UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Campus de Franca – SP FILIPE TADEU DE SALLES TRANSFORMAÇÃO DAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS PAULISTAS AO LONGO DE TRÊS DÉCADAS DE AUTONOMIA FINANCEIRA: inovação, expansão e inclusão FRANCA – SP 2025 i FILIPE TADEU DE SALLES TRANSFORMAÇÃO DAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS PAULISTAS AO LONGO DE TRÊS DÉCADAS DE AUTONOMIA FINANCEIRA: inovação, expansão e inclusão Dissertação de Mestrado apresentada a Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Unesp/Franca para obtenção do título de Mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas Linha de pesquisa: Instituições, cidadania e políticas sociais. Orientador: Álvaro Martim Guedes FRANCA – SP 2025 S168t Salles, Filipe Tadeu de Transformação das universidades estaduais paulistas ao longo de três décadas de autonomia financeira : inovação, expansão e inclusão / Filipe Tadeu de Salles. -- , 2025 118 p. : il., tabs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca, Orientador: Alvaro Martim Guedes 1. Autonomia Escolar. 2. Liberdade Acadêmica. 3. Universidades e faculdades Legislação. 4. Liberdade de ensino. 5. University autonomy. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). ii IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Do ponto de vista científico, a pesquisa não apenas expande o conhecimento sobre a gestão universitária autônoma, mas também estabelece uma base sólida para futuras investigações e formulações teóricas sobre o tema. Esse avanço no conhecimento pode ser utilizado como um referencial para o desenvolvimento de novos modelos de autonomia em diferentes contextos educacionais e geográficos. Em termos técnicos, os resultados desta pesquisa podem informar a criação de políticas públicas mais eficazes para a gestão das universidades, especialmente na implementação de medidas que promovam a eficiência administrativa e financeira. Isso inclui a proposição de ferramentas inovadoras de governança universitária que podem otimizar o uso de recursos e melhorar a qualidade da educação oferecida. O impacto social deste estudo é igualmente relevante, pois ao aprofundar a compreensão sobre a autonomia universitária, ele contribui para que as universidades possam responder de maneira mais eficaz às demandas da sociedade. Fortalecendo a autonomia, as universidades têm o potencial de desenvolver programas que estejam mais alinhados às necessidades locais e regionais, promovendo o desenvolvimento social e a inclusão. No campo inovador, a pesquisa pode influenciar a criação de novos modelos de gestão universitária que incentivem não apenas a pesquisa e a inovação tecnológica, mas também novas abordagens pedagógicas que possam ser adaptadas às necessidades emergentes da sociedade e do mercado de trabalho. A autonomia bem gerida pode levar à elaboração de currículos mais dinâmicos e voltados para as demandas futuras. Do ponto de vista econômico, a pesquisa sugere que a gestão autônoma pode otimizar o uso dos recursos públicos destinados às universidades, garantindo que os investimentos sejam direcionados para maximizar o retorno social e econômico. Além disso, a eficiência na gestão pode atrair parcerias com o setor privado, ampliando as fontes de financiamento e estimulando a economia local e regional. Em termos educacionais, este estudo promove uma reflexão crítica sobre as práticas pedagógicas e a estrutura curricular, incentivando uma abordagem mais flexível e adaptada às necessidades dos estudantes e do mercado de trabalho. O resultado iii pode ser uma formação mais completa e diversificada, que prepara melhor os alunos para os desafios contemporâneos. O impacto cultural da pesquisa está na preservação e valorização da diversidade dentro das universidades. A autonomia permite que as instituições mantenham uma independência essencial para a promoção do pensamento crítico e da diversidade cultural, ambos fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade democrática e pluralista. No que tange à internacionalização, a autonomia universitária é crucial para estabelecer e manter colaborações internacionais, promovendo o intercâmbio de conhecimento e a cooperação em projetos de pesquisa que tenham relevância global. Isso aumenta a visibilidade e a influência das universidades brasileiras no cenário internacional. A inserção local, regional e nacional das universidades é fortalecida pela autonomia, permitindo que elas respondam de maneira mais eficaz às necessidades das suas comunidades. Isso contribui para o desenvolvimento regional e para a integração das universidades nas políticas nacionais de educação e pesquisa. Por fim, no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável, a autonomia universitária pode facilitar a implementação de práticas e políticas que promovam a sustentabilidade dentro das universidades, tanto em termos de gestão de recursos quanto na orientação das atividades de pesquisa e ensino para temas relacionados ao desenvolvimento sustentável. Isso inclui a formação de profissionais conscientes e comprometidos com a sustentabilidade, que possam contribuir para uma sociedade mais justa e equitativa. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH From a scientific perspective, the research not only expands knowledge on autonomous university management but also establishes a solid foundation for future investigations and theoretical formulations on the subject. This advancement in knowledge can serve as a reference for developing new models of autonomy in various educational and geographical contexts. iv In technical terms, the results of this research can inform the creation of more effective public policies for university management, particularly in implementing measures that promote administrative and financial efficiency. This includes proposing innovative tools for university governance that can optimize resource use and improve the quality of education offered. The social impact of this study is equally significant, as it deepens the understanding of university autonomy and contributes to enabling universities to respond more effectively to societal demands. By strengthening autonomy, universities have the potential to develop programs more aligned with local and regional needs, thereby promoting social development and inclusion. In the field of innovation, the research may influence the creation of new university management models that encourage not only research and technological innovation but also new pedagogical approaches tailored to emerging societal and labor market needs. Well-managed autonomy can lead to the development of more dynamic curricula focused on future demands. From an economic standpoint, the research suggests that autonomous management can optimize the use of public resources allocated to universities, ensuring that investments are directed toward maximizing social and economic returns. Additionally, efficient management can attract partnerships with the private sector, broadening funding sources and stimulating local and regional economies. In educational terms, this study promotes critical reflection on pedagogical practices and curricular structure, encouraging a more flexible approach that is better adapted to student needs and labor market demands. The result may be a more comprehensive and diverse education that better prepares students for contemporary challenges. The cultural impact of the research lies in the preservation and appreciation of diversity within universities. Autonomy allows institutions to maintain the independence essential for promoting critical thinking and cultural diversity—both fundamental to the development of a democratic and pluralistic society. Regarding internationalization, university autonomy is crucial for establishing and maintaining international collaborations, promoting knowledge exchange and v cooperation in research projects with global relevance. This increases the visibility and influence of Brazilian universities on the international stage. The local, regional, and national integration of universities is strengthened by autonomy, enabling them to respond more effectively to the needs of their communities. This contributes to regional development and the integration of universities into national education and research policies. Finally, in terms of sustainable development, university autonomy can facilitate the implementation of practices and policies that promote sustainability within universities, both in terms of resource management and in directing research and teaching activities toward sustainability-related themes. This includes the training of conscious and committed professionals who can contribute to a more just and equitable society. vi FILIPE TADEU DE SALLES TRANSFORMAÇÃO DAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS PAULISTAS AO LONGO DE TRÊS DÉCADAS DE AUTONOMIA FINANCEIRA: inovação, expansão e inclusão Dissertação de Mestrado apresentada a Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Unesp/Franca para obtenção do título de Mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas Linha de pesquisa: Instituições, cidadania e políticas sociais. Data da defesa: 13/05/2025 Banca Examinadora: Prof. Dr. Alvaro Martim Guedes UNESP - Franca Prof. Dr. Stela Luiza de Mattos Ansanelli UNESP - Franca Prof. Dr. Ricardo Augusto Bonotto Barboza UNIARA - Universidade de Araraquara vii Prof. Dr. Tatiana Noronha de Souza UNESP - Franca Prof. Dr. Edmundo Alves de Oliveira UNIARA - Universidade de Araraquara viii Dedico este trabalho à minha família, que sempre esteve ao meu lado, oferecendo amor, apoio e incentivo incondicional. E a todos os meus amigos e mentores, que, com suas palavras de sabedoria e encorajamento, me ajudaram a chegar até aqui. ix AGRADECIMENTOS Gostaria de expressar minha gratidão a todos que contribuíram para a realização desta dissertação. Primeiramente, ao meu orientador, Álvaro Martim Guedes, por seu suporte constante, orientação precisa e paciência ao longo de todo o processo. Sua expertise e dedicação foram fundamentais para a conclusão deste trabalho. Agradeço também aos professores e colegas do Programa de Pós-graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas da Unesp/Franca, cujas discussões e feedbacks enriqueceram profundamente este estudo. Não poderia deixar de mencionar o apoio incondicional da minha família e amigos, que estiveram ao meu lado nos momentos de dificuldade, oferecendo encorajamento e compreensão. A eles, meu mais sincero obrigado. Por fim, sou grato às instituições e fontes que forneceram os dados e informações essenciais para a realização desta pesquisa, e à Unesp, pela oportunidade de crescimento acadêmico e profissional. Este trabalho é resultado de um esforço coletivo, e a todos que de alguma forma contribuíram, dedico minha mais profunda gratidão. x “aqueles que não podem lembrar o passado, estão condenados a repeti-lo” George Santayana xi RESUMO A dissertação aborda a transformação das universidades estaduais paulistas ao longo de três décadas de autonomia financeira, com foco nas áreas de inovação, expansão e inclusão. O estudo investiga como a autonomia, estabelecida pelo Decreto nº 29.598 de 1989, influenciou a gestão acadêmica e administrativa da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Estadual Paulista (Unesp). A pesquisa utiliza uma abordagem qualitativa, com revisão bibliográfica e análise documental, para avaliar os impactos da autonomia financeira na expansão física, na produção científica e na inclusão social dessas instituições. Os resultados indicam que a autonomia contribuiu para o fortalecimento da qualidade acadêmica e a diversificação das fontes de financiamento, embora desafios persistam em relação à sustentabilidade financeira e à necessidade de adaptações frente às flutuações econômicas. As recomendações propostas visam aprimorar a gestão universitária, garantindo que as universidades estaduais paulistas mantenham sua relevância no cenário educacional e científico, além de promover a equidade e a inclusão em suas políticas. Palavras-chave: Autonomia Universitária; Universidades Estaduais Paulistas; Gestão Financeira; Inclusão Social; Expansão Acadêmica. . xii ABSTRACT This dissertation addresses the transformation of São Paulo's state universities over three decades of financial autonomy, focusing on innovation, expansion, and inclusion. The study investigates how autonomy, established by Decree No. 29,598 of 1989, has influenced the academic and administrative management of the University of São Paulo (USP), the State University of Campinas (Unicamp), and the São Paulo State University (Unesp). The research employs a qualitative approach, including literature review and document analysis, to assess the impacts of financial autonomy on these institutions' physical expansion, scientific production, and social inclusion. The findings indicate that autonomy has contributed to the strengthening of academic quality and the diversification of funding sources, although challenges remain concerning financial sustainability and the need for adaptation to economic fluctuations. The proposed recommendations aim to enhance university management, ensuring that São Paulo's state universities maintain their relevance in the educational and scientific landscape while promoting equity and inclusion in their policies. Keywords: University Autonomy; São Paulo State Universities; Financial Management; Social Inclusion; Academic Expansion. xiii LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Times Higher Education ............................................................................ 