UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS RAFAEL JOSÉ MARTINS PARA ALÉM DAS PRISÕES: ESTUDO SOBRE O TRABALHO DOS AGENTES DE SEGURANÇA PENITENCIÁRIA DO CENTRO DE PROGRESSÃO PENITENCIÁRIA DE JARDINÓPOLIS FRANCA 2020 RAFAEL JOSÉ MARTINS PARA ALÉM DAS PRISÕES: ESTUDO SOBRE O TRABALHO DOS AGENTES DE SEGURANÇA PENITENCIÁRIA DO CENTRO DE PROGRESSÃO PENITENCIÁRIA DE JARDINÓPOLIS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré- requisito para obtenção do Título de Mestre em Serviço Social, Área de Concentração: Serviço social: trabalho e sociedade. Linha de Pesquisa: Mundo do Trabalho e Serviço Social Orientadora: Profª. Drª. Neide Aparecida de Souza Lehfeld. FRANCA 2020 M386a Martins, Rafael José Para além das prisões : estudo sobre o trabalho dos agentes de segurança penitenciária do Centro de Progressão Penitenciária de Jardinópolis / Rafael José Martins. -- Franca, 2020 128 f. : tabs., fotos Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientadora: Neide Aparecida de Souza Lehfeld 1. Serviço Social. 2. Sistema Prisional. 3. Trabalho. 4. Agente de Segurança Penitenciária. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. RAFAEL JOSÉ MARTINS PARA ALÉM DAS PRISÕES: ESTUDO SOBRE O TRABALHO DOS AGENTES DE SEGURANÇA PENITENCIÁRIA DO CENTRO DE PROGRESSÃO PENITENCIÁRIA DE JARDINÓPOLIS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Paulista – “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Campus de Franca/SP como pré-requisito para obtenção do título de Mestre em Serviço Social. Área de concentração: Serviço Social: Trabalho e Sociedade. Linha de Pesquisa: Mundo do Trabalho e Serviço Social BANCA EXAMINADORA Presidente: __________________________________________________ Profª. Drª. Neide Aparecida de Souza Lehfeld 1ª Examinadora: ___________________________________________________ Profª. Drª. Cirlene Aparecida Hilário da Silva Oliveira 2ª Examinadora: ___________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo dos Reis Silveira Franca, ____ de ____________ de 2020. Dedico este trabalho à minha mãe, Aparecida, que com seu exemplo de vida, de força, garra, persistência, luta, atenção, dedicação e amor à família possibilitou que me tornasse quem sou, a acreditar em dias melhores e jamais desistir. Ao meu pai, João, in memorian, que orgulhoso de mim me olharia com seus olhos marejados e seu abraço longo me transmitiria o calor de seu amor. À minha avó, Agda, in memorian, que me ensinou a ser forte e amoroso, que a vida é cheia de lutas, mas que cada dia tem sua alegria e contentamento, e a valorizar a simplicidade. Aos meus irmãos e irmãs, Rosângela, Renata, Regison e aos meus sobrinhos e sobrinhas. Cada um contribuiu imensamente para a construção da pessoa que sou. Ao meu irmão Rogério, que há mais de uma década trabalha como agente de segurança penitenciária. Sua cooperação foi essencial para o sucesso desse trabalho. Ao meu amigo, irmão, Anderson (Der), in memorian, pelos mais de vinte anos de amizade, cumplicidade, apoio, por compartilhar sua vida, seus sonhos e seu amor fraternal. Às minhas filhas caninas, Shadow, Dafiny e Naomi, in memorian, presentes que recebi do Eterno e que tornaram minha existência cheia de amor, alegrias e aprendizados valiosos. Saudade eterna. Dedico também essa pesquisa a todos os trabalhadores do sistema prisional, principalmente a todos os agentes de segurança penitenciária / polícia penal, que diariamente arriscam suas vidas no cumprimento de seu dever profissional. AGRADECIMENTOS Percorrer a trajetória da vida, com seus prazeres e dores, torna-se uma aventura aprazível graças à participação, colaboração de pessoas que se dedicam a contribuir para nossa alegria e a nos ajudar a enxergar a beleza da vida. A essas pessoas sou imensamente grato. À Profª Neide Lehfeld, por ter acreditado em minha competência para a realização desse trabalho e por ter aceitado esse desafio. Suas orientações foram imprescindíveis para o sucesso da pesquisa e sua experiência, calma e cuidado ao transmitir seu conhecimento foi de valor incomensurável. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, que através do Programa de Demanda Social concedeu bolsa de auxílio financeiro para o pesquisador. Aos meus amigos e amigas, conexões de amor e alma que a vida me presenteou e que fazem minha existência repleta de alegrias: Ricardo Paziani, Marcus Vinícius, Livia Cezillo, Daniel Maso, João Paulo, Vinícius Santana, Arthur Liboni, Rafael Silva, Vitor Túlio, Lucas Lino, Rogério Duarte, Adriana Guimarães e Pedro Melloni. À amiga Anabella Pavão, que além de me presentear com sua amizade há mais de uma década mostrou-se disponível e solícita a me ajudar a descortinar os caminhos da pós-graduação, assim como o grande amigo Maicow Walhers. A colaboração de vocês foi de grande valor. Aos amigos, amigas e companheiros do mestrado, em especial a querida amiga Maira Franciane, com quem compartilhei as alegrias e dificuldades da pós- graduação e da vida. Sua alegria contagiante aqueceu as manhãs frias de Franca. Foi um prazer nossas viagens e toda troca de experiências, conhecimentos e sonhos. Ao Moisés Nogueira, esposo de minha mãe, pelo cuidado e carinho. Ao querido Thiago Grellet, por toda sua colaboração. Aos agentes de segurança penitenciária / polícia penal que participaram das entrevistas, meu muito obrigado! “Não alcançamos a liberdade buscando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma consequência.” (Leon Tolstói) https://www.pensador.com/autor/leon_tolstoi/ RESUMO As sociedades, desde tempos remotos, procuram formas de solucionar o problema da criminalidade. As penas e punições buscam desencorajar a prática de delitos e o encarceramento consagrou-se como a principal penalidade nas sociedades modernas, adquirindo um viés reeducativo e ressocializador. As condições das unidades prisionais no Brasil revelam um quadro desolador de superlotação, falta de equipamentos e, principalmente, uma grande defasagem de funcionários para garantir a efetividade e segurança do trabalho. No estado de São Paulo, o sistema prisional está sob o comando da Secretaria da Administração Penitenciária, criada após o massacre do Carandiru, que expôs as mazelas das prisões. A criação da Secretaria teve como objetivo solucionar os problemas das prisões, contudo as condições de superlotação, o crescimento do poder de facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital, a política de encarceramento que torna o Brasil um dos quatro países que mais prende pessoas no mundo, impossibilitam a realização dos preceitos humanitários da pena de privação de liberdade. Nesse cenário, entra a figura dos agentes de segurança penitenciária, incumbidos de exercer um papel paradoxal: como agentes de ressocialização dos apenados e, ao mesmo tempo, como representantes da força punitiva e coercitiva do Estado. Esta pesquisa se propõe a estudar o trabalho dos agentes de segurança penitenciária do Centro de Progressão Penitenciária de Jardinópolis, São Paulo, perpassando pelo histórico das penas e das punições, assim como do surgimento das prisões e penitenciárias, para analisar os rebatimentos que o sistema prisional tem sobre a vida desses trabalhadores, apoiado pela metodologia de pesquisa do materialismo histórico dialético. Para a pesquisa de campo foi utilizada como técnica a entrevista semiestruturada e análise de conteúdo, proporcionando uma análise qualitativa dos dados. O resultado alcançado foi a visão de um sistema prisional em colapso, atingido por inúmeras rebeliões e que adoece não apenas as pessoas que cumprem pena privativa de liberdade, assim como os seus trabalhadores. Palavras-chave: Agente de segurança penitenciária. Sistema prisional. Trabalho. ABSTRACT Societies, since ancient times, have been looking for ways to solve the problem of crime. Penalties and punishments seek to discourage the practice of crimes and imprisonment has become the main penalty in modern societies, acquiring a reeducative and resocializing bias. The conditions of prison units in Brazil reveal a bleak picture of overcrowding, lack of equipment and, above all, a large gap in employees to ensure the effectiveness and safety of work. In the state of São Paulo, the prison system is under the command of the Secretariat of Penitentiary Administration, created after the Carandiru massacre, which exposed the problems of the prisons. The creation of the Secretariat had as objective to solve the problems of the prisons, however the conditions of overcrowding, the growth of the power of criminal factions such as the First Command of the Capital, the policy of incarceration that makes Brazil one of the four countries that arrest more people in the world, make it impossible to fulfill the humanitarian precepts of the penalty of deprivation of liberty. In this scenario, the figure of the penitentiary security agents comes in, charged with exercising a paradoxical role: as agents of resocialization of the prisoners and, at the same time, as representatives of the punitive and coercive force of the State. This research proposes to study the work of prison security officers at the Jardinópolis Penitentiary Progression Center, São Paulo, going through the history of penalties and punishments, as well as the appearance of prisons and penitentiaries, to analyze the repercussions that the prison system has on the lives of these workers, supported by the research methodology of historical dialectical materialism. For the field research, semi-structured interviews and content analysis were used as a technique, resulting in a qualitative analysis of the data. The result achieved was the vision of a collapsed prison system, hit by countless rebellions and that sickens not only the people who are under a prison sentence, as well as their workers. Keywords: Penitentiary security agents. Prison System. Work. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Panótico ...................................................................................... 46 Figura 2 - Penitenciária Oriental .................................................................. 52 Figura 3 - Penitenciária de Marília / São Paulo ............................................ 86 Figura 4 - Centro de Detenção Provisória de Taiúva / São Paulo ................ 87 Figura 5 - Mapa do Estado de São Paulo e Abrangência da SAP ............... 91 Figura 6 - Centro de Progressão Penitenciária de Jardinópolis...................100 Figura 7 - Rebelião no CPP de Jardinópolis............................................... 107 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Variação da taxa de aprisionamento de 2008 a 2014 ................. 88 Tabela 2 - Pessoas privadas de liberdade no Brasil em junho de 2017 ....... 89 Tabela 3 - Vencimentos ASPs .................................................................... 111 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ASP – Agente de Segurança Penitenciária AEVP – Agente de Escolta e Vigilância Penitenciária CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CPP – Centro de Progressão Penitenciária CR – Centro de Ressocialização DEJEP – Diária Especial por Jornada Extraordinária de Trabalho DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional EAP – Escola de Administração Penitenciária GIR – Grupo de Intervenção Rápida ILANUD – Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente INFOPEN – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias LEP – Lei de Execução Penal MEC – Ministério da Educação ONU – Organização das Nações Unidas OIT – Organização Internacional do Trabalho PCC – Primeiro Comando da Capital SAP – Secretaria da Administração Penitenciária SIFUSPESP – Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo TEC – Tribunal de Contas do Estado UNESP – Universidade Estadual Paulista USP – Universidade de São Paulo SUMÁRIO INTRODUÇÃO E METODOLOGIA ........................................................................... 