unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências Campus de Bauru - SP THIAGO LIMA FERREIRA O episódio histórico da teoria do flogisto: uma revisão bibliográfica contemporânea da história e filosofia da ciência do flogisto no século XVIII BAURU – S.P. 2023 THIAGO LIMA FERREIRA O episódio histórico da teoria do flogisto: uma revisão bibliográfica contemporânea da história e filosofia da ciência do flogisto no século XVIII Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências – Unesp/Bauru, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação para a Ciência. Linha de pesquisa: Filosofia, História e Sociologia da Ciência no Ensino de Ciências. Orientadora: Luciana Massi BAURU – S.P. 2023 F383e Ferreira, Thiago Lima O episódio histórico da teoria do flogisto : uma revisão bibliográfica contemporânea da história e filosofia da ciência do flogisto no século XVIII / Thiago Lima Ferreira. -- Bauru, 2023 93 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências, Bauru Orientadora: Luciana Massi 1. flogisto. 2. calórico. 3. história. 4. filosofia. 5. Lavoisier. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências, Bauru. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Bauru ATA DA DEFESA PÚBLICA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE THIAGO LIMA FERREIRA, DISCENTE DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PARA A CIÊNCIA, DA FACULDADE DE CIÊNCIAS - CÂMPUS DE BAURU. Aos 15 dias do mês de setembro do ano de 2023, às 09:00 horas, por meio de Videoconferência, realizou-se a defesa de DISSERTAÇÃO DE MESTRADO de THIAGO LIMA FERREIRA, intitulada O episódio histórico da teoria do flogisto: uma revisão bibliográfica contemporânea da história e filosofia da ciência do flogisto no século XVIII. A Comissão Examinadora foi constituida pelos seguintes membros: Profa. Assoc. LUCIANA MASSI (Orientador(a) - Participação Virtual) do(a) Departamento de Educação / Faculdade de Ciências e Letras - Unesp Araraquara, Prof. Dr. HÉLIO DA SILVA MESSEDER NETO (Participação Virtual) do(a) Departamento de Química Geral e Inorgânica / Universidade Federal da Bahia, Prof. Dr. ETTORE PAREDES ANTUNES (Participação Virtual) do(a) Departamento de Química / Universidade Federal do Amazonas. Após a exposição pelo mestrando e arguição pelos membros da Comissão Examinadora que participaram do ato, de forma presencial e/ou virtual, o discente recebeu o conceito final:_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . Nada mais havendo, foi lavrada a presente ata, que após lida e aprovada, foi assinada pelo(a) Presidente(a) da Comissão Examinadora. Profa. Assoc. LUCIANA MASSI Faculdade de Ciências - Câmpus de Bauru - Av. Engenheiro Edmundo Carrijo Coube, 14-01, 17033360 www.fc.unesp.br/poseducacaoCNPJ: 48.031.918/0028-44. Luciana Massi aprovado THIAGO LIMA FERREIRA O episódio histórico da teoria do flogisto: uma revisão bibliográfica contemporânea da história e filosofia da ciência do flogisto no século XVIII Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências – Unesp/Bauru, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação para a Ciência. Linha de pesquisa: Filosofia, História e Sociologia da Ciência no Ensino de Ciências. Orientadora: Luciana Massi Data da defesa: 15/09/2023 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Luciana Massi (Doutora) Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Faculdade de Ciências e Letras - Departamento de Educação Membro Titular: Hélio da Silva Messeder Neto (Doutor) Universidade Federal da Bahia (UFBA) - Instituto de Química - Departamento de Química Membro Titular: Ettore Paredes Antunes (Doutor) Universidade Federal do Amazonas (UFAM) - Instituto de Ciências Exatas - Departamento de Química Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências (defesa apresentada na modalidade online) UNESP – Campus de Bauru Aos meus pais, Tânia e Mauro, que mesmo não tendo a oportunidade de estudar na infância, priorizam a minha educação dando a mim aquilo que tanto sonharam. Ao meu irmão que sempre foi meu protetor e defensor. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Tânia e Mauro, que sempre me deram forças para continuar meus estudos na pós-graduação. Mesmo sendo pessoas humildes e simples, além de terem pouco estudo, não mediram esforços em me apoiar em todas as decisões que tomei. Transformaram o meu sonho no sonho deles. Sempre me proporcionaram o necessário para que eu pudesse realizar cada passo da minha carreira, seja cursando licenciatura em química ou agora, o mestrado. Estiveram do meu lado nas piores situações, não deixando eu desistir da minha carreira e de mim mesmo, acreditando na minha capacidade mesmo quando ninguém mais acreditava, nem eu mesmo. Obrigado por serem a minha base, minha estrutura e tudo o que sou. São as pessoas que mais amo na imensidão e infinitude deste universo. À minha orientadora, Professora Doutora Luciana Massi, que aceitou me orientar por esses dois anos e meio. Mesmo estando num período pandêmico e cheio de impasses, nunca deixou de estar presente. Foi através de seus ensinamentos que pude conhecer melhor o materialismo histórico-dialético e a pedagogia histórico-crítica, assumindo esses referenciais como minhas visões da realidade. Agradeço por ter sido tão paciente e compreensiva quando estive nas minhas piores fases ao longo desse processo, principalmente quando perdi minha avó para a covid-19. A senhora é e sempre será o espelho de profissional que quero um dia ter o privilégio de ser. Aos professores doutores membros da banca, Hélio Messeder e Ettore Antunes, por terem se disponibilizado a avaliar minha dissertação e contribuírem com esse episódio tão importante na minha vida acadêmica. Com certeza irei incorporar as inúmeras contribuições histórico-filosóficas não apenas na minha dissertação de mestrado, mas também em estudos posteriores. Aos meus colegas de grupo de pesquisa, Larissa Cabral, Fernanda Bernardo, Lucas Bombarda, Lucas Nakamura, Bruno Lima, Giovana Valero, Rafaela Valero, Andriel Colturato, Carlos Sérgio, Carlos Moris, Gabriela Agostini e tantos outros que fizeram parte. Todos me acolheram com muito carinho e me ajudaram de diversas formas. Sempre solícitos, gentis, doces e companheiros. Creio que se não fizesse parte de um grupo tão unido, não teria chegado até aqui. Muito provavelmente teria sido um caminho muito mais difícil e doloroso, contudo, vocês foram um perfeito ombro amigo em toda a minha trajetória. Tenho a plena certeza que serão ótimos profissionais, pois exemplo de seres humanos já são. Ao cursinho popular Geração NEAR, que muitas vezes foi a minha válvula de escape para problemas pessoais. Participar deste projeto de extensão, mesmo depois de formado, fez com que eu lembrasse toda semana o lugar que mais amo estar ao longo de três anos, que é dentro da sala de aula. Poder ensinar pessoas que vieram do mesmo lugar que eu e almejam um futuro promissor é um dos melhores presentes que pude ter ao longo da minha carreira. A felicidade e satisfação de participar deste cursinho foi muito além do que ensinar química e matemática, afinal, estive ao lado de uma equipe muito unida e engajada com o propósito de um cursinho popular. Em especial, agradeço à coordenação, Vitória Santos, Raissa Carvalho, Carolina Cechella e Alexandre Campos, por terem conduzido tão bem esse projeto. Com certeza uma coordenação tão maravilhosa como essa não haverá. Em especial, aos meus amigos, já citados, do “mestradão da sofrência”, Fernanda Bernardo, Larissa Cabral e Lucas Bombarda, por terem me suportado nas minhas maiores crises e compartilhar todas as suas dores, assim como eu fiz. Se eu estivesse sozinho, talvez não estaria aqui hoje para contar história. Vocês foram pilares essenciais nesses últimos anos. Sou extremamente grato ao acaso por ter nos unido e transformado em bons amigos que levarei para a eternidade. À Rafaela Valero (Valerão / Big Valéria) por ter sido uma pessoa tão doce e sábia. Nas minhas crises sempre foi a voz da razão e da sensatez. Nunca esquecerei dos sublimes conselhos dados a mim nas minhas piores fases. O mundo precisa de mais Rafaelas, disso não tenho dúvida. Ao Andriel Colturato por ter sido um grande amigo e companheiro. Sempre vou lembrar com carinho das vezes que se preocupou em dar pareceres aos meus textos tendo muito cuidado. Além de amigo, te enxergo como um professor pesquisador de exímia excelência. À Evilim Martinez por ter sido uma das únicas pessoas que mesmo com o fim da graduação, se manteve presente e amiga em todos os momentos. Mesmo passados tantos anos, nunca perdeu sua essência. Por fim, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência e Unesp pelo financiamento concedido a mim por intermédio do programa Unesp Presente - Investimentos do Retorno, inserido no edital Nº 20/2021-PROPG/PROGRAD. Manifesto Insolúvel A química é possível assim em versos, honestos e, portanto, perversos, imersos no meu pequeno béquer, em um universo tão controverso? Isto que faço é química sináptica: transformar palavras em revolução escrevendo reações enigmáticas, na cultura científica de repressão. Mas envolto por seu jaleco-burqa, armadura de chumbo dogmática, tão apática padece a sua expressão se quer encontro nova inspiração. Desnudo o quero, químico limitado, da linguagem numérica, precipitado, e dentro do seu coração mecânico, busco o que lhe resta de orgânico. Para um artista de exatas, afinal, não existe poesia que seja mais bela do que o cientista que se desvela e o átomo que nunca se revela. Você se mostra inerte a essa paixão, mas eu vou além da sua aparência e toco-lhe na essência por baixo do véu com estas mãos que fazem versos (LEONARDO JÚNIOR, 2020, p. 64) RESUMO O objetivo deste estudo é compreender o desenvolvimento da teoria do flogisto no século XVIII, suas versões reformuladas e os motivos que levaram historiadores e filósofos da química a afirmarem que sua derrubada ocorreu pelo surgimento da teoria do oxigênio e do calórico. Utilizou-se como método de pesquisa a revisão bibliográfica sistemática nos periódicos Hyle e Foundations of Chemistry, específicos de artigos histórico-filosóficos da química. Ao realizar a seleção de artigos que apresentassem a palavra “flogisto” no título, resumo ou palavras-chaves, obteve-se 13 artigos que foram separados em dois grupos, os que estavam mais atrelados a história do flogisto e os que discutiam aspectos filosóficos dessa entidade. Realizando uma análise do currículo dos autores dos artigos, percebeu-se que a maioria dedica seus estudos à história e filosofia da ciência e da química. Em relação ao flogisto, notou-se a partir dos artigos que houveram diversos desdobramentos científicos desde a sua enunciação, ascensão e derrocada. Contudo, os autores reiteram que as teorias concorrentes não tinham elementos suficientes para substituir essa entidade e caracterizar uma revolução científica. Alguns autores afirmam que essa teoria foi reformulada por vários cientistas, contudo não deram conta de suprimir todas as falhas presentes desde sua primeira versão. Outros autores buscam destacar que o calórico, teoria de Lavoisier que viria substituir o flogisto, tinha o mesmo caráter imaginário, hipotético e metafísico desta última entidade. Para os autores, os programas de pesquisas de Kuhn disputam para ver qual é melhor e qual está em degenerescência, contudo, afirmam que o desenvolvimento científico é mais complexo do que isso, como é o caso do episódio histórico do flogisto. Palavras – chaves: flogisto; calórico; história; filosofia; Lavoisier. ABSTRACT The aim of this study is to understand the development of the phlogiston theory in the 18th century, its reformulated versions and the reasons that led historians and philosophers of chemistry to affirm that its fall occurred in the century due to the theory of oxygen and caloric. A systematic review in the journals Hyle and Foundations of Chemistry, specific to historical-philosophical articles on chemistry, was used as a research method. When performing the selection of articles that present the word “phlogiston” in the title, abstract or keywords, 13 articles were obtained that were separated into two groups, those that were more linked to the history of phlogiston and those that discuss philosophical aspects of this entities. Carrying out an analysis of the curriculum of the authors of the articles, it is noticed that the majority dedicate their studies to the history and philosophy of science and chemistry. Regarding the phlogiston, it was noted from the articles that there have been several scientific cultivations since its enunciation, rise and fall. However, the authors reiterate that the competing theories did not have enough elements to replace these entities and characterize a scientific revolution. Some authors claim that this theory was reformulated by several scientists, but they did not manage to eliminate all the flaws present since its first version. Other authors seek to highlight that caloric, Lavoisier's theory that would replace phlogiston, had the same imaginary, hypothetical and metaphysical character as the latter entity. For the authors, Kuhn's research programs compete to see which is better and which is in degeneracy, however, they claim that scientific development is more complex than that, as is the case of the historical episode of phlogiston. Keywords: phlogiston; caloric; history; philosophy; Lavoisier. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO......................................................................................................13 INTRODUÇÃO........................................................................................................... 16 Alguns aspectos históricos da teoria do flogisto e sua derrubada........................21 A revisão bibliográfica...........................................................................................24 METODOLOGIA DE COLETA E ANÁLISE DE DADOS...........................................26 A metodologia de análise de dados......................................................................30 RESULTADOS E DISCUSSÕES: SISTEMATIZANDO OS APONTAMENTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS DOS ARTIGOS COLETADOS...............................38 Aspectos históricos da (s) teoria (s) do flogisto: proposta inicial, reformulações e decadência............................................................................................................42 Partidários da teoria do flogisto, suas versões desta entidade e suas inconsistências: alguns aspectos históricos..........................................................51 Posicionamento dos flogistonistas na segunda metade do século XVIII..............63 Reflexões e considerações de Lavoisier sobre o flogisto..................................... 66 O flogisto enquanto objeto: aspectos filosóficos...................................................71 O flogisto enquanto exemplo: aspectos explicativos............................................ 79 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................85 REFERÊNCIAS..........................................................................................................90 13 APRESENTAÇÃO Inicio este texto com uma apresentação pessoal que justifica a relevância deste estudo em minha trajetória acadêmica. Desde criança sempre tive afeição por ciências. Enquanto cursava a quinta série do ensino fundamental, costumava dizer que seria professor de química e de física. Lembro-me que ainda no ensino fundamental minha mãe estava cursando a Educação de Jovens e Adultos (EJA), então, além de ir para as aulas matutinas, também frequentava as aulas noturnas com ela, principalmente quando eram aulas de ciências. Muitas vezes eu ia para a escola durante o período da tarde para poder ajudar as coordenadoras com atividades burocráticas, como entrega de apostilas, montagem do mural, organização de eventos etc. Ao mesmo tempo que aumentava meu interesse pela ciência, a educação se tornava atrativa para mim. Reconheço que não foram entusiasmos que emergiram do nada, mas são frutos da dedicação dos meus pais quanto à minha educação. Meus pais, mesmo tendo uma infância pautada no trabalho, ao me criar, priorizaram por uma educação que não tiveram. Em nenhum momento ao longo da minha trajetória escolar houve algum tipo de “pressão” para que eu trabalhasse, pelo contrário, sempre motivaram minha busca pelos estudos. Acredito que esse foi um dos motivos que naquela época e hoje em dia mantém meu interesse pela educação. Com o passar do tempo, cheguei aos anos finais do ensino médio - 2014 e 2015 - e me deparei com o dilema do que fazer quando o ciclo escolar finalizar. Tinha certeza que pretendia ingressar no ensino superior, mas não sabia em qual curso. Já pensei em ser advogado, médico, enfermeiro, biólogo, padre, engenheiro, entre outras profissões. Contudo, mesmo pensando em carreiras completamente diferentes, ainda almejava que o curso tivesse relação com educação. Percebi que a sala de aula era o lugar que gostaria de estar. Sempre admirei muito a docência, observava que essa era a profissão que forma qualquer outra profissão. Ao mesmo tempo, meu amor pela ciência se tornava mais direcionado. Passei a me interessar mais pela química, afinal, é a disciplina/área que estuda a matéria e a composição de tudo que existe - me dou o direito de utilizar e citar o pensamento que motivou-me a seguir a carreira de químico, mesmo que esse pensamento seja baseado no senso comum de ciência que eu tinha na referida época. Para mim, explorar o mundo faz parte da ciência em geral, contudo, estudar 14 o que não conseguimos ver me pareceu muito mais interessante. Entender como os átomos se comportam, ligam-se, reagem, rompem-se, etc. Nos anos finais do ensino médio passei a me interessar intensamente pela química. Prestei vestibular na Unesp e em outras universidades no mesmo curso, Licenciatura em Química. Passei em todas as que me inscrevi, mas optei pela Unesp. Ao mesmo tempo que me encantava pela educação, notei o quanto essa área é fragilizada no Brasil. Percebi que as políticas educacionais sofrem constantes ataques e como isso não é atual. Desde antes dos anos 2000 a educação como um todo passou por diversas problemáticas, como as reestruturações da educação básica e a nova BNCC, ficando isso cada vez mais evidente para mim ao longo do curso de graduação quando cursava as disciplinas pedagógicas. Nesse contexto, conheci a Pedagogia Histórico-Crítica que, dentre outras discussões, oferece subsídios teóricos para essa indignação com a educação contemporânea. Desde então passei a tentar compreender melhor as questões educacionais a partir desse referencial. Fiz pesquisa em laboratórios de química e defendi um Trabalho de Conclusão de Curso adotando a Pedagogia Histórico-Crítica. Foi aí que percebi que uma pós-graduação em educação iria ser fundamental para a carreira que almejava construir. Em 2021 ingressei no Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência sendo orientado pela professora Dra. Luciana Massi. Junto a ela, unimos discussões sobre a química, história e filosofia da ciência, assim, participando de grupos de estudos preocupados em compreender as questões que envolvem o materialismo histórico-dialético e as ciências da natureza e como o marxismo se insere nessas discussões. Ficamos em dúvida quanto ao meu objeto de análise, porém, percebendo as viradas importantes na minha vida e compreendendo as mudanças que tive durante toda a minha trajetória acadêmica, achei relevante investigar a suposta “Revolução Química” que ocorreu no século XVIII. Soma-se a isso um interesse pelo tema do calor, na fronteira entre a química e a física, que nutri ao longo da graduação e que foi ressignificado ao iniciar levantamentos bibliográficos sobre o tema que direcionaram para o flogisto e a “Revolução Química”. Segundo alguns autores, trata-se de um momento de grande significado na história da química, pautado 15 principalmente pela derrubada do flogisto1. Conforme meus estudos foram avançando a respeito do flogisto, algumas inquietações surgiram. Comecei a me perguntar sobre qual o conceito de matéria para os cientistas daquele contexto e como a ciência avançava nos países europeus que se baseavam na teoria do flogisto. A partir dessas inquietações, defini uma questão central para direcionar a minha pesquisa de mestrado: quais as compreensões da comunidade científica sobre o flogisto e como a sua natureza hipotética afetou a ciência corpucularista dos flogistonistas e antiflogistonistas do século XVIII? Tendo isso em vista, os objetivos deste estudo serão melhor descritos na seção seguinte. Após essa breve apresentação pessoal e da pesquisa, indico como essa questão será desenvolvida ao longo deste texto. O segundo capítulo é a introdução, a qual será dividida em subtópicos. Iniciaremos apresentando brevemente o que é a filosofia da química, quais áreas estuda, visando indicar a lacuna que minha pesquisa busca contemplar para essa área e a razão de se estudar a teoria do flogisto para uma compreensão histórico-filosófica da história da ciência e os objetivos deste trabalho. Será descrito um breve histórico sobre a teoria do flogisto e sua derrubada. Faremos essa discussão a partir de textos de historiadores da química para que se compreenda seu conceito e sua influência naquele contexto. A seção posterior irá apresentar a metodologia de coleta e análise de dados. No primeiro subtópico será descrito como ocorreu a coleta de dados, as bases de dados, a seleção das palavras-chave e os resultados obtidos. O segundo mostrará como irá ocorrer a análise desses dados encontrados a partir da divisão feita em artigos históricos e artigos filosóficos. A seção resultados e discussões apresentará uma análise dos elementos históricos e filosóficos sobre a teoria do flogisto. Por fim, a seção referente às considerações finais sistematiza alguns apontamentos a respeito do que foi analisado na seção anterior e proposições futuras. 1Alguns historiadores (BENSAUDE-VINCENT, 1996; BENSAUDE-VINCENT; SIMON, 2012; BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992; DEBUS, 1991) se referem a teoria de Stahl e seus seguidores utilizando o termo flogisto, já outros como Vidal (1986) e Maar (2008) utilizam o termo flogístico. Ambos são sinônimos, contudo, para uma padronização da escrita, todo o texto deste estudo utilizará a primeira. 16 INTRODUÇÃO A filosofia da química é um campo muito recente comparado ao momento em que a filosofia da ciência surgiu. Aproximadamente 90 anos separam o surgimento da filosofia da ciência geral da filosofia da química, subárea hoje reconhecida tanto por filósofos da ciência atuais quanto por cientistas químicos. A filosofia, no seu sentido geral, estuda campos como a natureza da realidade, da cognoscibilidade e da legalidade do mundo exterior (LABARCA; BEJARANO; EICHLER, 2013). Como sugerem Labarca, Bejarano e Eichler (2013), investigar as ciências - abrangendo a química como uma delas - também inclui conceitos filosóficos, como lei, verdade, tempo, hipótese e outros. Scerri e McIntyre (2008) esclarecem que mesmo com os avanços no campo filosofia da química, estudos com grande qualidade em seu conteúdo não superam a filosofia da física e biologia no quesito quantidade, não convencendo muitos filósofos da legitimidade da química enquanto uma área de interesse da filosofia. Em outras palavras, mesmo já havendo na década de 1990 questionamentos sobre a existência da filosofia da química, muitos especialistas dessa área devem assumir seu caráter inicial ou pré-pragmático, segundo os autores. Daí emerge a necessidade da realização de mais estudos nesse campo da filosofia da ciência. Os próprios químicos aceitam de maneira implícita pressupostos filosóficos até mesmo sem saber, como se questionar se a realidade existe (LABARCA; BEJARANO; EICHLER, 2013). Lemes e Porto (2013) ainda pontuam que apesar de muitos autores da própria filosofia da ciência terem definições sobre a natureza da química e como esta funciona, não há um consenso sobre em que esta área da ciência se centraliza de fato. Sendo a filosofia a área responsável por desvelar esses tipos de questões, pode-se entender que os próprios filósofos da química não possuem respostas específicas e consensuais sobre. Labarca, Bejarano e Eichler (2013) compreendem que para entender o quão profunda é a natureza da química, é necessário o trabalho conjunto de filósofos da química, químicos e historiadores, trabalho esse que já produziu relevantes resultados segundo