70 Figura 2 - QS World University Rankings…………………………………………………71 Figura 3 - World University Rankings ......................................................................... 71 Figura 4 - Ranking Universitário Folha (RUF) ............................................................ 72 Figura 5 - Evolução das três universidades nos últimos 30 anos .............................. 78 Figura 6 - Arrecadações do ICM em São Paulo ......................................................... 79 xiv LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Relação da autonima com a produção acadêmica ................................... 74 Gráfico 2 - Quantitativo da produção acadêmica da USP .......................................... 75 Gráfico 3 - Produção de artigos científicos da USP ................................................... 76 xv SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 1 2. AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA E UNIVERSIDADES ESTADUAIS PAULISTAS . 5 2.1 Conceito de autonomia universitária .................................................................. 5 2.2 Legislação e políticas relacionadas à autonomia universitária: a gênese do art. 207 ..................................................................................................................... 7 2.3 Garantia normativa da autonomia universitária: o sentido jurídico do art. 207 ......................................................................................................................10 2.4 Exemplos de autonomia universitária ............................................................... 12 2.5 Criação e história das universidades estaduais paulista .................................. 20 2.6 O decreto de autonomia financeira de 1989 ..................................................... 23 2.7 Desenvolvimento e expansão das universidades estaduais paulistas após a garantia constitucional da autonomia universitária .......................................... 25 3.DESAFIOS DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA .................................................... 29 3.1 Polissemismo do conceito ................................................................................ 29 3.2 Limite jurídico X Limite Institucional (autonomia X corporativismo) .................. 32 3.3 Dependência de receitas do estado e suas flutuações ..................................... 36 3.4 Equilíbrio entre autonomia e responsabilidade pública .................................... 37 4.ESTUDOS DE CASO ............................................................................................. 54 4.1 Autonomia didático-científica ............................................................................ 57 Adoção das Cotas nas Universidades Federais ..................................................... 57 Adoção das Cotas nas Universidades Estaduais Paulistas .................................... 58 Perspectivas sobre a Adoção das Cotas ................................................................ 58 Desafios e Impactos da Autonomia Didático-Científica na Implementação das Cotas ................................................................................................................ 59 4.2 Autonomia administrativa ................................................................................. 60 xvi Caso do CEFET-MG: Impacto das Decisões do Governo Federal nas IFES .......... 60 Transformação do CEFET-PR em Universidade Tecnológica: Reflexos na Qualidade do Ensino e Relações Institucionais ............................................... 61 4.3 Autonomia de gestão financeira e patrimonial .................................................. 62 Contexto das Universidades Federais .................................................................... 63 Prioridades nas Universidades Estaduais Paulistas ............................................... 63 Gestão de Crises e Sustentabilidade Financeira .................................................... 64 4.4 A UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) ........................................... 66 Autonomia na Seleção de Alunos ........................................................................... 66 Impacto na Qualidade do Ensino e Formação Profissional .................................... 66 Contribuição para o Engajamento Social ............................................................... 67 Desafios e Perspectivas ......................................................................................... 67 4.5 Três décadas de autonomia financeira das faculdades estaduais paulistas ..... 68 A conexão entre a população paulista e as universidades estaduais: o papel da autonomia universitária .................................................................................... 68 Autonomia financeira na produção científica das universidades estaduais paulistas: crescimento, internacionalização e desafios .................................... 72 5.CONCLUSÕES ...................................................................................................... 86 5.1 Principais achados da pesquisa ....................................................................... 86 5.2 Recomendações para gestão e políticas futuras .............................................. 87 5.3 Perspectivas para a autonomia universitária no Brasil ..................................... 90 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 92 ANEXO 1 – DECRETO Nº 29.598, DE 02 DE FEVEREIRO DE 1989 ..................... 101 1 1 INTRODUÇÃO A autonomia universitária, como estabelecida no Art. 207 da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988b), é fundamental para o funcionamento das instituições de ensino superior no Brasil, proporcionando a elas a liberdade necessária para exercer suas funções acadêmicas e administrativas sem interferências externas (Durham, 1989). Essa autonomia abrange diversas dimensões, incluindo a didático-científica, administrativa, financeira e patrimonial (Assembleia Nacional Constituinte, 1988a). O presente estudo se debruça sobre a autonomia das universidades estaduais paulistas, a qual foi consolidada com a promulgação do Decreto nº 29.598 de 1989 (São Paulo, 1989). Desde então, instituições como a USP, Unicamp e Unesp têm experimentado uma série de transformações que impactaram significativamente a educação superior no Brasil (Fernandes; Kerbauy, 2019). A autonomia permitiu que essas universidades expandissem suas infraestruturas, ampliassem suas atividades de pesquisa e desenvolvessem novas tecnologias, ao mesmo tempo em que enfrentavam os desafios de uma crescente demanda por inclusão social e sustentabilidade financeira (Ranieri, 2018). A expansão física e a diversificação das fontes de financiamento, facilitadas pela autonomia, são evidentes no aumento do número de vagas, de cursos oferecidos, e na internacionalização das pesquisas conduzidas nessas universidades (Fernandes, 2023). Contudo, a liberdade orçamentária também trouxe a responsabilidade de enfrentar as flutuações econômicas que afetam a arrecadação do ICMS, a principal fonte de financiamento dessas instituições (Araújo; Borges, 1999). Isso tem exigido uma gestão mais estratégica e eficaz, visando garantir a continuidade da excelência acadêmica sem comprometer a sustentabilidade financeira (Silva; Crubellate, 2022). Por outro lado, o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, igualmente consagrado na Constituição, continua a ser um norteador das atividades universitárias (Brasil, 1988b). Ele garante que as universidades mantenham um compromisso constante com a produção de conhecimento relevante para a sociedade, ao mesmo tempo em que oferecem uma formação cidadã sólida para seus alunos (Leher, 2019). Este trabalho tem como tema central a transformação das universidades estaduais paulistas ao longo de três décadas de autonomia financeira, com foco nas 2 áreas de inovação, expansão e inclusão. A pesquisa, de natureza qualitativa (Creswell, 2013), delimita-se ao estudo das três principais universidades estaduais paulistas: Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Universidade Estadual Paulista (UNESP). A escolha por essa abordagem se justifica pela necessidade de explorar em profundidade as experiências, percepções e práticas dos participantes em relação ao tema, buscando compreender os significados e interpretações atribuídos pelos sujeitos às suas experiências, captando a complexidade e a subjetividade inerentes a essas questões (Flick, 2009). Para alcançar esse objetivo, a pesquisa se apoia em uma rigorosa revisão bibliográfica e documental, métodos adequados para pesquisas que visam analisar e sintetizar o conhecimento existente sobre um determinado tema (Gil, 2008; Bowen, 2009). A revisão bibliográfica, realizada em bases de dados acadêmicas como Scopus, Web of Science e Google Scholar, permite identificar, selecionar e analisar criticamente estudos relevantes já realizados, oferecendo uma base teórica sólida para a investigação. A seleção dos textos foi feita com base em critérios de inclusão que consideraram a pertinência do conteúdo, o período de publicação, e a presença de revisões por pares, garantindo que os materiais analisados fossem rigorosos e atualizados. A revisão documental complementa a revisão bibliográfica ao fornecer dados contextuais e históricos que permitem compreender as transformações institucionais e jurídicas relacionadas à autonomia universitária. Os documentos analisados incluem legislações, decretos, relatórios governamentais, e atas de reuniões de conselhos universitários. A análise desses documentos seguiu os princípios da análise documental, que implica em uma leitura detalhada, interpretação e categorização do conteúdo. A análise dos dados coletados seguiu uma abordagem interpretativa, focada em identificar padrões, temas recorrentes e lacunas no conhecimento existente. A análise temática foi o método escolhido para organizar e interpretar os dados, permitindo a construção de categorias analíticas que refletem as principais questões emergentes na literatura e nos documentos revisados (Braun & Clarke, 2006). Este método possibilitou uma síntese crítica dos materiais, destacando as contribuições mais significativas e apontando as áreas que ainda necessitam de investigação adicional. 