 96 5.2 TÉCNICAS DA LOGOTERAPIA ............................................................................... 100 4.2.1 Intenção paradoxal ................................................................................................. 101 5.2.2 Derreflexão ............................................................................................................. 102 5.3 Reflexividade e iatrogenia ...................................................................................... 104 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 107 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 112 12 1 INTRODUÇÃO Enquanto uma centopeia caminhava com tranquilidade mexendo espontaneamente cada uma de suas articulações, um inseto lhe perguntou como conseguia coordenar todas aquelas penas sem nenhuma dificuldade. A centopeia respondeu que nunca se fizera essa pergunta e, portanto, para poder responder teria de se observar atentamente. O resultado foi desastroso. A centopeia – por causa das observações – perdeu sua espontaneidade e, assim, as pernas começaram a atrapalhar umas às outras até ela não conseguir mais caminhar corretamente (FRANKL, 2016, p. 209). O relato metafórico da epígrafe posta acima foi extraído da obra Teoria e Terapia das Neuroses (2016), do psiquiatra e neurologista austríaco, Viktor Émil Frankl, à primeira vista, parece remeter à reflexividade como mero objeto de pensamento, cujo excesso de reflexão resulta em uma falha do comportamento. Esse entendimento pode ser visto de outra maneira por meio da afirmação do psiquiatra alemão, Dr. Thomas Fuchs, que diz: “se a espontaneidade [...] é em algum momento perturbada, então a consciência reflexiva trabalha em vão junto à perturbação e se enreda em uma vazia hiper-reflexão, em uma cisma infrutífera, uma dúvida cáustica ou uma auto-observação coercitiva” (FUCHS, 2018, p. 102). A problemática da reflexividade em demasia, postulada por ambos os teóricos, não diz respeito a uma racionalidade exagerada associada à função mental, e sim ao modo como algo normalmente implícito se torna focal e explícito, conduzindo a uma diminuição da vitalidade espontânea do sujeito no mundo. Portanto, em nossa tese assumimos essa perspectiva de leitura. Seguindo tais premissas, propomos nesta pesquisa a realização de um exame teórico-conceitual sobre a hiper-reflexividade entre a psicopatologia e a psicoterapia. Trata- se, mais particularmente, da revisão dos fundamentos teóricos da Psicopatologia Fenomenológica, com ênfase no excesso de reflexividade. 1.1 Contextualização temática O caráter temático desta tese contorna as composições de Thomas Fuchs e Viktor Frankl, orientadas para o campo da psicopatologia e da psicoterapia. Devemos admitir que o interesse por esses autores foi motivado pela estreiteza, ao nosso ver, de alguns 13 pressupostos teóricos desenvolvidos por ambos. O primeiro contato com Fuchs se deu por meio da leitura do texto Thinking Too Much. The Psychopathology of Hyperreflexivity (2018), no qual o autor cita os padrões patogênicos de neurose postulados pela Logoterapia, e que pode ser considerado como o único artigo em que Fuchs faz referência a Frankl. Contudo, percebemos alguns enredamentos proximais entre eles, de modo mais específico, correlativos às manifestações da hiper-reflexividade. Ainda assim, colocá-los em posições comparativas é um empreendimento de pouca valia à nossa investigação, porque o objetivo da presente tese é o exame conceitual da hiper-reflexividade. De todo modo, o nosso objeto de estudo, inevitavelmente, esbarra em um tema de difícil abordagem, pois, ao falarmos “reflexão”, abre-se diante de nós uma gama de definições enviesadas pela tradição filosófica no que diz respeito aos dilemas apresentados, de um lado, pelo idealismo e racionalismo, e por outro lado, pelo materialismo e positivismo, arquitetados por questões como a problemática do conhecimento na relação sujeito-objeto. A reflexão serve, portanto, como um vocábulo genérico que se relaciona com outros termos, entre eles: alma ou psiquê, atividade auto- reflexiva, consciência e autoconsciência, ego e self. Nesse estudo, valemo-nos de maior atenção a concepção de consciência e self, pois subsidiam a nossa discussão acerca das manifestações hiper-reflexivas. No desenvolvimento deste trabalho, veremos que principais tratamentos teóricos sobre a consciência, desde o Renascimento, ficam restritos ao aparato mental ou racional que, por sua vez, associam o self à acepção de sujeito universal, cognoscente e dotado de razão. Diferentemente ao discurso intelectualista e materialista, seguiremos a fenomenologia de Edmund Husserl (1985), que confere à noção de consciência os atos intencionais, uma vez que “cada experiência é um evento em si que ocorre na consciência, ou seja, o fluxo de consciência nada mais é do que um fluxo de experiências” (HUSSERL, 1985, p. 355). Assim, os fluxos de experiências são processados pelo modo tácito e pré- reflexivo de intencionar o mundo. A herança husserliana no que diz respeito a consciência intencional e ao domínio da experiência subjetiva se fazem notar nos fundamentos da Psicopatologia Fenomenológica. Na psiquiatria, o interesse ao modo como realizamos e experimentamos o mundo, incialmente foi versada por Karl Jaspers (1913), cujo pensamento ressoou influências para outros psiquiatras da tradição, tais como: Ludwig Binswanger, Eugène Minkowski, 14 Wolfgang Blankenburg, Bin Kimura, Arthur Tatossian, entre outros (BÜRGY, 2008). Mais recentemente, a Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea retoma e prossegue a pesquisa sobre a constituição da experiência de mundo nas manifestações psicopatológicas, fundamentando-se a partir do diálogo entre fenomenologia e neurociência cognitiva. Cada pensador à sua maneira, Sass e Parnas (2003), Fuchs (2010), Stanghellini (2004), Gallagher e Zahavi (2005) direcionam-se ao exame do self ou da autoconsciência, entendidos como o senso estável das experiências pessoais, as quais são vivenciadas em um mundo compartilhado de maneira automática e pré-reflexiva. As pesquisas realizadas pelos autores da Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea têm se debruçado em explorar o campo em que as condições de possibilidades da existência humana não seguem seu fluxo espontâneo e se encontram de modo alterado, particularmente, o interesse se volta à experiência “perturbada da esquizofrenia”, cuja característica prodrômica1 revela-se por uma diminuição mais imediata do self ou da autoconsciência, do senso estável do compartilhamento com o outro e com o mundo, e, por conseguinte, exibe uma tendência à hiper-reflexividade. Por mais que as alterações do self ou da autoconsciência estejam presentes, principalmente nos quadros de psicose, Parnas et al. (2005) apontaram que elas podem certamente aparecer em muitas outras manifestações psicopatológicas. Isso significa que a hiper-reflexividade não se confunde com a esquizofrenia, pois pode ocorrer em pacientes não esquizofrênicos, tal como também previsto por Fuchs (2010) e Frankl (2016). Tendo em vista que as investigações no campo das psicoses são privilegiadas em toda a história da Psicopatologia e da Psiquiatria clássica e contemporânea, nosso estudo se dirige, em especial, às condições de possibilidades da alteração da experiência nas neuroses. Enquanto os teóricos da Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea referem-se à alteração do senso estável de self, pretendemos indicar também, a alteração na “dimensão de pessoa” que ocorre a nível noético ou espiritual, conforme desenvolvido pela Logoterapia. Com base no prefácio da obra Psicoterapia e existencialismo: textos selecionados em logoterapia, Frankl (2020) afirma que a Logoterapia representa uma escola no campo da psicoterapia, que desenvolveu uma técnica psicoterápica, além de ser considerada por vários autores como pertencente à “psiquiatria existencial”. Por isso, entre os temas a 1 Relativo ao que é anunciador, aos primeiros indícios de alguma coisa; inicial. 15 serem guiados pela Logoterapia destacam-se, principalmente, as manifestações hiper- reflexivas, chamadas pelo logoterapeuta de “neuroses psicogênicas”, a qual, segundo o autor, é facilitada pelo círculo vicioso de uma ansiedade antecipatória que restringe o núcleo mais pessoal do ser-no-mundo. Sendo assim, pretendemos fazer distinções conceituas das experiências alteradas da hiper-reflexividade, a fim de permitir o discernimento dessas manifestações na esquizofrenia e diferenciá-las de outras configurações psicopatológicas. 1.2 Recorte epistemológico O nosso exame investigativo é guiado por dois campos de estudo: a Psicopatologia Fenomenológica e a Psicologia Clínica. Primeiramente, a análise debruça-se sob as bases da perspectiva fenomenológica e corporificada (embodied), conectada à ideia da “subjetividade da experiência”, como sublinha Serpa Jr. (2006, p.11): “Esta modalidade subjetiva é pré-reflexiva [...]. Por outro lado, esta experiência também acompanha uma história particular de vida, caracterizada por um self narrativo, reflexivo e intersubjetivo”2. O segundo campo, ao qual nos aplicamos, tangencia a Psicologia Clínica, partimos da compreensão de clínica como horizonte de sentidos possíveis. Para este alcance, utilizaremos alguns dos aportes teóricos da Logoterapia e Análise Existencial, abordagem de psicoterapia fundada por Viktor Émil Frankl (1905-1997). Enquanto a denominada Logoterapia estabelece o método de tratamento psicoterápico, a Análise Existencial retrata uma orientação antropológica de investigação. É importante enfatizar que a Análise Existencial não é similar à “análise da existência” proposta pela Daseinsanalyse3, por isso, Frankl (2020, p. 18) menciona: Mesmo quando ambas as tendências se referem ao aclaramento da existência, o pensamento de uma não é o mesmo da outra [...], pois na Análise Existencial, acima de todo aclaramento do ser, faz uma tentativa ousada de aclaramento do sentido, de modo que o acento se desloca do aclaramento dos modos de ser para o das possibilidades do sentido. O excerto acima indica um ponto primordial do nosso trabalho de pesquisa, o qual 2 Primeira, segunda e terceira pessoa. A abordagem positivista, objetivante ou de 3ª pessoa, conforme endossada pelo DSM-IV e CID-10; a fenomenológica ou de primeira pessoa; a abordagem hermenêutica, intersubjetiva ou de segunda pessoa. Estas três abordagens serão comparadas quanto aos seus respectivos valores para descrição psicopatológica, diagnóstico, pesquisa e fins terapêuticos. 