os autores. Lemes e Porto (2013) sinalizam que se trata de uma preocupação que cresce entre os filósofos da química para que discussões deste cunho se insiram na comunidade química, mesmo considerando que haja diferentes 17 perspectivas, uma vez que a filosofia da química é uma área que está em constante expansão. Desde o fim do século XX e o início do século XXI, muitos estudiosos têm se debruçado na construção de elementos que caracterizassem o campo da filosofia da química (BAIRD; SCERRI; MCINTYRE, 2006; SCERRI, 2008; LABARCA; BEJARANO; EICHLER, 2013; LEMES; PORTO, 2013; RIBEIRO, 2014, 2017; SILVA; BARRETO; BEJARANO; RIBEIRO, 2018). Seja criando revistas científicas, produzindo eventos, bases de dados ou abrindo espaço para novas linhas de pesquisa, muitos desses estudiosos têm ressignificado a área. Em 1995, foi lançada a revista Hyle: International Journal of Philosophy of Chemistry editada por Joachim Schummer, um dos periódicos mais importantes por ser dedicado à filosofia da química (LABARCA; BEJARANO; EICHLER, 2013; LEMES; PORTO, 2013). Entretanto, ao acessarmos o site, notamos que desde 2022 a Hyle não recebe mais textos para serem publicados. Em 1997 também foi criada na Europa a Sociedade Internacional de Filosofia da Química, que em 1999 registra e publica outra revista importante para a filosofia da química, a Foundations of Chemistry fundada e editada por Eric Scerri (LABARCA; BEJARANO; EICHLER, 2013; LEMES; PORTO, 2013; SILVA; BARRETO; BEJARANO; RIBEIRO, 2018). Apresentamos ao leitor uma busca prévia de artigos nacionais e internacionais pautados na filosofia da química que retratassem o panorama desta área. Ressaltamos que ainda que existam outras preocupações da filosofia da química que não serão mencionadas aqui, compreendemos que trata-se de uma fonte de discussões que ainda deve ser explorada. Por isso, essa subseção traz apenas alguns exemplos de pontos investigativos da área, o que promove um incentivo para constantes buscas por discussões específicas ainda não desveladas. A seguir, são apresentadas algumas linhas de pesquisa presentes no campo de pesquisa da filosofia da química. Existem trabalhos concentrados em analisar como se aprimora o corpo teórico e metodológico da química e como se desenvolve a espinha dorsal de conhecimento desta ciência (LEMES; PORTO, 2013). Mais especificamente, há a preocupação em problematizar o elo teoria-evidências experimentais, colocando em foco a característica dual da química, que funciona com a mudança entre os fenômenos de nível macroscópico e os elementos teórico-conceituais de nível submicroscópico (LEMES; PORTO, 2013). 18 O reducionismo da química à física é uma discussão presente desde o surgimento da filosofia da química. Pelo fato de muitos cientistas se apegarem a tal reducionismo, muitos filósofos da ciência anteriores à 1990 também faziam essa mesma redução da filosofia da química à filosofia da física (BAIRD; SCERRI; MCINTYRE, 2006; SCERRI, 2008; LEMES; PORTO, 2013; RIBEIRO, 2017; SILVA; BARRETO; BEJARANO; RIBEIRO, 2018). Como Scerri e McIntyre (2008) apresentam, trata-se de uma breve aproximação ontológica entre a física e a química. Labarca, Bejarano e Eichler (2013) também apontam como fonte de discussão a relação e a interdependência entre a química e a física, a autonomia da química etc. No livro de Scerri e McIntyre (2008) é possível encontrar variados exemplos químicos que provam a não redução da química à física. Assim, Eric Scerri, Lee McIntyre, Joachim Schummer, Nelson Bejarano, Marcelo Eichler e Martín Labarca são alguns dos autores da filosofia da química que se debruçam a discutir as questões do reducionismo filosófico (SCHUMMER, 2006; SCERRI; MCINTYRE, 2008; LABARCA; BEJARANO; EICHLER, 2013; LEMES; PORTO, 2013; SILVA; BARRETO; BEJARANO; RIBEIRO, 2018) Partindo das discussões de cunho teórico-conceitual imersos nas pesquisas da filosofia da química, o realismo na química também é um ponto investigativo nesse campo (LEMES; PORTO, 2013). A relação entre teoria e prática presente na química corrobora para que questões sobre o realismo das entidades químicas sejam levantadas por estudiosos, visto que a prática influencia na construção e constatação da teoria (LEMES; PORTO, 2013). Os estudos que se fixam nesse ramo da filosofia da química apresentam argumentos levantados em função do desenvolvimento de materiais e equipamentos para medições e simulação, visto que tais dispositivos e ferramentas influenciam na maneira como os dados e as teorias são compreendidos (LEMES; PORTO, 2013). A compreensão da química como uma tecnociência também é pauta de discussões. No que diz respeito ao contexto da análise e sínteses desenvolvidas na química, por haver uma interação entre ciência e tecnologia - entre empiria e representação -, não há maneiras de apresentar diferenças entre a química na qualidade de ciência ou técnica (SILVA; BARRETO; BEJARANO; RIBEIRO, 2018). A tecnociência tem privilegiado a prática que tem como objetivo criar substâncias, compreendendo que não tem como haver substâncias sem uma ação criativa (SILVA; BARRETO; BEJARANO; RIBEIRO, 2018). Além de serem um resultado 19 intencional da ação humana, elaboram significados completamente imersos num certo contexto histórico-cultural (SILVA; BARRETO; BEJARANO; RIBEIRO, 2018). Questões sobre estética, ética e a imagem pública da química também fazem parte da agenda da filosofia da química (SCHUMMER, 2001; 2006; SPECTOR; SCHUMMER, 2003; LEMES; PORTO, 2013). Existe uma preocupação em como o químico se caracteriza perante a sociedade e a própria ciência, uma vez que a própria comunidade científica de químicos também não reflete sobre isso, além de outros aspectos importantes, como a ética, social, estético e ambiental (LEMES; PORTO, 2013). A fenomenologia química é outra linha de pesquisa apontada por Silva, Barreto, Bejarano e Ribeiro (2018). A partir de seus estudos, os autores notaram que para os filósofos da química é necessário entender esse tema em um contexto muito amplo, ao passo que há uma grande pluralidade além da inexistência da unicidade da teoria em que a conceitualização química se pauta. A filosofia da linguagem e semiótica é trazida por Schummer (2006) como uma fonte de discussões importantes. Trata-se de um grande sistema particular de linguagem dotado de elementos teóricos utilizados por cientistas para se comunicarem entre si (SCHUMMER, 2006). Segundo o autor, não existem muitos estudos filosóficos sobre como a teoria é codificada em linguagem, diferentemente do que se conhece em outras ciências. Contudo, alguns estudos preliminares podem ser citados, como o de Schummer (1998) Definir o conceito de química é uma questão importante para estudiosos contemporâneos da filosofia da química (LEMES; PORTO, 2013). Segundo as pesquisas de Lemes e Porto (2013), puderam perceber que não há um consenso sobre essa área, visto que todas as outras discussões citadas por eles também contribuem para este debate a partir de ideias diferentes.. Ainda que existam outras preocupações emergidas da filosofia da química que não foram mencionadas até aqui, compreendemos que se trata de uma fonte de discussões que ainda deve ser muito explorada. Por isso, essa subseção traz apenas alguns exemplos de pontos investigativos. Não tão distante da filosofia da ciência, há o ramo da história da ciência. Há uma preocupação em elucidar a definição de “História da Ciência”, sendo também motivo de discussão a nomenclatura desse tipo de pesquisa: “História da Ciência”, já citado, ou “Histórias das Ciências” (MARTINS, 2005). Em meados de 1930 houve 20 indícios de uma nova relação entre história da ciência e história (MARTINS, 2001). Já no início do século atual, a história da ciência é abordada tanto por acadêmicos com formação em áreas das ciências exatas e naturais quanto por estudiosos das áreas humanísticas, como historiadores e sociólogos. Martins (2005) pontua que existem muitas subáreas e ramos na história da ciência, contudo, faz destaque para a abordagem conceitual, a qual tem enfoque internalista primando fatores científicos e fundamentos, e para a abordagem não-conceitual, também conhecida como externalista, que objetiva desenvolver elementos extracientíficos. Uma pesquisa completa, segundo Martins (2005), envolveria as duas vertentes, uma vez que os acontecimentos ocorrem ao mesmo tempo, tanto no que diz respeito ao desenvolvimento dos fatos científicos específicos, quanto ao meio social, político e histórico que estão inseridos. Além disso, estudos histórico-científicos usam fontes primárias e fontes secundárias (MARTINS, 2005). As fontes primárias são os textos originais do estudiosos pesquisados, enquanto que as fontes secundárias são estudos historiográficos sobre os autores investigados (MARTINS, 2005). A presente pesquisa se pauta em alguns desses elementos apresentados sobre história da ciência, uma vez que, a partir de fontes secundárias, buscamos trazer os fatos científicos que envolvem o flogisto e o contexto em que todo esse episódio histórico se manifestou. Contudo, mesmo norteando-se por esses pressupostos, reconhecemos que em alguns momentos podem ter havido algumas falhas que, de alguma maneira, destoam da história da ciência que defendemos até aqui, mesmo que minimamente. Quando observamos o momento da derrubada do flogisto, intrinsecamente investigamos os fatores que foram de fundamental importância para esse acontecimento. Dentre esses fatores, a não caracterização do flogisto enquanto entidade existente e quantificável é um deles (ASIMOV, 1965; VIDAL, 1986; BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992; BENSAUDE-VINCENT, 1996; KIM, 2008; 2011; MAAR, 2008). Ao observarmos os elementos motivadores que culminaram na suposta “Revolução Química” (MAAR, 2008), percebemos que o não consenso sobre a composição dos corpos na química do século XVIII é um dos fatores essenciais para isso. Tendo isso em vista, a justificativa para que a presente pesquisa seja executada se dá por conta dessas lacunas existentes entre a ontologia da teoria do flogisto, o que, segundo alguns autores, causou a “Revolução Química” do século 21 XVIII. Também notamos que esse debate continua perpassando por estudiosos contemporâneos, seja em disciplinas de história da química, seja em artigos ou até em anedotas históricas utilizadas no ensino. O próprio conceito se justifica na medida que continua sendo um episódio recorrente nas publicações dos próprios debates que a química ainda está fazendo, seja por filósofos da ciência, historiadores da ciência ou educadores para pensar determinados aspectos da constituição da química moderna. Em outras palavras, nossa intenção é reconhecer, por intermédio da história e filosofia da química, como foi o desenvolvimento e derrubada do flogisto, os motivos que propiciaram isso e se realmente houve uma revolução na ciência em geral apenas pela negação de um conceito químico. Tendo isso em vista, apresentaremos o objetivo geral deste estudo que foi construído por intermédio das inquietações levantadas na seção de apresentação e algumas lacunas apontadas nesta seção. O objetivo geral é desmembrado em três objetivos específicos: Objetivo geral: Compreender o desenvolvimento da teoria do flogisto no século XVIII, suas versões reformuladas e os motivos que levaram historiadores e filósofos da química a afirmarem que sua derrubada ocorreu pelo surgimento de outras teorias. Objetivos específicos: ● Identificar estudos histórico-filosóficos sobre o flogisto para compreender o pensamento de estudiosos contemporâneos a respeito desta entidade. ● Evidenciar as causas do desenvolvimento e da queda da teoria do flogisto, definindo os limites históricos dessa teoria; ● Produzir uma síntese sobre as produções bibliográficas contemporâneas de história e filosofia da química sobre o flogisto. Compreendidos os objetivos deste estudo, abordaremos com mais detalhes no subtópico seguinte aspectos históricos sobre a teoria do flogisto e a Revolução Química para que o leitor possa se inteirar sobre este objeto de estudo. Em seguida, apresentaremos o referencial teórico adotado para este trabalho. Alguns aspectos históricos da teoria do flogisto e sua derrubada Apresentamos ao leitor alguns breves apontamentos sobre a natureza histórica da teoria do flogisto a