3 O objetivo principal desta pesquisa é analisar criticamente as mudanças ocorridas nessas instituições desde a implementação da autonomia financeira, identificando os avanços e as falhas, bem como propondo soluções que possam aprimorar a gestão universitária sob o regime de autonomia. A pesquisa busca entender como a autonomia financeira impactou a gestão acadêmica, a expansão física e estrutural, e as políticas de inclusão, além de avaliar os desafios enfrentados diante da crescente pressão por eficiência e sustentabilidade. A justificativa para a realização deste estudo reside na importância estratégica das universidades estaduais paulistas no cenário educacional e científico brasileiro. Essas instituições são responsáveis por grande parte da produção científica nacional e desempenham um papel crucial na formação de profissionais altamente qualificados. No entanto, a autonomia, embora potencialmente benéfica, também trouxe consigo uma série de desafios que precisam ser compreendidos e enfrentados para garantir que essas universidades continuem a cumprir seu papel de forma eficaz e inclusiva. A problemática que norteia esta pesquisa é: Quais os impactos da autonomia financeira, implementada há mais de três décadas, na inovação, expansão e inclusão das universidades estaduais paulistas? A pesquisa busca responder a essa questão por meio de uma análise crítica e fundamentada, que considera tanto os aspectos positivos quanto as limitações da autonomia. A delimitação temporal da pesquisa concentra-se nos últimos 30 anos, período que abrange mudanças significativas na legislação e nas práticas institucionais relativas à autonomia das universidades, permitindo analisar tanto as transformações ocorridas no período pós-redemocratização no Brasil quanto os desafios contemporâneos enfrentados pelas universidades em relação à autonomia. Geograficamente, a pesquisa foi limitada ao contexto brasileiro, com foco especial nas universidades estaduais paulistas, reconhecidas pela relevância no cenário acadêmico nacional e pelas conquistas associadas à autonomia universitária. A escolha de um estudo focado no contexto brasileiro justifica-se pela relevância das questões de autonomia universitária no país, especialmente em um momento de mudanças e desafios no financiamento e na gestão das universidades públicas. Essa delimitação também permitiu um estudo mais aprofundado e detalhado. Dessa forma, esta dissertação visa contribuir para a compreensão da 4 autonomia universitária no Brasil, através de uma análise crítica das mudanças que ocorreram nas universidades estaduais paulistas ao longo das últimas três décadas. A expectativa é que os resultados deste estudo possam fornecer subsídios para o desenvolvimento de políticas e práticas de gestão que reforcem a autonomia universitária, assegurando seu alinhamento com os princípios de inovação, expansão e inclusão. O presente trabalho está estruturado da seguinte forma: o Capítulo 1 apresenta a introdução, contextualizando o tema e delimitando a pesquisa. O Capítulo 2 revisa a literatura sobre autonomia universitária, abordando o contexto histórico e os debates teóricos e também descreve o surgimento das universidades estaduais paulistas e como funciona a autonomia universitária dentro delas. O Capítulo 3 analisa os desafios da autonomia universitária, apresentando seus principais limites e dilemas. O Capítulo 4 examina uma série de estudos de casos considerando os diversos aspectos da autonomia. Por fim, o Capítulo 5 apresenta as considerações finais, retomando os principais resultados e apontando perspectivas para futuras pesquisas. 5 2. AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA E UNIVERSIDADES ESTADUAIS PAULISTAS A autonomia universitária no Brasil estabelece que as universidades devem respeitar o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Esse dispositivo constitucional garante às universidades a liberdade para definir seus rumos acadêmicos, organizacionais e financeiros, de modo a promover uma educação de qualidade e alinhada com as necessidades sociais. A autonomia, embora não signifique independência total das universidades, protege essas instituições de ingerências externas indevidas, permitindo-lhes exercer suas funções essenciais de forma mais livre e eficiente. No entanto, essa autonomia deve ser exercida dentro dos limites estabelecidos pela legislação vigente, e em consonância com os princípios fundamentais que regem a educação no Brasil. 2.1 Conceito de autonomia universitária A autonomia universitária é um conceito que evolui ao longo do tempo e varia conforme o contexto histórico, político e jurídico em que se encontra (Leher, 2019). Sua aplicação não é fixa; ao contrário, reflete as particularidades do período e do local onde é exercida (Saviani, 2020). Assim, a autonomia das universidades medievais, como as de Paris ou Bolonha, diferia significativamente da autonomia na Universidade de Berlim no século XIX, ou ainda das universidades brasileiras durante a Assembleia Constituinte de 1987 (Ranieri, 2018). A autonomia universitária é, portanto, um princípio em constante transformação, nunca atingindo um estado ideal ou definitivo (Mancebo, 1998). Esse conceito, que está fundamentado no valor social do trabalho acadêmico e na sua natureza independente, confere às universidades prerrogativas de autogoverno nas áreas didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial (Oliveira, 1999). Essas prerrogativas são essenciais para que as universidades possam desempenhar com eficácia suas funções de ensino, pesquisa e extensão de serviços à comunidade (Durham, 1989). No Brasil, a Constituição Federal de 1988 reconheceu e assegurou a autonomia universitária, estabelecendo-a como um valor jurídico essencial (Brasil, 1988b). O artigo 207 da Constituição define que as universidades gozam de autonomia nas áreas didático-científica, administrativa, e de gestão financeira e 6 patrimonial, devendo cumprir com o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (Bandeira de Mello, 1968). Adicionalmente, a Constituição autoriza as universidades a admitirem professores, técnicos e cientistas estrangeiros, conforme previsto na legislação (Brasil, 1988b). Desde a promulgação da Constituição, ao longo de três décadas, surgiram no Brasil três principais modelos de autonomia universitária: o das universidades privadas, das universidades federais e das universidades estaduais paulistas (Saviani, 2020). O modelo das universidades estaduais paulistas, regulamentado pelo Decreto Estadual nº 29.598/89 (São Paulo, 1989), destacou-se pela sua eficácia, baseada na sólida estrutura orçamentária e financeira, além dos notáveis resultados acadêmicos e científicos obtidos (Fernandes, 2023). No caso das universidades estaduais paulistas, o financiamento é garantido por meio de um repasse fixo de 9,57% do ICMS, distribuído mensalmente, sendo a gestão dos recursos realizada diretamente pelas instituições, com o apoio de várias entidades, incluindo o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público (Romano, 2008). Os modelos das universidades federais e privadas, por outro lado, apresentam trajetórias distintas (Araújo; Borges, 1999). Para as universidades federais, o artigo 207 da Constituição não foi tão eficaz em garantir uma autonomia plena. A autonomia dessas instituições tem enfrentado desafios administrativos e financeiros, como a necessidade de adotar um regime de caixa único, lidar com o contingenciamento de despesas, e superar a burocracia estabelecida (Durham, 1989). Já as universidades privadas, operando sob um regime jurídico particular, gozam de uma autonomia administrativa e financeira mais acentuada, especialmente quando optam por um modelo voltado para o mercado (Sampaio, 2014). Independentemente do modelo de autonomia adotado, o exercício dessas prerrogativas está sujeito a possíveis intervenções e ao controle estatal, especialmente por parte do governo federal, que tem a competência constitucional para regular a educação superior (Brasil, 1988b). A diversidade dos modelos de autonomia no Brasil demonstra que não há um tratamento uniforme para essa questão (Muz; Drugowich, 2018). A autonomia atribuída aos setores público e 7 privado resulta em impactos distintos, e a necessidade de proteção e regulamentação dessa autonomia ainda persiste, apesar das contínuas limitações (Durham; Schwartzman, 1989). Além disso, as pressões e interferências na autonomia variam conforme a origem, seja do poder estatal ou das forças de mercado (Saviani, 2020). 2.2 Legislação e políticas relacionadas à autonomia universitária: a gênese do art. 207 A legislação também prevê a necessidade de avaliações de desempenho e transparência na utilização dos recursos públicos, aspectos fundamentais para garantir que a autonomia não seja exercida de forma dissociada das responsabilidades sociais e das finalidades institucionais das universidades (Ranieri, 2018). Nesse contexto, o Decreto de Autonomia Universitária de 1989, que será tratado em detalhes mais adiante, estabeleceu novas diretrizes para a gestão financeira das universidades estaduais paulistas, representando um passo significativo na consolidação da autonomia universitária no Brasil (São Paulo, 1989). Esse decreto, entre outras medidas, delegou aos reitores a responsabilidade de gerenciar os recursos das universidades, mas também introduziu desafios, como a necessidade de equilibrar demandas internas com as limitações orçamentárias e as pressões externas (Durham, 2005). A legislação e as políticas associadas à autonomia universitária, portanto, visam garantir que as universidades possam operar de maneira autônoma, mas sempre dentro de um quadro legal que assegure a prestação de contas e o alinhamento com os objetivos mais amplos do sistema educacional e da sociedade (Romano, 2008). As discussões sobre o ensino superior durante as três fases da Assembleia Constituinte — comissões e subcomissões temáticas, comissão de sistematização e plenário — concentraram-se principalmente na destinação de recursos públicos, um foco semelhante ao observado em relação à educação em geral (Pinheiro, 1996). Houve pouca atenção aos debates sobre princípios fundamentais ou aos problemas decorrentes da defasagem e da diversidade do sistema de ensino superior no Brasil (Brasil, 1987a). Um exemplo disso é a ênfase repetida no financiamento das universidades federais, amplificada por greves nos anos de 1985 e 1987 (Ferreira, 1986), enquanto questões importantes, como a relação complementar entre o setor público e o privado, foram deixadas de lado (Sampaio, 2014b). 