14 CAPÍTULO 1 HISTÓRIA DAS PENAS ..................................................................... 24 1.1 As penas na Antiguidade .................................................................................. 25 1.2 As legislações na Idade Média ......................................................................... 28 1.3 A igreja e a privação de liberdade ................................................................... 33 CAPÍTULO 2 PENA PRIVATIVA DA LIBERDADE E AS PRISÕES ........................ 36 2.1 O surgimento das prisões ................................................................................ 37 2.1.1 Beccaria, um dos principais reformadores do direito penal ...................... 41 2.1.2 John Howard ................................................................................................... 41 2.1.3 Jeremy Bentham ............................................................................................ 43 CAPÍTULO 3 SISTEMAS PRESIONAIS NOS ESTADOS UNIDOS, ESPANHA, INGLATERRA E IRLANDA ...................................................................................... 49 3.1 Sistemas penitenciários nos Estados Unidos da América ............................ 50 3.1.1 Sistema pensilvânico, filadélfico ou celular ................................................ 51 3.1.2 Sistema Auburniano....................................................................................... 54 3.2 Sistemas progressivos ..................................................................................... 56 3.2.1 Sistema Valenciano ou de Montesinos ........................................................ 57 3.2.2 Sistema Inglês ou de Maconoche ................................................................. 59 3.2.3 Sistema progressivo irlandês ....................................................................... 60 CAPÍTULO 4 O SISTEMA PRISIONAL NO BRASIL PRÉ-REPÚBLICANO............ 64 4.1 As penas e prisões no Brasil ........................................................................... 65 4.2 As prisões no Brasil colônia ............................................................................ 66 4.3 Brasil Império e as prisões ............................................................................... 69 CAPÍTULO 5 AS NOVAS LEGISLAÇÕES NO BRASIL E O SISTEMA PRISIONAL .................................................................................................................................. 75 5.1 Os períodos republicanos e as ditaduras no Brasil ....................................... 76 5.2 O sistema prisional na primeira metade do século XX no Brasil .................. 76 5.3 Período da ditadura: o golpe civil-militar de 1964 .......................................... 82 5.4 A redemocratização no Brasil e os avanços na política prisional ................ 83 5.5 A Lei de Execução Penal e o Sistema Prisional Atual ................................... 85 CAPÍTULO 6 O TRABALHO NO CENTRO DE PROGRESSÃO PENITENCIÁRIA DE JARDINÓPOLIS E SEUS REBATIMENTOS SOBRE OS AGENTES DE SEGURANÇA PENITENCIÁRIA .............................................................................. 90 6.1 O Sistema Prisional no Estado de São Paulo e o cargo de Agente de Segurança Penitenciária ......................................................................................... 91 6.2 Os Perfis dos Agentes deSegurança Penitenciária ....................................... 93 6.3 O Trabalho como Agente de Segurança Penitenciária / Polícia Penal: prós e contras ..................................................................................................................... 95 6.4 O início do trabalho como Agente de Segurança Penitenciária ................... 96 6.5 O trabalho no Centro de Progressão Penitenciária de Jardinópolis .......... 100 6.5.1 A rebelião no Centro de Progressão Penitenciária de Jardinópolis ........ 107 6.5.2 Salários e dupla jornada de trabalho .......................................................... 109 6.6 Planos Profissionais Futuros ......................................................................... 114 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 117 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 120 APÊNDICES ........................................................................................................... 123 14 INTRODUÇÃO E METODOLOGIA 15 “O grau de civilização de uma sociedade pode ser medido pela maneira como tratam seus prisioneiros. ” (Dostoiévski) O sistema prisional brasileiro é permeado de preconceitos que habitam o imaginário da nossa sociedade. Histórias que são principalmente veiculadas pela “mídia tradicional” (BEATO FILHO et al., 2020, p. 285), viajam nos diálogos informais e alcançam pessoas que nunca adentraram a uma unidade prisional. Essas histórias são, não raras vezes, revestidas de uma veracidade criativa que amedrontam, suscitam indignação e satisfazem o desejo de justiçamento1, ou justiça popular (FOUCAULT, 1982, p. 45) de um povo que perdeu a crença na ressocialização das pessoas que cometeram crimes (BÖHM, 2017) e que se encontram cumprindo penas de privação da liberdade. Um fator que, seguramente, contribui para a descrença na (re) integração dos egressos das unidades prisionais é a taxa de reincidência criminal no país, que está em aproximadamente setenta por cento (70%), segundo o Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a prevenção do delito e tratamento do delinquente (ILANUD, 2006), o que sugere que o objetivo principal da pena - ressocialização do apenado - não está sendo alcançado da maneira que os legisladores almejavam. (SCARTAZZINI, BORGES, 2018). O fenômeno do justiçamento não é endêmico do nosso país. Em um estudo sobre a opinião pública em relação às punições legais nos Estados Unidos, constataram que as políticas de controle mais severas são resultado da vontade do público, retratando que os estadunidenses são punitivistas e desejam que os criminosos permaneçam presos pelo maior tempo possível. (CULLEN, FISCHER, APPLEGATE, 2000). 1 Justiçamento: Ato ou efeito de justiçar. Dicionário Michaelis. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno- portugues/busca/portugues-brasileiro/justi%C3%A7amento/. Acesso em 07 jul. 2020. 16 Na obra de Foucault (2014), as condenações deixaram de ser um espetáculo macabro público, mas a prática da punição física dos apenados, embora com redução do suplício, continua existindo em alguns países. O poder sobre o corpo, por outro lado, tampouco deixou de existir totalmente até meados do século XIX. Sem dúvida, a pena não mais se centralizava no suplício como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perda de um bem ou de um direito. Porém, castigos como trabalhos forçados ou prisão – privação pura e simples da liberdade – nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra. Consequências não tencionadas, mas inevitáveis da própria prisão? Na realidade, a prisão, nos seus dispositivos mais explícitos, sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico. (FOUCAULT, 2014, p. 20, 21, grifos nossos). O Estado atribui para si o monopólio das penas e punições, necessitando de funcionários que executem suas sentenças. Neste cenário, entra a figura dos agentes de segurança penitenciária (ASPs), integrantes da área de segurança pública, incumbidos de exercer um papel paradoxal: como agentes de ressocialização dos apenados e, ao mesmo tempo, mantê-los privados de liberdade. As funções dos ASPs, em suma, são de vigilância, manutenção de segurança, disciplina e movimentação dos sentenciados internos em presídios, segundo a Lei Complementar Nº 498, de 29 de dezembro de 1986. (SÃO PAULO, 1986). A compreensão da estrutura, em sua definição sociológica, e da dinâmica de funcionamento das unidades prisionais é uma questão que demanda o distanciamento do senso comum sobre as prisões, os apenados e os trabalhadores das penitenciárias. A produção científica concernente ao sistema prisional vem crescendo, tendo a região sudeste a maior produção de trabalhos sobre o tema. Segundo Fidalgo (et al. 2017), dentre os anos de 1987 e 2012, constam 670 trabalhos sobre o sistema prisional no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, com 49,3% do total concentrada na região sudeste. Desse montante nacional, os pesquisadores de pós- graduação em Serviço Social, mestrandos e doutorandos, produziram 40 trabalhos (6,0%) sobre o tema. Fidalgo (et al. 2017) afirma que sendo o sistema prisional um assunto que merece atenção da comunidade científica dada sua relevância para vários setores da sociedade, tais como o judiciário, a educação, a saúde, o trabalho e outros, há pouco conteúdo científico que trata desse objeto com a profundidade que ele requer. Dentre 17 as razões que podem ser listadas como possibilidades pela exígua produção acadêmica, são mencionadas as seguintes: Duas hipóteses principais justificariam esse fato: (...) isso ocorre devido à dificuldade de tratamento da questão expressa através da frágil produção de evidências sobre a organicidade, a gestão e a logística do sistema prisional, o que repercute em sistemas de informações incompletos e não confiáveis (...). A segunda hipótese está pautada na dificuldade de acesso ao campo de pesquisa e na falta de recursos específicos para esse tipo de investigação (...). (FIDALGO, 2017, p. 18). Pesquisar o campo onde se inserem os agentes de segurança penitenciária e as relações que decorrem de sua atividade profissional exige um trabalho investigativo que atenda às questões interligadas às demandas específicas do sistema prisional, das relações de poder e estrutura hierárquica funcional. O cuidado ao tratar as ligações interpessoais de trabalho, o atendimento aos reclusos, o papel do Estado e o poder paralelo inibe o agente, dificultando que sua fala torne-se espontânea e abranja com profundidade os objetivos propostos para a pesquisa. Somada a essa dificuldade está a exordial produção acadêmica sobre o assunto. O Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)2 possui um acervo virtual em seu sítio eletrônico onde constam vinte e seis obras, sendo compostas por artigos, cartilhas e revistas que tratam dos aspectos variados referentes ao sistema prisional. Estudos sobre o trabalho dos agentes de segurança penitenciária são ainda mais escassos. As bases de dados Scielo, Portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Ministério da Educação (CAPES/MEC) e outras foram pesquisadas, utilizando os descritores: agentes penitenciários, agentes de segurança penitenciária e carcereiros3. O lapso determinado foi do ano 2000 até o ano de 2020, com filtro de pesquisas em língua portuguesa e realizadas no Brasil. Para refinar as buscas, foi estabelecido como critério que as publicações deveriam contar os descritores no título ou como assunto principal. As buscas nas bases mencionadas retornaram com apenas 6 artigos cada um, que atenderam aos parâmetros da pesquisa. Em um levantamento realizado pelo 2 http://depen.gov.br/DEPEN/depen/espen/acervo-publico/acervo-digital 3 Em 2019 foi promulgada a Emenda Constitucional nº 104 que institui as polícias penais federal, estaduais e distrital, alterando as nomenclaturas agente de segurança penitenciária, agente penitenciário, carcereiro e outras. 