3 A Daseinsanalyse, como proposta clínica, desenvolvida por Ludwig Binswanger e Medard Boss a partir do referencial filosófico heideggeriano. 16 difere-se das interpretações clássicas da Fenomenologia e merece nossa atenção. Vejamos, grande parte dos autores da Psicopatologia Fenomenológica bebem das fontes teóricas decorrentes da estrutura transcendental da subjetividade de Edmund Husserl, da analítica existencial do ser-no-mundo de Martin Heidegger, assim como da noção de corpo – Leib e Körper – incutida por Husserl e expandida pelo filósofo francês Merleau-Ponty. Sob os pilares desses autores supracitados, as pesquisas têm considerado alguns componentes essenciais ou dimensões da experiência subjetiva do mundo que podem se mostrar alterados na esquizofrenia e nos transtornos afetivos, são elas: espaço, tempo e corporeidade4. Esses componentes representam o que também consideramos ser as principais dimensões da experiência do mundo. Todavia, ao trazer a Logoterapia para esse debate, nos deparamos com uma dimensão mais originária da existência humana da qual todas as demais dimensões se despontam, que é a dimensão espiritual. Justamente esse último aspecto que demarca uma fusão da Logoterapia não somente com a Daseinsanalyse, mas com as demais linhas teóricas de fundamento fenomenológico. Nesse ínterim, defendemos o acento nas possibilidades de sentido5, e não unicamente nas condições de possibilidade do ser. Diante do que expomos até o momento, pode-se observar que o trajeto percorrido abre um leque para várias direções que nos leva a um caminho sinuoso e, de certa forma, sob risco de armadilhas contraditórias. Conquanto não haja espaço aqui para uma longa justificativa epistemológica das pretensões teóricas deste trabalho, cumpre ressaltar algumas tensões que possam emergir. De início, a relação indiretamente suscitada entre “Fenomenologia e clínica” ou “Fenomenologia e Logoterapia” podem provocar uma problemática questionável quanto à sua validade: “é mesmo possível fazer uma Fenomenologia clínica?” Sem defender alguma posição neste momento, entendemos apenas que os construtos da fenomenologia nos ajudam a contornar alguns dos nossos argumentos, mas isto não significa que falamos propriamente sobre Fenomenologia. Uma vez esclarecido este aspecto, podemos percorrer 4 Os chamados distúrbios do self na esquizofrenia se fazem presentes nas análises dos psiquiatras clássicos (por exemplo, Jaspers, Ellenberger, Tatossian, entre outros). Essa ótica também se desdobra para as pesquisas mais contemporâneas (SASS, 1992; PARNAS, 2005; STANGHELLINI, 2005; FUCHS, 2010, etc.). Nessa teoria, verifica-se que os pacientes frequentemente descrevem mudanças simultâneas em seu processo psicológico perceptivo e envolvimento de estranhamento diante de eventos, coisas, na "sensação" geral do mundo e de si mesmos. 5 A Logoterapia é “uma psicoterapia centrada no sentido. [...] Para a logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força motivadora no ser humano” (FRANKL, 2008, p.92). 17 outros vieses, como a própria Logoterapia, com vistas a potencializar o nosso diálogo. Ademais, é fundamental salientar que a Logoterapia e Análise Existencial, presumidas nesta pesquisa, não subscrevem qualquer aposta teoricista aos pareceres cognitivistas, nem se inclinam a um ecletismo teórico. À vista disso, buscaremos manter um edifício argumentativo proximal das teorias assinalando, quando necessário, as discrepâncias teórico-metodológicas, sem no entanto, sucumbir a uma longa analítica comparativa ou discriminatória entre elas. Portanto, as referências às posições de Viktor Frankl servirão muito mais como ferramentas de inspiração intelectual para a tarefa de elucidação temática, do que como uma tentativa de exegese detida e fidelíssima do seu pensamento. Seja como for, mesmo que o leitor, porventura, não concorde com as interlocuções aqui realizadas e, por conseguinte, questione a legitimidade epistêmica de nosso argumento, esperamos que, ao menos, nossa discussão possa desempenhar uma exposição convincente de importantes conceitos que contornam as figuras proeminentes da Psicopatologia Fenomenológica. A questão conceitual é outro ponto a se ressalvar, afinal falar de conceito parece remeter a algo determinativo da própria realidade, porém, não pretendemos nos apoiar em uma categoria avaliativa e normativa do comportamento humano, dado que a própria expressão “perturbação do self” não tem em vista representar uma ideia de disfunção. No entanto, ajusta-se como peça de um vocabulário descritivo dos fenômenos manifestados na forma experiencial da pessoa. Desse modo, Serpa Jr. (2006, p.5) sinaliza: “[...] os fenômenos, portanto, remetem necessariamente a uma totalidade, a uma estrutura, para ganhar sentido, ao contrário dos sintomas [...] que podem ser tomados um a um, isolados do conjunto ou apenas em justaposição com outros sintomas”. 1.3 Justificativa da pesquisa Do nosso ponto de vista, a psicopatologia deve estar munida minimamente de um arcabouço conceitual para conceber e apreender os fenômenos da experiência e, nesse prisma, a filosofia é especialmente útil. Os escassos recursos conceituais manifestam-se na ausência de um vocabulário adequado para aportar a psicopatologia. Com efeito, a Logoterapia de Frankl (2014) concede uma nova ótica para o campo específico da psicoterapia que contempla recursos filosóficos e uma metodologia terapêutica bem 18 desenvolvida. Atualmente, Thomas Fuchs (2018) e outros teóricos da perspectiva corporificada (embodied) têm buscado conciliar um vocabulário filosófico e científico adequado sobre a experiência vivida pré-reflexiva em psicopatologia. Consideramos destacar que cada profissional – tanto da medicina quanto da psicologia e de outras áreas de atuação – possui suas experiências particulares e pode seguir a linha teórica que julga melhor para o diagnóstico e intervenção na sua prática clínica, valendo-se inclusive do diálogo interdisciplinar. Vale mencionar a afirmação de Castellana (2019, p. 138-139): [...] se em algumas situações práticas da Medicina o conhecimento biomédico pode parecer suficiente para fornecer uma resposta ao caso, em outras, como em grande parte das situações na prática em Psiquiatria, essa suficiência não se apresenta, demandando imediatamente da prática profissional a incorporação de outros tipos de conhecimentos e saberes. Assim, cabe ao psiquiatra recorrer à dimensão relacional e intersubjetiva tanto quanto lança mão do conhecimento científico no exercício cotidiano de sua profissão. Ressaltamos também que, fazer ciência requer maior sistematização teórica baseada em linhas de pesquisa que permitam se abrir à colaboração de outras correntes para seu próprio enriquecimento. Acreditamos que o arcabouço teórico proposto nesta tese pode disponibilizar outros modos de contrapor-se as consequências dos diferentes tipos de reducionismo da consciência e da existência humana; bem como podem oferecer proposições que façam um uso diverso (porém, correto, rigoroso e minucioso) da ciência fenomenológica. Diante dessas considerações, nosso trabalho conceitual se coloca como uma ferramenta primordial na composição de uma prática clínica6 em psicologia que nos permita recorrer aos aportes da psicopatologia fenomenológica e, assim, proporcionar leituras que subsidiem compreensões renovadas a respeito das diversas tensões e paradoxos que envolvem tais investigações dentro do âmbito da ciência psicológica contemporânea. Consideramos o contemporâneo como uma inflexão singular, situada na relação do sujeito com o próprio tempo, a qual Agamben (2010, p. 72) define: “como se aquela invisível 6 A intenção aqui não é a de esclarecer o significado de psicologia clínica e de psicoterapia, por isso recomendamos a leitura do capítulo “O campo da psicologia clínica e seus impasses”, localizado no livro Sartre e a Psicologia Clínica (2011) da Daniela Schneider. Nele, a autora problematiza o conceito tradicional de “psicologia clínica” como aplicação dos princípios psicológicos, suscitando uma dimensão ideológica em seu bojo. Dessa forma, ela propõe que “a psicologia clínica deve ser uma aplicada, ou seja, uma prática apoiada sobre um método (o clínico), sustentada, principalmente, pelo estudo de casos clínicos, desdobrando-se na constituição de uma teoria clínica e psicopatológica” (SCHNEIDER, 2011, p.15). 19 luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora”. Isso significa que o presente estudo pretende lançar um novo olhar não só para o tempo atual, como também para o passado, em um movimento de desconstrução, o que demanda problematizar as implicações hegemônicas da psiquiatria e da psicopatologia, na intenção de resgatar o caráter da irredutibilidade da existência aos ditames da racionalidade que, na maioria das vezes, é enredada por explicações determinativas, causais e lineares do comportamento humano. 1.4 Metodologia e estrutura da pesquisa A metodologia desta pesquisa segue a abordagem analítica teórico-conceitual7que, segundo a explicação de Laurenti, Lopes e Araújo (2016, p.24) tem em vista: “[...] mostrar a maneira como uma proposta de interpretação foi construída, o itinerário interpretativo, abrindo a possibilidade de críticas que apontem falhas nesse processo[...]”. Sendo assim, nossa bibliografia se respalda em referenciais teóricos primários que correspondem ao artigo Thinking Too Much. The Psychopathology of Hyperreflexivity (2018)8 de Thomas Fuchs, e à obra Teoria e terapia das neuroses (2016) de Viktor Frankl (2016). Subsidiariamente, além de outras literaturas dos teóricos mencionados, utilizaremos algumas revisões teóricas de Louis Sass, Joseph Parnas, Shaun Gallagher, Dan Zahavi, Giovanni Stanghellini, entre outros comentadores que se aproximam do nosso objeto de estudo. Mediante o exposto, a nossa analítica será desenvolvida em quatro capítulos que serão sempre precedidos por uma breve apresentação. O primeiro capítulo nos ocupamos em resgatar o discurso histórico das noções sobre self e consciência na tradição filosófica ocidental e no surgimento da epistemologia psiquiátrica. Também buscamos revelar como se formaram os diferentes sistemas de racionalidade, os quais se mostram como fio condutor da constituição da subjetividade ocidental. 