8 Como resultado, a versão final da Constituição incluiu seis artigos relacionados à educação superior (206; 207; 209; 208, V; 218, no capítulo de Ciência e Tecnologia; e 242, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), dos quais apenas dois tratam diretamente do ensino superior: os artigos 207 e 208, V (Brasil, 1988b). Mais tarde, com a Emenda Constitucional nº 85/2015, foi acrescentado um parágrafo ao artigo 213, referente ao apoio financeiro do poder público às universidades (Nunes, 2013). Ao longo dos trabalhos constituintes, a questão da autonomia universitária tornou-se o foco principal das emendas relacionadas ao ensino superior. As propostas discutidas ao longo desse processo frequentemente buscavam limitar essa autonomia, condicionando seu exercício a uma lei ordinária, ao controle social e à exigência da indissociabilidade entre ensino e pesquisa, com esta última prevalecendo amplamente sobre os outros aspectos (Nunes, 2013). Um exemplo desse movimento ocorreu na Subcomissão de Educação, Cultura e Desporto, onde foi sugerida a inclusão da expressão “nos termos da lei” no artigo sobre autonomia universitária, proposta que não avançou nas etapas subsequentes (Brasil, 1987a). Anos mais tarde, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a intenção de subordinar a autonomia universitária à legislação foi novamente manifestada através da Proposta de Emenda Constitucional nº 233/95, enviada ao Congresso Nacional. No entanto, essa proposta não avançou devido à forte reação negativa, especialmente das universidades públicas do sistema paulista (Sampaio, 2014b). Durante a primeira fase das discussões, os legisladores constituintes não consideravam a autonomia universitária sem algum tipo de regulamentação (Brasil, 1987b). O objetivo era, pelo menos em teoria, resolver problemas relacionados ao financiamento e ao controle das universidades públicas. No entanto, a ideia de uma autonomia universitária regulamentada "nos termos da lei" foi superada pela visão de uma autonomia mais tradicional, sem regulamentação explícita, que acabou sendo incorporada na redação final da Constituição e mantida até os dias de hoje, associada ao conceito de universidade voltada para a pesquisa (Durham; Schwartzman, 1989). Outro ponto relevante foi a criação de uma espécie de "reserva de mercado" 9 para as universidades em relação à autonomia, uma vez que elas já eram em número significativamente menor do que as instituições de ensino isoladas (83 universidades contra mais de 700 instituições não universitárias) (Muz; Drugowich, 2018). Nos anos 1970, o setor privado cresceu principalmente através da criação de instituições isoladas, enquanto o setor público expandiu sua atuação focando na qualidade da pesquisa, da pós-graduação e da extensão, impulsionado pela Reforma Universitária estabelecida pela Lei nº 5.540, de 1968 (Romano, 2008). No Plenário, apenas as emendas que promoviam a autonomia das universidades foram aprovadas, sem que essa autonomia fosse estendida às instituições não universitárias. A rejeição da Emenda Popular nº 49, proposta pela Confederação dos Professores do Brasil, pela Associação Nacional dos Docentes e pela União Nacional dos Estudantes, é um exemplo dessa exclusividade (Brasil, 1987b). Foi somente em 1996, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que se ampliaram as possibilidades de concessão de autonomia para outras instituições de ensino superior, o que estimulou um novo crescimento no setor privado, após a estagnação observada na década de 1980 (Sampaio, 2014b). No entanto, essa mudança não seguiu o caminho proposto pela Emenda 49. A LDB vinculou a concessão de autonomia à qualidade institucional, exigindo a comprovação de alta qualificação para o ensino ou pesquisa, e prevendo a possibilidade de suspensão temporária dessas prerrogativas (art. 46, § 1º) (Brasil, 1996). Isso significa que, de acordo com a LDB, a autonomia é concedida com base na qualidade e não necessariamente na indissociabilidade entre ensino e pesquisa, em linha com o art. 45 da LDB, que reconhece a diversidade de graus de abrangência e especialização das instituições de ensino superior, refletindo uma nova abordagem para a relação entre ensino e pesquisa (Ranieri, 2018). Após a conclusão das votações dos substitutivos da Comissão de Sistematização nas primeiras rodadas no Plenário, houve uma mudança no tratamento dado à autonomia universitária, que inicialmente seria incluída entre os princípios do ensino nos artigos 211, X (Brasil, 1988b) e 206, VII (Brasil, 1988a), respectivamente. No entanto, o texto final, promulgado em 5 de outubro de 1988 no Diário Oficial da União, sofreu uma nova modificação, proposta pelo então senador Fernando Henrique Cardoso (Nunes, 2013). Em um único artigo, o legislador 10 constituinte estabeleceu uma norma imperativa e completa, definindo claramente o conteúdo do direito e seu titular (Bandeira de Mello, 1968). 2.3 Garantia normativa da autonomia universitária: o sentido jurídico do art. 207 No artigo 207 da Constituição, a autonomia universitária é entendida de acordo com o conceito geral de autonomia no direito público: trata-se de um poder derivado e funcional, que é limitado pelo ordenamento jurídico que o fundamenta (Giannini, 1959). Esse poder é derivado porque a autonomia só existe e se justifica devido à permissão concedida pelo ordenamento jurídico; é funcional porque serve como um instrumento público destinado a facilitar a execução de tarefas de interesse público; e é limitado, pois não confere soberania ou independência absoluta às universidades. A jurisprudência das Cortes Superiores, incluindo o Supremo Tribunal Federal, é clara sobre essa questão. Por exemplo, o STF já decidiu que "o princípio da autonomia universitária não significa soberania das universidades, devendo estas se submeter às leis e demais atos normativos" (Recurso Extraordinário nº 561.398, Agravo Regimental, Relator Ministro Joaquim Barbosa, j. 23-6-2009, 2ª T, DJE de 7- 8-2009) (Brasil, 1988). No contexto jurídico, a autonomia é vista como um resultado de uma autolimitação imposta pela lei. Isso significa que a lei permite a criação de normas próprias para regular situações específicas que não foram abrangidas pela legislação geral, com o objetivo de garantir e proteger determinados interesses (Mello, 1968). Quando o Estado concede autonomia a um ente, ele está, na verdade, limitando-se voluntariamente, ao reconhecer e incorporar no sistema jurídico as normas criadas por esse ente autônomo, conferindo a essas normas a mesma obrigatoriedade que suas próprias leis. No Brasil, a autonomia político-administrativa é conferida à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal, conforme estabelece o artigo 18 da Constituição. Além das universidades, a Constituição assegura autonomia a várias outras entidades e instituições, incluindo partidos políticos (art. 16, § 1º), o Poder Judiciário (art. 99), o Ministério Público (art. 127, § 2º), as Defensorias Públicas Estaduais (art. 134, § 2º), órgãos e entidades da administração direta e indireta (art. 37, § 8º), entidades desportivas e associações (art. 217, I) e instituições de pesquisa científica e tecnológica (art. 207, § 2º). A autonomia dos sistemas de ensino, 11 organizada em regime de colaboração recíproca (CF, arts. 211 e 214), é uma consequência direta da estrutura político-administrativa da Federação. Essas instituições, criadas com o objetivo de desempenhar funções sociais de interesse público, possuem diferentes níveis e formas de autonomia, que são protegidas pela Constituição. Essas autonomias podem ser ampliadas por meio de contratos, como é o caso de órgãos e entidades da administração direta e indireta. No entanto, o legislador constitucional não definiu explicitamente o conceito de autonomia, deixando-o implícito e sujeito a interpretação legal. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) exemplifica, mas não esgota, o conceito de autonomia, especialmente no que tange à autonomia universitária. A legislação ordinária, como a LDB, prevê a liberdade de organização dos sistemas de ensino sob a coordenação da União e estabelece graus progressivos de autonomia em aspectos pedagógicos, administrativos e financeiros para as instituições públicas de educação básica. Além disso, há previsão de concessão de autonomia a instituições que demonstrem alta qualificação em ensino e pesquisa, mediante avaliação. No contexto das instituições de ensino, as universidades públicas têm uma posição de destaque devido à flexibilidade e adaptação ao regime jurídico da Administração Pública, algo reafirmado pela LDB em seu artigo 54. Essas universidades, mantidas pelo poder público, possuem um regime jurídico especial para atender às suas necessidades particulares em termos de estrutura, organização, financiamento, planos de carreira e regime jurídico do pessoal. As universidades mantidas pelo Poder Público gozarão, na forma da lei, de estatuto jurídico especial para atender às peculiaridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo Poder Público, assim como dos seus planos de carreira e do regime jurídico do seu pessoal (Brasil, 1996). Essa interpretação também é corroborada pelas disposições dos artigos 53 e 54 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que apresentam listas exemplificativas das prerrogativas de autonomia das universidades. No caso das universidades públicas, o regime jurídico administrativo de direito público, que lhes confere prerrogativas e privilégios (como a liberdade de selecionar e dispensar servidores, definir salários, celebrar contratos, etc.), também impõe certas restrições e as sujeita a mecanismos formais de controle interno e externo. 12 Portanto, não é incomum nem excepcional que a Constituição ou a legislação ordinária atribuam prerrogativas de autonormação a entidades jurídicas, com o objetivo de potencializar sua atuação. No campo educacional, universidades, sistemas e instituições de ensino foram especialmente valorizados pelo legislador constitucional e ordinário para que possam desempenhar adequadamente suas funções. O desafio, então, reside em como tornar efetiva a norma do artigo 207. Em outras palavras, como viabilizar sua aplicação prática? A norma constitucional não se realiza isoladamente, sem conexão com a realidade (Hesse, 1991). Todos os direitos dependem de ações estatais, de estruturas institucionais e de condições fáticas e jurídicas para se concretizarem. São essas condições que asseguram a eficácia social da norma, permitindo que ela seja aplicada e observada na prática. 2.4 Exemplos de autonomia universitária A expressão “ensino, pesquisa e extensão” se refere ao tripé fundamental que sustenta as universidades públicas no Brasil, estabelecendo suas principais obrigações constitucionais: transmitir conhecimento (ensino), gerar novo conhecimento (pesquisa) e aplicar esse conhecimento em benefício da sociedade (extensão). Esses três pilares são inseparáveis e caracterizam a missão das instituições de ensino superior, que devem buscar a indissociabilidade entre eles para promover um impacto significativo na formação acadêmica e no desenvolvimento social (Ranieri, 2018; Nunes, 2013; Durham, 2005). A autonomia universitária garante que as universidades tenham a liberdade necessária para definir suas próprias políticas acadêmicas e administrativas sem interferência externa, assegurando que possam cumprir suas funções de ensino, pesquisa e extensão de maneira independente (Bandeira de Mello, 1968; Romano, 2008). No entanto, essa autonomia tem sido alvo de controvérsias e desafios, especialmente quando há tentativas de interferência por parte de governos ou outros poderes (Durham et al., 1989; Oliveira, 1999). Casos recentes ilustram a importância e os desafios da autonomia universitária. Por exemplo, durante a gestão de Michel Temer, o então ministro da Educação tentou barrar a oferta de uma disciplina na Universidade de Brasília que abordava o impeachment de Dilma Rousseff como um golpe, alegando improbidade 13 administrativa. No entanto, a autonomia didático-científica da universidade prevaleceu, permitindo que as aulas ocorressem (Ranieri, 2018). Em outro episódio, durante a gestão de Jair Bolsonaro, houve intervenção na nomeação de reitores nas universidades federais. Embora a lei permita que o presidente escolha entre os três candidatos mais votados em eleições internas, a tradição tem sido nomear o mais votado. Bolsonaro, no entanto, em 40% dos casos, nomeou candidatos que não foram os mais votados, levantando suspeitas de interferência política e desrespeito à autonomia administrativa das universidades (Nunes, 2013; Fernandes, 2023). Além disso, a autonomia financeira das universidades federais, garantida pela Constituição, tem enfrentado desafios devido ao contingenciamento de recursos por parte do governo federal. Esse mecanismo, embora legal, pode ser usado para pressionar as universidades a se alinharem ideologicamente com o governo, comprometendo sua independência (Saviani, 2020). Em São Paulo, esse problema foi mitigado ao vincular o orçamento das universidades estaduais a uma porcentagem fixa do ICMS, protegendo-as de interferências políticas diretas e garantindo uma maior estabilidade financeira (Fernandes; Kerbauy, 2019). A autonomia universitária é, portanto, essencial para a preservação da liberdade acadêmica, protegendo as instituições de ensino superior de influências políticas e garantindo que possam continuar