18 Departamento de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli4, foi averiguado que havia apenas quatro produções brasileiras sobre os agentes penitenciários com enfoque na saúde mental desses profissionais. (BEZERRA; ASSIS; CONSTANTINO, 2016). A proposta de trabalho desta pesquisa é estudar os rebatimentos do trabalho no sistema prisional e os processos desencadeados por esta atividade profissional nos agentes de segurança penitenciária que atuam no Centro de Progressão Penitenciária de Jardinópolis, interior do estado São Paulo, sob administração da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP – SP). O locus da pesquisa foi determinado pelo fato deste pesquisador ter exercido atividade profissional como agente técnico de assistência à saúde – assistente social, entre os anos de 2014 e 2016, junto ao centro de ressocialização e atendimento à saúde dessa unidade prisional. Da vivência no espaço de trabalho nasceu a vontade de pesquisar essa classe de trabalhadores que sofre tantos preconceitos, assédios, precarizações e ao mesmo tempo é de suma importância para o bom funcionamento das unidades prisionais. (LOURENÇO, 2010). O Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), realizou um estudo entre os anos 2000 e 2002 em que constatou que as péssimas condições de infraestrutura das penitenciárias, o turno de trabalho de 12 horas e o estresse são fatores responsáveis pela baixa expectativa de vida dos agentes. O estudo ainda revelou que a média de vida de um agente é de 40 a 45 anos de idade e as causas das mortes advêm de uma série de problemas de saúde contraídos no exercício profissional, como diabetes, hipertensão, ganho de peso, estresse e depressão (LOURENÇO, 2010). O Jornal Laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia cita uma informação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que classificou a profissão de agente penitenciário como a segunda profissão mais estressante do mundo, perdendo apenas para os trabalhadores de minas subterrâneas (ANTÃO; RIOS, 2007). Informações como essas nos levaram a pensar sobre as motivações objetivas e subjetivas que resultaram na escolha dessa profissão por esses homens. O local de 4 Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswald Cruz, Rio de Janeiro. 19 trabalho, onde passarão grande parte de suas vidas, é uma unidade prisional, em que pessoas encontram-se privadas de liberdade e, enquanto profissionais incumbidos de manter os apenados em uma situação de ordem e vigia constante, acabam por compartilhar o mesmo ambiente físico. O manter uma pessoa presa pode refletir em aprisionar-se. Não pretendemos com este trabalho nos aprofundar nos conceitos filosóficos e jurídicos da liberdade, ou supressão dela, mas citaremos os que forem pertinentes para a compreensão da pesquisa. Sobre o estranhamento em relação ao trabalho, Marx declara que: Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza (Fremdheit) evidencia-se aqui [de forma] tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. (MARX, 2004, p.83) O não se reconhecer em seu trabalho, adquire no sistema prisional um significado que contrapõe o princípio ontológico da liberdade humana e, com isso, desencadeia em condições adoecedoras físicas e psíquicas sobre esses trabalhadores. Situando como se constituem as unidades prisionais, os estabelecimentos destinados ao cumprimento de penas privativas de liberdade no Estado de São Paulo estão subordinados à Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), segundo a Lei Nº 8209, de 4 de janeiro de 1993, que criou a Secretaria e o Decreto Nº 36.463, de 26 de janeiro de 1993, que a organizou. (SÃO PAULO, 1993). O Centro de Progressão Penitenciária de Jardinópolis, no interior do estado de São Paulo, local escolhido para a pesquisa, recebe o público masculino para cumprimento de pena privativa de liberdade. Nessa unidade prisional, sãos cumpridas, exclusivamente, as penas em regime semiaberto. Segundo o Portal do Governo, é o “local específico para abrigar os detentos que cumprem o final da pena. Em regime semiaberto, esta é a penúltima etapa da sentença. Depois, o preso tem liberdade condicional ou vai para o regime aberto”. (SÃO PAULO, 2001). Como características, esses centros não possuem muralhas e não há a presença dos agentes de escolta e vigilância penitenciária (AEVPs), que no regime fechado trabalham sobre as muralhas dos presídios e nas guaritas portando armamento de 20 fogo. Diferentemente dos AEVPs, os agentes de segurança penitenciária não têm permissão para o uso de armamento durante o exercício profissional. (SÃO PAULO, 2001). A metodologia da pesquisa fundamenta-se em uma série de procedimentos empregados para examinar, estudar e avaliar os métodos e técnicas da pesquisa, a fim de conduzir à captação e ao processamento de informações relativas aos objetivos da investigação (BARROS; LEHFELD, 2007). Para análise dos dados, realizamos uma pesquisa de natureza qualitativa, que segundo Minayo (1999), esse tipo de pesquisa se preocupa nas ciências sociais e humanas com a parte dos significados e dos valores dos sujeitos inseridos numa dada historicidade. Ela (a pesquisa qualitativa) se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 2001, p. 21-22). Para realização das entrevistas, contatamos alguns agentes de segurança penitenciária, via telefonemas e mensagens por meio de aplicativos de comunicação5, solicitando que participassem da pesquisa e que a divulgassem para outros agentes. A amostra da entrevista foi intencional, segundo a vontade e disponibilidade dos agentes para participação no trabalho. Para adequação do roteiro das entrevistas, foi realizado um teste piloto que se mostrou suficiente para atingir plenamente os objetivos almejados. O projeto da pesquisa, com seu roteiro de entrevista e demais documentos demandados para seu desenvolvimento, foram submetidos à Plataforma Brasil. O Comitê de Ética da Secretaria da Administração Penitenciária do estado de São Paulo recebeu cópia do projeto, enviada ao seu sítio eletrônico, e após curto espaço de tempo apresentou o aval para a realização da pesquisa. O Comitê de Ética da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, câmpus de Franca, instituição em que desenvolvemos a pesquisa, deu resposta favorável ao trabalho, após um 5 Aplicativo de comunicação chamado Whatsapp, para aparelhos smartphones. 21 lapso de seis meses de quando foi submetido à sua apreciação; tempo demasiado longo que trouxe prejuízos para o desenvolvimento da pesquisa de campo. Para analisar o trabalho dos agentes de segurança penitenciária, optamos pela realização de entrevistas semiestruturadas. Como pontua Gil (1999): Enquanto técnica de coleta de dados, a entrevista é bastante adequada para a obtenção de informações acerca do que as pessoas sabem, creem, esperam, sentem, ou desejam, pretendem fazer, fazem ou fizeram, bem como acerca das suas explicações ou razões a respeito das coisas precedentes (SELLTIZ, 1967 apud GIL, p. 117, 1999). A flexibilidade da entrevista semiestruturada possibilita maior espontaneidade à coleta de dados, fator essencial devido a própria natureza do tema investigado (a área de segurança pública tem traços da rigidez presente nas áreas militares). O pesquisador procedeu com as entrevistas levantando questões sobre o cargo de agente de segurança penitenciária, a motivação da escolha dessa profissão, as relações de trabalho, a saúde dos trabalhadores, planos futuros profissionais e outras, conforme o modelo de questionário que consta nos apêndices. As entrevistas foram gravadas digitalmente, transcritas e organizadas em tópicos para análise de conteúdo das falas: A leitura efetuada pelo analista, do conteúdo das comunicações não é, ou não é unicamente, uma leitura à letra, mas antes o realçar de um sentido que se encontra em segundo plano. Não se trata de atravessar significantes para atingir significados, à semelhança da decifração normal, mas atingir através de significantes ou de significados (manipulados), outros, “significados” de natureza psicológica, sociológica, política, histórica, etc. (BARDIN, 1977, p. 41) Buscamos estabelecer uma relação de confiança, onde os sujeitos podem sentir-se seguros para revelação de dados que poderiam comprometê-los, caso suas identidades não fossem protegidas (PADILHA et al., 2005), e optamos nomeá-los por códigos compostos pela palavra Agente (nome informal da profissão em estudo) e uma sequência numérica em ordem crescente, formada pelos algarismos indo- arábicos 1, 2, 3, 4, 5 e 6, considerando o anonimato dos entrevistados, que é uma premissa ética para a pesquisa. Segundo Gibbs (2009), a pesquisa qualitativa demanda, por razões de conveniência, que os dados sejam transcritos e a análise do material obtido reflete duas características. Em primeiro lugar, os dados são volumosos e é necessário 22 adotar métodos para lidar com isso de forma prática e coerente. Em segundo, os dados devem ser interpretados. Concordamos com Paulo Netto (2011), que diz que o método dialético exige do pesquisador múltiplas aproximações do objeto, por meio de processos analíticos, negando os aspectos imediatos encontrados na aparência, buscando atingir sua essência, na construção da síntese, que pela própria dinamicidade do objeto não determina a conclusão de uma investigação, em virtude da historicidade e das múltiplas determinações envolvidas. Os capítulos da pesquisa estão organizados de maneira que possibilitam realizar o percurso histórico das penas e punições, desde os primórdios das organizações humanas, ou sociedades, objetivando alcançar a história da pena privativa de liberdade e as prisões para então estudar os rebatimentos dessa instituição sobre os agentes de segurança penitenciária, embasados na pesquisa bibliográfica e de campo. No primeiro capítulo adentramos na história das penas, estudamos como as primeiras sociedades lidavam com os que infringiam suas regras. Em seguida, vemos a Idade Média, com o crescimento da religião cristã, através da igreja católica, ocupando lugar de destaque nas sociedades, influenciando as leis e as punições, apresentando seu modelo de prisão eclesiástica, que foi um importante modelo para o desenvolvimento das prisões. No segundo capítulo vemos como o crescimento do poder da burguesia influenciou o Estado, que se aparelhou para enfrentar quaisquer revoltas da classe proletariada contra o sistema capitalista e os privilégios das elites. As penas infamantes e os suplícios passaram a ser evitados e, com o advento dos ideais iluministas e humanitários, alguns importantes pensadores dedicaram-se sobre a questão das prisões e se propuseram a repensar o sistema prisional, sugerindo mudanças que inspiraram as modernas prisões contemporâneas. O capítulo de número três trata dos sistemas prisionais americanos, espanhol, inglês e irlandês. Alguns creditam ao sistema americano a invenção da penitenciária, sendo correto afirmar que esse e outros sistemas têm características que podem ser percebidas em alguns países, o que demonstra que esse sistema e os demais inspiraram uns aos outros, mas com algumas peculiaridades que os distinguiam. Os 23 sistemas progressivos ainda são utilizados em grande parte do mundo até o momento presente. O Brasil é o tema em que se concentra o quarto capítulo, em um primeiro momento com a história das penas e das prisões na época da invasão portuguesa e, posteriormente, as particularidades do Brasil colônia nesse contexto. O Brasil Império, com a independência do país e a promulgação de sua Carta Constitucional traz algumas novidades para a questão prisional. Importante destaque temos com a abolição da escravatura, a marginalização da população advinda da África e seus descendentes, além das consequências sofridas por esse povo. No quinto capítulo, o período da velha república, a ditadura getulista, a ditadura civil-militar e a retomada da democracia são os momentos em que se situam as transformações que ocorrem no sistema penal e prisional. Nesse capítulo apresentamos alguns dados e imagens referentes às unidades prisionais. O sexto capítulo traz as análises da pesquisa de campo, traçando um panorama do sistema prisional no estado de São Paulo. O Centro de Progressão Penitenciária de Jardinópolis, estado de São Paulo, locus da pesquisa, é apresentado e as problemáticas referentes ao trabalho dos agentes de segurança penitenciária / polícia penal são tratadas utilizando os conceitos e conteúdos estudados na pesquisa. Marx, em sua análise retrospectiva publicada em Contribuição à Crítica da Economia Política, em 1859, escreve que “o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, é o seu ser social que determina a sua consciência”. (MARX, 2008, p. 47). Para tanto, conhecer os processos históricos que culminaram na elaboração do projeto metodológico em que se insere a pena privativa de liberdade e as estruturações das prisões é necessário a fim de compreender os eventos a que estão submetidos os trabalhadores do sistema prisional e o que esses fenômenos podem desencadear em suas vidas. 