partir de estudos de historiadores da ciência e da 22 química, buscando entender como ocorre o movimento da enunciação da teoria do flogisto, sua derrubada e sua relação com o desenvolvimento científico. Consideramos importante elencarmos algumas passagens historiográficas para que o leitor se familiarize com o objeto de estudo. O século XVIII é compreendido por Maar (2008) como o grande século da química pelo fato de terem surgido diversas mudanças que passaram a compor o contexto científico dos químicos. Dentre elas, ocorreu o surgimento da divergência entre a teoria do flogisto e a conservação das massas nas reações químicas (MAAR, 2008). A teoria do flogisto emergiu em meados do século XVIII, mas foi na segunda metade desse mesmo século que os embates entre a teoria de Stahl e as teorizações de Lavoisier sobre a conservação das massas definitivamente começaram (MAAR, 2008). Hoje existem variadas modificações e aprimoramentos em equipamentos responsáveis por mostrar dados referente a massa, contudo é evidente que o que foi estudado por cientistas do século XVIII em relação a conservação demonstra uma resistência além do seu tempo. A derrubada do flogisto e a ascensão de uma nova maneira de praticar química foi um embate que contribuiu para o estopim da Revolução Química2 (MAAR, 2008). A crítica feita ao flogisto emerge pela forma que as reações ocorrem e o que produzem para essa teoria: enquanto a combustão e a calcinação (oxidação) de metais se dão pela combinação de oxigênio, na teoria de Stahl é uma perda ou liberação de flogisto (MAAR, 2008). Ou seja, segundo Maar (2008), trata-se de um pensamento inverso: enquanto para os lavoiserianos se trata de uma combinação de elementos, para os stahliniano é uma decomposição, o que dificulta, como pontua o autor, a compreensão da química na visão flogística. Georg Ernst Stahl (1660-1734) foi um dos nomes responsáveis pela propagação da teoria do flogisto na sociedade científica. Em sua trajetória de vida, foi ao mesmo tempo médico, farmacêutico e químico (BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992). Com seus trabalhos, deixou 2 Ressaltamos que os termos “revolução” e “revolução química” trazidos neste texto são utilizados em respeito à forma que os autores dos artigos utilizados se referem ao embate entre flogistonistas e antiflogistonistas no século XVIII. Destacamos que a utilização desses termos não reflete a noção do autor desta dissertação sobre revoluções. Para não haver confusão, reiteramos que, para nós, revolução “é sempre transformação em sentido estrito, isto é, o ato de mudar a própria essência do objeto sobre o qual incide o referido ato. Trata-se, pois, de uma mudança radical, de caráter estrutural, que dá origem a uma nova forma.” (SAVIANI, 2018). Mesmo não concordando com o sentido de revolução adotado pelos autores, entendemos que seus textos são ricos em informações sobre o flogisto no século XVIII, não devendo ser desconsiderados. 23 marcas na história da química e da biologia (BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992). As discussões relacionadas à teoria do flogisto também possuíam alguma consolidação por parte de estudiosos predecessores a Stahl, como Johann Becher (DEBUS, 1991; PRADO; CARNEIRO, 2018), para o qual a matéria era composta por três elementos principais, sendo eles ar, água e terra, e que o “flogisto era o princípio que regia sobre o fenômeno da combustão e da calcinação dos metais” (PRADO; CARNEIRO, 2018, p. 156). Como é discutido por Bensaude-Vincent e Stengers (1992), a própria química de Stahl está imersa numa filosofia da matéria que é oposta ao mecanicismo. As autoras esclarecem que Stahl parte da distinção aristotélica que há entre misturas verdadeiras e aparentes com a intenção de estabelecer uma separação entre o campo da química e da física, uma vez que a física mecânica poderia ficar responsável por dialogar sobre agregados e a química ficaria com o trabalho de tratar das misturas. Stahl defende a existência de matéria invisível, mas é contra a compreensão de partículas que são únicas e uniformes, dessa forma, tal matéria não visível não pode ser isolada, mas apenas podemos considerar sua presença (BENSAUDE-VINCENT, 1996). O ar era considerado um meio carregador do flogisto proveniente da combustão dos materiais inflamados. É de se questionar quanto à natureza dessas reações, uma vez que os metais não eram queimados, e mesmo assim perdiam o flogisto. Na tentativa de elucidar essa inconsistência, Stahl explicou que, ao contrário da madeira, por exemplo, que tinha uma queima rápida e enérgica se manifestando por chamas fazendo com que o flogisto saísse rapidamente, os metais por sua vez perdiam flogisto de forma mais lenta ao enferrujarem, por isso não haveria o aparecimento de fogo (ASIMOV, 1965). A teoria de Stahl ganhou espaço na ciência por não se colocar em oposição à qualquer outra teoria existente, sendo essa teoria corpuscular proveitosa para a ciência na época, pois mesmo o flogisto sendo compreendido como uma matéria corpuscular, também explicava características além da estrutura da matéria (VIDAL, 1986). De acordo com Bensaude-Vincent e Stengers (1992) e Bensaude-Vincent (1996), durante todo o século XIX, químicos, filósofos e historiadores associavam o surgimento da própria química a partir de Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794), sendo o seu Tratado Elementar de Química de 1789 o principal escrito que gerou o estopim para isso. O flogisto, segundo Vidal (1986), era praticamente uma entidade 24 filosófica, afinal, possuía até peso negativo, enquanto que o oxigênio, mais tarde descoberto, é um elemento químico, uma matéria que possui peso real. Lavoisier foi um dos principais nomes a duvidar da teoria dos elementos e da teoria do flogisto de Stahl. Foi a partir da balança e um estudo profundo de mais de 10 anos da química dos elementos que Lavoisier consolidou seu nome na ciência (BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992; BENSAUDE-VINCENT, 1996). Esse cientista reiterou a importância de se realizar metodicamente experiências que sejam conduzidas a partir de medidas, repetições, variações e verificações (BENSAUDE-VINCENT, 1996), dando um novo significado à química. Nesta subseção, apresentamos algumas definições sobre o flogisto e breves apontamentos históricos a respeito da sua relação com Stahl e Lavoisier. Compreendidos esses apontamentos introdutórios sistematizados até então, a subseção seguinte apresentará as ideias gerais de uma revisão bibliográfica e como esta deve ocorrer. A revisão bibliográfica O presente estudo se trata de uma pesquisa do tipo bibliográfica, executando uma revisão sistemática da literatura. A pesquisa bibliográfica é elemento fundamental que deve compor estudos científicos, podendo ter alguns objetivos, como renovar o que é discutido em estudos que possuem o mesmo objeto de pesquisa, elucidar a relevância da pesquisa que está sendo produzida para seu campo, entender quais são as brechas e a forma que a respectiva pesquisa pode ajudar nessas resoluções. (GIL, 2008; FLICK, 2013). Gil (2008) pontua que a pesquisa bibliográfica apresenta uma série de utilidades no campo científico, podendo se adequar de acordo com o que o pesquisador precisa ou tem como objetivo. Flick (2013) afirma que esse tipo de pesquisa não se encaixa em apenas uma seção do trabalho, mas pode ser utilizada em diversos momentos, desde uma revisão da literatura quanto até os resultados da pesquisa. Uma revisão bibliográfica teórica tem a função de renovar o arcabouço teórico do pesquisador e situá-lo no campo de pesquisa que objetiva adentrar (FLICK, 2013). Este tipo de pesquisa está vinculada a construção de referenciais teóricos e o que é concebido no seio da área, afinal, novos conhecimentos devem estar pautados em conhecimentos previamente estabelecidos (FLICK, 2013). Já a 25 pesquisa bibliográfica metodológica visa a atualização do estudioso com as metodologias que são assumidas pelos pesquisadores do referido campo (FLICK, 2013). A pesquisa bibliográfica pode se dividir em simples ou sistemática, como sugere Gil (2008). Segundo o autor, a pesquisa bibliográfica simples não faz uso de métodos sistemáticos, pautada em conhecimentos básicos do campo ou em revisões simples, não tendo como objetivo produzir uma pesquisa tão profunda a respeito do tema. Dessa maneira, são revisões que não precisam obedecer a um padrão metodológico tão rígido quanto a escolha das palavras-chaves e estudos que serão analisados (GIL, 2008). A revisão bibliográfica sistemática, por outro lado, tem um objetivo mais delimitado e claro, primando identificar, sistematizar, analisar e sintetizar as informações importantes disponíveis no respectivo campo que foi aplicada (GIL, 2008). Assim, a seleção de palavras-chaves, do banco de dados, dos estudos será muito mais rigorosa e pautada num objetivo selecionado anteriormente (GIL, 2008; FLICK, 2013). Dentre esses elementos, as especificações do tipo de documento a ser considerado e as fontes de dados é relevante, pois, de certa maneira, ditará o caminho da pesquisa (GIL, 2008; FLICK, 2013). Essas especificações dependerão do objeto de estudo e pesquisa do estudioso e a amplitude que estes abarcam. Em relação às fontes de dados, existem os periódicos e revistas científicas, bases de dados online, dissertações e teses e anais de congressos e outros eventos do campo (GIL, 2008; FLICK, 2013). Especificamente sobre os documentos, estes poderão ser fontes primárias ou secundárias (FLICK, 2013). As fontes primárias são documentos e textos elaborados pelos cientistas diretamente relacionados com alguma descoberta e que são frutos diretos da pesquisa, enquanto que as fontes secundárias são estudos produzidos partindo das fontes primárias, como críticas, análises e sínteses desses documentos geradores (FLICK, 2013). Assim esta pesquisa tem caráter de revisão bibliográfica sistemática da literatura sobre o flogisto em periódicos filosóficos da química. Na próxima seção, apresentaremos quais os periódicos utilizados na coleta de dados, a palavra-chave, os filtros aplicados que resultaram nos artigos que serão descritos e a maneira como esses textos foram separados para construir os resultados e discussões. 26 METODOLOGIA DE COLETA E ANÁLISE DE DADOS A coleta de dados foi realizada em dois periódicos: a HYLE - International Journal for Philosophy of Chemistry e a Foundations of Chemistry. A Hyle é um periódico que visa abarcar os aspectos filosóficos da química (HYLE, 2022). Os artigos dessa revista tratam de temas epistemológicos, metodológicos, problemas ontológicos da química, peculiaridades da química e as relações com a tecnologia, facetas filosoficamente importantes da história, sociologia, linguística e educação química, dentre outros (HYLE, 2022). Ela não aceita submissões atualmente, restando apenas os textos que foram publicados entre 1995 e 2021 (HYLE, 2022). Segundo informações do site, a suspensão da publicação se deve ao fato de que não havia uma quantidade razoável de submissões de qualidade ao longo do ano (HYLE, 2022). A Foundations of Chemistry é uma revista na qual ocorrem discussões interdisciplinares entre químicos, bioquímicos, filósofos, sociólogos, historiadores e educadores sobre temas conceituais e relevantes, segundo informações do site, que se conectam com a ciência central da química (SPRINGER, 2023). É um periódico presente na base de dados da Springer Link. A revista publica artigos centrados em temáticas como modelos químicos, linguagem metáforas e termos teóricos, evolução química e auto-replicação artificial, aspectos sociais e éticos do profissionalismo da química, química teórica e artigos sobre história e filosofia da química, dentre outros temas (SPRINGER, 2023). O objetivo principal dessa coleta de dados era precisamente encontrar textos que articulassem aspectos históricos e filosóficos da química, mais especificamente do flogisto, as contribuições de Stahl e de Lavoisier e compreender o entendimento desta entidade no decorrer do século XVIII junto às suas diversas mudanças. Para iniciar essa coleta de dados, foi necessário estabelecer as palavras-chave que nortearam a seleção dos textos. Tendo isso em vista, após um estudo prévio da temática, optou-se por usar três palavras-chaves: “phlogiston”, “Stahl” e “Lavoisier”. O motivo de usar as palavras “Stahl” e “Lavoisier” associadas em todas as buscas é justamente para encontrar textos que contivessem discussões sobre a controvérsia do flogisto de Stahl e a sua derrubada pelas teorizações de Lavoisier. No entanto, ainda sim houveram mais artigos do que o esperado, alguns não tendo relação direta com o flogisto enquanto entidade. Assim, optamos por usar 27 apenas a palavra “phlogiston” e obtivemos artigos, resenhas e entradas de referência. Optamos por delimitar as buscas e respeitar uma lógica para se adequar a uma revisão sistemática. Especificamos que os resultados a serem considerados devem apresentar a palavra-chave ou no título, ou no resumo ou no conjunto de palavras-chaves do próprio texto. Com o intuito de padronizar ainda mais a coleta de dados, optou-se apenas por artigos científicos, sendo excluído qualquer outro tipo de texto. A intenção era buscar propostas recentes de explicação sobre o tema, pautando-se na pesquisa revisada por pares, por isso a escolha apenas por artigos. A forma que cada uma das buscas ocorreu nos periódicos estão descritas a seguir O primeiro periódico que fizemos a busca foi a HYLE (International Journal for Philosophy of Chemistry). Para realizar a busca, foi selecionada a opção “journal papers” na página inicial de busca, essa que deveria retornar apenas artigos. Essa revista publica artigos, ensaios, resenha de livros, relatórios e resumos de biografias. Nesse sentido, optamos por selecionar a busca do tipo avançada e no campo “Find pages with... all of these words” foi inserida a palavra-chave de busca, entretanto, uma vez que o próprio campo compreende que a palavra deve aparecer ao longo do texto, não houve uma filtragem específica, pois o objetivo era encontrar essa palavra no título, ou no resumo ou nas palavras-chaves do artigo. Isso só foi possível deduzir por conta de outros campos presentes na busca avançada do site: “and this exact phrase”, “and any of these words” e “and none of these words”. Contudo, esses outros campos não foram preenchidos. A figura 1 mostra como é a ferramenta de busca avançada da Hyle e que esta não possui um campo para filtrarmos onde a palavra-chave deve aparecer, seja no título, resumo ou palavras-chaves dos artigos. Figura 1 - Captura de tela da ferramenta de buscas avançadas da Hyle. 28 Fonte: Hyle (2022). Essa busca retornou 20 resultados, que estavam distribuídos em artigos, listas de referências e book reviews. Notamos que a plataforma de busca não fornecia a opção de delimitar ainda mais as buscas, dessa forma, tivemos que fazer a seleção manualmente dos artigos que possuíam ou no título, ou no resumo ou nas palavras-chaves a palavra “phlogiston”. Nesse caso, o número de artigos caiu de vinte para três que atendiam o pré-requisito estabelecido. A Foundations of Chemistry foi o segundo periódico que fizemos a coleta de artigos. A busca foi feita utilizando a mesma palavra-chave “phlogiston”. A busca resultou em 49 textos, sendo artigos, book reviews, arquivos editoriais e entrevistas. Também analisamos as ferramentas de buscas e filtragem disponíveis na plataforma e mais uma vez nos deparamos com a limitação quanto a busca avançada. Tendo isso em vista, fizemos o download de todos os textos retornados, selecionamos os que eram apenas artigos e aplicamos manualmente os filtros aplicados anteriormente na Hyle. Ao selecionar apenas os artigos que apresentassem ou no título, ou no resumo ou nas palavras-chaves o termo “phlogiston”, de 49 esse 29 número caiu para 10. A seguir, é disponibilizado um quadro com o título, autor, ano de publicação e periódico de dados em que o artigo se encontra. Quadro 1: Informações sobre os artigos retornados na coleta de dados. Título Autor e ano de publicação Periódicos Lavoisier’s ‘‘Reflections on phlogiston’’ I: against phlogiston theory Nicholas W. Best (2015) Foundations of Chemistry Lavoisier’s ‘‘Reflections on phlogiston’’ II: on the nature of heat Nicholas W. Best (2016) Foundations of Chemistry The development of problems within the phlogiston theories, 1766–1791 Geoffrey Blumenthal; James Ladyman (2017) Foundations of Chemistry Theory comparison and choice in chemistry, 1766–1791 Geoffrey Blumenthal; James Ladyman (2018) Foundations of Chemistry Priestley’s views on the composition of water and related airs Geoffrey Blumenthal (2019) Foundations of Chemistry Quantum Mechanics and Molecular Design in the Twenty First Century Mark Eberhart (2002) Foundations of Chemistry Mechanistic Explanation versus Deductive-Nomological Explanation F. Michael Akeroyd (2008) Foundations of Chemistry Hasok Chang on the nature of acids Eric R. Scerri (2022) Foundations of Chemistry Viewing chemistry through its ways of classifying Wolfgang Lefèvre (2012) Foundations of Chemistry From phlogiston to caloric: chemical ontologies Mi Gyung Kim (2011) Foundations of Chemistry The Reality of Phlogiston in Great Britain John Stewart (2012) Hyle The Hidden History of Phlogiston: How Philosophical Failure Can Generate Historiographical Hasok Chang (2010) Hyle 30 Refinement The ‘Instrumental’ Reality of Phlogiston Mi Gyung Kim (2014) Hyle Fonte: Elaboração própria. Apresentada como se sucedeu a coleta dos artigos destacados no quadro acima, na subseção seguinte descreveremos a metodologia de análise de dados. A metodologia de análise de dados Após fazer todas as verificações de quais textos atendiam os pré-requisitos da coleta de dados sistemática, realizamos a leitura de todos e elaboramos uma divisão entre artigos que apresentavam discussões históricas e os que tinham discussões centradas na filosofia. Percebemos que os artigos de Stewart (2012), Best (2015; 2016), Blumenthal e Ladyman (2017; 2018) e Blumenthal (2019) exibem enfoque histórico. Blumenthal e Ladyman (2017; 2018) se preocupam em apresentar como a teoria do flogisto foi compreendida, reformulada e aplicada em outros campos por adeptos a este sistema. Ao longo do texto, os autores apresentam passagens históricas que remontam o período do século XVIII no que se refere às práticas químicas laboratoriais, as disputas teóricas, a reestruturação de teorias e a divisão da comunidade científica entre os que aceitavam a teoria, os que discordavam e os que abandonaram. O artigo de Blumenthal (2019) tem o mesmo objetivo de Blumenthal e Ladyman (2017; 2018), a diferença está no foco que Blumenthal (2019) dá para um dos flogistonistas daquele contexto, a saber, Priestley. Best (2015; 2016) em seus dois artigos faz a transcrição da palestra de Lavoisier à comunidade epistêmica da época. Nos textos do autor, são traduzidas as falas de Lavoisier, que se preocupa em descrever o flogisto e seus problemas e apresentar a teoria do calórico como a sucessora desta entidade. Stewart (2012), por sua vez, mostra como foi a realidade dos químicos flogistonistas do século XVIII na região da Grã-Bretanha, visto que lá os estudos pneumáticos estavam em ascensão e o flogisto não era mais uma entidade imaginária, mas era presente instrumentalmente na prática laboratorial dos químicos. Os artigos classificados como filosóficos apresentam discussões relacionadas à essência do flogisto e a utilização desta teoria como exemplo. Os 31 textos separados para a análise nesta categoria são os de Eberhart (2002), Akeroyd (2008), Kim (2008; 2011), Chang (2010), Lefèvre (2012) e Scerri (2022). Os artigos de Kim (2008; 2011) e Chang (2010) apresentam uma discussão de cunho ontológico sobre o flogisto, ou seja, sobre a natureza desta entidade, questionando Lavoisier e seus partidários quanto a noção de que acusavam ser uma substância imaginária, porém, o calórico de Lavoisier também apresentava as mesmas características. Scerri (2022) constrói críticas à maneira de Chang considerar teorias e entidades químicas, citando como exemplo, a compreensão do estudioso sobre o flogisto. Os artigos de Akeroyd (2008) e Lefèvre (2012) se preocupam em apresentar a teoria do flogisto como um exemplo de explicação baseada num tipo específico de argumentação e o desenvolvimento da classificação ao longo da história da química. Eberhart (2002), por fim, utiliza a teoria do flogisto como exemplo de sistema teórico que atrapalhou o desenvolvimento científico do século XVII para poder afirmar que a mecânica quântica sofre do mesmo problema, pois ainda são consideradas as noções contemporâneas de ligação química para descrever o comportamento dos átomos. Abaixo, no quadro 2, os artigos com enfoque histórico estão apresentados. São destacados o título dos artigos, os respectivos autores e um breve resumo, elaborado por nós, para que o leitor compreenda o que é discutido ao longo de cada texto. Quadro 2: Artigos históricos. Título Autor Resumo (elaboração própria) The Reality of Phlogiston in Great Britain John Stewart A intenção do autor é mostrar como os químicos pneumáticos britânicos desenvolveram uma nova matriz conceitual de flogisto na segunda metade do século XVIII. A concepção francesa do flogisto foi desestabilizada pela introdução da termometria de Boerhaave. O autor se preocupou em mostrar que até aproximadamente 1790 os químicos pneumáticos britânicos desenvolveram novos entendimentos do calor com uma definição operacional de flogisto baseada em afinidade, assim estabilizando o conceito, resultando num outro tipo de flogisto. Lavoisier’s ‘‘Reflections on phlogiston’’ I: Nicholas W. Best É um artigo seminal que marca um ponto de viragem da "Revolução Química". Aqui é apenas traduzida a primeira parte do que Lavoisier afirmou sobre o 32 against phlogiston theory flogisto e como alguns estudiosos substituíram a teoria original de Stahl por sistemas radicalmente diferentes que conceituavam o princípio do flogisto de maneiras completamente incompatíveis. Ele refuta suas alegações, mostrando que esses modelos posteriores estavam repletos de inconsistências quanto ao peso do flogisto, sua capacidade de penetrar no vidro e seu papel como fonte de cor e odor em compostos químicos. Lavoisier’s ‘‘Reflections on phlogiston’’ II: on the nature of heat Nicholas W. Best Transcrição da segunda parte do ensaio de Lavoisier em que, depois de ter refutado a teoria do flogisto, expõe a sua nova teoria da combustão, baseada no princípio do oxigênio. Além de tratar de explicar as mudanças de volume, capacidade térmica e calor latente, também explica outras fontes químicas de calor, como o calor da solução. The development of problems within the phlogiston theories, 1766–1791 Geoffrey Blumenthal; James Ladyman Este é o primeiro de uma dupla de artigos. Se concentra no desenvolvimento das teorias flogísticas mais notáveis durante o período 1766-1791, incluindo os principais experimentos que os estudiosos proponentes se propuseram interpretar. As exposições e análises dessas teorias são apresentadas a partir de detalhes que estavam na literatura na época ou de outra forma potencialmente compreensíveis pelos participantes dada a prática contemporânea naquele contexto. Alguns aspectos metodológicos da história da ciência são discutidos, e a literatura secundária é brevemente pesquisada e citada. Theory comparison and choice in chemistry, 1766–1791 Geoffrey Blumenthal; James Ladyman É o segundo de uma dupla de artigos escritos pelos autores. Este artigo se dedica a comparação teórica e a mudança teórica, dando uma comparação detalhada entre as teorias disponíveis em 1790-1791, e mostra que isso foi fortemente a favor da nova química. Como apontam os autores, este período de tempo correlaciona-se com muitos químicos mudando para a nova teoria. Priestley’s views on the composition of water and related airs Geoffrey Blumenthal Este artigo realiza um estudo detalhado do trabalho tardio de Priestley sobre água e ares relacionados, primando pela sua versão da teoria do flogisto e apresentando a característica pessoal de Priestley ao responder às críticas da nova química que emergiram. Este estudo também tem implicações sobre a natureza da química e outras ciências, como elas progridem e como devem progredir. Fonte: Elaboração própria. 