7 Todas as citações das obras em língua estrangeira listadas na bibliografia foram traduzidas pela autora desse trabalho. 8 Esse escrito encontra-se no livro Para uma psiquiatria fenomenológica: ensaios e conferências sobre as bases antropológicas da doença psíquica, memória corporal e si mesmo ecológico (FUCHS,2018), traduzido por Marco Casanova. 20 No segundo capítulo promovemos um exame mais detalhado da proposta fenomenológica e logoterapêutica. Também discutimos as concepções de self na abordagem corporificada e a noção de pessoa-espiritual em Viktor Frankl. No terceiro capítulo mostramos as manifestações de hiper-reflexividade, de modo a possibilitar que os leitores sejam capazes de discernir as manifestações hiper-reflexivas na esquizofrenia, com o intuito de diferenciá-las de outras configurações psicopatológicas e contrastá-las com as condições habituais. No quarto capítulo será aprofundado o campo específico da psicoterapia para realizarmos uma análise sistemática dos elementos que constituem uma psicoterapia logoterapêutica e as técnicas mais utilizadas na Logoterapia. Finalmente, encerramos o capítulo com uma reflexão dirigida à prevenção da iatrogenia9. 9 A definição dada pelo Centro de Perícias Médicas e Saúde Ocupacional (CPMSO, 1999): "iatrogenia refere- se a um estado de doença, efeitos adversos ou complicações causadas por ou resultantes do tratamento médico ou de outro profissional de saúde". 21 2 A IMAGEM DE SUJEITO NO SISTEMA DE RACIONALIDADE OCIDENTAL [...] cada momento do tempo ajuda suportar um juízo sobre certos momentos que o procederam (BENJAMIN, 1996, p.225). Entendemos que avaliar a emergência de uma episteme requer olhar para o momento histórico no qual ela está inserida, logo, do ponto de vista histórico, a discussão no âmbito da psicopatologia exige um rápido balanço sobre os alicerces epistemológicos que a constitui. Dessa forma, as seções10 que compõem este capítulo serão direcionadas para assinalar as concepções de self e de consciência nos sistemas de racionalidade da modernidade. Veremos que a formulação das questões sobre sujeito e consciência surgem através de sistemas ou de horizontes de racionalidades entendidos como: “o desdobramento do processo sócio-histórico. Esse movimento dialético, ocorrências materiais ou sociais — apropriação racional — ação humana — novas ocorrências, vai gerar a racionalidade de uma dada época, de uma dada civilização” (SCHNEIDER, 2010, p.688). Das múltiplas imagens de sujeito elaboradas no panorama da “Racionalidade Ocidental”11, daremos destaque àquelas arquitetadas na efervescência do primado da razão, pois elas acompanham a construção das dicotomias mente-cérebro, inscrevendo-se desde o nascimento da psiquiatria até o amadurecimento da psicopatologia enquanto disciplina específica; bem como na edificação da ciência psicológica. 2.1 O paradigma do sujeito racional na filosofia A reconstrução histórica e sistemática das formas de conhecimento realizadas por Ernest Cassirer (1998) comprova que a filosofia e a ciência estão mutuamente conectadas na modernidade. Em consonância com esta posição teórica, consideramos que a análise histórica dos diferentes campos de saber traz elementos importantes para delimitar os 10 Poder-se-á notar que o título das seções será precedido do termo “paradigma”, definido por e Thomas Kuhn (1997) como: “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. 11 Os quadros teóricos e epistêmicos que circundam os distintos modos de compreender o homem, o mundo e a natureza integram a chamada “Racionalidade Ocidental”. Pedro Bertolino e Claudia Felix (2005) indicam quatro grandes sistemas de racionalidade: o teológico ou religioso, o metafísico, o político e o científico. 22 alicerces epistemológicos e metodológicos, bem como avistar algumas das fragilidades e equívocos que os contornam. Conforme postulado por Cassirer (1993), os pensadores tanto da filosofia quanto da ciência trabalharam juntos na formulação de uma nova imagem da natureza e do universo, o que também acarretou uma ruptura radical na compreensão de sujeito inaugurado no período moderno. O início da modernidade é delimitado pela passagem do teocentrismo para o antropocentrismo, esta transição ocasiona uma radical transformação da mentalidade europeia que, aos poucos, erige um novo formato de cultura nas diferentes esferas sociais: “[...] em economia, capitalista; na arte e na literatura, clássica; na atitude perante a Natureza, científica” (JAPIASSU, 1985, p. 51). Essa nova visão de mundo exige a reconstrução das formas de operar o conhecimento; por conseguinte, a matemática e a lógica combinadas com as concepções filosóficas do século XVII — notadamente pelo racionalismo cartesiano, empirismo dos filósofos ingleses e pelo sujeito transcendental kantiano — compõem as correntes epistemológicas da modernidade e alinham as bases do sistema científico moderno. Japiassu (2006, p.4) observa que o sistema de Racionalidade Ocidental “progride na dupla tensão entre racionalismo e empirismo: o primado da experiência rompendo com as teorias racionalizadoras, mas a cada nova desracionalização se sucede uma nova tentativa de re- racionalização”. Assim, o sistema de racionalização ocidental se expande por meio do modelo racionalista de René Descartes5 (1596-1650), cuja ênfase é o sujeito na produção da verdade (do conhecimento), a consciência ou o sujeito de consciência vai fundamentar o modelo epistemológico inicial da modernidade. Em Princípios da Filosofia, o pensador francês escreve: “Pela palavra 'pensamento' ('pensée') eu entendo tudo aquilo de que estamos conscientes como operando em nós” (DESCARTES, 1997, p. 29). A célebre máxima “eu penso, logo existo” (cogito ergo sum), princípio presente na Primeira Meditação de suas Meditações Metafísicas (1641), institui o princípio fundamental do racionalismo cartesiano, cuja epistemologia cartesiana passa a marcar o sujeito como coisa pensante, por sua vez, ocorre a divisão entre corpo e alma. O sujeito cartesiano é dividido por um corpo (res extensa) dotado de materialidade que pode ser explicado por leis mecânicas, também constituído por uma mente ou alma (res cogitans), a qual não sofre ação da natureza, está isenta da degradação e da temporalidade (DESCARTES, 2005). 23 Nessa direção, o racionalismo transcorre outros pensadores, tal qual Leibniz (1646-1716) e Espinosa (1632-1677), que instauram o primado da razão como via segura para conhecer e acessar a verdade. De outro lado, emerge o postulado empirista, onde o conhecimento é constituído, especialmente, a partir das sensações e percepções oriundas da experiência que, segundo a clássica metáfora de Locke12 (1632-1704), grava as ideias no espírito como quem escreve numa folha em branco “tábula rasa”; ideias estas que serão associadas, combinadas e separadas pela razão (LOCKE, 1999). Dessa forma, Locke (1999) assinala que o conhecimento humano tem origem empírica na “sensação”, tanto na experiência externa quanto na experiência interna, é a partir da sensação que são formadas as ideias mais simples às mais abstratas e complexas. O empirismo recebe também contribuições de Francis Bacon (1561-1626), Berkeley (1685-1753) e Hume (1711-1776), que estabelecem a experiência sensível como via de acesso para obtenção do conhecimento. Além de todos esses câmbios no pensamento racionalista e na episteme empirista, destacamos o abalo provocado pela reviravolta copernicana efetuada por Immanuel Kant (1724-1804), ao colocar a mediação do sujeito transcendental no acesso ao conhecimento. Contrário a dicotomia da tradição entre objetivo e subjetivo, a qual se solidifica na ideia de que o nosso conhecimento se guia de acordo com o objeto, Kant defende que são os objetos que se norteiam de acordo com nosso conhecimento (KANT, 2001). Em suma, o conhecimento da realidade acontece diante de uma ‘investigação transcendental’, valendo-se então, da demonstração das categorias de nosso entendimento, ou seja, passa se concentrar em tematizar o universo categorial. Segundo Oliveira (2012), o transcendentalismo kantiano, é resultado da substituição do “dualismo metafísico” pelo “dualismo transcendental”, todavia, a perspectiva transcendental possui um polo que separa o sujeito do mundo: de um lado, há o mundo natural regido por leis; e, de outro lado, o sujeito com sua autoconsciência que se situa para além da instância fenomenal. O embate entre as epistemologias possui como pano de fundo a noção de subjetividade: quem é o sujeito do conhecimento? Assim, a apreensão da verdade pela 12 A teoria do conhecimento lockeana é, de certa forma, uma resposta contrária à doutrina das ideias de Descartes, uma vez que o empirismo insurge contra o pensamento cartesiano em vários aspectos: de início, pela rejeição da razão enquanto fonte de conhecimento humano sem que este seja embasado na experiência, em seguida, por defender a experiência sensorial como único dado de base possível do conhecimento. 24 relação sujeito-objeto coincide com as especulações sobre as noções de consciência, autoconsciência, sobre identidade, definições de ego e ou de self13. A filosofia racionalista ao se afastar da unidade entre mente e corpo, que era presente na concepção aristotélica- escolástica, revoluciona o seu uso na modernidade, na medida em que a noção de sujeito passa a se basear na estrutura dicotômica mente-corpo, além de elevar a consciência e o self ao absoluto de uma auto posição totalizante. No que diz respeito a noção de sujeito, Locke da mesma forma que Descartes, afirma que a autorreflexão é importante para a natureza do self. No entanto, enquanto Descartes entende a autorreflexão como reveladora da natureza do ego ou do sujeito, a proposta lockeana trata de conectar a continuidade psicológica para explicar a identidade pessoal em relação a memória de nossas experiências pessoais anteriores, ou seja, a nossa reminiscência e / ou apropriação do passado14 (LOCKE, 1999). Sobre a problemática do conhecimento humano que se desdobra para o campo antropológico, o autor Thomas Fuchs (2016, p. 1) comenta: “o novo conceito racionalista de pessoa em Descartes e ainda mais em Locke está basicamente ligado à autoconsciência, deliberação e reflexão racional em primeiro lugar”. Tanto a tradição empirista quanto a racionalista, o que está suposto entre a mente e o acesso ao objeto é a ideia de um intermediário: a representação. Sendo assim, a filosofia da consciência derivou em outras formas de empirismo racionalista que reduzem a consciência a uma manifestação do cérebro (FUCHS, 2016). Essas caracterizações revelam que o foco de interesse da filosofia moderna expressa-se no sujeito do conhecimento: um sujeito capaz de conhecer o mundo e a si mesmo através da atividade reflexiva. Neste sentido, Fuchs (2016, p.21) afirma que, “o sujeito ontológico é também um sujeito epistêmico, logo pode se falar de um self cartesiano, de um self empírico, ou ainda de um self fenomenal de Kant”. 