24 CAPÍTULO 1 HISTÓRIA DAS PENAS 25 1.1 As penas na Antiguidade Para que possamos analisar o contexto em que se insere o trabalho dos agentes de segurança penitenciária, faz-se relevante que conheçamos o histórico das penas - transitando para as penas privativas da liberdade - e do nosso sistema prisional. O percurso evolutivo das penas e das prisões traz em sua essência um processo de embate entre a quem é dado o direito de julgar, de condenar e prender contra a quem recai a severidade da lei. Imputa-se à Niccolo Maquiavel (século XVI) a seguinte frase: “aos amigos os favores, aos inimigos a lei. Essa máxima atemporal nos remete a um valor de juízo tendencioso que, como demonstraremos no decorrer deste capítulo, permeia a história das condenações da lei. As contradições inerentes ao sistema prisional e às condenações rebatem sobre quem as faz cumprir nas unidades prisionais, trabalho delegado aos agentes de segurança penitenciária, mormente. Essas reverberações e os processos desencadeados por elas devem ser estudadas considerando os aspectos históricos, sociais, culturais e econômicos em que se constituem. O regramento disciplinar que estabelece os códigos de conduta entre as pessoas de uma sociedade, visa coibir que práticas lesivas venham a acontecer, propiciando assim o bom desenvolvimento da convivência humana. Consoante Beccaria (2016), as leis foram as responsáveis por reunir os homens que viviam isolados e guerreando entre si. Com a premissa de que haja ordem, são instituídas leis que ditam a maneira como o cidadão deve direcionar sua vida pública, privada, familiar e até mesmo sua individualidade, pois seus atos, mesmo os mais íntimos, podem ser interpretados como atentatórios à lei6. Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurança. A soma de todas essas porções de liberdades, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania na nação; e aquele que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração foi proclamado o soberano do povo. (BECCARIA, 2016, p. 22-23). 6 Importante lembrar dos Atos Institucionais da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) que minou os direitos e garantias de liberdade de expressão, suspensão de direitos políticos e restrição ao exercício de qualquer direito público ou privado. http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-historica/atos-institucionais. Acesso em: 12 maio 2020. 26 O ato de estabelecer leis trouxe alguma segurança para as pessoas que viviam sobre sua ordenação. Contudo, era necessário algum dispositivo coercitivo para sufocar os ímpetos despóticos dos indivíduos, para que a sociedade não viesse a sucumbir em razão dos que infringiam os regramentos. Durkheim (1977, p. 116 apud SÁ, 1996, p.31) declara que: “a pena consiste pois essencialmente numa reação passional, de intensidade graduada que a sociedade exerce por intermédio de um corpo constituído sobre aqueles dos seus membros que violavam certas normas de conduta”. Não há como estabelecer, ao certo, o início do sistema punitivo nas sociedades. Historicamente, conhecemos que os clãs praticavam o vínculo de sangue, que pode ser descrito como uma obrigação sagrada que incumbia um membro de um clã a matar algum membro de outro clã para vingar o assassinato de um dos seus. Todavia, essa forma de punição, porquanto desvinculada de um poder central e sem nenhum controle de sua extensão, gerava guerras infindáveis entres os clãs, as quais recaíam não só àqueles que deveriam ser punidos, mas também aos inocentes, sejam eles crianças, coisas, animais. (CORSI, 2016). No mesmo sentido de pena como equivalente à vingança, com a diferenciação de não mais se tratar de ações particulares, mas como um direito estatal, está o Código de Hamurabi (2003-1961 a. C.), com os seus 282 artigos, decretos de equidade, como a famosa expressão olho por olho, dente por dente, exemplo da lei de talião (ou lei de retaliação), que foi criada na Mesopotâmia e exige que o agressor seja punido em igual medida do sofrimento que ele causou. A presença das divindades no regramento da sociedade é marcante, creditando a autoria – do código - ao Deus solar, e Hamurabi o recebeu na mesma ocasião em que o Deus lhe entregava o cetro e o anel - símbolos do poder, (PAULA, 1963). Sociedades como a chinesa, a persa, a egípcia, e os israelitas tinham legislações com características que se assemelhavam à lei de talião. Os dez mandamentos ou leis apresentadas no livro de Êxodo, do povo hebreu, e a Lei das XII Tábuas, dos romanos são exemplos de leis que, longe de pretender realizar uma justiça igualitária, eram arbitrárias e desproporcionais, pois não puniam apenas os condenados; as penas podiam ser passadas de pais para filhos e para outros integrantes das famílias, conforme decisão dos que representavam o papel de juízes. 27 Na Grécia e Roma antiga, não existia a privação de liberdade como pena propriamente dita. As prisões cumpriam apenas o papel de guarda do réu, geralmente em condições subumanas, até o momento do serem julgados ou executados. Bitencourt (2011, p. 28-29) assevera que “a aplicação das mais atrozes penalidades, como morte, mutilação, tortura e trabalhos forçados – é um sentimento comum que se une à antiguidade mais remota”. A prisão por dívida, como penalidade civil até a quitação do débito poderia acontecer nessas sociedades, funcionando a prisão com a finalidade específica de obrigar o devedor a saldar sua dívida no menor espaço que tempo que pudesse, ou tê-la paga por terceiros. O direito germânico também não previa a prisão como pena, pois vigoravam as punições corporais e a penal capital. Sobre as penas na antiguidade, podemos considerar que: Grécia e Roma, pois, expoentes do mundo antigo, conheceram a prisão com finalidade eminentemente de custódia, para impedir que o culpado pudesse subtrair-se ao castigo. Pode-se dizer, com Garrido Guzman, que de modo algum podemos admitir nesse período da história sequer um germe da prisão como lugar de cumprimento de pena, já que o catálogo de sanções praticamente se esgotava com a morte, penas corporais e infamantes. A finalidade da prisão, portanto, restringia-se à custódia dos réus até a execução das condenações referidas. A prisão dos devedores tinha a mesma finalidade: garantir que cumprissem suas obrigações. (BITENCOURT, 2011, p. 31). Os judeus tinham em suas leis uma série de pecados para os quais a condenação deveria ser a pena capital. Uma das execuções comumente sentenciadas era o apedrejamento, com a participação ativa da população. Os apedrejamentos eram realizados em lugares públicos, para que as pessoas presenciassem a execução e temessem a prática do pecado e a consequência indelével da pena capital. No livro de Levítico7, capítulo 20, há no rol de pecados puníveis com a morte o culto a outros deuses, o adultério, a prática do sexo homossexual, o ato de amaldiçoar os pais, a prática da mediunidade e outros8. 7 A versão atual da bíblia cristã é composta por sessenta e seis livros. No primeiro testamento, pertencente ao pentateuco, encontra-se o Livro de Levíticos, que contém um rol de práticas rituais, legais e morais. 8 Em alguns países teocráticos, como Afeganistão, Arábia Saudita, algumas práticas citadas no texto são consideradas crimes, baseados nos preceitos religiosos, e passíveis da pena de morte. 28 A religião é um veículo historicamente utilizado para doutrinar pessoas. Nesse período da construção dos sistemas jurídicos, das leis e penas, o papel da obediência à religião é de grande relevância. O cristianismo, com suas leis e dogmas9, alcançou partes significativas da Europa, África e Ásia, por meio da conquista dessas terras pelos romanos. Sob o comando do imperador romano Constantino (século IV) - convertido ao cristianismo - os cristãos receberam liberdade de professar sua fé sem sofrer perseguições (FUNARI, 2002, p. 143) e a religião cresceu de modo expressivo, tornando-se a mais importante na Idade Média (século V ao século XV). 1.2 As legislações na Idade Média Na Europa Centro-Ocidental, durante o feudalismo, as unidades feudais eram praticamente autônomas e os senhores feudais eram os soberanos, cabendo aos reis um papel figurativo. Essa soberania, dada como um direito divino, concedia o direito de julgar e condenar os que viviam sob seu domínio, segundo as regras do direito consuetudinário, ou direito baseado nas tradições. Com a formação dos Estados Nacionais, que ocorreu entre os séculos XII a XV, os senhores feudais perderam sua soberania e os reis centralizaram o poder para si. Portugal foi o primeiro país da Europa Ocidental a despontar como um Estado Nacional e o rei foi coroado com a benção da grande igreja católica, que conduzirá com firmeza a vida política e o sistema jurídico de grande parte da Europa e, posteriormente, de suas colônias espalhadas pelo mundo. Durante a Idade Média, a igreja de Roma (cidade sede do poder papal) cresce em prestígio e riqueza, fundindo-se com o poder político dos países sob o seu domínio. Os que eram contrários às suas leis passaram a ser severamente punidos, tendo o tribunal da Santa Inquisição (século XIII ao XIX) como seu exemplo mais cruel de caça, tortura e morte dos que se opunham às leis do Santo Ofício. Agindo pretensamente para investigar e punir desvios de conduta e práticas de heresia, os tribunais representavam os interesses da nobreza e do alto clero que estavam preocupados com o crescimento da riqueza e representatividade da burguesia urbana. O status social dos réus era um fator determinante para o tipo de pena a que era condenado, sob o arbítrio dos governantes. Sendo o “Estado o detentor do 9 Teologia: ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível. 29 monopólio da violência” (Agente 6)10, os que estão sujeitos às suas jurisdições, e desprovidos de riquezas, não vivenciam a proteção das leis, mas a severidade das penas de um sistema jurídico tendencioso, parcial, desigual e comprometido com os interesses das classes dominantes. Finalmente, é um direito profundamente