contribuindo para o avanço do conhecimento e o desenvolvimento da sociedade. Ela é um pilar fundamental das sociedades democráticas, assegurando que as universidades possam cumprir sua missão crítica de formar cidadãos, gerar conhecimento e promover o bem-estar social (Leher, 2019; Schwartzman, 1989). Na Alemanha, as universidades desfrutam de um nível considerável de autonomia, especialmente nas áreas de gestão acadêmica e pesquisa. Essa autonomia é facilitada pela estrutura federal do país, na qual cada estado (Land) exerce um controle substancial sobre as universidades localizadas em seu território. Apesar dessa influência estadual, as instituições de ensino superior alemãs têm a liberdade de tomar decisões importantes de forma independente, como a definição de currículos, a seleção de professores e a condução de pesquisas. Essa independência permite que as universidades adaptem seus programas acadêmicos 14 às necessidades locais e globais, além de promoverem a inovação científica, destacando-se em um ambiente acadêmico competitivo (Maassen; Gornitzka; Fumasoli, 2017). A autonomia universitária na Alemanha também se estende à administração financeira. Embora as universidades sejam majoritariamente financiadas por recursos públicos, elas têm a liberdade de gerenciar seus próprios orçamentos. Isso inclui a capacidade de buscar e administrar fontes alternativas de financiamento, como doações privadas, parcerias com a indústria e fundos de pesquisa. Essa flexibilidade financeira permite que as universidades mantenham e desenvolvam infraestruturas modernas, atraiam talentos internacionais e fortaleçam sua capacidade de competir em um ambiente global (Schwartzman, 1989). No entanto, essa autonomia não é isenta de desafios. A dependência de financiamento público implica que as universidades devem operar dentro de certas restrições impostas pelos governos estaduais e federal. Além disso, crises recentes, como a guerra na Ucrânia e os conflitos no Oriente Médio, têm gerado pressões externas sobre as universidades, afetando a liberdade acadêmica e a gestão interna. A crescente militarização e a intolerância observadas no cenário político alemão, como ilustrado pelas reações aos conflitos internacionais, têm repercutido nas universidades, onde o princípio da autonomia é frequentemente testado diante de intervenções externas e pressões sociais (Romano, 2008; Leher, 2019). Um exemplo recente desse desafio à autonomia é a intervenção policial em manifestações pró-palestinas dentro de universidades como a Universidade Livre de Berlim e a Universidade Humboldt. Essas ações levantam preocupações sobre a capacidade das universidades de manter a independência em suas decisões e de proteger a liberdade de expressão no campus. A entrada das forças policiais nas universidades, muitas vezes a pedido das autoridades locais, coloca em xeque a capacidade dessas instituições de gerenciar seus próprios assuntos sem interferência externa (Oliveira, 1999). Além disso, a resposta do governo alemão às críticas internacionais, especialmente em relação ao apoio militar à Ucrânia e à política em relação a Israel tem intensificado o debate sobre até que ponto a autonomia universitária pode ser mantida quando confrontada com questões de segurança nacional e pressões 15 políticas. O exemplo da pressão política sobre a presidenta da Universidade Técnica de Berlim, que enfrentou críticas e pedidos de renúncia após apoiar uma postagem considerada anti-Israel, ilustra como a autonomia universitária pode ser vulnerável a forças externas (Leher, 2019). Nos Estados Unidos, a autonomia universitária está intimamente ligada à independência acadêmica e administrativa. As universidades, especialmente as privadas, possuem uma liberdade substancial para definir seus currículos, políticas de admissão e gestão de recursos. Essa independência é reforçada pela significativa autonomia financeira, com muitas instituições americanas beneficiando- se de grandes doações (endowments), que garantem uma base econômica sólida e independência operacional (Muz; Drugowich, 2018). No entanto, apesar dessa autonomia robusta, as universidades americanas enfrentam pressões externas consideráveis. A lógica neoliberal da austeridade e a privatização crescente do espaço público impactam profundamente o ambiente acadêmico, forçando as universidades a buscar cada vez mais recursos privados e a adaptar suas estruturas para manter a competitividade em um mercado global (Oliveira, 1999). A influência crescente de conselhos administrativos, que incluem não apenas acadêmicos, mas também representantes do setor privado, intensifica essa dinâmica. Esses conselhos frequentemente exercem um poder substancial sobre as decisões institucionais, especialmente em relação a investimentos e ao financiamento de projetos, o que pode limitar a autonomia universitária em questões como a seleção de projetos de pesquisa e a contratação de docentes (Romano, 2008). Essa dependência de financiamento público e privado cria um ambiente em que as universidades, apesar de formalmente autônomas, precisam equilibrar cuidadosamente sua independência acadêmica com as exigências do mercado e as pressões políticas (Mancebo, 1998). Isso é particularmente evidente em áreas como a pesquisa, onde as instituições podem ser pressionadas a alinhar seus projetos com as prioridades de financiamento, muitas vezes determinadas por agendas políticas ou econômicas. Portanto, embora as universidades americanas continuem a ser um modelo de autonomia em muitos aspectos, elas não estão imunes aos desafios globais que afetam a autonomia universitária. A crescente influência do setor privado, as pressões por cortes orçamentários e a necessidade de alinhamento com políticas 16 governamentais são fatores que complicam a manutenção dessa autonomia. As instituições devem navegar cuidadosamente entre a preservação de sua independência e a adaptação às realidades econômicas e políticas contemporâneas (Maassen; Gornitzka; Fumasoli, 2017). Na Inglaterra, as universidades mantêm um forte compromisso com a autonomia institucional, posicionando essa autonomia no centro da governança acadêmica do país (Maassen et al., 2017). Instituições tradicionais, como Oxford e Cambridge, exemplificam essa longa tradição de autonomia, exercendo controle significativo sobre suas próprias atividades acadêmicas, administrativas e financeiras. Essa liberdade se manifesta na capacidade de criar e administrar seus programas acadêmicos, conduzir pesquisas de forma independente e gerenciar recursos financeiros, além de ter autonomia na nomeação de líderes universitários e na tomada de decisões estratégicas. Conforme destacado por Wade (2012), a autonomia das universidades britânicas, particularmente na Inglaterra, é considerada uma das mais robustas da Europa. Essa autonomia é sustentada por quatro pilares principais: liberdade acadêmica na decisão sobre ensino e pesquisa, independência na gestão institucional, capacidade de operar em um mercado livre e a responsabilidade na entrega de qualidade, atendendo às expectativas de financiadores, estudantes e empregadores. Contudo, o cenário político e econômico em constante mudança, marcado pela introdução de taxas de ensino e pela crescente pressão do mercado, tem imposto desafios significativos às universidades britânicas. A dependência cada vez maior de fundos privados, em detrimento dos subsídios públicos, força essas instituições a se adaptarem a uma realidade onde a sobrevivência pode depender de sua capacidade de competir em um ambiente cada vez mais mercantilizado (Maassen et al., 2017; Wade, 2012). Essa mudança reflete uma tensão entre a necessidade de manter a autonomia institucional e as exigências impostas por um mercado educacional competitivo, além de um governo que busca desregulamentar e reduzir a intervenção estatal. As universidades britânicas, portanto, enfrentam decisões estratégicas complexas que testam os limites de sua autonomia. Apesar desses desafios, a 17 devolução de decisões ao Estado não é vista como uma opção, evidenciando o valor que as instituições de ensino superior no Reino Unido atribuem à sua autonomia. Essa situação destaca a importância de estratégias de liderança eficazes para preservar e fortalecer a autonomia universitária em um contexto político e econômico cada vez mais desafiador. Na França, as universidades gozam de autonomia em aspectos como a definição de programas acadêmicos e a condução de pesquisas. O termo "autonomia universitária" é conhecido no país como "liberdade acadêmica" e foi formalmente incluída no direito em 2020 pela Lei de Programação de Pesquisa, garantindo a independência e liberdade de expressão dos professores e pesquisadores (Quebec, 2022). No entanto, a autonomia administrativa e financeira é mais limitada em comparação com outros países, uma vez que o Estado mantém um papel significativo no financiamento e na regulamentação das universidades (Durham, 2010). As reformas introduzidas nos últimos anos têm buscado aumentar a autonomia das universidades, permitindo maior controle sobre o recrutamento de pessoal e a gestão financeira, mas ainda há um equilíbrio cuidadoso entre a autonomia institucional e a supervisão estatal (Liu, 2019). Na França, a autonomia universitária sempre esteve em destaque, especialmente no que tange à liberdade de cátedra, que se tornou um tema ainda mais relevante nos últimos anos. Em 2021, o debate em torno do "islamismo- esquerdismo" nas universidades francesas levou o ministro responsável pelo ensino superior a solicitar um relatório sobre a propagação dessa corrente, desencadeando discussões sobre os limites e a natureza da liberdade acadêmica no país. Este evento resultou na introdução formal da "liberdade acadêmica" no direito francês através da Lei de Programação de Pesquisa de 24 de dezembro de 2020 (Kauppinen; Moberg, 2016). Esta lei, alterando o Código Educacional, define a liberdade acadêmica como essencial para a excelência no ensino superior e na pesquisa na França (Leher, 2019). Embora a liberdade acadêmica tenha sido reconhecida em diversas formas no passado, foi somente com essa legislação que ela entrou explicitamente no direito interno francês, afirmando que os professores-pesquisadores têm total independência e liberdade de expressão em suas atividades de ensino e pesquisa, conforme o artigo L.952-2 do Código Educativo. Essa liberdade é essencial para a 18 busca da verdade sem impedimentos, permitindo que os acadêmicos realizem suas pesquisas e compartilhem seus resultados livremente (Yang, 2010). No entanto, essa liberdade encontra seus limites dentro das missões universitárias. O Conselho de Estado francês decidiu que a liberdade acadêmica não pode ser invocada em situações que não estão diretamente relacionadas às funções de ensino e pesquisa, como no caso de um professor que agiu de maneira inadequada em relação a estudantes. Além disso, fora do ambiente acadêmico, os professores estão sujeitos às liberdades da "lei comum" e às obrigações decorrentes da lei da função pública, que incluem deveres de reserva, neutralidade e lealdade (Sampaio, 2014b). Essas discussões destacam a importância de proteger a liberdade acadêmica dentro de suas devidas fronteiras, garantindo que ela não seja usada para justificar comportamentos inadequados. Exemplos recentes, como o de um professor- pesquisador sancionado por fazer comentários controversos fora de suas funções acadêmicas, mostram a necessidade de se identificar claramente o alcance dessa liberdade. Em uma sociedade democrática, é crucial que a liberdade acadêmica seja preservada em sua plena legitimidade, mas também que seja aplicada de forma responsável e contextualizada (Durham, 2005). A introdução formal da liberdade acadêmica no direito francês representa um passo significativo na proteção dessa autonomia, garantindo que as universidades possam continuar sendo espaços de debate livre e crítico, essenciais para o progresso científico e educacional (Pan, 2015). Na China, o Estado dita