13 Vale ressaltar que o termo “self” tem diversas interpretações e engloba uma gama de conceitos que se relacionam com outras terminologias elencadas por distintos campos do conhecimento. Várias abordagens circunscrevem o homem enquanto: sujeito social, político, sujeito do conhecimento, sujeito da própria experiência, e assim por diante. Esta multiplicidade de configurações indica que o self se apresenta como campo de pesquisa translacional, no qual as implicações de cada paradigma conjeturam uma heterogeneidade conceitual sobre sua definição (ATKINS, 2005). 14 Diferente dessa concepção, o empirismo radical de David Hume (1711-1776) leva-o a afirmar que o self não passa de uma ilusão e não tem nenhuma existência, pelo menos enquanto uma substância; ele entende o self como um feixe de episódios mentais, uma vez que tal substância unitária não é encontrada pela introspecção. “Quando minhas percepções são removidas a qualquer momento, como por um sono profundo; por tanto tempo sou insensível de mim mesmo e pode-se realmente dizer que não existo” (HUME, 1978, p.252). 25 Embora ao longo da tradição idealista alemã, diversos intérpretes terminam por projetar explicações sobre o self, sobretudo por meio da doutrina fichteana, de Schelling e Hegel, além das escolas neokantianas, as quais influenciaram a discussão sobre o processo de apreensão do saber objetivo pelo sujeito. Nenhuma delas, no entanto, escapou da restrição idealista15, sobre isso Thomas Fuchs (2017, p. 6) comenta que: “o idealista se senta no recinto de sua consciência e recebe as “ideae” como representações de coisas que ele nunca consegue ver por si mesmas”. A compreensão da mente como uma estrutura de representações implica, assim como sublinha Charles Taylor (2000), em uma “ontologização do método”, reificando o self. Isto é, o “sujeito de representações, para quem o contato com o mundo exterior só existe através das ― representações que existem ― dentro de nós”, denota que a mente processa todas as informações, independentemente do corpo ou da intersubjetividade, com isso, “trata-se de um centro de consciência monológica” (TAYLOR, 2000, p. 185). À vista disso, a produção do conhecimento científico, as concepções de self e consciência tem uma história estreitamente ligada ao desenvolvimento dos sistemas filosóficos tradicionais. Portanto, a noção de sujeito como resultado da capacidade reflexiva humana, influencia o entendimento de homem “mentalmente” doente como aquele desprovido de razão. Com efeito, a história da epistemologia psiquiátrica não escapa essa visão, de Descartes a Hegel, de Pinel a Esquirol, a loucura não é mais exterior à razão, mas é a própria razão em suas contrariedades. Dessa forma, sob as influências do racionalismo, do empirismo e do positivismo lógico, a psiquiatria passa a ser reconhecida como especialidade no século XVIII, como veremos na sequência. 2.2 O paradigma da racionalidade médica na psicopatologia O médico francês Georges Lanteri-Laura (2000) apropria-se do conceito de paradigma16 para delinear a história da psiquiatria e, segundo esse autor, entre o século XVIII e o século XX, sobressaíram-se pelo menos três paradigmas: o Paradigma da Alienação Mental, tendo Philippe Pinel como representante principal; o Paradigma das 15 O idealismo instaura o domínio meramente representacional de consciência, uma vez que a apreensão do conhecimento se dava por meras “impressões”, “ideias” ou “representações” da realidade. 16 Kuhn (1997) compreende que os paradigmas das ciências estão além das construções humanas, porque eles são também construções sociais e históricas. 26 Enfermidades Mentais, fase de Jean-Pierre Falret e o apogeu da taxinomia kraepeliana; e, finalmente, o Paradigma das Grandes Estruturas Psicopatológicas. Com base nessas elaborações, vamos contornar, de modo mais abrangente, a construção destes paradigmas. Na modernidade, o campo psiquiátrico habita o espaço entre o abandono das explicações míticas, que se pautava na noção de loucura como possessão demoníaca reverberada desde a Idade Média, para dar lugar a concepção dualista, na qual a loucura e a razão se configuram como duas forças opostas e, consequentemente, excludentes. Assim, a psiquiatria se aplica no combate ao mal social, moral e patológico, uma vez que a noção de “loucura” era circunscrita como perigo social, de acordo com as condições normativas das convenções e regras sociais. Michel Foucault, em História da Loucura (1961), mostra-nos que o prelúdio da construção da racionalidade médica, e mais especificamente a psiquiátrica, instaura-se por intermédio da perspectiva dualista que, de início, vê as perturbações mentais como uma desordem moral ou como uma fuga de um padrão de normalidade. O autor menciona que a noção cartesiana de sujeito, ao preconizar o aspecto racional, carrega consigo uma depreciação moralista da “irracionalidade”. O indivíduo considerado louco, segundo o pensamento da época, expunha uma falha de pensamento lógico dedutivo e indutivo que havia sido instaurado pelo sujeito cartesiano, ou seja, a loucura era entendida como um desvio reversível da razão a ser tratada pela segregação do homem no centro médico. Embora houvesse um progresso da técnica e, com isso, esperasse uma visão mais compassiva do tratamento aos sintomas, os doentes mentais eram perseguidos por suas doenças. A veneração da razão carrega consigo uma depreciação moralista pela “irracionalidade”, por conta da qual os sujeitos com transtornos mentais devem ser asilados para não contaminarem os demais. Essa época é, portanto, marcada pelo “Grande Confinamento” a partir da reclusão do “alienado” por detrás das paredes asilares (FOUCAULT, 1997). Sobre isso, Basaglia (2010, p. 116) endossa que: “o doente, fechado no espaço augusto da sua individualidade perdida, oprimido pelos limites impostos pela doença, é forçado, pelo poder institucionalista da reclusão, a objetivar-se nas regras próprias que o determinam [...]”. No final do século XVIII, as condições dos asilos e dos tratamentos punitivos tornam- 27 se cada vez mais nefastas, o que leva a uma reforma dos hospitais. Essa nova etapa da clínica médica após a reforma dos asilos proposta por Philippe Pinel que, inspirado na tradição filosófica-nominalista7 e no método histórico-natural, instaura o alienismo ou medicina mental (FOUCAULT, 1997). De acordo com os estudos de Pinel, a alienação poderia ser curável, porém o tratamento estipulado se direcionaria para uma reeducação moral, na tentativa de resgatar o comportamento organizado e racional do doente. Observa-se, diante disso, o poder normalizador do sujeito que corresponde à construção de um paradigma fundado na distinção entre o normal e o anormal, tendo isso em vista, Foucault observa que (2010, p.72), “não é mais suficiente dizer se o sujeito é ou não é louco, mas antes constituir-se como uma ciência das condutas normais e anormais”. Nesse sentido, “o médico estava encarregado de efetuar mais um controle moral do que uma intervenção terapêutica” (YASUI, 2010, p. 86), a fim de confrontar o sujeito com seu erro, de modo a reabilitá-lo ao convívio social. [...] se a loucura é considerada um rompimento com a racionalidade, rompimento este que se expressa por meio de determinados sinais, precisos e constantes, pode ser então classificada e agrupada, de acordo com suas aproximações e distanciamentos, em classes, gêneros e espécies, enfim, numa nosografia. Ainda em consequência dessa postura, a nosografia é “filosófica” porque se trata de um método de “análise”, que está em oposição à metafísica enquanto "filosofia primeira", tal como proposta por Descartes. Para Pinel, essa metafísica “cartesiana” é um exercício especulativo que pretende ir além dos ensinamentos da experiência em si (AMARANTE, 1996, p.40). A psiquiatria também experimenta uma notável influência dos materialistas franceses17 que compreendem a mente a partir das suas disfunções. Assim, os psiquiatras passam a acreditar na possibilidade do diagnóstico e tratamento dos transtornos mentais, no mesmo método de identificação de qualquer outra afecção fisiológica. Nesse contexto, Esquirol, sucessor de Pinel, aprofunda-se no paradigma etiológico da determinação orgânica-hereditária e fornece maiores detalhes das síndromes psicopatológicas por meio de uma sistematização nosográfica, sob as bases da ótica organicista. Tal como Pinel e Esquirol, Jean- Pierre Falret compôs o alienismo francês, entretanto Falret se diferencia dos seus mestres e de seus antecessores por explicitar o método clínico em psiquiatria pela primeira vez na história. 17 Em meados do século XVIII, as ideias materialistas, empiristas, racionalistas e associacionistas emergiam- se paralelamente na cultura científica e filosófica europeia (SCHULTZ; SCHULTZ, 2007). 