corrompido. Os delitos mais comuns dos juízes são as exações ilegais e as prevaricações. García Valdés, falando do sentimento popular a respeito da corrupção judicial na Idade Média, relata: “Assim, não é difícil ter notícia deste sentimento popular, expresso em tábuas e máximas, sobre a justiça e penas imperantes. As miniaturas da Idade Média apresentavam, com muita frequência, o juiz cobrando das partes no processo, com as duas mãos estendidas, sopesando o recebimento e com cara de inocente.” (BITENCOURT, 2011, p. 34). Para Melossi e Pavarini (2010), não há como afirmar a existência do cárcere como pena – autônoma e ordinária - em sociedades com um sistema de produção pré-capitalista, posto que no sistema socioeconômico como o feudal, a ideia de trabalho humano medido pelo tempo, e assim recompensado (trabalho assalariado), a privação do tempo não tinha um equivalente como troca pelo valor do delito. O equivalente do dano se realizava na privação dos bens considerados socialmente como detentores de valor, como a vida, a integridade física e o dinheiro. A necessidade de reprimir o agressor com castigos que se tornavam espetáculos públicos visava evitar que uma calamidade pública se instalasse na organização social, estimulada pelos efeitos do crime cometido e sem punição proporcional ao dano praticado. Nessas circunstâncias, o cárcere como pena não seria suficiente para alcançar o objetivo de causar uma inibição total dos crimes. Os autores complementam que as penas medievais têm semelhanças com a lei de talião, e os delitos são considerados como uma ofensa à Deus, e por isso não havia limites à execução das penas, pois os sofrimentos impostos aos condenados poderiam, de algum modo, antecipar e igualar os horrores da pena eterna. Foucault (2014) descreve com riqueza de detalhes a sentença recebida por Damiens, que fora condenado à morte, na cidade de Paris, França, no ano de 1757. Essa pena deveria ser precedida por um ritual de tortura, que se alongou por horas e 10 As falas dos entrevistados, colhidas na pesquisa de campo estão dispostas por todo o trabalho, contemplando o propósito de demonstrar a percepção dos sujeitos da pesquisa sobre o sistema prisional, seguindo as normas expressas na ABNT. Disponível em: https://normas- abnt.espm.br/index.php?title=Transcri%C3%A7%C3%A3o_de_entrevistas. Acesso em: 14 maio 2020. 30 horas de mutilações e humilhações ocorridas em praça pública na presença da multidão. O desfecho desse ritual nefasto foi jogar o corpo esquartejado do homem, ainda vivo, na fogueira. (FOUCAULT, 2014, p. 11). Suplícios não devem ser considerados como atos causados por rompantes coléricos da vítima ou do Estado contra o condenado. O suplício é composto por técnicas voltadas a fazer sofrer, calculadas para causar angústias e dores pelo tempo determinado, injuriando o corpo em locais precisos, prolongando a agonia da morte, sem que esta aconteça de maneira precipitada. A busca pela equivalência da dor causada pelo criminoso à vítima se constitui na prática do suplício, mas não se limita a reproduzir com fidelidade o crime praticado. O sofrimento causado ao criminoso objetiva que este se arrependa dos seus atos repreensíveis e que na dor que antecederá seu encontro com a morte, torne-se merecedor do perdão, diante de Deus. A variação do nível social a que pertencem as vítimas e os condenados escancaram o desequilíbrio da balança da justiça. As condenações consideradas de grande humilhação não eram destinadas a pessoas de classe social superior, e os testemunhos de um vagabundo era anulado, enquanto que o de uma pessoa de consideração era reforçado. (FOUCAULT, 2014). Nos regimes monárquicos do século XVIII, as decisões sobre as punições impostas aos cidadãos não passavam pelo crivo da imparcialidade e igualdade da justiça. Os interesses dos reis e das altas classes do clero delimitavam o que era crime, pecado e quais as punições equivalentes para cada ato considerado passível de penalização. No século XVIII as prisões eram em geral subterrâneas, embutidas nos castelos, imundas, inóspitas, insalubres, mefíticas e geradoras da chamada “febre das prisões”. Os presos nelas eram jogados e relegados ao abandono, acabando muitos por morrerem esquecidos de todos, uma vez que a prisão não era generalizadamente um instrumento de pena, havia muitas segregações arbitrárias, sem nenhuma culpa formada, simplesmente por animosidades, antipatias políticas, autocratismo e prepotência da nobreza e dos apaniguados políticos. O poder dos reis era absoluto. O rei era o estado e era a lei. Ele e seus asseclas mandavam matar, prender, segregar, suplicar, enterrar para sempre nos subterrâneos trevosos das prisões, confiscar bens e desterrar. (GOMES NETO, 2000, p. 47). Essas leis exortavam a sociedade em que se inseriam para que seguissem os mandamentos de seus líderes, prevendo punições, não raramente com penas capitais e suplícios bárbaros para os seus violadores. Dentre as penas elencadas, a 31 prisão, ou privação da liberdade, não é tida como uma punição em si, mas como um meio facilitador para garantir o cumprimento de sentença final. Mantinham presos os suspeitos ou condenados por crimes para que aguardassem a data definida para a realização da sentença, que geralmente era de castigos físicos, o que poderia incluir exposição e humilhação pública. Sabidamente, é mais fácil punir alguém que já se encontra preso que deixá-lo livre, correndo o risco quase certo de fuga. O contexto percebido por Marx é o da prisão criada e recriada, multiplicada e articulada com a economia capitalista, o Estado burguês, a Igreja reformada e em reforma. Nessas condições as instituições carcerárias visavam, sobretudo, punir, guardar, assistir, disciplinar e encaminhar os recalcitrantes à forca ou ao trabalho forçado. (SÁ, 1996, p. 15). Na segunda metade do século XVIII, os protestos contra os suplícios adquirem volume entre os filósofos e teóricos do direito, juristas, magistrados, parlamentares e entre o povo que percebeu que esses espetáculos macabros eram revoltantes e não deveriam ser tolerados. “Que as penas sejam moderadas e proporcionais aos delitos, que a de morte só seja imputada contra os culpados assassinos, e sejam abolidos os suplícios que revoltem a humanidade”. (SELLIGMAN, 1901; DESJARDIN, 1883 apud FOUCAULT, 2014). A população não assistia inerte às condenações e consequentes punições. Havia revoltas, insurreições populares como no caso de Pierre Du Fort, um assassino que fora condenado à forca e que ofereceu resistência ao cumprimento da sentença: Vendo isso o carrasco lhe cobriu o rosto com seu gibão e lhe batia por baixo do joelho e sobre a barriga. Vendo o povo que ele o fazia sofrer demais e pensando mesmo que o degolava com uma baioneta – tomando de compaixão pelo paciente e de fúria contra o carrasco, jogou pedras contra ele; enquanto isso abriu as duas escadas e jogou a vítima para baixo, saltando-lhe sobre os ombros e pisando-a enquanto a mulher do carrasco o puxava pelos pés por baixo da forca. Fizeram-lhe sair sangue a boca. Mas a chuva de pedras contra ele aumentou, houve até algumas que atingiram o enforcado na testa, o que obrigou o carrasco a subir a escada, de onde desceu com tanta precipitação que caiu no meio dela, e deu com a cabeça no chão. E a multidão se lançou sobre ele. Esse se levantou com uma baioneta na mão, ameaçando matar quem se aproximasse; mas depois de cair e se levantar várias vezes, apanhou muito do povo que o emporcalhou e o afogou no riacho, arrastando-o com grande paixão e fúria até a universidade e de lá até o cemitério dos Cordeliers. Seu criado, igualmente surrado, com a cabeça e o corpo machucados foi levado ao hospital onde morreu alguns dias depois. Enquanto alguns forasteiros e desconhecidos subiram a escada e cortaram a corda do enforcado, enquanto outros o recebiam por baixo depois de ter ficado pendurado o tempo maior que um grande misere. E ao mesmo tempo, quebraram a forca, e o povo faz em pedaços a escada do carrasco. As crianças atiraram a forca com grande precipitação no ródamo. (Quanto ao 32 suplicado, foi transportado para um cemitério) para não ser apanhado pela justiça e de lá para a igreja de Saint Antoine. (O arcebispo lhe concedeu o perdão, mandou transportá-lo para o hospital e recomendou aos oficiais que tomassem com ele um cuidado especial. Enfim, acrescenta o redator da ata.) Mandamos fazer uma roupa nova, dois pares de meia, sapatos, vestimo-lo de novo da cabeça aos pés. Os nossos confrades lhe deram camisas, calções, luvas e uma peruca. (FOUCAULT, 2014, p. 62-63). Maior comoção ocorria se a condenação fosse considera injusta, como sentenciar à morte um homem do povo, quando uma pessoa de classe social superior teria recebido uma pena relativamente mais leve. Delitos frequentes e considerados pouco graves, como o furto doméstico e para o qual a pena estabelecida era a morte, causava grande agitação na população. Os criados eram numerosos e poderiam ser acusados injustamente por seus senhores, e com a dificuldade de provar sua inocência, acabariam enforcados. (FOUCAULT, 2014). O autor Jean Jacques Rosseau (1754 apud SATURNINO; SILVA, 2015), classifica a propriedade privada como a grande responsável pela desigualdade social e que a posse privada da terra desencadeou profundos problemas sociais. O ato de tomar para si uma porção da terra e a aceitação dessa posse pelas demais pessoas foi o fator que propiciou o início das desigualdades sociais, da acumulação de riquezas, a violência, os roubos, a usurpação e outros males. A crescente miséria do povo e as injustiças sociais eclodiram na Revolução Francesa e suas consequentes reformas institucionais, como a abolição da barbárie dos suplícios, da teatralidade da execução das penas e obsessão pela vingança pública, deixando como herança a pena de prisão, como estabelecido no Código Penal Francês, em 1791, e desde então a pena privativa da liberdade disseminou-se por todo o mundo. (GOMES NETO, 2000, p. 49). Não é possível afirmar que foi uma transição simultânea em todos os países, na adesão ao sistema prisional, sendo que o estágio de desenvolvimento jurídico, econômico e social de cada povo é uma condição imperativa sobre a maneira como legislam e imputam suas penas, o que possibilita pensar que a punição é construída sobre contextos socioculturais. 