as normas conforme os interesses econômicos e de desenvolvimento, tornando difícil falar em autonomia universitária verdadeira (Pan, 2015). Embora o governo tenha promovido algumas reformas para aumentar a autonomia das instituições de ensino superior, especialmente na área de pesquisa e desenvolvimento, as universidades ainda operam sob um controle estatal rigoroso. O governo exerce um papel central na definição de currículos, nomeação de líderes universitários e alocação de recursos, o que limita significativamente a independência das universidades (Liu, 2019). No entanto, algumas universidades de elite, como a Universidade de Pequim e a Universidade Tsinghua, têm recebido maior liberdade para inovar e desenvolver programas acadêmicos de ponta, embora 19 essa liberdade seja sempre condicionada ao alinhamento com os objetivos estratégicos do governo (Yang, 2010). Recentemente, o governo chinês tem promovido um sistema de garantia de qualidade (Quality Assurance, QA) que visa supervisionar o desempenho das universidades. Este sistema, embora contribua para a responsabilização e melhoria da qualidade da pesquisa, também impõe processos burocráticos extensos que podem desviar o foco das atividades de ensino e pesquisa. Apesar dessas restrições, algumas universidades de elite na China têm conseguido obter uma maior liberdade para inovar e desenvolver programas acadêmicos de ponta, o que lhes permite competir no mercado global de educação superior (Pan, 2015). Essas universidades, frequentemente incentivadas a se tornarem instituições de classe mundial, recebem mais recursos e autonomia para inovar. No entanto, essa liberdade é sempre condicionada pelo alinhamento com os objetivos estratégicos do governo, refletindo a contínua tensão entre a autonomia institucional e o controle estatal (Liu, 2019). Na Finlândia, as reformas educacionais de 2010 representaram um marco significativo na história das universidades do país, transformando-as de entidades controladas pelo Estado em instituições com maior independência. Essas mudanças permitiram que as universidades se tornassem entidades jurídicas separadas, conferindo-lhes maior autonomia em termos de gestão financeira, de recursos humanos e de decisões estratégicas (Kauppinen; Moberg, 2016). Anteriormente, as universidades finlandesas operavam como partes do governo, com seus funcionários considerados servidores públicos. Com as reformas, elas ganharam a capacidade de gerir seus próprios ativos e tomar decisões sobre a alocação de recursos e o desenvolvimento de currículos (Saikku, 2013). A nova autonomia, no entanto, veio acompanhada de uma responsabilidade adicional. As universidades passaram a operar sob um sistema de financiamento baseado em desempenho, o que significa que parte significativa de seus recursos é alocada com base em métricas como o número de graduações, a qualidade da pesquisa e a taxa de empregabilidade dos graduados. Esse sistema foi implementado para incentivar as universidades a melhorar continuamente a qualidade do ensino e a inovação na pesquisa (Maassen et al., 2017). 20 Além disso, as universidades finlandesas agora têm mais liberdade para arrecadar fundos por meio de doações, parcerias com o setor privado e outros meios. Isso lhes permite diversificar suas fontes de renda, embora o Estado continue a ser a principal fonte de financiamento. A capacidade de gerir seus próprios recursos humanos também trouxe mudanças significativas, permitindo que as universidades ofereçam pacotes de remuneração mais competitivos e atraiam talentos globais (Maassen et al., 2017). Outro aspecto importante das reformas foi o fortalecimento da governança universitária. As universidades agora têm conselhos administrativos compostos por membros externos, que desempenham um papel importante na tomada de decisões estratégicas. Isso ajuda a garantir que as universidades mantenham um alto nível de responsabilidade e transparência em suas operações (Välimaa, 2019). Essas reformas posicionaram as universidades finlandesas como atores mais dinâmicos e competitivos no cenário global, capacitando-as a responder de maneira mais ágil às demandas da sociedade e do mercado de trabalho, enquanto continuam a fornecer educação de alta qualidade e a conduzir pesquisas de ponta (Saikku, 2013). Esses exemplos demonstram como a autonomia universitária pode variar amplamente em diferentes países, refletindo a diversidade de abordagens para equilibrar a liberdade acadêmica com a responsabilidade pública. Cada modelo de autonomia universitária tem suas próprias vantagens e desafios, dependendo do contexto legal, econômico e cultural de cada país (Saikku, 2013). 2.5 Criação e história das universidades estaduais paulista Em termos práticos, a autonomia universitária permite que as instituições de ensino superior realizem pesquisas em áreas de importância para a sociedade, mesmo que tais pesquisas contrariem os interesses de poderes estabelecidos. De acordo com a professora Nina Ranieri, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a autonomia universitária é um dos princípios fundadores das universidades modernas. Ela garante que ensino e pesquisa possam ocorrer sem interferências políticas ou ideológicas, preservando a liberdade de investigação científica. Sem essa liberdade, a ciência seria limitada à reprodução de ideologias dominantes, e não à produção de conhecimento genuíno. 21 A criação e o desenvolvimento das universidades estaduais paulistas, incluindo a Universidade Estadual Paulista (Unesp), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), constituem um capítulo central na história da educação superior no Brasil. Essas instituições desempenharam e continuam a desempenhar um papel crucial no desenvolvimento científico, tecnológico e cultural do país, especialmente no estado de São Paulo, o mais industrializado e economicamente dinâmico da nação (Fernandes; Kerbauy, 2019). A Unesp surgiu em um contexto histórico marcado pela expansão do ensino superior no Brasil, especialmente a partir das décadas de 1950 e 1960. Nesse período, várias faculdades foram criadas em diferentes regiões do interior paulista, incluindo as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, Araraquara, Franca, Marília, Rio Claro e São José do Rio Preto. Essas instituições, conhecidas como Institutos Isolados, foram estabelecidas para atender à crescente demanda por educação superior em áreas fora dos grandes centros urbanos, como a capital paulista (Mancebo, 1998). No entanto, a gestão dispersa desses institutos gerava desafios administrativos significativos. Em 1975, sob o governo de Paulo Egydio Martins, começou-se a discutir a possibilidade de integrar esses institutos em uma única universidade, o que culminou na criação da Unesp em 1976. A Lei nº 952, de 30 de janeiro de 1976, formalizou essa unificação, transformando os antigos Institutos Isolados em campi de uma nova universidade multicampi, que recebeu o nome de Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", em homenagem ao jornalista e político paulista (Durham; Schwartzman, 1989). Desde sua fundação, a Unesp se destacou por seu modelo multicampi, que a diferenciou das outras grandes universidades brasileiras, concentradas em poucos locais. A Unesp compreende atualmente 34 unidades de ensino, pesquisa e extensão, distribuídas por 24 campi em várias cidades do interior e litoral do estado de São Paulo, além de uma presença na capital. Essa estrutura permite que a Unesp atenda a uma ampla gama de necessidades regionais e contribua para o desenvolvimento local em diversas áreas do conhecimento (Muz; Drugowich, 2018). Durante as décadas de 1980 e 1990, a Unesp passou por uma significativa expansão e consolidação de sua identidade. Incorporou novas instituições, como a 22 Universidade de Bauru e o Instituto Municipal de Ensino Superior de Presidente Prudente (IMESPP), e criou novas unidades, como o Instituto de Física Teórica em 1987. Além disso, a criação de unidades complementares e centros interunidades foi fundamental para dinamizar a pesquisa e promover a integração entre os diferentes núcleos de produção científica da universidade (Durham, 2005). Em 1989, a Unesp adotou um novo estatuto que estabeleceu pró-reitorias para melhorar a eficiência administrativa e criou a Fundunesp e a Editora Unesp, que contribuíram para ampliar a influência da universidade no cenário acadêmico e cultural brasileiro (Romano, 2008). Nos anos 1990, a universidade aumentou sua oferta de vagas e começou a se expandir para novas regiões do estado por meio dos Campi Experimentais, como o de Ourinhos (Araújo; Borges, 1999). A Unesp se consolidou como uma das principais universidades do Brasil e da América Latina. Com mais de 3,5 mil professores e 10,6 mil funcionários, a universidade oferece 171 cursos de graduação e possui 118 programas de pós- graduação, incluindo mestrados acadêmicos, profissionais e doutorados. Sua produção científica é notável, representando 8% da produção científica nacional, segundo a Unesco (Assessoria de Comunicação e Imprensa Unesp). Este desempenho coloca a Unesp ao lado da USP e da Unicamp como as principais universidades brasileiras em termos de produção científica (Fernandes; Kerbauy, 2019). O sistema de ingresso na Unesp, realizado por meio de um rigoroso vestibular organizado pela Fundação Vunesp, atrai milhares de candidatos anualmente. A universidade também oferece programas de intercâmbio com 140 instituições deensin o em 28 países, reforçando sua posição como uma instituição de ensino superior de classe mundial (Associação Brasileira dos Reitores das Universidades Estaduais e Municipais - Abruem). Ao longo de sua história, a Unesp enfrentou e continua enfrentando desafios significativos, incluindo questões relacionadas ao financiamento, à expansão de sua infraestrutura, e à manutenção da qualidade acadêmica em meio a um cenário de crescentes demandas sociais e econômicas. O orçamento da universidade, que ultrapassou R$ 2,4 bilhões em 2017, reflete a importância de seu papel no desenvolvimento do estado de São Paulo e do Brasil como um todo (Oliveira, 1999). 23 A administração da Unesp, conduzida por um reitor eleito pela comunidade acadêmica e nomeado pelo governador do estado, é regida por um Conselho Universitário composto por representantes de todas as unidades da universidade. Essa estrutura de governança busca garantir a autonomia e a eficiência da instituição, permitindo que ela continue a cumprir sua missão de promover o ensino, a pesquisa e a extensão em benefício da sociedade (Ranieri, 2018). A história da Unesp é marcada por sua capacidade de se adaptar e inovar em resposta às necessidades educacionais e científicas do estado de São Paulo e do Brasil. Desde sua criação como uma universidade multicampi até sua consolidação como uma das principais instituições de ensino superior da América Latina, a Unesp desempenha um papel crucial na formação de profissionais qualificados e na produção de conhecimento científico de alta relevância. Seu compromisso com a excelência acadêmica e a inclusão social continua a ser um fator determinante para seu sucesso e sua relevância no cenário educacional global. 