33 A seguir, no quadro 3, são apresentados os artigos com enfoque filosófico. São destacados o título dos artigos, os respectivos autores e um breve resumo, elaborado por nós, para que o leitor compreenda o que é discutido ao longo de cada texto. Quadro 3: Artigos filosóficos. Título Autor Resumo (elaboração própria) The Hidden History of Phlogiston: How Philosophical Failure Can Generate Historiographical Refinement Hasok Chang O autor se preocupa em argumentar que nenhuma teoria filosófica padrão do método científico pode explicar por que químicos europeus fizeram uma mudança repentina e quase unânime de fidelidade da teoria do flogisto à teoria de Lavoisier. Para o autor, uma nova análise cuidadosa da história mostra que a mudança não foi tão rápida nem tão unânime quanto imaginado por muitos historiadores. Ainda apresenta breves reflexões sobre a melhor forma de explicar a tendência geral que ocorreu em direção à teoria de Lavoisier. The ‘Instrumental’ Reality of Phlogiston Mi Gyung Kim A autora argumenta que a estabilidade do flogisto na química francesa do século XVIII não dependia de seu papel como uma teoria abrangente, mas de suas identidades operacionais, teóricas e filosóficas (especulativas), criadas em diferentes contextos, mas unidas para designar uma única substância. Era tão real quanto qualquer outra substância química, na medida em que era obtida por meio de operações materiais, ocupava um lugar na construção teórica da tabela de afinidades e era provida de uma ontologia corpuscular. Lavoisier a descreveu como uma substância “imaginária”, pois oferecia uma resistência única à sua visão da nova química fundamentada em medições “métricas” e representações algébricas. From phlogiston to caloric: chemical ontologies Mi Gyung Kim A autora faz discussões de cunho ontológico a respeito do flogisto e do calórico. Discorre que os cientistas antiflogistonistas prevaleceram e que isso foi um marco para historiadores e filósofos da ciência que caracterizam a "Revolução Química" como uma extensa mudança conceitual. Parte de elementos da teoria de Thomas Kuhn e faz comparações entre as teorias do flogisto e oxigênio e as práticas instrumentais que os envolviam. Aponta o calórico como a entidade contrária ao flogisto e seu motivo de embate científico. Quantum Mechanics and Molecular Design in the Twenty First Century Mark Eberhart O autor discute que as descrições convencionais sobre ligações químicas comprometem a utilidade da mecânica quântica na síntese e design de novas moléculas e materiais. Segundo ele, isso pode ter 34 resquícios de quando se acreditava que o flogisto era um elemento, e que pode ter impedido o desenvolvimento da química. Para o autor, superar os obstáculos atuais demandará novos métodos para descrever a estrutura molecular e a ligação, assim como novos conceitos eram necessários antes que a teoria do flogisto pudesse ser deixada de lado. Mechanistic Explanation versus Deductive-Nomologi cal Explanation F. Michael Akeroyd Este artigo discute o estudo de Paul Thagard sobre a versão do caminho da explicação mecanicista que é atualmente usada na explicação química. Thagard afirma que esse método de explicação tem um pedigree respeitável e pode ser rastreado até a "Revolução Química" nos argumentos usados pelas teorias de Lavoisier em suas disputas teóricas contra Richard Kirwan, dono de uma teoria flogistoniana revisada. Lavoisier, Fourcroy e seus colegas usaram o raciocínio do caminho, mesmo disfarçando esse fato, sugerindo que as afinidades variavam quando submetidas a situações de n-corpos. Hasok Chang on the nature of acids Eric R. Scerri O artigo se debruça nas visões inter-relacionadas que Hasok Chang promoveu, como o pluralismo, pragmatismo e uma visão associada de tipos naturais. O filósofo também defende o que ele chama de persistência de termos cotidianos na visão científica. Chang afirma que termos como flogisto nunca foram de fato abandonados, mas se transformaram em diferentes conceitos que permanecem úteis. O presente artigo examina alguns desses pontos de vista, especialmente o que Chang afirma ser uma ruptura na definição de acidez. Viewing chemistry through its ways of classifying Wolfgang Lefèvre O foco dessa contribuição está na química do século XVIII até o sistema químico antiflogístico de Lavoisier. Algumas das principais características da química nesse período são examinadas discutindo práticas classificatórias e a compreensão das substâncias que essas práticas implicam. Em particular, é discutida a questão de saber se podem ser consideradas como práticas históricas naturais e, portanto, se a própria química era uma história natural especial. Ao investigar o que as ordens taxonômicas revelam sobre as estruturas profundas da compreensão dos químicos sobre o mundo das substâncias, o artigo examina a questão de saber se o sistema químico antiflogístico de Lavoisier foi uma revolução no nível de uma estrutura profunda ou uma revisão dentro do sistema intocado de tal estrutura. Fonte: Elaboração própria. 35 Apresentaremos a seguir como articulamos os textos entre si para haver um sentido lógico no que percebemos com a leitura de cada um dos artigos. Nas seções responsáveis pela discussão histórica sobre a teoria do flogisto, organizamos as discussões tendo como espinha dorsal os artigos de Blumenthal e Ladyman (2017; 2018). Seguir essa lógica auxiliou para que houvesse uma cronologia que se inicia com a descrição da primeira teoria flogística de Stahl e de onde ele colheu dados para construí-la, as diversas versões revisadas desta teoria e quando todas se tornaram insustentáveis. Assim, a estrutura destas seções será baseada na estrutura desses dois artigos, contudo, associamos o que Blumenthal e Ladyman (2017; 2018) discutem com trechos históricos de outros artigos e livros já lidos pelo autor deste estudo, tanto para detalhar elementos históricos que os autores criticam ou omitem (seja qual for a razão), quanto para não se tornarem seções que citam apenas os dois autores com "pequenos" trechos dos outros artigos. Esses outros textos históricos que contribuíram com estas seções foram selecionados a partir de uma revisão bibliográfica simples realizada à parte, tendo como objetivo a complementação supracitada. A utilização do artigo de Blumenthal e Ladyman (2018) ao longo da estrutura principal das subseções históricas nos auxiliou a evidenciar os problemas das teorias tardias do final do século XVIII, mostrar o que os autores recuperam de Lavoisier como sendo o cientista que corrigiu algumas falhas e criou uma nova química, e posteriormente argumentam sobre os textos da filosofia e dizer que não foi dessa maneira que as coisas ocorreram. A utilização do artigo de Blumenthal (2019) nas subseções históricas serviu para complementar o que os estudos de Blumenthal e Ladyman (2017; 2018) destacam sobre as teorias flogísticas revisadas. O texto de Stewart (2012) cumprirá a mesma função que o artigo de Blumenthal (2019). As ideias de Stewart (2012) foram utilizadas como complementos para a discussão principal sobre a história da teoria do flogisto. Os elementos chaves das subseções históricas estão presentes nos artigos de Best (2015; 2016). A partir das transcrições das falas de Lavoisier, é possível conhecer a entidade flogisto na visão de um cientista que viveu naquele contexto. Dessa forma, grande parte das passagens históricas sistematizadas na espinha dorsal das discussões históricas serão complementadas pela visão de Lavoisier sobre esta entidade e suas versões. 36 Salientamos que apesar dos artigos da filosofia não terem sido inseridos nas discussões históricas, alguns trechos são aproveitados e mencionados, pois tem uma carga historiográfica que auxiliou na compreensão do que será discutido. Reiteramos que, apesar de termos estabelecido essa separação, ainda sim todos os textos se conectam, seja pela história e pela filosofia da química. Exemplo disso, é a utilização do artigo de Best (2016), pois além de sistematizar apontamentos históricos sobre o calórico de Lavoisier, apresenta a visão do cientista sobre o calor, objeto esse que será melhor explorado e, de certo, criticado nas subseções filosóficas. O objetivo deste delineamento histórico é criar um panorama histórico sobre a natureza do flogisto e caminhar para a polêmica envolvendo essa entidade, a saber, se realmente seu papel como substância imaginária gerou elementos necessários para o estopim de uma suposta revolução no campo da química. No que se refere a seção reservada para discutir a filosofia por trás do flogisto, optou-se por dividi-la em duas subseções após uma análise dos artigos selecionados. A primeira subseção utiliza o flogisto como objeto nos artigos selecionados. Tanto Kim (2008; 2011) quanto Chang (2010) se preocupam em pontuar a compreensão ontológica do flogisto criticando o calórico estabelecido por Lavoisier. É apresentada a relação entre fogo, flogisto e calórico de acordo com os autores, após isso, é demonstrado que Lavoisier, ao fazer a substituição do flogisto pelo calórico, não havia superado a noção imaginária dessas substâncias (KIM, 2008; 2011; CHANG, 2010). A partir disso, os autores pontuam que não existem elementos suficientes para caracterizar a existência de uma revolução, como Thomas Kuhn e Imre Lakatos afirmam. Scerri (2022), surge no final desta subseção criticando a nostalgia conceitual de Chang, mas concorda que não houve uma revolução. Na subseção responsável por apresentar o flogisto como exemplo, os autores selecionados para constituir essa parte do texto utilizam da teoria do flogisto como um exemplo para falar das práticas classificatórias na química e para discorrer sobre os tipos de explicação na ciência, destacando mais especificamente o embate entre Lavoisier e o flogistonista Richard Kirwan (AKEROYD, 2008; LEFÈVRE, 2012). Assim como Kim (2008; 2011), Chang (2010) e Scerri (2022), Akeroyd (2008) e Lefèvre (2012), em linhas gerais, concordam que os elementos pontuados na história da ciência como problemáticos na teoria do flogisto não são suficientes para 37 declarar a existência de uma revolução científica. Eberhart (2002) finaliza a subseção do flogisto enquanto exemplo, afirmando que a teoria respectiva a esta entidade foi um percalço para o desenvolvimento científico no contexto do século XVIII, o que demonstra uma discordância deste autor sobre o que todos os outros afirmam. Em outras palavras, Eberhart (2002) é o único que acredita no caráter retrógrado do flogisto para a ciência. Todos os outros autores, por outro lado, parecem estar articulados com o questionamento se realmente existiram elementos suficientes para caracterizar uma revolução, visto que as diversas teorias concorrentes que se sobressaíram tinham problemas muito semelhantes àqueles apresentados sobre o flogisto. Compreendido como se dará o desenvolvimento da análise dos dados, a seguir, apresentamos a seção “resultados e discussões”. 