33 1.3 A igreja e a privação de liberdade A igreja católica, com a tarefa autoincumbida de conduzir os homens à salvação, não podia tolerar que seu corpo eclesiástico se desviasse do seu rígido código de conduta, posto que o exemplo de moral e obediência deveria partir do clero. Para evitar a prática do pecado pelos seus, a igreja, ainda na Idade Média, inovou ao castigar seus membros com o aprisionamento em celas específicas para este fim, localizadas em seus mosteiros. Sobre essa nova modalidade de punição, Melossi e Pavarini (2010) dizem o seguinte: As primeiras e embrionárias formas de sanções utilizadas pela igreja foram impostas aos clérigos que haviam delinquido de alguma forma. Aliás, não se pode falar propriamente em delitos, pois se tratavam de infrações religiosas resultantes de desafios à autoridade eclesiástica ou que despertavam certo alarme social na comunidade religiosa. Esta natureza necessariamente híbrida, ao menos num primeiro momento, explica bem porque estas ações provocaram, por parte da autoridade, uma resposta do tipo religioso- sacramental. Entende-se também porque se inspirava no rito da confissão e da penitência, acompanhando-a, devido à índole específica dela, outro elemento: a forma pública. Assim nasceu o castigo de cumprir a penitência em uma cela, até que o culpado se emendasse. (MELOSSI; PAVARINI, 2010, p. 21). Esse tipo de prisão não pode ser considerado como uma pena abrangente, pois só se aplicava em casos específicos e apenas para alguns integrantes do clero. A reclusão nas celas incluía a fustigação corporal, a escuridão e o jejum, que juntos com o isolamento, a oração, o arrependimento e a contrição tinham melhores efeitos para a correção dos desviantes que a força da coação mecânica. (BITENCOURT, 2011). Importante considerar que os altos cargos do clero eram destinados às pessoas oriundas das classes sociais mais abastadas, das famílias pertencentes à nobreza. Os interesses políticos e econômicos da igreja, que tornou-se proprietária de grandes porções de terras na Europa, não permitia grandes ascensões na vida eclesiásticas, pois ter um papa vindo do povo e trabalhando para os interesses dos mais pobres contrariaria os desígnios das classes dominantes e poderia ruir suas estruturas. As punições mais severas recaíam sobre os membros advindos de classes pobres, contudo, diferentemente das punições da sociedade secular, no direito 34 canônico o objetivo era a reabilitação do recluso, induzi-lo ao arrependimento e com plena compreensão da gravidade de seus pecados. É considerável a contribuição do direito canônico para o surgimento da prisão moderna, voltada para a recuperação da pessoa em conflito com a lei. Segundo Bitencourt (2011): Sobre a influência do direito canônico nos princípios que orientam a prisão moderna, afirma-se que as ideias de fraternidade, redenção e caridade da Igreja foram transladadas ao direito punitivo, procurando corrigir e reabilitar o delinquente. Os mais entusiastas manifestam que, nesse sentido, as conquistas alcançadas em plena Idade Média não conseguiram solidificar-se, ainda hoje, de forma definitiva, no direito secular. Entre elas, menciona-se a individualização da pena conforme o caráter e o temperamento do réu. (...) A influência sobre o direito comum se exerce – segundo Schiappoli – em duas direções. De um lado, resulta incontestável que a penitência, que implica o encarceramento durante determinado tempo, a fim de compurgar a falta, passa ao direito secular logo convertida na sanção privativa de liberdade repressiva dos delitos comuns. Por outro lado, é igualmente exato que a pena não perde por isso o seu sentido vindicante. A pena ou penitência tende a reconciliar o pecador com a divindade, pretende despertar o arrependimento no ânimo do culpado, nem por isso deixando de ser expiação e castigo. Este último conceito proporciona uma ideia exata da razão pela qual os penitenciaristas clássicos, bem como as ideias que inspiraram os primeiros sistemas penitenciários, nunca renunciaram ao sentido expiatório da pena, considerando que não era incompatível com os objetivos de reabilitação ou reforma. As inspirações da privação de liberdade apresentadas pela igreja não podem ser confundidas com as que a sociedade se valeram para criação dos presídios. Na privação de liberdade do direito canônico, o tempo de reclusão deveria ser o necessário para que se produzisse o arrependimento. Não havia trabalho carcerário para garantir o cumprimento da pena, sendo que esta não se relacionava à periculosidade do réu, mas sim à gravidade da falta, do pecado cometido contra Deus e seus representantes na terra. A nova forma de tratar os delitos, baseada no ordenamento legal católico, correspondeu às necessidades de um período histórico em que a pobreza crescia entre a população, e os números de crimes aumentava substancialmente, inviabilizando as penas capitais e os suplícios, que não mais surtiam o efeito de amedrontar e acalmar as tensões sociais. A punição não mais se realizava no corpo e na dor. O objetivo da pena passou a ser a expiação da alma, como um castigo atuante sobre o coração, o intelecto, a vontade e as disposições do apenado. (FOUCAULT, 2014). 35 O tormento da alma, da mente dos condenados, aprisionados em condições deploráveis, sem direito a julgamentos justos, desprovidos de conhecimento sobre as leis que pesavam sobre eles, esquecidos pela sociedade e negligenciados pelo Estado, não diminuiu a crueldade das punições, mas inegavelmente mudou seu foco, seguindo os interesses das classes dominantes que longe de propiciar condições dignas de vida para seus cidadãos, os deixam viver afundados na miséria e fome. Aos governantes não interessava diminuir as desigualdades sociais, mas sim dispersar qualquer movimento contrário à sua hegemonia, culpabilizando os miseráveis, que pela situação de extrema pobreza, tentavam garantir sua subsistência da maneira que lhes cabia, lutando contra todo um sistema político, jurídico e religioso que os oprimiam e manipulavam, levando-os a crer que realmente eram merecedores dos males que os advinham, que a miséria era uma resposta dos céus pelos seus muitos pecados e, portanto, necessitavam ser reabilitados. As leis, escritas com vocabulário rebuscado e termos em latim, acessível apenas às camadas abastadas da sociedade e do clero, eram incompreensíveis e desconhecidas, em grande parte, pelo povo. Para Beccaria, este é um fator muito relevante para a prática de crimes pela população, e ele declara que: A humanidade gemia sob o jugo da implacável superstição; a avareza e a ambição de um pequeno número de homens poderosos inundavam de sangue humano os palácios dos grandes e os tronos dos reis. Eram traições secretas e morticínios públicos. O povo só encontrava na nobreza opressores e tiranos; e os ministros do Evangelho, manchados na carnificina e as mãos ainda sangrentas, ousavam oferecer aos olhos do povo um Deus de misericórdia e de paz. Os que se levantam contra a pretensa corrupção do grande século em que vivemos não acharão ao menos que esse quadro abominável possa convir- lhes. (BECCARIA, 2016, p. 29). A prisão e o aprisionamento, segundo a visão de Marx, citado por Sá (1996), é uma das consequências resultantes da expropriação e expulsão dos camponeses de suas terras, criada e recriada, multiplicada e articulada com a economia capitalista, o Estado Burguês, a Igreja reformada, para punir, disciplinar os setores da população marginal ao processo econômico capitalista. 36 CAPÍTULO 2 PENA PRIVATIVA DA LIBERDADE E AS PRISÕES 37 2.1 O surgimento das prisões Com o crescimento e fortalecimento econômico da burguesia, os maquinários, as matérias-primas, as indústrias tornaram-se bens de produção de riqueza, assim como a propriedade de terra, que ocupou esse status, quase que exclusivamente, por longo período. Para proteção desses bens, as classes dominantes, por meio do seu representante máximo, o Estado, tratou de providenciar o aparelhamento das instituições estatais a fim de coibir qualquer ato atentatório contra a propriedade privada e a manutenção do seus status quo - que inclui a repressão contra os que se recusavam a trabalhar em condições deploráveis e se tornavam vadios aos olhos da lei – utilizando, ainda, de conceitos culturais, como a proteção da moral. Sendo o Estado o agente que rege a sociedade politicamente organizada, sua direção é conduzida por aqueles que comandam os processos econômicos da sociedade, através de seus meios de produção. (LYRA FILHO, 1982). Considerando a utilidade do sistema penitenciário - que começa a ser instalado na Europa no século XVIII - ao capitalismo, a análise de Melossi e Pavarini (1985) determina que: [...] a prisão surge quando se estabelecem as casas de correção holandesas e inglesas, cuja origem não se explica pela existência de um propósito mais ou menos humanitário e idealista, mas pela necessidade que existia de possuir um instrumento que permitisse não tanto a reforma ou reabilitação do delinquente, mas a sua submissão ao regime dominante (capitalismo). Serviu também como meio de controle dos salários, permitindo, por outro lado, que mediante efeito preventivo-geral da prisão se pudesse convencer os que não cometeram nenhum delito de que deviam aceitar a hegemonia da classe proprietária dos bens de produção. Já não se trata de dizer que a correção sirva para alcançar uma ideia metafísica e difusa de liberdade, mas que procura disciplinar um setor da força de trabalho para introduzi-lo coativamente no mundo da produção manufatureira, tornando o trabalhador mais dócil e menos provido de conhecimentos, impedindo, dessa forma, que se possa apresentar alguma resistência. (MELOSSI; PAVARINI, 1985 apud BITENCOURT, 2011, p. 44). As casas de correção, segundo o propósito da burguesia, serviam como meio de docilizar o extenso contingente de pessoas desempregadas, camponeses que perderam suas terras e que desprovidos de meios de garantir sua subsistência migraram para as zonas urbanas em busca de condições de sobrevivência. Esses camponeses, que outrora detinham alguma liberdade sobre seu trabalho, agora 38 compunham o que Marx (2009), denominou como exército industrial de reserva, necessitando se submeter às duras condições de trabalho do período da Revolução Industrial, recebendo salários módicos, ou correr o de risco de ser aprisionado por vadiagem, segundo uma lógica de prevenção do crime. A prisão nunca será – vista desde a sua origem, nas casas de correção holandesas e inglesas – mais do que uma instituição subalterna à fábrica, assim como a família mononuclear, a escola, o hospital, o quartel e o manicômio, que servirão para garantir a produção, a educação e a reprodução da força de trabalho de que o capital necessite. O segredo das workhouses ou das rasphuis11 está na representação em termos ideais da concepção burguesa da vida e da sociedade, em preparar os homens, principalmente os pobres, os não proprietários, para que aceitem uma ordem e uma disciplina que os faça dóceis instrumentos de exploração. (BITENCOURT, 2011, p. 45-46). A perseguição e até mesmo criminalização dos que não se dispunham a trabalhar, com amparo na lei de 1601, na Inglaterra, facultava ao juiz ordenar a prisão dos ociosos que fossem aptos para o trabalho. As casas de correções do período elisabetano, empenhadas em dobrar a resistência da força de trabalho e fazer com que os proletariados aceitassem as condições que lhes fossem impostas, visando a obtenção do máximo grau de mais-valia possível, foram os primeiros exemplos de detenção laica sem a finalidade de custódia, e sua função social e organização interna preconizam o modelo carcerário do século XIX. (MELOSSI; PAVARINI, 2010). Para Foucault (2014), o ano de 1840 pode ser considerado com o ano em que se completa a formação do sistema carcerário, com a abertura oficial do Mettray, uma colônia e também uma prisão onde eram detidos os jovens delinquentes e alunos internos retidos a título da correção paterna, situada na vila de Mettray, na cidade de Tours, na França. Mettray foi a mais famosa das instituições que constituiu o arquipélago carcerário, composto, nesse momento, por seções agrícolas das casas centrais, as colônias penitenciárias e outras. O autor descreve as rotinas impostas nas colônias, como Mettray, ao que classifica como adestramento: Ao entrar na colônia, a criança é submetida a uma espécie de interrogatório para se ter uma ideia de sua origem, posição de sua família, a falta que a levou diante dos tribunais e todos os delitos que compõem sua curta e muitas 11 Casas de trabalho forçado. 