2.6 O decreto de autonomia financeira de 1989 Definir um modelo organizacional adequado para enfrentar os desafios do século XXI tem sido uma preocupação crescente dentro da universidade pública paulista. Para isso, é preciso também fazer uma reflexão sobre o Decreto 29.598/89, que implementou a autonomia da instituição em 1989, e o contexto em que ele entrou em vigor. O Decreto nº 29.598, de 02 de fevereiro de 1989, assinado pelo então governador do Estado de São Paulo, Orestes Quércia, foi um marco decisivo na história das universidades estaduais paulistas. Este decreto estabeleceu a autonomia financeira das três grandes universidades do estado: Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Universidade Estadual Paulista (Unesp), um passo fundamental para a consolidação do ensino superior no Brasil (Brasil, 1988b; São Paulo, 1989). O decreto foi promulgado em um contexto de redemocratização do país e criação de uma nova Constituição Federal em 1988. O artigo 207 da Constituição da República Federativa do Brasil garantiu às universidades autonomia didático- científica, administrativa, de gestão financeira e patrimonial, seguindo o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (Brasil, 1988b). O Decreto nº 29.598 foi um complemento a essa diretriz, especificando como essa autonomia 24 seria implementada no estado de São Paulo (São Paulo, 1989). O decreto estipulou que 8,4% da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) seria destinado diretamente às universidades estaduais, garantindo-lhes estabilidade financeira e autonomia na gestão desses recursos. Este modelo de financiamento, inovador para a época, permitiu que as universidades se desenvolvessem sem depender diretamente da liberação de verbas pelo governo estadual, promovendo um ambiente de crescimento acadêmico e científico (Fernandes; Kerbauy, 2019). Desde a implementação do decreto, as universidades paulistas passaram a desempenhar um papel central no desenvolvimento científico do país. Juntas, USP, Unesp e Unicamp são responsáveis por 35% da produção científica brasileira indexada na base de dados Web of Science. Este modelo de financiamento se mostrou tão eficaz que, ao longo dos anos, o percentual destinado às universidades foi ampliado, chegando a 9,57% em 1995, durante o governo de Mário Covas (Assessoria de Comunicação e Imprensa Unesp). Um dos grandes méritos do Decreto nº 29.598 foi permitir que as universidades pudessem planejar seu desenvolvimento de maneira autônoma, sem a interferência direta do governo estadual nas suas decisões internas. Isso facilitou a criação de políticas de contratação, reajustes salariais e investimentos em infraestrutura acadêmica, além de permitir uma gestão mais eficiente e adaptada às necessidades específicas de cada instituição (Romano, 2008). Apesar do sucesso, o modelo não esteve isento de desafios. A Unesp, por exemplo, sentiu-se prejudicada pelo critério inicial de distribuição dos recursos do ICMS, que não considerou o aumento de seus custos fixos após a incorporação da Universidade Municipal de Bauru em 1988. Além disso, a recomendação de que as universidades não deveriam gastar mais de 75% dos recursos com pessoal, prevista no decreto, foi frequentemente ultrapassada, especialmente em tempos de crise econômica, como a enfrentada na década de 2010 (Durham, 2005). O Decreto nº 29.598, ao garantir a autonomia financeira das universidades estaduais paulistas, não apenas fortaleceu o ensino superior em São Paulo, mas também se tornou um modelo de referência no Brasil. Embora nenhum outro estado tenha adotado um sistema semelhante, o impacto positivo desse decreto é inegável, 25 permitindo que as universidades paulistas se destacassem nacional e internacionalmente (Ranieri, 2018). Passados mais de 30 anos desde sua promulgação, o Decreto nº 29.598 continua sendo uma peça fundamental na estrutura do ensino superior paulista. Ele assegurou a independência necessária para que as universidades pudessem se desenvolver plenamente, contribuindo para que São Paulo se tornasse um centro de excelência acadêmica e científica no Brasil e no mundo. O sucesso deste modelo reflete a visão e a coragem política do governo da época, que soube interpretar as necessidades do setor educacional e transformá-las em um sistema que ainda hoje se mostra eficiente e vital para o desenvolvimento do conhecimento (Sampaio, 2014b). 2.7 Desenvolvimento e expansão das universidades estaduais paulistas após a garantia constitucional da autonomia universitária Antes da autonomia, as universidades estaduais paulistas enfrentavam desafios significativos relacionados à gestão financeira e à capacidade de planejar a longo prazo. A vinculação dos recursos financeiros a um percentual do ICMS foi crucial para a estabilidade orçamentária dessas instituições (São Paulo, 1989). Desde então, as universidades passaram por um processo de expansão notável, tanto em termos de infraestrutura quanto na oferta de cursos e vagas (Fernandes, 2023). Na década de 1990, a USP, Unicamp e Unesp ampliaram significativamente suas atividades. Novos campi foram inaugurados, e houve um crescimento expressivo no número de cursos de graduação e pós-graduação oferecidos. A USP, por exemplo, aumentou de 162 cursos de graduação em 1999 para 321 em 2017, enquanto a Unicamp passou de 50 para 66 cursos de graduação no mesmo período (Universidade Estadual Paulista, 2024). A Unesp, que desde sua criação já era multicampi, continuou a expandir suas unidades pelo interior do estado, fortalecendo sua presença em diversas regiões (Bampi; Diel, 2024). Além do crescimento físico, as universidades também se destacaram pela ampliação de sua produção científica. De acordo com a FAPESP (2019), as três universidades juntas são responsáveis por aproximadamente 35% da produção científica nacional indexada na base internacional Web of Science. Esse aumento na produção acadêmica é um reflexo direto da autonomia, que permitiu às universidades investirem de forma mais assertiva em pesquisa e inovação (Associação Brasileira 26 dos Reitores das Universidades Estaduais e Municipais, 2024). Com a autonomia financeira consolidada, as universidades estaduais paulistas passaram por um processo de expansão e fortalecimento de suas estruturas acadêmicas e de pesquisa (Sampaio, 2014). A USP, por exemplo, ampliou significativamente sua produção científica, tornando-se a principal universidade do Brasil em termos de publicações e inovação tecnológica (Pesquisa FAPESP, 2019). A Unicamp, beneficiada pela autonomia, também se destacou na produção científica, com forte atuação em áreas estratégicas como saúde, energia e tecnologia da informação (Times Higher Education, 2013). A universidade ampliou suas parcerias internacionais e se tornou um centro de excelência em pesquisa, atraindo talentos de todo o mundo (QS World University Rankings, 2024). A Unesp, com sua estrutura multicampi, expandiu sua atuação para diversas regiões do Estado de São Paulo, levando ensino superior de qualidade a cidades que anteriormente não tinham acesso a esse tipo de educação (Universidade Estadual Paulista, 2024). A universidade se destacou pela criação de cursos voltados às necessidades regionais, contribuindo para o desenvolvimento socioeconômico do interior paulista (Romano, 2008). Além disso, a autonomia permitiu que as universidades estaduais paulistas investissem em programas de intercâmbio e cooperação internacional, fortalecendo suas redes de colaboração e elevando ainda mais a qualidade de seus cursos de graduação e pós-graduação (Fernandes; Kerbauy, 2019). Essas universidades passaram a figurar em rankings internacionais, como o QS World University Rankings e o Times Higher Education, como algumas das melhores instituições de ensino superior da América Latina (Universidade Estadual Paulista, 2024). Apesar do sucesso inicial, a autonomia também trouxe desafios, especialmente em relação à sustentabilidade financeira. A dependência do ICMS, cuja arrecadação pode variar de acordo com o desempenho econômico do estado, fez com que as universidades tivessem que lidar com oscilações significativas em seus orçamentos (Fernandes, 2023). A partir de 2014, a queda na arrecadação do ICMS afetou os repasses para as universidades, exigindo uma gestão financeira ainda mais eficiente para manter o nível de excelência acadêmica (Universidade Estadual Paulista, 2024). 27 O desafio de equilibrar o orçamento sem comprometer a qualidade do ensino e da pesquisa levou as universidades a buscarem novas fontes de financiamento, como parcerias com a iniciativa privada e programas de internacionalização (Muz; Drugowich, 2018). No entanto, essas iniciativas, embora bem-sucedidas em alguns casos, não substituem a necessidade de um financiamento público robusto e estável (Saviani, 2020). A expansão das universidades estaduais paulistas também teve um impacto significativo nas regiões onde estão inseridas. A presença de um campus universitário é um motor de desenvolvimento econômico e social, gerando empregos, atraindo investimentos e proporcionando acesso à educação superior para populações que, de outra forma, poderiam não ter essa oportunidade (Romano, 2008). Por exemplo, a instalação de unidades da Unesp em cidades do interior como Bauru, Presidente Prudente e Jaboticabal não apenas ampliou a oferta de vagas no ensino superior, mas também transformou essas localidades em polos de conhecimento e inovação (Universidade Estadual Paulista, 2024). A Unicamp, com seu campus em Limeira e a expansão em Campinas, e a USP, com o aumento de suas atividades em Ribeirão Preto e São Carlos, seguiram a mesma tendência (Pesquisa FAPESP, 2019). Além disso, a autonomia permitiu que essas universidades se destacassem em rankings internacionais, consolidando-se entre as melhores da América Latina. A USP, Unicamp e Unesp são consistentemente classificadas entre as melhores do continente, o que reflete não apenas a qualidade do ensino e da pesquisa, mas também a relevância social dessas instituições (QS World University Rankings, 2024). Passadas mais de três décadas desde a promulgação do Decreto nº 29.598, o futuro da autonomia universitária nas universidades estaduais paulistas continua a ser um tema de grande relevância (São Paulo, 1989). A manutenção dessa autonomia é crucial para que as instituições possam continuar a desempenhar seu papel de formar profissionais altamente qualificados e produzir conhecimento de ponta (Ranieri, 2018). No entanto, para que isso seja possível, é necessário enfrentar os desafios 28 financeiros de forma criativa e eficiente. As universidades precisam continuar a diversificar suas fontes de receita e a buscar formas de otimizar seus recursos, sem comprometer a qualidade do ensino e da pesquisa (Durham; Schwartzman, 1989). Além disso, o governo estadual e a sociedade como um todo devem reconhecer a importância dessas instituições e garantir que elas tenham os recursos necessários para continuar a sua missão (Sampaio, 2014). Assim, a autonomia universitária foi e continua a ser um elemento fundamental para o desenvolvimento e expansão das universidades estaduais paulistas. Apesar dos desafios enfrentados ao longo dos anos, as conquistas obtidas graças a essa autonomia são inegáveis e colocam USP, Unicamp e Unesp como referências de excelência acadêmica não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina (Romano, 2008). 29 3. DESAFIOS DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA A autonomia universitária, apesar de sua importância, enfrenta desafios significativos, particularmente em contextos onde políticas governamentais interferem diretamente na gestão universitária. Um exemplo claro dessa tensão ocorreu durante a pandemia de COVID-19, quando o governo federal, por meio do Parecer 01169/2021CONJUR-MEC/CGU/AGU, desestimulou a exigência de comprovantes de vacinação em instituições federais de ensino. Esse ato foi considerado contrário às evidências científicas e aos princípios de saúde pública, e foi interpretado como uma violação da autonomia gerencial, administrativa e patrimonial garantida às universidades pelo Art. 207 da Constituição Federal. A interferência governamental, ao tentar subtrair das universidades a capacidade de exigir atestados de imunização como condição para o retorno às atividades presenciais, não apenas comprometeu a segurança da comunidade acadêmica, mas também vulnerou a autonomia dessas instituições. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem historicamente defendido a plena concretização dos direitos à saúde, educação e autonomia universitária, considerando qualquer retrocesso nesses aspectos como inaceitável. Este episódio destaca a necessidade de proteger e reforçar a autonomia das universidades, especialmente em tempos de crise. 