28 Embora possamos notar o aparecimento de novos pesquisadores no campo da psiquiatria, as explicações ainda persistem nas causas físicas e morais para a determinação da doença mental. Sobre este ponto, Canguilhem (2000, p.109) realça que o aceite da definição de anormalidade “a partir da inadaptação social é aceitar mais ou menos a ideia de que o indivíduo deve aderir à maneira de ser de determinada sociedade, e, portanto, adaptar-se a ela como a uma realidade que seria, ao mesmo tempo, um bem”. Em seguida, os estudiosos buscam entender o distúrbio em sua determinação a fatores localizáveis, apoiando-se no positivismo de August Comte. Nesse contexto, o estudo de Benedict-Augustin Morel se destaca, uma vez que transporta o rumo da medicina mental francesa e origina à psicopatologia enquanto campo de conhecimento18, além de sua dedicação à ordem etiológica, hereditária e “pela manifestação concreta de uma lesão funcional” (MOREL, 1857, p. 47). No início do século XIX ocorre, portanto, uma ebulição da corrente positivista, cujos desdobramentos acontecem em diversos campos do conhecimento, incluindo a psicologia moderna, desenhada pelo método psicofísico de Wundt e Titchener que se torna, a princípio, uma psicologia experimental. À vista disso, Yasui (2010, p.87) pondera: “a subjetividade se exterioriza, se torna uma verdade positiva, ou seja, uma realidade passível de observação científica”. Sendo assim, as novas teorias que se dedicam à esfera psicológica sob o domínio da realidade objetiva contribuem para a crescente importância da clínica psicológica, desenvolvida no seio da psiquiatria, até se consolidar, no final do século XIX, na denominada psicologia clínica. Essa nova área é entendida por Schneider (2009, p. 46) como “um dos frutos da contestação a esse modelo predominante de ciência psicológica. Buscavam-se outros modos de produzir os conhecimentos em psicologia, pautados em outras concepções sobre seu objeto: a psique”. Retornando ao histórico da psiquiatria, o século XIX é marcado pela rápida expansão das neurociências, de modo mais específico, da neuroanatomia e da neurofisiologia através dos trabalhos realizados por Broca e Wernicke. Assim, a psicopatologia passou a ser fundamentada pela localização da área cerebral possivelmente danificada19. 18 Ao traçar o histórico da psicopatologia, esbarramos em algumas imprecisões, por exemplo, alguns autores afirmam que o primeiro a falar em psicopatologia foi Théodule Ribot (1839-1916), em 188; enquanto outros, como Paim (1993) asseveram ter sido Esquirol e Griesinger (HOLANDA, 2001, p. 29-30). 19 Esse materialismo científico preponderou na psiquiatria até a segunda década do século XX. 29 Houve uma físico-química fisiológica, conforme às exigências do conhecimento científico, isto é, uma fisiologia que comportava leis quantitativas, verificadas pela experimentação, enquanto a patologia ainda estava sobrecarregada de conceitos pré-científicos. É compreensível que, ansiosos — e com toda a razão — por uma patologia eficaz e racional, os médicos do início do século XIX tenham visto na fisiologia o modelo a ser adotado, pois era o mais próximo do seu ideal (CANGUILHEM, 2000, p. 35). De acordo com Martinez (2006), essas duas disposições etiológicas se manifestavam como divergentes para determinação do fenômeno psicopatológico dissidente dos séculos XIX e XX: o fenômeno psicopatológico de ordem representacional ou eidética, cujas ideias eram exclusivamente o efeito de uma disfunção psicopatológica, remetendo ao modelo associacionista de Locke, Berkeley e Hume; e outra, de ordem material ou orgânica, influenciada pela expansão do naturalismo biológico. Em suma, o encontro entre os dois paradigmas teóricos, o racionalista — defensor de um funcionamento universal pelo intelecto — e o empirista — que enfatiza a natureza humana e as suas estruturas cognitivas como produtos da apreensão de nossos sentidos — fornecem direcionamentos a dinâmica da filosofia moderna e a história da ciência. Assim, a atitude científica comete o equívoco de pensar, conforme indica Japiassu (2006, p. 6), que a razão “não apenas é necessária, mas suficiente”, convertendo-a em um instrumento de ordem e homogeneização. Daí, insurge uma autonomia moral em relação às normas universais, legitimando projetos políticos, sociais e econômicos pautados em coerções, uniformidades e totalitarismos (JAPIASSU, 2006). Nesse sentido, a razão marca do pensamento filosófico e científico ocidental, pois ela é uma construção histórica que, ao longo dos tempos, procede no enquadramento das normas, dos procedimentos, das regras e das coerções, no domínio dos fatores psíquicos. Parafraseando Japiassu (2006, p. 9), “A razão se transformou numa racionalidade instrumental prestando culto aos meios em detrimento dos fins”. O final do século XIX até metade do século XX, a leitura das doenças a partir de uma lesão subjacente é predominante na medicina em geral, visto que há um crescente uso de investigações histológicas, fisiológicas, bioquímicas e genéticas em patologia. Aqui, o campo de investigação com base orgânica nos remete à abordagem do neurologista e psiquiatra, Kurt Goldstein, para quem a doença é uma condição de todo o organismo vivo em seu meio20. 20 Nessas circunstâncias, Gelb e Goldstein destacam-se pelos estudos com indivíduos vítimas de lesões 30 Outro célebre nome do campo psiquiátrico é o de Emil Kraepelin, sob o enfoque empirista e sem as especulações nos processos fisiológicos hipotéticos ou metafísicos, a sua obra “coroa a psiquiatria do século XIX e inaugura a do século XX” (PESSOTTI, 2006, p.114). Assim, tem-se o fim do primeiro momento da psiquiatria biológica focada no tipo de sintomas, dando lugar ao curso da doença mental. Rompendo com o alienismo de Pinel, Kraepelin reúne entidades nosológicas dentro do termo que fora cunhado por Morel por “dementia praecox21”, colocando o acento no critério evolutivo (KRAEPELIN,1996). Os tipos da loucura ou psicose endógena passaram a compor dois grandes grupos: o das psicoses maníaco-depressivas, que englobava as formas maníacas, as melancólicas e alternâncias entre elas; e o segundo, chamado dementia praecox, que agrupava outros quadros, com decurso e desfecho comparáveis — as antigas hebefrenias, catatonia e demência paranoide [...] Note-se que, nesta classificação, cada doença é, essencialmente, um conjunto de sintomas, evidências de distúrbios cerebrais (PESSOTTI, 2006, p. 114). O objetivismo kraepeleniano passa a ser refutado com o aparecimento da Psicanálise22, em especial, alicerçados no trabalho seminal de Eugen Bleuler, também nos estudos sobre histeria de Breuer e Freud.  Assim, o domínio da psicodinâmica de cunho psicanalítico defende que as fantasias inconscientes estão na raiz dos transtornos psíquicos. A originalidade de Bleuler é decisiva, já que localiza-se nele, uma visão psicanalítica sobre os sintomas esquizofrênicos, que encontram seu significado na psicologia dos complexos ideoafetivos e nos mecanismos freudianos de defesa. Em sua influente monografia de 1911, Dementia Praecox (Grupo de esquizofrenias), Bleuler refina a concepção de Kraepelin e renomeia-a de “esquizofrenia” (BLEULER, 1960). Além disso, Bleuler (1960) introduz o termo autismo para designar um sintoma da esquizofrenia e para descrever o desapego da realidade externa, por isso, vai apoiar-se na noção de Freud de autoerotismo e na psicologia associacionista, defendendo que a esquizofrenia seria um distúrbio particular nas associações das ideias, ou seja, ele segue uma base orgânica para compreensão desse distúrbio. cerebrais, principalmente, relativas às lesões corticais, as quais exibiam quadros sintomáticos ou sequelas classificadas como agnosias, afasias e apraxias. 21 O termo "demência precoce" foi cunhado por Benedict-Augustin Morel em 1856 e popularizado pelo texto de Emil Kraepelin publicado em 1896. 22 “Depois de Kraepelin, o discurso ou a conduta delirante não mais são vistos como perda ou deterioração de funções, mas como um universo de experiências únicas e ricas de significados. Mais ainda, nas obras de Freud, Bleuler, Minkowski e Binswanger, além de terem significado, os sintomas são dotados de função: eles servem a algum fim” (PESSOTTI, 2006, p.115). 31 Em certo sentido, a Psicanálise realiza um marco importante para a psicopatologia que é o fato dela tentar considerar a subjetividade do sujeito, no entanto, Schneider (2009) conclui que a metapsicologia freudiana e os conceitos fundamentais que circundam a Psicanálise configuram-se por um método racionalista (dedutivo) e especulativo imbuído de influências metafísicas. Diante disso, as interpretações psicodinâmicas enxergam o homem como mero produto dos mecanismos de defesa, formações reativas ou racionalizações de seus instintos e, nessa dinâmica, o ego não passa de um conjunto de impulsos. Em oposição aos pensamentos vigentes23, Karl Jaspers24, que fora aluno de Kraepelin, constrói uma nova ótica para a psicopatologia, doravante ao escrito Direção da pesquisa fenomenológica na psicopatologia (1912), cuja ênfase volta-se à crítica dos modelos reducionistas da investigação psicopatológica. Diante disso, Jaspers (1912/2015) afirma: “[...] nós precisamos nos voltar puramente àquilo que nós compreendemos, apreendemos, diferenciamos e descrevemos em seu existir real”. Ressalta-se que as raízes do pensamento jaspersiano ressoam influências da fenomenologia descritiva de Edmund Husserl e do método compreensivo de Wilhelm Dilthey. Desse modo, Jaspers possibilita ao campo psiquiátrico maior atenção a experiência subjetiva. Nesse quadro histórico do paradigma psiquiátrico, podemos observar que há uma forte tentativa de submeter a psiquiatria aos moldes de outras especialidades médicas, ou seja, realizar uma delimitação clara de uma entidade nosológica, de preferência com fator etiológico, prognóstico e com tratamentos bem estabelecidos. Nessa direção, o ápice em fornecer critérios descritivos precisos resulta na Revolução Operacional, na década de 50, com a criação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (APA/DSM, 1952), organizado pela associação norte-americana American Psychiatric Association (APA/DSM, 1952). Em 1952, o DSM cataloga e suborganiza os transtornos mentais em 106 categorias, 23 No final do século XIX a segurança do pensamento positivista começa a ser questionada em várias áreas de produção do conhecimento e, nesse âmbito filosófico, enfatizamos Wilhelm Dilthey23 (2010) que propôs a distinção de dois tipos de ciências: as ciências do espírito e as ciências da natureza, cada uma caraterizada por um método peculiar; Frantz Brentano23 que realiza um esforço para a correta compreensão da teoria da intencionalidade, contra a interpretação antipsicologista kantiana, ele utiliza do método psicológico, o qual não se resume à mera descrição dos eventos psíquicos; e, um pouco mais tarde, Edmund Husserl com o desenvolvimento da Fenomenologia. Entendemos que tais pensadores iniciaram as considerações desvinculadas de teorias causais e idealistas sobre a experiência do sujeito. 24 A publicação de Psicopatologia Geral (1913) de Jaspers marca o início da psicopatologia enquanto campo específico do saber, diferenciado da psiquiatria. As últimas edições dessa obra ficaram sob a responsabilidade de, Kurt Schneider, herdeiro da tradição de Heidelberg. 32 com curtas descrições que ajudam a reconhecer a condição e, encaixá-la em uma categoria estatística, para então diagnosticá-la. Na segunda versão do DSM, publicada em 1968, são apresentadas 182 categorias referentes às patologias mentais, não havendo alterações significativas em relação à primeira versão (APA/DSM, 1968).   