39 vezes bem triste existência. Essas informações são postas num quadro onde se anota sucessivamente tudo o que se refere a cada colono, sua estada na colônia e sua situação depois que sai. (FOUCAULT, 2014, p. 290). Para as crianças e adolescentes não havia um sistema de proteção. Os órfãos, pobres, os que perambulavam pelas ruas poderiam ser apreendidos, levados aos tribunais e condenados à privação da liberdade em alguma unidade prisional. A criminalização da pobreza era recorrente e ao cair nas condenações do sistema jurídico, a vida da criança, do jovem ou do adulto, de ambos os sexos, ficava com a marca indelével que a prisão deixa no corpo e na mente dos condenados. Os castigos físicos foram diminuídos em sua intensidade e frequência, quando comparados com os suplícios de outrora, contudo não foram abandonados totalmente. “A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos graves é punir muito severamente as mais leves faltas; em Mettray se reprime qualquer palavra inútil.” (FOUCAULT, 2014, p. 290). Os penitenciários do Santo ofício da Inquisição foram a inspiração para que a Holanda, em 1595, construísse a primeira penitenciária masculina, e dois anos após, construiu a uma segunda penitenciária, agora destinada ao público feminino, ambas em Amsterdã, com a finalidade de abrigar pessoas em cumprimento de pena privativa da liberdade. Seguidas a elas, temos: [...] de Bremem (1609), Lubeque (1613), Hamburgo (1622), e mais algumas poucas no século XVII. No século XVIII, duas penitenciárias se destacaram: a penitenciária papal de São Miguel, construída em 1703, que se destinava mais ao confinamento celular e à ascese12 do que ao trabalho, e a penitenciária de Gant, na Bélgica, construída em 1775, que se preocupava mais com o trabalho e com a automanutenção dos presos, tanto que usavam o slogan: o trabalho é um imperativo econômico e quem não trabalha não come. (GOMES NETO, 2000. p. 47). A substituição dos suplícios, o espetáculo das mortes em praça pública, pela pena de prisão não ocorreu por compaixão das autoridades para com os condenados, ou apenas como resposta para o descontentamento da população que cansada de ver jorrar o sangue dos seus, considerando que poderiam ser os próximos a pisar no 12 Ascese – exercício prático realizados pelos reclusos para realização da virtude e reintegração ao convívio social. (GOMES NETO, 2000, p. 47). Ascese – atividade espiritual de devoção, mortificação e meditação de uma dada religião. (SÁ, 1996, p. 27). 40 cadafalso, se rebelavam contra as barbaridades impostas pelos juízes. As execuções causavam um resultado controverso na população; os que assumiam publicamente seus crimes e aceitavam sua condenação eram elevados a heróis ou santos pelo povo, pois estes se enxergavam naqueles, compartilhavam de suas histórias, viviam seus sofrimentos cotidianos. A proximidade, a quase empatia para os condenados tornava-se um perigo político, e além desse fator, as penas capitais não causavam diminuição na prática de crimes; “os reformadores do século XVIII e XIX não esquecerão que as execuções, no fim das contas, simplesmente não assustavam o povo. Um de seus primeiros apelos foi exigir a suspensão delas.” (FOUCAULT, 2014, p. 64). A pena de privação da liberdade não extinguiu por completo as demais penalidades, nem os suplícios e as penas capitais eram as mais proferidas pelos juízes. O fato é que os encarceramentos se tornaram o maior temor dos apenados; a dor causada pelas feridas dos açoites era passageira, contudo a prisão, muito além de tirar a liberdade dos condenados, ela se apropria dos seus dias de vida, aflige sua mente, vigia e puni seus atos constantemente, despersonaliza o indivíduo e subtrai qualquer possibilidade de privacidade. Foucault (2014, p. 223), declara que “a prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca certamente um momento importante na história da justiça penal: seu acesso à humanidade: A prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos códigos. A forma-prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais. Ela se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação, registro e anotações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, por meio de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou-se a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como a pena por excelência. (FOUCAULT, 2014, p. 223). A defesa das liberdades dos indivíduos, os princípios de dignidade do homem, ideais defendidos por juristas, filósofos e moralistas na segunda metade do século XVIII na Europa e as correntes iluministas e humanitárias, representadas por Voltaire, Montesquieu, Rousseau impulsionaram as mudanças ocorridas na legislação criminal. 41 A Revolução Francesa, o clímax da efervescência desse movimento de novas ideias, demandou uma questão que se fez urgente: a reforma do sistema punitivo. (BITENCOURT, 2011). 2.1.1 Beccaria, um dos principais reformadores do direito penal Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, foi uma das grandes personalidades que formulou os postulados que modificaram os processos criminais de sua época. É considerado um antecedente dos delineamentos da defesa social, com sua recomendação de que é melhor prevenir o crime do que castigá-lo. Muitas das reformas propostas por Beccaria já haviam sido sugeridas por outros pensadores, mas Beccaria, realizando uma associação entre o contratualismo e o utilitarismo, constrói o primeiro delineamento consistente e lógico sobre os aspectos penológicos. Sua obra, com sentido político e jurídico, aspirava à reforma do direito penal. (BITENCOURT, 2011). A ressocialização do infrator é um princípio defendido por Beccaria, que não considera correto que as penalidades tenham caráter vingativo. Embora não tenha renunciado à perspectiva punitiva da prisão, expôs ideias que contribuíram para a humanização e racionalização da pena privativa da liberdade. Defendeu que pessoas já condenadas deveriam cumprir a pena em lugares diferentes das pessoas que ainda aguardavam julgamento. "É paradoxal falar da ressocialização como objetivo da pena privativa de liberdade se não houver o controle do poder punitivo e a constante tentativa de humanizar a justiça e a pena.” (BITENCOURT, 2011. p. 57). O código penal da França, de 1791, adotou quase inteiramente as ideias propostas por Beccaria, em seu livro Dos Delitos e das Penas. A pena privativa de liberdade substituiu em grande parte as penas capitais, designada para os crimes considerados mais graves. (FOUCAULT, 2014). 2.1.2 John Howard O britânico John Howard conheceu as agruras das prisões no ano de 1755, quando viajava para Portugal a fim de prestar socorro às vítimas do terremoto que assolou o país, principalmente a cidade de Lisboa. O navio em que viajava foi pilhado 42 por piratas franceses, e sendo levado à França, foi lançado numa prisão subterrânea no Castelo de Brest e, posteriormente, na prisão de Morlaix. Quando conseguiu sua libertação, devido sua habilidade no trato com os carcereiros, retornou para a Inglaterra e lá alcançou o posto de xerife de Bedford, o que o aproximou e o levou a apaixonar-se pelo pela problemática penitenciária e o tema das prisões. No ano de 1773 foi nomeado alcaide do Condado de Bedford, quando pode inteirar-se e constatar a situação grave em que se encontram as prisões; não se limitando à Inglaterra, viajou por toda Europa investigando os diferentes sistemas penitenciários. Em 1777, lançou, às próprias expensas, seu livro The state of prisions in England and wales with preliminar observations and an account of some foreig prisions and hospitals (O estado as prisões na Inglaterra e País de Gales com observações preliminares e relato sobre algumas prisões e hospitais estrangeiros). Seu livro foi um sucesso, caracterizado pelo profundo sentido humanitário e grande entusiasmo em relação à reforma penal. (BITENCOURT, 2011; GOMES NETO, 2000). Howard, com seu grande senso humanitário, não aceitava que as condições deploráveis e o sofrimento desumano das prisões fossem indissociáveis da pena privativa de liberdade, embora o tema da reforma do sistema penitenciário não fizesse parte do interesse prioritário da população, nem dos governantes, assim como nos dias atuais. A questão do sistema prisional, ainda hoje, não atinge o grande público, ficando relegada aos estudiosos do tema e percebida por quem está intimamente ligado a ela, seja cumprindo pena de privação da liberdade ou trabalhando no sistema. De acordo com a análise marxista sobre a função da prisão, considera-se que Howard encontrou as prisões inglesas em péssimas condições, porque o desenvolvimento econômico, que já havia alcançado a Inglaterra, fazia desnecessário que a prisão cumprisse uma finalidade econômica e, portanto, indiretamente socializante, devendo circunscrever-se a uma função punitiva e terrorífica. Em razão do desenvolvimento econômico e das condições do mercado de trabalho, a prisão não precisava cumprir a missão de produzir e formar bons proletários, devendo servir somente como instrumento de intimidação e controle político. (BITENCOURT, 2011, p. 59-60). Apesar de Howard ter uma visão humanitária sobre o papel das prisões na sociedade, ele era favorável ao trabalho obrigatório, inclusive penoso, pois considerava que o trabalho era indispensável para a regeneração moral do apenado. 43 Por ser religioso, calvinista, acreditava que a religião era o instrumento certo para a transformação das pessoas em conflito com a lei. Pensou, ainda, na importância do pessoal que trabalhava nos presídios, considerando que para o cargo de carcereiros fossem admitidos apenas homens honrados e com elevado senso humanitário. O autor apontou a necessidade da supervisão dos presídios pelos magistrados, que deveriam visitar as unidades regularmente, ouvindo os presos e averiguando suas queixas. Todas essas instruções elaboradas por Howard visavam que a prisão cumprisse com sua função reabilitadora. Apesar das ideias humanistas propostas por Howard, seu senso religioso e o contexto sociohistórico em que viveu levou-o a considerar que o trabalho forçado, e até mesmo penoso, seria o mais propício para a ressocialização dos apenados. Os preceitos do protestantismo cristão calvinista quanto ao trabalho, compreendido como dádiva dos céus para o homem e para a sociedade é tido pelo autor como um meio de aproximar a pessoa privada da liberdade de seu propósito, de sua incumbência atribuída por Deus, para sua aproximação com o celeste e afastamento da prática de delitos. As influências das ideias de Howard, e da religião cristã, continuam presentes no mundo das prisões até hoje. 2.1.3 Jeremy Bentham Adepto à filosofia do utilitarismo, Bentham acreditava que o homem, na busca pela felicidade, pelo prazer, tenderia a se afastar daquilo que poderia lhe causar dor. Sobre esse conceito estabeleceu sua teoria da pena. A prevenção dos delitos semelhantes aos já ocorridos era para ele o foco da pena, pois o que já aconteceu não permite ser alterado. Entretanto, os eventos futuros podem ser evitados. A pena, como um exemplo a ser exposto para a sociedade, funcionaria como um método de prevenção, que embora preponderante, não excluía o seu fim correcional, em sua teoria. É uma grande qualidade da pena poder servir de para a emenda do delinquente, não só pelo temor de ser castigado novamente, mas também pela mudança em seu caráter e em seus hábitos. Conseguir-se-á esse fim analisando o motivo que produziu o delito e aplicando-lhe uma pena adequada para enfraquecer tal motivo. Uma casa de correção para atingir 44 deve ser suscetível à separação dos delinquentes em diferentes seções para que possam ser adotados meios diversos de educação à diversidade de estado moral. (BENTHAM, 1934, p. 31 apud BITENCOURT, 2011, p. 65). Para cumprir com o propósito de prevenir danos maiores