38 RESULTADOS E DISCUSSÕES: SISTEMATIZANDO OS APONTAMENTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS DOS ARTIGOS COLETADOS Após a análise prévia dos artigos, notou-se que alguns se encaixam na perspectiva histórica da química, enquanto outros na perspectiva filosófica. Tendo isso em vista, optou-se por dividir a seção “Resultados e Discussões” em dois ramos, um que trata da história do flogisto e o desenvolvimento intelectual e científico que essa entidade provocou aos seus adeptos, e outro que apresenta filosoficamente o flogisto enquanto objeto e o flogisto como exemplo. Reiteramos que nas subseções responsáveis por trazer a historicidade do flogisto, não estão presentes apenas os textos encontrados na coleta de dados, mas contarão também com trechos históricos de outros artigos e livros investigados, tanto para detalhar elementos historiográficos que os autores criticam ou omitem (seja qual for a razão), quanto para não ser uma seção que cita apenas alguns autores com "pequenos" trechos dos outros artigos. A seguir, será apresentada uma breve descrição dos autores dos textos obtidos na coleta de dados. Optou-se por produzir esse detalhamento por conta dos textos apresentarem conexões e citações entre os próprios autores, demonstrando a possibilidade de existência de algum tipo de relação acadêmico-profissional, podendo ter contribuído para que esses estudos fossem elaborados e publicados. Reiteramos que apesar de termos separado os artigos históricos dos artigos filosóficos em subseções específicas, em alguns momentos esses textos se relacionam, assim aparecendo algumas ideias dos artigos filosóficos nas subseções dos artigos históricos e vice-versa. Nas subseções históricas, os autores selecionados para compô-las foram Stewart (2012), Best (2015; 2016), Blumenthal e Ladyman (2017; 2018) e Blumenthal (2019). John Stewart3 é docente do departamento de História da Ciência da Universidade de Oklahoma. Segundo informações do site da universidade, o estudioso é bacharel em artes, mestre e doutor em filosofia com foco em história da ciência e realizou estágio de pós-doutoramento em história da ciência pela mesma instituição. Atualmente é diretor assistente do Escritório de Aprendizagem Digital da 3 Informações retiradas do site Hyle, disponível em: http://www.hyle.org/journal/issues/18-2/stewart.htm#ad e do site da Universidade de Oklahoma https://www.ou.edu/digitallearning/about/staff/john-stewart. http://www.hyle.org/journal/issues/18-2/stewart.htm#ad https://www.ou.edu/digitallearning/about/staff/john-stewart 39 respectiva universidade além de estar à frente de diversos projetos, como de aprendizagem lúdica e alfabetização digital. No artigo de Stewart encontrado na coleta de dados, o estudioso tece algumas discussões sobre a instrumentalidade do flogisto francês situado no artigo de Kim (2008). O estudo de Kim que o autor faz referência também é resultado da nossa coleta de dados e será discutido neste estudo. Nicholas W. Best4, professor da Universidade de Indiana, é bacharel em química, mestre em história e filosofia da ciência e doutor em filosofia pela universidade supracitada, tendo realizado estágio de pós-doutoramento na mesma área. Ao investigarmos suas publicações, notamos que o estudioso se dedica a estudar a Revolução Química, apresentando aspectos e argumentos filosóficos para reafirmar seu caráter de revolução científica. Para tanto, em dois de seus trabalhos (BEST, 2015; 2016), os quais foram resultados da coleta de dados realizada no presente estudo, se pautam na transcrição e tradução das falas de Lavoisier contra o flogisto e a favor do calórico. Geoffrey Blumenthal é docente do departamento de filosofia da Universidade de Bristol, no Reino Unido, contudo, ao buscarmos informações sobre o autor quanto a sua formação acadêmica, infelizmente não obtivemos resultados. Acessando sua lista de publicações na Foundations of Chemistry e na PhilPeople5, percebemos que o autor se dedica a estudar teorias como a do flogisto e do calórico, além de analisar a Revolução Química a partir da perspectiva de Kuhn. Além disso, tem estudos com outros autores encontrados na coleta de dados, a saber, James Ladyman e Eric Scerri. James Ladyman, assim como Blumenthal, é docente de filosofia do departamento de filosofia da Universidade de Bristol, no Reino Unido. Apesar de não termos encontrado dados sobre sua formação acadêmica, no site6 da universidade em que está lotado, Ladyman descreve interesses em filosofia geral da ciência e da física. Além de ter pesquisado sobre o realismo científico, empirismo construtivo e realismo estrutural, atualmente pesquisa e possui artigos sobre a representação, fisicalismo, relação entre as ciências especiais e a física, metafísica, filosofia da informação e da computação e filosofia da matemática. 6 Disponível em: https://research-information.bris.ac.uk/en/persons/james-a-c-ladyman. 5 Disponível em: https://philpeople.org/profiles/geoffrey-blumenthal/news. 4 Informações retiradas do site da Universidade de Indiana, disponível em: https://indiana.academia.edu/NWBest e do seu perfil pessoal do Google Scholar. https://research-information.bris.ac.uk/en/persons/james-a-c-ladyman https://philpeople.org/profiles/geoffrey-blumenthal/news https://indiana.academia.edu/NWBest 40 Nas subseções filosóficas, os autores selecionados para compô-las foram Eberhart (2002), Akeroyd (2008), Kim (2008; 2011), Chang (2010), Lefèvre (2012) e Scerri (2022). Mark Eberhart7 é professor do departamento de química e geoquímica da Escola de Minas do Colorado. O estudioso é bacharel em química e matemática pela Universidade do Colorado, mestre em bioquímica física pela mesma instituição e doutor em ciência e engenharia dos materiais pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Diferentemente dos outros pesquisadores descritos até aqui, Eberhart não possui ampla carreira na área da história e/ou filosofia da ciência, mas sim em métodos da mecânica quântica para compreender as origens atômicas das propriedades dos materiais, fixando-se na área dura da química. Por isso, o seu artigo utiliza do flogisto como exemplo de teoria que impediu o desenvolvimento da ciência, assim como são as definições de ligações químicas para a evolução da mecânica quântica. A respeito de F. Michael Akeroyd8, não encontramos nenhum dado de sua carreira acadêmica, contudo, ao pesquisarmos seus artigos publicados, notamos que é um docente da Colégio de Bradford, no Reino Unido, se dedicando a pesquisas de cunho filosófico sobre a química e a bioquímica, trabalhando com os tipos de explicação nomológica, estudos sobre epistemólogos da ciência como Kuhn, Popper e Lakatos e a revolução científica de Lavoisier. Em um de seus artigos9, faz uma resposta direta a Eric Scerri sobre a previsão e a tabela periódica. Mi Gyung Kim10 é docente do departamento de história da Universidade Estadual da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. É bacharel em química pela Universidade Nacional do Seoul, na Coreia do Sul, mestre em química pela Universidade do Texas e doutora em história pela Universidade da Califórnia em Los Angeles. A autora constrói sua carreira pesquisando a história européia da química do final do século XVII ao final do século XIX. No seu livro “Affinity, that elusive dream: a genealogy of the chemical revolution”, de 2003, a autora tenta apresentar uma genealogia mais complexa sobre a Revolução Química, episódio este, segundo a autora, que é considerado como o marco fundamental para a química e as 10 Informações retiradas do site https://chass.ncsu.edu/people/migkim/. 9 “Prediction and the Periodic Table: a response to Scerri and Worrall” publicado no Journal for General Philosophy of Science. 8 Informações cedidas pelo site https://philpapers.org/s/F.%20Michael%20Akeroyd. 7 Informações retiradas do site da Escola de Minas do Colorado, disponível em: https://chemistry.mines.edu/project/eberhart-mark/ https://chass.ncsu.edu/people/migkim/ https://philpapers.org/s/F.%20Michael%20Akeroyd https://chemistry.mines.edu/project/eberhart-mark/ 41 ciências contemporâneas laboratoriais. Por se dedicar à pesquisa em história e filosofia da química, Kim, juntamente a Hasok Chang e Eric Scerri, autores de textos encontrados na coleta de dados, compõem a equipe editorial da Hyle: International Journal for Philosophy of Chemistry. Hasok Chang11 é docente do departamento de história e filosofia da ciência da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. É graduado no programa de estudos independentes com ênfase em física teórica e filosofia pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia. Foi aluno pós-graduando visitante no departamento de história da ciência da Universidade de Harvard e é doutor em filosofia pela Universidade de Stanford. Segundo informações disponibilizadas no site da Universidade de Cambridge12, o pesquisador tem interesses em história e filosofia da química e física a partir do século XVIII, filosofia prática científica, realismo, pragmatismo, medição e evidência na filosofia da ciência. Assim como Kim, Chang é membro editorial da revista Hyle. Analisando os artigos de Kim (2008) e Chang (2010), notamos, na seção de agradecimentos dos dois artigos, que ambos autores se conheciam. No estudo de Kim (2008), a autora agradece a Chang por fornecer comentários em prol da construção do referido artigo, enquanto que no texto de Chang (2010), o estudioso agradece a Kim por ter o convidado para uma conferência de historiadores e filósofos da ciência e ter recomendado seu estudo de 2010 para a Hyle. Diante disso, percebemos que as discussões nos dois artigos, assim como o artigo de 2011 de Kim, estão alinhadas e entrelaçadas. Ambos autores retratam as ontologias do flogisto e do calórico, questionando a veracidade da suposta Revolução Química, além de fazerem apontamentos às ideias de Kuhn e Lakatos sobre esse episódio histórico. De acordo com suas páginas no ResearchGate e no Instituto Max Planck13, Wolfgang Lefèvre é docente do departamento de mudanças estruturais nos sistemas de conhecimento, do Instituto Max Planck de História da Ciência em Berlim, na Alemanha. Informações sobre a carreira de Lefèvre não foram encontradas, porém, sendo doutor em filosofia, pesquisa sobre história da ciência em conexão com a 13 Disponível nos sites https://www.researchgate.net/profile/Wolfgang-Lefevre-2. 12 Disponível no site https://www.hps.cam.ac.uk/directory/chang. 11 Informações retiradas do currículo de Chang, disponível no site https://cambridge.academia.edu/HasokChang/CurriculumVitae. https://www.researchgate.net/profile/Wolfgang-Lefevre-2 https://www.hps.cam.ac.uk/directory/chang https://cambridge.academia.edu/HasokChang/CurriculumVitae 42 história da filosofia com base na história social, ciências na antiguidade grega, física e química modernas e história da biologia nos século entre os séculos XV e XVIII. Eric Robert Scerri14 é docente do departamento de química e bioquímica da Universidade da Califórnia em Los Angeles, possuindo bacharelado em química pela Universidade de Londres, certificação de pós-graduação em química pela Universidade de Cambridge, mestrado em filosofia em físico-química pela Universidade de Southampton, doutorado em história e filosofia da ciência pela Universidade de Londres e estágio de pós-doutoramento na Escola Londrina de Ciências Econômicas. Seus interesses de pesquisa pautam-se na história e filosofia da química, redução da química à mecânica quântica, evolução histórica do sistema periódico e suas explicações, a natureza filosófica dos elementos e a apresentação da estrutura eletrônica e mecânica quântica no ensino de química contemporâneo. O estudioso é fundador e editor-chefe da revista Foundations of Chemistry e participa do corpo editorial da Hyle, assim como Chang e Kim. Dentre os seus artigos, o que surgiu como resultado da nossa coleta de dados faz uma crítica a forma que Hasok Chang compreende a natureza dos ácidos. Mais uma vez notamos relações entre os autores e artigos que emergiram da revisão bibliográfica deste trabalho. Conhecidos os autores dos textos das subseções históricas e filosóficas, nos resta compreender como eles se relacionam entre si acerca do flogisto. Por conta da maioria dos estudiosos aqui listados apresentarem experiência no campo da história e filosofia da ciência, notamos que muitas ideias convergem e se complementam quanto à natureza da referida entidade, bem como as passagens históricas que marcaram seu desenvolvimento e decadência ao longo do século XVIII. Aspectos históricos da (s) teoria (s) do flogisto: proposta inicial, reformulações e decadência No fim do século XVII, a química ainda não tinha tomado um grande espaço, sendo ligada e direcionada a campos como a medicina, práticas artesanais, metalurgia e perfumaria (BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992). Debus (1991, p. 37) pontua que muitos estudiosos da área eram médicos-químicos que estavam pesquisando resoluções de problemas de suas áreas, uma vez que compreendiam que “já que o microcosmo operava quimicamente, os remédios preparados pela 14 Informações cedidas pelos sites https://ericscerri.com/ e https://www.chemistry.ucla.edu/directory/scerri-eric-r/. https://ericscerri.com/ https://www.chemistry.ucla.edu/directory/scerri-eric-r/ 43 química seriam não só apropriados mas necessários”. Segundo Bensaude-Vincent e Stengers (1992), apenas no fim do século XVIII a química passou a ser tida como um ramo da ciência, assumindo sua autonomia como grande área de pesquisa e alicerçando bases sólidas para isto. Bensaude-Vincent (1996) sinaliza que com o passar do século XIX, filósofos, historiadores e químicos creditaram boa parte da ascensão da química enquanto ciência à Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794). A autora discorre que historiadores da contemporaneidade também associam esse marco na história com elementos que compuseram uma revolução, como os sinais de uma crise e a divisão da sociedade química em dois lados, os partidários de Lavoisier e os adeptos ao flogisto. Debus (1991) considera que a Revolução Química tem seus primeiros passos até antes, no século XVI, emergindo por praticamente dois séculos e meio, tendo seu auge no XVIII. Um dos precursores dos confrontos científicos que se instauraram no século XVIII é a entidade flogisto. Destacamos que todo esse processo entre a enunciação e derrubada do flogisto e ascensão das teorizações de Lavoisier ocorreram no contexto da Revolução Industrial e Revolução Francesa, momentos que marcaram a história da Europa e, de certa forma, do mundo, principalmente no que tange a economia, política e conhecimento tecnológico. Blumenthal e Ladyman (2017) afirmam que a teoria do flogisto teve seu auge na química em 1766, sendo um de seus precursores Stahl, porém é possível observar alguns traços nos estudos mais amplos de Becher. Para compreender esse percurso histórico sobre essa teoria da matéria, é necessário conhecer brevemente seus precursores. Johann Joachim Becher (1635-1682) era um estudioso autodidata, tanto para conhecimentos químicos quanto para idiomas, dominando dez, e medicina (MAAR, 2008). Becher entendia que as substâncias eram formadas de ar, água e terra (a terra, para Becher, se subdivide em Vitrificável, Mercurial e Inflamável15), e as substâncias que eram passíveis de combustão nem sempre tinham enxofre16, este último não sendo responsável pela combustão (MAAR, 2008; PRADO; CARNEIRO, 2018). Dessa forma, Becher assumiu que a terra combustível era como uma terra 16 Segundo Maar (2008), Becher entendia o enxofre como uma substância real/existente, um tipo de princípio. 