A revolução do modelo ocorre com a publicação da terceira edição, na década de 80, cuja ênfase incide em uniformizar e validar o critério diagnóstico psiquiátrico, de modo a padronizar as práticas diagnósticas. Destarte, o manual passa a detalhar as características clínicas das perturbações mentais, fundamentando-se em critérios da medicina baseada em evidências e marcando a adoção oficial da abordagem operacional na psiquiatria americana, assim como a difusão de seus princípios em nível internacional25 (APA/DSM-III, 1980). Na mais recente edição do DSM, publicada em maio de 2013, são reconhecidas as comorbidades e apresentado um sistema de classificação quanto ao nível de gravidade: leve, moderada ou grave (APA/DSM-V, 2013). No entanto, o manual conserva o sistema de categorias estáticas que segue o formato de listas de verificação para a alocação de códigos diagnósticos. Devido aos tratamentos biológicos em expansão, a necessidades de uma linguagem em comum entre os médicos torna-se uma pauta emergente, o que empurra as questões nosológicas para o primeiro plano, ressurgindo a escola neokraepeliniana, a qual influencia sobremaneira a revisão do sistema nosológico. Por consequência, torna-se latente a necessidade de coletar informações estatísticas para o desenvolvimento de uma classificação que uniformize os critérios diagnósticos, a fim de registrar os dados e facilitar a comunicação entre os clínicos.  A Revolução Operacional na psiquiatria é desencadeada pelo projeto de diagnóstico dos Estados Unidos e do Reino Unido, que demonstram uma prática diagnóstica marcadamente diferentes entre os médicos britânicos e americanos (CAPONI, 2012). 25 Desde a sua criação, o DSM tem sido alvo de críticas, algumas delas se referem à sua propriedade estritamente classificatória, empirista e pragmática, a qual desconsidera o debate psicopatológico real, já que o DSM se mostra como uma reprodução psíquica de uma experiência sensível. Segundo Andreansen (2007), desde a publicação do DSM-III, houve um declínio no ensino da avaliação clínica cuidadosa, voltada para os problemas individuais e para o contexto social. Logo, os alunos são ensinados a memorizar o DSM ao invés de aprender as complexidades dos grandes psicopatologistas do passado.  O autor ainda lista alguns dos principais problemas do manual, tais como: a inclusão de apenas alguns dos sintomas característicos de um determinado transtorno; o impacto desumanizador na prática da psiquiatria do manual, pois a obtenção da história, que seria a ferramenta de avaliação central em psiquiatria, é frequentemente reduzida ao uso de listas de verificação do manual; a falta de utilidade dos diagnósticos do DSM na pesquisa, resultante da falta de validade (ANDREANSEN, 2007).  33 Os conteúdos do DSM difundiram-se rapidamente pelas escolas psiquiátricas americanas e por toda a pesquisa psiquiátrica e psicopatológica ulterior, ademais, esse manual também contribui para a constituição das novas classificações psiquiátricas, como o Research Diagnostic Criteria (RDC) e o Present State Examination (PSE), ainda hoje utilizados.   Além disso, a nona edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-9), publicada em 1978, pela primeira vez relacionou em seu índice de transtornos mentais um glossário de termos com a definição dos sintomas e síndromes psiquiátricas, proporcionando, dessa maneira, uma orientação sobre a avaliação diagnóstica (GROVE et al., 1981). A psicopatologia operacional se fundamenta, portanto, em uma abordagem criteriológica26 e na ênfase de definições "operacionais”, cujas suposições implícitas das classificações diagnósticas foram influenciadas pela epistemologia positivista e behaviorista, pautada nas posições filosóficas do positivismo lógico, noções conjuntamente denominadas de “operacionalismo” (PARNAS; SASS; ZAHAVI, 2013). O operacionalismo que guia esta abordagem adota o esquema nomológico- dedutivo (D-N) proposto em 1948 por Hempel e Oppenheim, que diz que a explicação de um fenômeno é a sua subsunção sob leis gerais (leis de cobertura), logo, a sua metodologia adquire a forma de um raciocínio dedutivo. Os conceitos científicos têm a função de indicar as categorias que, a propósito do objeto em questão, esclarecem de forma mais eficiente do que outros conjuntos de categorias. Hempel (1965, p. 245) argumenta que o ordinário conceito referente à explicação consiste em responder à pergunta “por que” em vez de “o que”. O procedimento operacional mencionado em qualquer definição operacional deve ser escolhido de tal forma que possa ser executado por qualquer observador competente e que o resultado possa ser objetivamente assegurado, sem depender essencialmente de quem realiza o exame. Diante dessas considerações, visualizamos que os manuais diagnósticos refletem a herança epistemológica do empirismo positivista que, endossa como critério avaliativo, os sintomas comportamentais observáveis de forma padronizada. A psicopatologia operacional associada a neurociência e com o apoio da psicofarmacologia apresenta o recrudescimento do neopositivismo neurobiológico, que desvenda uma psiquiatria 26 Criteriológica remete ao conceito denominado por Kraus (1994), segundo qual as doenças são definidas por critérios específicos e previamente definidos. 34 neurobiológica dos neurotransmissores e dos psicofármacos. A análise dos transtornos mentais pela descrição de fenômenos observáveis como sugerido pelos manuais leva a uma explicação epistêmica e, principalmente, normativa das manifestações psicopatológicas. 2.3 O paradigma da revolução tecnocientífica Na contextualização empreendida anteriormente, acompanhamos o modelo de racionalidade do período moderno, a partir do qual a psicopatologia se edificou. Em meados do século XX, a sociedade experimenta uma radical transformação nas suas estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais, decorrentes do avanço tecnológico, esse período técnico-científico e a própria globalização estimulam novas formas de produção do conhecimento, e claro, modificam os modelos explicativos a respeito dos transtornos mentais. Mais precisamente, após a década de 40, as tecnologias de informação alavancam os estudos sobre o processo de armazenamento de informação, delimitando novas investigações da matemática fundadas pelas ciências da informação e pelas ciências da computação. O matemático Claude Elwood Shannon (1916-2001) — precursor da Teoria da Informação inspirado pelas ideias de Turing16, pela estatística e pelos sistemas de comunicação — constrói uma teoria matemática da informação, o que prepara o terreno para o surgimento da cibernética27, que mais tarde Norbert Wiener28 desenvolve (LIMA, 2004). As teorias computacionais representam as primeiras investigações do aparato cognitivo, enviesadas pela decodificação da lógica e do pensamento, também pela artificialização da cognição, na qual o real da subjetividade pode ser duplicado na máquina computacional. Nesse cenário, cérebro e computador são tomados como um sistema equivalente, ao mesmo tempo que a cognição assume a feição de um software, sendo entendida como portadora de regras gravadas numa memória, que possui um mecanismo 27 A cibernética compreende o comportamento e a cognição como processadores de informação, enquanto o cérebro humano é comparado a um computador biológico (LIMA, 2004). 28 Sobre a história deste movimento de expansão dos princípios da cibernética na obra de Wiener, ver Peter GALISON, Peter. The Ontology of the Enemy: Norbert Wiener and the Cybernetic Vision. Critical Inquiry, v. 21, n. 1, 1994. 35 que conduz o seu funcionamento. Há, portanto, uma mudança paradoxal sobre a noção de sujeito, pois enquanto o sujeito racional da Modernidade é delimitado pelos critérios da razão e da verdade, sob a lógica sujeito-objeto na construção do conhecimento; com a Revolução Técnico-Científica e Informacional, o papel funcional do substrato cognitivo é colocado em evidência — como a mente reage, processa a informação e executa tarefas — tornando-se responsável pelo tratamento das informações e pela faculdade de conhecer. O triunfo paradoxal da informação leva Fuchs (2020, p.20) a salientar: “[o] idealismo da informação não contradiz o materialismo [...]. O que ambos têm em comum é o descaso com a subjetividade. Isso, por sua vez, é uma consequência do dualismo moderno. Desde Descartes, a vida não é mais vista como tendo um status ontológico independente entre matéria e mente”. Assim, as ciências cognitivas29 surgem no interior desse panorama e norteadas pelas teorias da informação, comunicação, computacional e pela Inteligência Artificial30. Os modelos cognitivos seguem pesquisas teóricas e experimentais sobre a solução de problemas e sobre o processo de tomada de decisão, o que fomenta novos modelos de racionalidade (FUCHS, 2021). O filósofo americano, Jerry Fodor, usufrui da teoria computacional como base conceitual para elaborar a teoria da modularidade, a fim de entender como a mente se estrutura e como são organizadas as capacidades cognitivas. Segundo o autor, a capacidade de compreender o comportamento humano, em termos mentais, não é simplesmente adquirida pelas experiências ao longo da ontogênese — assim como previa o associacionismo — mas é preciso entender as atividades cognitivas na via das representações mentais. Nesse contexto, as funções mentais são tratadas como informações e configurações simbólicas, característica da teoria representacional, cujo pressuposto entende que o “processo psicológico é o resultado de representações, do qual o sistema cognitivo é capaz de realizar transformações” (FODOR, 1975, p. 164). Diante disso, a teoria representacional favorece o desenvolvimento dos quadros 29 Essas discussões foram iniciadas por Howard Gardner, quando no ano de 1985 ele criou a [sistematizar o uso de maiúscula e minúscula] expressão “revolução cognitiva” para designar o movimento científico iniciado nos anos 50 e que deu origem as chamadas ciências cognitivas (GARDNER, 1995). Este movimento interdisciplinar combinou novas ideias da psicologia, da antropologia e da linguística, mesclando-as com os recentes campos da inteligência artificial, ciência da computação e neurociência. 