à sociedade, o filósofo inglês recomendava que o ritual que envolvia a pena deveria apresentá-la mais severa do que realmente era. Sua postura contrária às penas infamantes, suplícios e crueldades era embasada no fato de que estas inviabilizavam a possibilidade de haver a reabilitação do condenado. Com Bentham foi possível melhor definir que, considerando a pena com a racionalidade que as mudanças sociais trouxeram, enquanto vingança ela já não tinha mais espaço na sociedade e que o propósito preventivo da prática de delitos gerava melhores resultados. Bentham, por crer que a pena privativa de liberdade tencionava a ressocialização, preocupou-se com a assistência pós-penitenciária, considerando que seria imprudente abandonar os egressos das prisões à própria sorte, desvalidos de qualquer auxílio que permitisse que pudessem direcionar suas vidas para longe da criminalidade. A emancipação dos egressos, ainda hoje, carece de políticas públicas efetivas que possam acompanhar esse processo de voltar para a sociedade, para o meio em que vivia anteriormente ao aprisionamento e, possivelmente, com as condicionalidades socioeconômicas que levaram o indivíduo à prática do crime, ainda presentes. Pensar maneiras de atuação para a (re) socialização das pessoas advindas do sistema prisional é um desafio para os governantes e para a sociedade civil, que por desconhecimento e/ou preconceito, acabam por inviabilizar a (re) entrada dessas pessoas no mundo do trabalho. No estado de São Paulo existe o Programa de Atenção ao Egresso e Família, criado no ano de 2003, subordinado à Secretaria da Administração Penitenciária do governo do estado, operacionalizado nos Centros de Atenção ao Egresso e Família (CAEF) e vinculado à Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania, que estão espalhados pelo estado. Esse programa tem a finalidade de dar assistência direta ao egresso do sistema penitenciário e aos seus familiares, com ações voltadas à educação, saúde, geração de trabalho e renda, apoio psicossocial e jurídico. (SÃO PAULO, 2020). Mesmo com esse importante programa, a demanda produzida pelo sistema prisional é substancialmente volumosa e aliada à defasagem de servidores 45 públicos para atendimento, acaba por não contemplar todos os egressos e familiares que necessitam de apoio. Assim como ecoam, atualmente, falas que descrevem as prisões como escola do crime, Bentham descreveu as prisões de seu tempo como tendo as condições propícias para infestar o corpo e a alma dos que ali encontravam-se privados da liberdade. [...] saem dali para serem impelidos outra vez ao delito pelo aguilhão da miséria, submetidos ao despotismo subalterno de alguns homens geralmente depravados pelo espetáculo do delito e o uso da tirania. Esses desgraçados podem ser sujeitos a mil penas desconhecidas que os irritam contra a sociedade, que os endurece e os faz insensíveis às sanções. Em relação à moral, uma prisão é uma escola onde se ensina a maldade por meios mais eficazes que os que nunca poderiam empregar-se para ensinar a virtude: o tédio, a vingança e a necessidade presidem essa educação de perversidade. (BENTHAM, 1979, p. 56 apud BITENCOURT, 2011, p. 67). O filósofo chama a atenção para o surgimento de uma subcultura carcerária, que tem seu próprio sistema de leis, costumes e linguagem. Algumas das expressões dessa denominada subcultura acaba por ser assimilada não apenas pelas pessoas privadas de liberdade, mas também pelo corpo de servidores dos presídios, que ao interagir constantemente com essa população, tende a internalizar vocábulos, gírias próprias desse ambiente, passando a utilizá-las em sua linguagem. Sobre o fenômeno da prisonização13, durante a pesquisa de campo do presente estudo, o entrevistado denominado Agente 5 diz que “o agente (de segurança penitenciária) começa a falar em gírias, começa a falar como os presos”. A prisonização, segundo Thompson (2002): [...] julgo curial acentuar que os carcereiros também sofrem os efeitos da prisonização, no sentido de abandonar os padrões que observam na vida extramuros, para – pelo menos enquanto estão intramuros – adotar os valores aqui vigorantes. Essa situação de ambivalência é, na maior parte das vezes, inconsciente, porém mostra grande importância, do ponto de vista operacional. Sem um certo grau de prisonização, os funcionários, sobretudo de maior categoria, ao tentar carregar os valores da sociedade livre para a comunidade prisional, pretendendo impô-los ali, entrariam em choque com a instituição e, provavelmente, ou a levariam ao caos ou seriam ejetados do sistema. (THOMPSON, 2002, p. 27). Apesar de observar os efeitos maléficos que a prisão promove nas pessoas, Bentham a considerava benéfica para a prevenção de delitos, frisando ser esse o 13 Sobre o tema, confira as páginas 101 e 102. 46 objetivo dessa instituição, não podendo a pena exceder o dano causado que gerou o processo condenatório, ou seja, que a pena deveria ser adequada e proporcional à gravidade do delito, para que o condenado não se sentisse injustiçado de maneira que pudesse inviabilizar sua reabilitação. Acredita-se que o panótico tenha sido a grande contribuição de Bentham para a história das penitenciárias. A seguir uma imagem que representa o projeto arquitetônico de presídio panótico: Figura 1 - Panótico Fonte: Pinterest14 A estrutura do panótico é composta pela combinação de dois edifícios circulares, um dentro do outro. O menor, centralizado dentro do maior, compreende uma torre de não mais do que três andares, onde ficarão os vigias. O prédio maior, 14 Disponível em: https://www.pinterest.co.uk/pin/369858188123282117/. Acesso em: 15 jun. 2020 47 onde ficam as celas dos presos, com seis andares, em formato cilíndrico. As celas contam com barras de ferro que possibilitam a visão total de seu interior e de frente a elas há um corredor que dá acesso aos andares do edifício. O ponto chave dessa estrutura fica na torre de vigia, construída para que os vigias em seu interior tenham ampla visão sobre as celas e que os presos não os possa ver. O primeiro projeto dessa estrutura prisional, datado de 1787, era baseado no isolamento absoluto continuado da pessoa privada da liberdade. Quatro anos após, o projeto é reformulado e as celas ampliadas para que pudessem comportar quatro pessoas em seu interior, tentando atender aos interesses políticos e econômicos da época que priorizando a produtividade e o trabalho não consideravam que o isolamento absoluto contemplaria as perspectivas burguesas para a prisão. A relação de trabalho nas penitenciárias “[...] pela privação de liberdade, entendida sobretudo como privação da liberdade de poder contratar-se: o detido está sujeito a um monopólio da oferta de trabalho [...].” (MELOSSI; PAVARINI, 2010, p. 72). Submetidos a essa conjuntura, os trabalhadores em privação de liberdade estão entregues à exploração de sua mão de obra, sem possibilidade de pleitear melhores condições de trabalho ou de salários. O panótico idealiza a ordem, o adestramento, a vigilância sem cessar, a perda da privacidade e proporciona sensação de segurança, pois nada poderia escapar do olhar do observador da torre central. Foucault (2014), ao afirmar o uso polivalente que se poderia fazer do panótico diz que: Serve para emendar os prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos. É um tipo de implantação dos corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de poder, de definição de seus instrumentos e de modos de intervenção, que se podem utilizar nos hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões. Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado. (FOUCAULT, 2014, p. 199). Esse instrumento de dominação, com a característica prevalecente do princípio da inspeção, apesar de apresentar economia de pessoal para seu funcionamento e grande versatilidade de uso, não logrou bons resultados tendo poucos estabelecimentos penitenciários construídos seguindo seu modelo, porém o projeto inspirou o modelo radial de muitas novas prisões, principalmente nos Estados 48 Unidos (BITENCOURT, 2011). A contribuição das ideias de Bentham contra os castigos bárbaros e cruéis alcançaram êxito na Inglaterra e em diversos outros países. 49 CAPÍTULO 3 SISTEMAS PRISIONAIS NOS ESTADOS UNIDOS, ESPANHA, INGLATERRA E IRLANDA 50 3.1 Sistemas penitenciários nos Estados Unidos da América A primeira prisão dos Estados Unidos, chamada de Walnut Street Jail, foi construída no ano de 1776, com forte influência de sociedades religiosas, humanitárias e cidadãos notáveis da cidade da Filadélfia, estado da Pensilvânia, que acreditavam que “o isolamento celular, a oração e a total abstinência de bebidas alcoólicas seriam capazes de criar os meios para salvar tantas criaturas infelizes.” (MELOSSI; PAVARINI, 2010, p. 187). Esses princípios religiosos cristãos, somados às experiências holandesas, inglesas, alemãs e suíças relativas às instituições para cumprimento de pena de privação de liberdade deu origem ao sistema penitenciário filadelfiano, e Morris (1978 apud BITENCOURT, 2011), chegou a afirmar que “a prisão constitui um invento norte-americano”, embora tenhamos que considerar que nesses países europeus a prisão já havia ganhado outro viés para além do encarceramento como meio para a custódia dos indiciados. O isolamento celular é uma das características fundamentais do sistema penitenciário pensilvânico, sendo que o isolamento completo foi determinado para os reclusos considerados mais perigosos e os demais ficavam em celas comuns e podiam trabalhar em grupos durante o dia. Foucault (2014), chama a atenção para a influência do catolicismo e das seitas quakers para a redenção da pessoa privada da liberdade através da prisão: Só vejo em vossa cela um horroroso sepulcro, no qual, em lugar dos vermes, os remorsos e o desespero avançam em vossa direção para roer-vos e fazer de vossa existência um inferno antecipado. Mas [...] aquilo que para o prisioneiro sem religião não passa de uma tumba, um ossário repulsivo, torna- se, para o detento sinceramente cristão, o próprio berço da imortalidade bem- aventurada. (FOUCAULT, 2014, p. 232). A questão social, como fator importante no desencadeamento da prática de atos tipificados como crimes, associada ou não a outras motivações, não recebe a merecida atenção que sua relevância provoca. A busca por elevação espiritual, o trabalho como princípio regenerador, o silêncio total para o exame profundo da consciência são tarefas que buscam moldar, domar o ímpeto das pessoas reclusas, consideradas como indivíduos errantes, desviantes de um sistema que, segundo o pensamento otimista da época, a todos oferece condições de bem-estar e prosperidade. O relatório de Yates (1824 apud MELOSSI; PAVARINI, 2010, p. 178), 51 nesse mesmo sentido diz que “[...] num país onde o trabalho é pago em dobro, onde todos os bens necessários são abundantes e baratos, um indivíduo decidido não deveria correr o risco de nenhum sofrimento”. As observações propostas por Yates não consideram as condições socioeconômicas materializadas na sociedade e vivenciadas pelo crescente contingente de pessoas que abandonavam os latifúndios e de imigrantes que aportavam no país, provocando um adensamento populacional repentino e outros fenômenos correlacionados com os processos de marginalização social, sendo que na primeira metade do século XIX, o percentual da mão de obra empregada de forma estável na indústria não passou de 5% (cinco por cento) do conjunto da força de trabalho disponível (LEBERGOTT, 1964 apud MELOSSI; PAVARINI, 2010). 3.1.1 Sistema pensilvânico, filadélfico ou celu