15 Maar (2008) explica que essa terra inflamável/combustível também era nomeada de enxofre, porém, não podemos afirmar que tanto o autor, Maar, quanto o cientista, Becher, estavam se referindo ao enxofre que conhecemos hoje, afinal, foi apenas em 1777 que o elemento químico foi classificado com esse mesmo nome por Lavoisier. 44 gordurosa ou graxa, mais tarde nomeada de flogisto (em grego, “inflamar-se”), sendo uma espécie química com peso e propriedades específicas (MAAR, 2008). Blumenthal e Ladyman (2017) e Maar (2008) pontuam que a falta de um arcabouço teórico e filosófico na teoria da matéria de Becher motivou a continuação de seus estudos por Georg Ernst Stahl (1660-1734), este que adotou os quatro princípios oriundos dos estudos de Becher, seu mentor, para compor sua teoria, sendo eles o da água e das terras vitrificável, inflamável e mercurial. Em sua trajetória, Stahl era ao mesmo tempo médico, farmacêutico e químico, porém, com seus trabalhos, deixou marcas na história da química e da biologia, sendo considerado o pai17 da teoria vitalista, esta que, em resumo, difere e separa fortemente o ser vivo de uma máquina que pode ser elucidada em termos físicos e químicos (BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992). Stahl observou a teoria de Becher como um caminho para construir sua teoria unificadora da química, porém, mesmo reconhecendo Becher em suas produções próprias, buscava deixar explícito que discordava do cientista (MAAR, 2008). Stahl entendia o flogisto como um “princípio”, uma vez que afirmava que a matéria era composta por entidades menores, sendo este o princípio primeiro do fogo e do enxofre, além de ser a causa do odor e sabor (BLUMENTHAL; LADYMAN, 2017). Como os autores destacam, J. Juncker18 descreve que Stahl postulou o flogisto como constituinte do enxofre, óleos, vegetais, animais e muitos outros materiais, além disso, haviam provas experimentais que demonstraram a sua existência. Como exemplo dessa afirmação de Stahl, Blumenthal e Ladyman (2017) citam o argumento do cientista descrito no livro de Juncker, que propõe que ao estanho ser derretido, ficar envolto de cinzas e ter sua superfície recoberta por óleos, resina vegetal ou outro material que Stahl afirmava conter flogisto, as cinzas voltavam a ser estanho novamente, visto que esses materiais forneciam flogisto às cinzas para a recomposição original do estanho. Para os autores, essa explicação no contexto químico da época era tida como racional, mesmo que dependesse da ideia de que o caráter inflamável era intrínseco a um tipo específico de substância. 18 J. Juncker em seu texto “Conspectus Chemiae theoretico-practicae in forma Tabvlarvm repraesantatvs… e Dogmatibvs Becheri et Stahlii potissimvm explicantvr…” de 1757 (não foi fornecido e nem encontrado o nome completo deste autor). Segundo Blumenthal e Ladyman (2017), este estudioso reescreveu e retratou o trabalho de Stahl de forma mais detalhada, legível e coerente. 17 Esse termo é de escolha própria das autoras citadas, a saber, Bensaude-Vincent e Stengers. 45 O flogisto, como descreve Maar (2008), não é um conceito aleatório, mas envolve um emaranhado teórico, sendo herdado dos princípios químicos paracelsianos. O sistema de Stahl pode ser compreendido como racional, pois nega conceitos alquimistas, os substituindo por postulados que propiciam uma generalização (MAAR, 2008). Bensaude-Vincent (1996, p. 203) explica que [...] o flogisto é o princípio do fogo responsável pelas combustões que explicaria pela sua libertação os fenômenos de calor e de luz produzidos por ocasião de uma combustão. É invisível, escondido, impossível de isolar porque está sempre combinado. Além disso, o flogisto pode ser considerado [...] como fogo fixado na matéria. Ele penetra esta intimamente, e escapa-se dela durante as combustões. Quando se calcina um metal, a sua separação deixa uma «cal» (chamada hoje: óxido). Pode-se regenerar o metal se se transferir para a «cal» o flogístico contido em corpos que nele são ricos. Assim, o tratamento pelo fogo das «cales» metálicas em presença de carvão (carbono) permite voltar ao metal (VIDAL, 1986). A figura a seguir descreve como é uma reação de calcinação em que o flogisto é liberado. No caso, conforme um metal calcina, ele produz a sua calce19 (seu óxido metálico) e libera flogisto no ar. Figura 2 – Representação das reações que envolvem o flogisto. 𝑚𝑒𝑡𝑎𝑙 → 𝑐𝑎𝑙𝑥 (ó𝑥𝑖𝑑𝑜 𝑑𝑜 𝑚𝑒𝑡𝑎𝑙) + 𝑓𝑙𝑜𝑔𝑖𝑠𝑡𝑜 𝑐𝑎𝑙𝑥 + 𝑓𝑙𝑜𝑔𝑖𝑠𝑡𝑜 → 𝑚𝑒𝑡𝑎𝑙 Fonte: Adaptação de Maar (2008, p. 494). Mesmo sendo uma teoria conhecida na química próxima ao ano de 1766, não se tinha consenso a respeito de diversas ideias de Stahl, sendo uma pequena parte da teoria do flogisto defendida em um dos principais livros da época, a saber, “Elements of the Theory and Practice of Chymistry” de Pierre Joseph Macquer de 1764 (BLUMENTHAL; LADYMAN, 2017; MOCELLIN, 2006). Segundo Blumenthal e Ladyman (2017), haviam muitas teorias que propuseram que os elementos/princípios estavam ligados a algo no espaço, além de 19 A palavra “calce” e seus plurais são utilizados no texto possuindo o sentido de “metal calcinado”. O processo de calcinação é a oxidação de metais por vias de aquecimento, então um dos produtos desse processo é a calce. Preferimos não utilizar o nome “oxidação” em respeito aos autores dos textos coletados e para manter a nomenclatura da época. 46 tratar do calor, fogo, combustão e luz. Como descrevem, para Stahl, o flogisto era um princípio material encontrado tanto combinado entre as substâncias como no universo como um todo, sendo o calor o movimento dessas moléculas, contudo, não provocava as mudanças de estado, assim o flogisto não é calor. Os autores pontuam que o flogisto provoca a emissão de luz e calor no fogo e afirmam que J. Juncker argumentava que quanto mais puro o flogisto ao ser misturado em substâncias, mais estas serão voláteis e atraídas pelo ar. Stahl afirmava que o flogisto era expelido no decorrer da combustão e calcinação de metais, porém, já se sabia que algumas substâncias aumentavam de peso ao passar pelo processo de calcinação. O flogisto, por muito tempo no século XVIII, fazia parte da realidade instrumental dos químicos, mesmo que um dos principais críticos a essa teoria, Lavoisier, próximo do final do mesmo século, definia esta entidade como imaginária (KIM, 2008). Em 1718, Étienne François Geoffroy (1672-1731) criou e apresentou sua Tabela de Afinidades, a qual continua uma breve descrição de operações básicas da química de soluções para que assim um iniciante na química entendesse as relações entre diferentes substâncias, além de um químico poder encontrar uma forma fácil de descobrir o que ocorre em diversas de suas reações/operações e o que resulta na mistura de diferentes corpos (KIM, 2008). A figura 3 apresenta a tabela de afinidades de Geoffroy com seus símbolos descritos em sua base. Figura 3 – Tabela de afinidades de Geoffroy (1718). 47 Fonte: Kim (2008). Na figura 4, produzida por Mocellin (2006), os símbolos das substâncias da tabela de afinidades estão ampliados e traduzidos. Figura 4 – Descrição dos símbolos da tabela de afinidades de Geoffroy. Fonte: Mocellin (2006). 48 Vidal e Porto (2014, p. 79) explicam que essa tabela (figura 3) sumarizava conhecimentos sobre as reatividades de diferentes substâncias, consideradas no nível macroscópico, e podia ser compreendida sem que fosse necessário entrar em discussões sobre a estrutura microscópica da matéria. Mocellin (2006) descreve que nessa tabela, são apresentadas 16 substâncias que encabeçam 16 colunas, dessa maneira, em cada coluna, a afinidade da primeira substância diminui de cima para baixo (as substâncias estão ampliadas e traduzidas na figura 4). Quando duas substâncias que tendem a se combinar estão unidas e surge uma terceira com afinidade maior com alguma das duas, a terceira tende a se combinar com uma das primeiras liberando a outra, sendo compreendido hoje como reação de simples ou dupla troca (MOCELLIN, 2006). Pudemos perceber que uma das afirmações que creditaram a inclusão do flogisto na tabela de afinidades de Geoffroy foi a de Stahl sobre o conhecimento apenas macroscópico das entidades químicas. Blumenthal e Ladyman (2017) pontuam isso descrevendo que Stahl afirmava não ser possível conhecer as causas distantes, mas sim as próximas, ou seja, não era possível conhecer a substância em sua singularidade, contudo os autores sinalizam que ao assumir que as entidades são feitas de seus princípios, não está observando-se as causas próximas. É salientado que Stahl tentou contornar esse contraponto de sua afirmação justificando que o número de corpos primários deve ser impreterivelmente muito pequeno, mas assume que sua hipótese sobre os quatro princípios não é completamente verdadeira. Os princípios, segundo o cientista, só poderiam ser demonstrados a partir da transposição de uma combinação para outra (BLUMENTHAL; LADYMAN, 2017). Entretanto, os autores entendem que mesmo sendo plausível a transferência entre combinações, não haviam provas que mostrassem que se tratava do flogisto ou outros princípios de Stahl, mas sim de alguma entidade que provocava os mesmos efeitos visíveis. Foi identificado e definido por Geoffroy um princípio oleoso/sulfuroso (contido em matérias inflamáveis, como madeira e carvão, que possuiam maior afinidade com o ácido vitriólico) como o flogisto (princípio da inflamabilidade) de Stahl (KIM, 2008). Após realizar essa identificação, Geoffroy amplificou as discussões sobre o princípio do enxofre ou, agora, flogisto, também incluindo esta última entidade na sua tabela de afinidades (KIM, 2008). Segundo Kim (2008), Geoffroy, ao fazer isso, concedeu ao flogisto uma identidade teórica que também passou a fazer parte da 49 sua identidade operacional, pois com o conhecimento que esta tabela foi ganhando, abriu espaço para o flogisto surgir como substância existente para a química dos sais. Com a inserção do flogisto na tabela de afinidades de Geoffrey e a fama alcançada por essa ferramenta, a teoria de Stahl ganhou mais reconhecimento na Europa durante o século XVIII (BLUMENTHAL; LADYMAN, 2017). Um dos fatores que levaram a isso é destacado por Maar (2008, p. 495-496), pois, para o autor, Uma vantagem adicional da teoria de Stahl é a de substituir por uma teoria única as várias teorias propostas anteriormente. A simplicidade é sempre um aspecto benvindo, e a teoria de Stahl, embora de acordo com os conhecimentos de hoje, baseada em hipóteses falsas, foi, além de internamente coerente, simples. Blumenth