30 O termo Inteligência Artificial foi criado por J. MacClathy em 1956 e tornou-se o Modus Operandi das chamadas ciências cognitivas. A Inteligência Artificial (IA), linha de pesquisa que melhor ilustra esse modelo de conhecimento, caracteriza o campo da ciência cognitiva. Seu quadro conceitual nasce com a informática e é imbuído no ideal de simulação (LIMA, 2004). 36 teóricos da racionalidade, cujo princípio normativo visa estabelecer se uma ação é ou não racional (OVER, 2004). Nessa ótica, o cerne da racionalidade está na forma como os organismos gerenciam as representações, ou seja, quão bem eles o fazem quando são avaliados em relação a uma determinada norma. Em 1991, Herbert Simon elabora a primeira abordagem da racionalidade que surge em oposição às noções de racionalidade substantiva ou aristotélica, sendo assim, ele propôs a descrição do modo como as pessoas pensam para tomar decisões. Em conjunto com Allen Newell, os autores enunciam: “a hipótese do sistema de símbolos físicos”, segundo a qual “um sistema de símbolos físicos tem os meios necessários e suficientes para a ação inteligente geral” (NEWELL; SIMON, 1976, p. 116). Seguindo esses pressupostos, Simon (1991, p. 266) elabora o termo “racionalidade limitada” para designar a forma como as decisões são tomadas, e assim, explanar os limites cognitivos que envolvem uma escolha racional. A teoria da racionalidade limitada explica que os tomadores de decisão são intencionalmente racionais e, por sua vez, são orientados a objetivos adaptativos, os quais, ocasionalmente, podem cometer falhas devido a complexidade da cognição humana. Desse modo, uma teoria da racionalidade “não pode prever o comportamento, a menos que englobe tanto uma análise da estrutura dos ambientes de tarefa, quanto uma análise dos limites da adaptação racional aos requisitos da tarefa” (NEWELL; SIMON, 1972, p. 5). Portanto, não é possível avaliar o comportamento pela sua capacidade adaptativa ao ambiente real ou pela resolução de problemas ambientais, pois os contextos ambientais têm um espaço ilimitado de possibilidades. Com a versão pós-simoniana, Daniel Kahneman e Amos Tversky, direcionam-se para a investigação dos axiomas da lógica e da probabilidade. O programa de pesquisa fundado por Daniel Kahneman e Amos Tversky, na década de 1970, rende a Kahneman o Prêmio Nobel, em 2002. Esse programa se baseia na possibilidade de identificar experimentalmente um modelo, fundamentado em princípios heurísticos, que criam atalhos para julgamentos de probabilidade e identificam elementos para compreender as decisões humanas. Segundo Kahneman et al. (1982), as heurísticas são a principais fontes de erros sistemáticos na formulação de julgamentos. Contrapondo-se às teorias da racionalidade pautadas na tomada de decisão, outros teóricos, voltam-se à dimensão social e afetiva da cognição, a fim de resgatar a natureza 37 social do cérebro. Nesse campo, o aspecto cognitivo das respostas emocionais é colocado em realce, principalmente, na obra de Antonio Damásio (1994, p. 19), que argumenta em defesa de uma certa “biologia da mente e da subjetividade’”. O autor relata casos de pacientes com lesões no córtex pré-frontal ventromedial, que perderam a capacidade de tomar decisões e se mostraram incapazes de se comportar racionalmente, numa situação de jogos de apostas. Os déficits desses pacientes, no entanto, indicaram uma falha no julgamento devido aos substratos neurais envolvidos nas emoções secundárias, ou na aprendizagem emocional. Damásio (1994, p. 127) comenta “a racionalidade resulta de suas atividades combinadas”. De modo geral, as teorias da racionalidade, ao buscarem identificar quais os mecanismos do processo decisório utilizados pelos sujeitos, viabilizaram o seguinte questionamento: “os pacientes psiquiátricos ou com lesões neurológicas apresentam falha de raciocínio na tomada de decisão?” Essa problemática intervém em diversas frentes que, associam os quadros de psicose, por exemplo, como desvio da racionalidade, porque as crenças ou ações dos sujeitos parecem irracionais à primeira vista. Por exemplo, Dennett (1978) e Davidson (1982) comentam que a racionalidade epistêmica31 é necessária para atribuir crenças ao sujeito, sendo assim, os delírios parecem violar esta norma, na medida em que as crenças “delirantes” não respondem a uma evidência, mas sinalizam um afastamento da realidade. Lisa Bortolotti (2009, p. 138) elucida a questão da racionalidade epistêmica, ao afirmar que, no caso dos delírios, existe um déficit da racionalidade epistêmica, mas não é exclusivo do estado delirante32, pois, a “grande maioria dos sujeitos tem falhas na racionalidade ao cometer erros sistemáticos no raciocínio probabilístico, estatístico e dedutivo”. Nessa direção, Parnas, Sass e Zahavi (2013, p.272) analisam esse exame equivocado dos transtornos psíquicos: A consciência e a experiência são tipicamente tratadas como se estivessem de alguma forma no mesmo nível de outros objetos espaciotemporais substantivos do mundo natural (ou seja, coisas) - isto é, como se os eventos conscientes (como delírios ou alucinações auditivas) fossem bem delimitados, entidades atômicas que 31 A racionalidade instrumental refere-se as decisões para realizar ações e atingir os objetivos; enquanto a racionalidade epistêmica, corresponde as crenças e aos processos de pensamento estabelecidos, conforme as regras lógicas intersubjetivas. 32 Para uma completa apreciação sobre o critério de racionalidade nos delírios, recomendamos a leitura do capítulo “Rationality, diagnosis and patient autonomy” (2015) de Jillian Craigie e Lisa Bortolotti, presente no livro Oxford Handbook Psychiatric Ethics. 38 podem ser facilmente capturadas e quantificadas sem muita preocupação com recursos mais contextuais ou semelhantes à Gestalt (PARNAS; SASS; ZAHAVI, 2013, p. 272). Desse modo, o critério de irracionalidade como falha das inferências lógicas não é suficiente para classificação de transtorno mental, tampouco, deve ser justificável para instituir um comportamento sintomático passível de classificação sobre algum transtorno psiquiátrico; visto que o comportamento pode ser inteligível mesmo quando viola as normas epistêmicas, agenciais e procedimentais da racionalidade. Podemos observar, nesse cenário, um conjunto de teorias cognitivas relacionadas à organização comportamental, tomada de decisão, pesquisa de opinião e da economia experimental, das quais enfatizam o fracasso da escolha racional como modelo descritivo do comportamento humano. Apesar dos psicólogos cognitivos33 e sociais insistirem, desde a década de 1970, das falhas da racionalidade configurarem-se como uma característica da cognição normal, e não se restringem àqueles que têm um diagnóstico psiquiátrico, as inferências estatísticas dos transtornos mentais atuais, seguem em direção oposta. Assim, a psicopatologia se orienta por meio da observação de falhas no funcionamento do indivíduo. Para melhor explicar essa questão, Wakefield (1992) insere os conceitos de “dano” e “disfunção” como diferenciações presentes na avaliação dos transtornos mentais. Segundo ele, os transtornos mentais são estipulados por 1) disfunções prejudiciais demarcadas por um dano circunscrito em contextos sociais e que envolve julgamentos de valor social; 2) disfunção que delineia as falhas dos mecanismos biológicos, conforme determinado pela biologia/psicologia evolutiva. Podemos evidenciar a primeira característica aludida por Wakefield pelo critério diagnóstico com base na manifestação de sintomas significativos, os quais podem causar prejuízo nas funções ocupacionais, sociais e pessoais, conforme prescrito pela Associação Psiquiátrica Americana (APA) (APA, 1994). Sobre esse ponto, Cragie e Bortolotti (2016, p.21) explicam: “para uma variedade de distúrbios como depressão, esquizofrenia, autismo e demência, os sintomas são caracterizados em termos de desvios da racionalidade, especialmente em requisitos epistêmicos ou normas sociais”. Algumas manifestações, por conseguinte, aludem a um pensamento irracional, crença equivocada ou uma consciência 33 Destaca-se aqui, Peter Cathcart Wason33 (1966), idealizador da psicologia do raciocínio e famoso no estudo do raciocínio dedutivo, elaborou uma gama de experimentos e tarefas de seleção, as quais evidenciaram a inviabilidade da racionalidade como um possível sinônimo de lógica. 39 alterada. A definição de delírio, por exemplo, é descrita como “falsa crença baseada em uma inferência incorreta acerca da realidade externa [...] apesar de provas ou evidências incontestes em contrário. A crença não é habitualmente aceita por outros membros da cultura ou subcultura” (APA/DSM, 2004, p. 767). A segunda característica mencionada por Wakefield (1992) refere-se ao conceito de biomarcadores, também chamados de marcadores biológicos, eles têm sido o “padrão ouro” para avaliação diagnóstica. Nesse caso, a avaliação é direcionada ao desempenho por meio da realização de testes ou tarefas que são combinados aos correlatos anátomo- funcionais. Desse modo, os testes investigam os possíveis prejuízos das funções executivas, tais como memória, inibição de resposta, atenção, velocidade psicomotora, avaliados por medidas da função executiva frontal (teste de Stroop, Teste Wisconsin de Classificação de Cartas e o subteste de dígitos ao contrário), assim como tarefas de aprendizado e memória (como o Teste de Aprendizado Verbal da Califórnia) (REVSBECH et al., 2015). Os últimos investimentos da neurociência têm definido estratégias experimentais para decifrar a função cerebral em condições normais, e com isso, localizar a falha em doenças específicas. Um exemplo disso, é a U.S. BRAIN (Brain Research Through Advancing Innovative Neurotechnologies), cuja iniciativa visa revolucionar a compreensão sobre o cérebro humano. Essas pesquisas procuram definir como os constituintes moleculares de uma célula são determinados inicialmente pela constituição genética de um indivíduo e modificados ao longo da vida por meio de processos epigenéticos (NESTLER et al., 2021). Diante disso, identificamos que a ascensão tecnológica fornece novos horizontes para os ramos da neurociência e indubitavelmente, as investigações nesse campo são imprescindíveis para diversas áreas do conhecimento. No campo da psicopatologia, em particular, a neurociência propicia o conhecimento sobre a origem e o funcionamento dos sintomas dos transtornos mentais, incorporam exames funcionais que identificam desordens neurocomportamentais, também contribui na abordagem terapêutica para o tratamento das doenças, entre outros fatores. O que gostaríamos, especificamente, de assinalar é o entendimento de subjetividade como mero subproduto da atividade do cérebro dado, muitas vezes, pela neurobiologia. 