3.1 Polissemismo do conceito A polissemia é um fenômeno linguístico que se caracteriza por uma palavra ou expressão ter múltiplos significados. No contexto da "autoridade universitária", essa polissemia revela uma complexidade que vai além de simples definições, pois envolve diferentes interpretações e significados que podem variar dependendo da perspectiva teórica, histórica, jurídica e social. A "autoridade universitária" pode ser interpretada de várias maneiras, refletindo as diversas funções e papéis que as universidades desempenham na sociedade. Em um sentido estrito, a autoridade universitária refere-se ao poder de governar e administrar as instituições de ensino superior. Isso inclui a capacidade de tomar decisões sobre currículos, políticas de admissão, contratação de docentes, pesquisa acadêmica e outras áreas fundamentais para o funcionamento da universidade (Romano, 2008). 30 No entanto, o conceito de autoridade universitária vai além do poder administrativo. Ele abrange também a autoridade intelectual e moral que as universidades detêm na sociedade. Historicamente, as universidades têm sido vistas como guardiãs do conhecimento, e essa posição lhes confere uma autoridade que transcende o âmbito administrativo. Esta autoridade intelectual se manifesta na capacidade das universidades de definir o que é considerado conhecimento válido, estabelecer paradigmas de pesquisa, e influenciar o pensamento social e cultural (Saviani, 2020). No campo jurídico, a autoridade universitária pode ser interpretada de diferentes formas. Em muitas jurisdições, as universidades são entidades autônomas que possuem autoridade legal para governar seus assuntos internos. Essa autonomia é garantida por leis e regulamentações que conferem às universidades o direito de autogestão (Durham, 2005). Contudo, essa autonomia não é absoluta; as universidades frequentemente operam dentro de um quadro legal mais amplo que inclui leis nacionais sobre educação, direitos trabalhistas e normas de pesquisa (Bandeira de Mello, 1968). Dessa forma, a autoridade universitária assume um caráter dual: por um lado, há a autoridade que emana da autonomia institucional, e por outro, a autoridade que deve se submeter a regulamentos externos. A polissemia aqui se manifesta na tensão entre a independência institucional e a necessidade de conformidade com leis e políticas públicas (Ranieri, 2018). Além disso, dentro das próprias instituições, a noção de autoridade pode variar. Por exemplo, a autoridade de um reitor é distinta da autoridade de um professor. Enquanto o reitor tem autoridade administrativa e de liderança sobre toda a universidade, um professor pode exercer autoridade em sua área específica de expertise, influenciando o currículo e a pesquisa dentro de seu departamento (Leher, 2019). Outro aspecto crucial da polissemia do conceito de autoridade universitária é a distinção entre autoridade intelectual e moral. As universidades são vistas como centros de pensamento crítico e inovação, e essa função lhes confere uma autoridade intelectual que é reconhecida e respeitada em toda a sociedade (Oliveira, 31 1999). Esta autoridade não se baseia em poder coercitivo, mas sim no reconhecimento da competência e do mérito acadêmico (Schwartzman, 1989). Por exemplo, quando uma universidade pública um estudo científico, essa publicação carrega consigo a autoridade da instituição. A comunidade científica e o público em geral tendem a confiar nos resultados de pesquisas provenientes de universidades renomadas, reconhecendo a autoridade intelectual desses estudos (Ranieri, 2018). Aqui, a autoridade universitária se manifesta na capacidade de produzir e validar conhecimento. Ao mesmo tempo, as universidades exercem uma autoridade moral. Elas são vistas como defensores de valores éticos, como a verdade, a justiça, e a liberdade acadêmica (Saviani, 2020). Essa autoridade moral é especialmente importante em contextos onde as universidades desempenham um papel ativo na promoção dos direitos humanos, da igualdade e da inclusão social. A autoridade moral das universidades é frequentemente invocada em debates públicos sobre questões éticas e sociais, onde a posição da universidade pode ter um peso significativo (Romano, 2008). A polissemia do conceito de autoridade universitária também se reflete nos desafios contemporâneos enfrentados pelas universidades. Em um mundo globalizado e digitalizado, as universidades não são mais os únicos centros de produção e disseminação do conhecimento. Empresas privadas, organizações não governamentais, e plataformas digitais também competem por esse espaço, desafiando a tradicional autoridade intelectual das universidades (Durham; Schwartzman, 1989). Além disso, a crescente pressão para que as universidades se alinhem com as demandas do mercado e com as políticas governamentais tem levado a um questionamento da sua autoridade moral e intelectual. Críticos argumentam que a dependência financeira de fontes externas, como o financiamento privado e o apoio governamental, pode comprometer a autonomia das universidades, levando-as a priorizar interesses econômicos e políticos sobre a busca independente do conhecimento (Muz; Drugowich, 2018). 32 Essa tensão entre a autonomia universitária e as pressões externas gera uma nova camada de polissemia no conceito de autoridade universitária, onde a própria noção de autonomia se torna ambígua e multifacetada (Saviani, 2020). Por fim, a polissemia do conceito de autoridade universitária também se manifesta na responsabilidade social das universidades. Em tempos de crise, como durante a pandemia de COVID-19, as universidades têm sido chamadas a exercer sua autoridade não apenas como centros de conhecimento, mas como líderes sociais e comunitários (Saviani, 2020). A autoridade universitária, nesse contexto, se expande para incluir a responsabilidade de contribuir para o bem-estar público, oferecer orientação baseada em evidências, e participar ativamente na resolução de problemas sociais. Isso reforça a ideia de que a autoridade universitária não é estática, mas sim dinâmica e adaptável às necessidades da sociedade (Romano, 2008). A polissemia do conceito de autoridade universitária reflete a complexidade e a multiplicidade de papéis que as universidades desempenham na sociedade. A autoridade universitária não se limita ao poder administrativo; ela abrange também a autoridade intelectual, moral, e social que as universidades exercem. Compreender essa polissemia é essencial para apreciar a importância das universidades como instituições fundamentais para o desenvolvimento do conhecimento, da cultura e da democracia. Em um mundo em constante mudança, a autoridade universitária continua a evoluir, enfrentando novos desafios e reafirmando seu papel como guardiã do conhecimento e da ética (Leher, 2019). 3.2 Limite jurídico X Limite Institucional (autonomia X corporativismo) A discussão sobre os limites entre o jurídico e o institucional, especialmente no contexto da autonomia universitária e do corporativismo, é de extrema relevância no campo da educação superior. As universidades, como instituições fundamentais para a produção e disseminação do conhecimento, têm uma posição única dentro da sociedade, uma vez que sua autonomia é tanto um princípio constitucional quanto uma necessidade para o desenvolvimento científico e cultural (Ranieri, 2018). No entanto, essa autonomia frequentemente entra em conflito com as estruturas corporativas internas das universidades, gerando tensões entre os limites jurídicos e institucionais (Schwartzman, 1989). A autonomia universitária é garantida pela 33 Constituição Federal do Brasil, especificamente no artigo 207, que estabelece que "as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial" (Bandeira de Mello, 1968). Esse preceito constitucional visa garantir que as universidades possam operar livres de interferências externas, permitindo que elas definam seus próprios rumos em termos de pesquisa, ensino e extensão (Durham, 2005). Essa autonomia, no entanto, não é absoluta. O limite jurídico da autonomia universitária é determinado por várias leis e regulamentações que controlam aspectos como a responsabilidade fiscal, a gestão de recursos públicos, a contratação de pessoal e a prestação de contas. Essas leis são necessárias para garantir que as universidades, como entidades financiadas em grande parte por recursos públicos, operem dentro de um quadro de transparência e responsabilidade (Durham; Schwartzman, 1989). Assim, o limite jurídico da autonomia universitária se baseia na necessidade de conciliar a independência institucional com a responsabilidade pública (Leher, 2019). Por outro lado, o corporativismo institucional refere-se ao fenômeno em que grupos internos dentro da universidade, como associações de docentes, sindicatos ou departamentos específicos, exercem uma influência desproporcional sobre as decisões institucionais (Saviani, 2020). Esse corporativismo pode se manifestar de várias maneiras, como na resistência a reformas, na defesa de interesses próprios em detrimento do interesse coletivo da instituição, ou na promoção de agendas que beneficiam apenas determinados grupos em vez da comunidade acadêmica como um todo (Romano, 2008). O corporativismo institucional pode minar a autonomia universitária de várias formas. Primeiramente, ele pode criar uma barreira entre a gestão universitária e os objetivos mais amplos da instituição, impedindo que decisões importantes sejam tomadas com base no interesse público e no progresso acadêmico (Oliveira, 1999). Em segundo lugar, o corporativismo pode levar a uma cultura de imobilismo, onde as mudanças necessárias são constantemente bloqueadas por interesses corporativos que resistem a qualquer ameaça ao status quo. Isso pode resultar em uma universidade que é incapaz de se adaptar às demandas contemporâneas da sociedade, comprometendo sua relevância e eficácia (Muz; Drugowich, 2018). 34 O conflito entre o limite jurídico e o corporativismo institucional se torna evidente quando as tentativas de reformar ou modernizar as universidades esbarram em resistências internas. Enquanto o limite jurídico busca garantir que as universidades operem dentro de um quadro legal claro e transparente, o corporativismo institucional muitas vezes tenta preservar a autonomia de maneira que beneficie apenas certos grupos, em vez de promover o bem-estar geral da instituição (Saviani, 2020). Esse conflito pode ser ilustrado por casos em que propostas de mudanças na estrutura administrativa ou acadêmica das universidades enfrentam oposição feroz de grupos corporativistas. Por exemplo, propostas de reformulação curricular que visam modernizar os cursos e adaptá-los às novas exigências do mercado de trabalho podem ser rejeitadas por departamentos ou associações docentes que veem essas mudanças como uma ameaça à sua própria estabilidade ou autonomia interna (Romano, 2008). Da mesma forma, a introdução de novas políticas de avaliação de desempenho, que visam garantir que os recursos públicos sejam utilizados de forma eficaz e que a qualidade do ensino e da pesquisa seja mantida, muitas vezes enfrenta resistência de grupos que temem que tais avaliações possam levar a cortes de financiamento ou à perda de privilégios adquiridos (Ranieri, 2018). Nessas situações, o corporativismo institucional pode funcionar como um obstáculo significativo para a implementação de políticas que são necessárias para a modernização e eficiência das universidades (Leher, 2019). Diante desses conflitos, é fundamental que se busque um equilíbrio entre a autonomia universitária e a responsabilidade institucional, evitando que o corporativismo ultrapasse os limites e comprometa a missão das universidades (Durham, 2005). As universidades precisam manter sua autonomia para continuar sendo centros de inovação e pensamento crítico, mas essa autonomia deve ser exercida com responsabilidade e transparência (Saviani, 2020). As soluções para esse dilema não são simples, mas algumas direções podem ser apontadas. Em primeiro lugar, é necessário que os gestores universitários estejam atentos às di