40 Nesse sentido, consideramos que a maior contribuição da abordagem enativista34 – perspectiva que se difere do cognitivismo e do conexionismo – é a inter-relação da estrutura ligada às redes neuronais do cérebro e dos processos corporais, como partes do sistema cognitivo. Assim, o enativismo confere um lugar central para a autonomia e a ação na constituição da cognição. Além disso, o programa de pesquisa em cognição corporificada (embodied), fundada pelo enativismo, recoloca a cognição como um processo vital, na qual a relação sensório- motora com o mundo é central.. As habilidades mentais como reflexão, resolução de problemas, tomada de decisão, entre outras ações, por sua vez, não são formas representacionais que nos capacitam a entender a realidade, e sim, formas ativas de um envolvimento ativo e pragmático que temos com o mundo, inclui o corpo em uma unidade de ancoragem das experiências autoconscientes, ou melhor, relaciona os ciclos sensório- motores entre o cérebro, corpo e o meio ambiente (GALLAGHER, 2018). No interior da perspectiva corporificada, encontramos com Thomas Fuchs (2017) uma crítica frente ao paradigma neurobiológico, no sentido da consciência tornar-se um epifenômeno da maquinaria neuronal que, em sua operação, cria a ilusão de um self contínuo e com vontade autônoma. O autor define o cérebro como um órgão social, cultural e biográfico, responsável pela mediação, transformação e ressonância do processo circular da experiência subjetiva e das relações interpessoais. Desse modo, Fuchs (2010a, p. 269) ressalta que “é necessário uma psicopatologia complexa capaz de mediar entre o nível dos sintomas e o nível do processo”, levando em conta a interação cérebro-ambiente e a subjetividade. Veremos, na sequência, a necessidade de ampliar o horizonte referente a avaliação diagnóstica dos transtornos mentais. 34 Na década de 70, com os chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, propuseram a teoria da autopoiese, segundo a qual explicita que a organização dos seres vivos se distingue de outros por sua capacidade de se autoproduzirem. Apesar dos sistemas vivos serem autoproduzidos, eles não são sistemas isolados, mas são marcados pela abertura e interação com o mundo. Em 1991, os autores Varela, Thompson e Rosch desdobraram a teoria da autopoiese e apresentaram a abordagem enativa, cuja pesquisa busca compreender a mente humana, ao mesmo tempo, leva em conta algumas das contribuições da fenomenologia sob o aspecto da experiência subjetiva (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1991). 41 2.4 Novo(s) paradigma(s) para a psicopatologia A investigação etiológica, as alterações estruturais e funcionais, as formas de manifestação (sinais e sintomas), bem como os métodos de investigação dos transtornos mentais, compõem o objeto de estudo da psicopatologia (CHENIAUX, 2015). Enquanto âmbito de conhecimento e pesquisa, a psicopatologia é uma ciência que dialoga com outros ramos: a psicologia, filosofia, a sociologia, a medicina etc. E tais áreas engendram a existência de uma multiplicidade de visões35, das quais se desdobram em variadas abordagens e referenciais teóricos que, correntemente, apresentam-se de modo controverso e polarizado. Inicialmente, o quadro histórico apresentado nas seções anteriores, recuperou o aparecimento dos primeiros tratados psiquiátricos até a elaboração de manuais classificatórios pelo procedimento da psicopatologia sintomatológica-criteriológica36. Desse modo, pudemos ressaltar as configurações paradigmáticas em torno da avaliação psicopatológica, nesse ponto, é válida a observação de Sadler (2013) que denomina as suposições de “naturalismo da doença”, no sentido de que os transtornos mentais são comparados a doenças físicas de forma naturalista. No entanto, o autor, menciona que há também uma dimensão normativa, que examina o adoecimento como algo conectado as decisões das quais resultam certas ações, ou ainda, entendem que os transtornos mentais envolvem um padrão reconhecível de uma experiência comportamental (sintomas), tal padrão representa uma falha no funcionamento normativo do indivíduo. A psicopatologia é um campo permeado de contradições, pois as manifestações psicopatológicas não correspondem a uma causalidade linear, não se tem um agente etiológico X que causa uma doença Y, o que temos são condições multifatoriais manifestadas de maneira particular em cada pessoa.  Além do mais, a 35 Sobre as diferentes concepções de psicopatologia, Paulo Dalgalarrondo (2000) menciona os estudos na Psiquiatria Descritiva, cujo interesse volta-se para a descrição das formas de alterações psíquicas. No oposto desse continuum, outras perspectivas buscam descrever e compreender o significado das perturbações mentais, dentre elas, tem-se aquelas que se voltam o olhar para a experiência particular de cada sujeito, tal como é proposto pela psicopatologia fenomenológica, por exemplo. Há ainda, perspectivas que realçam a origem sociocultural, simbólica e histórica dos transtornos mentais. Por último, destacamos as posições críticas, as quais consideram a Psicopatologia como uma etiqueta estigmatizante usada para categorizar, reificar e medicalizar, resultando em um processo de patologização, alienação e segregação do sujeito. 36 Serpa Jr. (2006) chama o modelo criteriológico proposto por Kraus de Psicopatologia Sintomatológica- Criteriológica de Psicopatologia da terceira pessoa e a sua Psicopatologia Fenomenológica-Antropológica de Psicopatologia da primeira e da segunda pessoa. 42 psicopatologia é diacrônica e mutável, o que implica uma constante reflexão sobre novos delineamentos paradigmáticos no trato com o sofrimento psíquico. Diante desse fato, a psicopatologia tem renovado algumas noções a partir dos pressupostos da abordagem corporificada. Para Thomas Fuchs (2010a), é necessário inter-relacionar as três metodologias no contexto diagnóstico, ou seja, considerar tanto a perspectiva de terceira pessoa (descritiva, objetivista e de cunho positivista), quanto a fenomenologia ou perspectiva de primeira pessoa (experiência subjetiva), aliadas também a perspectiva hermenêutica ou de segunda pessoa (narrativa). Sendo assim, a combinação dos procedimentos diagnósticos pode fornecer melhor compreensão da experiência subjetiva, restabelecer a psicopatologia como ciência fundamental da subjetividade, manter as conexões da psiquiatria com as ciências sociais e as ciências humanas, e preparar o campo para uma psicoterapia mais integral (FUCHS, 2010a). Consideramos que Fuchs, tem delineado uma nova posição paradigmática37 no contexto da avaliação diagnóstica pautada em uma visão holística, corporificada (embodied) e sob os aportes da fenomenologia. Para transpor a discussão ao campo da psicoterapia e da “psiquiatria existencial”, reconhecemos que a Logoterapia e Análise Existencial nos fornece um olhar mais integral sobre o ser humano. Se entendermos o homem somente por uma determinada dimensão – biológica, psicológica ou sociológica – vamos enxergar apenas a perspectiva correspondente à dimensão priorizada (FRANKL, 2011). É preciso, então, integrar a multidimensionalidade das dimensões físicas e psíquicas com a unidade da dimensão noológica (espiritual). O aspecto noológico (espiritual) refere-se à realidade pessoal, cuja dimensão reagrupa o psíquico e o corporal, enquanto extratos periféricos. Na psicoterapia, a Logoterapia não se ocupa apenas com o “ontos” (do ser), mas também com o “logos” (o sentido). Conforme explicita Frankl (1978, p.197), “a finalidade do que chamamos de logoterapia é incluir o logos na psicoterapia; a finalidade do que denominamos de análise existencial é incluir a existência na psicoterapia”. Diante disso, a Logoterapia e Análise Existencial possuem três pilares fundamentais: a liberdade da vontade, a vontade de sentido e o sentido da vida. O primeiro pilar, a liberdade da vontade, pertence aos dados imediatos da 37 Thomas Kuhn (1997) denomina de crise de paradigmas quando as formas tradicionais de pesquisa já não respondem às necessidades dos novos fatos que se impõem, isso conduz a emergência de novas formas de praticar sua ciência. 43 experiência do homem, refere-se ao aspecto fenomenológico fundamental em compreender a experiência a partir de um estágio pré-reflexivo, antes das representações ou construções conceituais do nosso entendimento de mundo. A liberdade é uma instância constitutiva do homem, pois embora o homem não seja livre de condicionamentos, ele é livre para tomar uma posição diante deles, nas palavras do autor: “significa a liberdade da vontade humana [...] o homem não é livre de suas contingências, mas, sim, livre para tomar uma atitude [...]” (FRANKL, 2011, p.26). Nesse dinamismo repousa no homem a sua outra instância constitutiva que é a responsabilidade, visto que ao assumir uma posição ele também decide sobre si mesmo, e, somente ele é responsável por isso. O segundo pilar, a vontade de sentido, corresponde a uma dinâmica motivacional que acompanha o homem em toda sua existência, pois está inerentemente empenhado para realização de algo. Nesse horizonte, Frankl discute diretamente com a psicanálise freudiana e a psicologia individual adleriana, visto que a vontade de sentido não trata de simples restauração do equilíbrio intrapsíquico, ou de uma equivalência entre as diversas entidades psíquicas. Pode ser, então, definida como “o esforço mais básico do homem na direção de encontrar e realizar sentidos e propósitos” (FRANKL, 2011, p.50). O terceiro pilar, o sentido da vida, consiste na premissa central dessa abordagem. Segundo Frankl (2011), na medida em que somos seres intencionais, somos existenciais e à medida que estamos direcionados para algo ou para alguém, somos atraídos pela busca do sentido da vida. O autor pontua que o sentido de cada situação da vida, em termos psicológicos, é entendido como um sentido que transcende o mero significado subjetivo do propósito, tratando-se de um sentido que está no mundo e que o sujeito pode apreender e realizar através dos valores; da compreensão de si mesmo e do mundo; dos projetos e objetivos de vida; dos enfrentamentos e sofrimentos existenciais adversos