UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS UNESP / FCHS LEONARDO HENRIQUE CARDOSO DE ANDRADE O SUICÍDIO: ensaios críticos sobre a sociedade contemporânea FRANCA 2021 LEONARDO HENRIQUE CARDOSO DE ANDRADE O SUICÍDIO: ensaios críticos sobre a sociedade contemporânea Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré- requisito para obtenção do Título de Doutor em Serviço Social. Linha de pesquisa: Serviço Social, Formação e Trabalho Profissional. Orientadora: Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz FRANCA 2021 FICHA CATALOGRÁFICA A553s Andrade, Leonardo Henrique Cardoso de O Suicídio : ensaios críticos sobre a sociedade contemporânea / Leonardo Henrique Cardoso de Andrade. -- Franca, 2021 122 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientadora: Helen Barbosa Raiz 1. Suicídio. 2. História. 3. Sociologia. 4. Psicologia. 5. Teoria Crítica. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. LEONARDO HENRIQUE CARDOSO DE ANDRADE O SUICÍDIO: ensaios críticos sobre a sociedade contemporânea Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré- requisito para obtenção do Título de Doutor em Serviço Social. Linha de pesquisa: Serviço Social, Formação e Trabalho Profissional. Orientadora: Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz Franca - SP, 29 de setembro de 2021. Presidente: _________________________________________________________ Nome: Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz (UNESP/FCHS) Examinadora: ______________________________________________________ Nome: Profa. Dra. Maria José de Oliveira Lima (UNESP/FCHS) Examinador: ______________________________________________________ Nome: Prof. Dr. Marcos Alves de Souza (UNESP/FCHS) Examinador: ______________________________________________________ Nome: Prof. Dr. Hélio Braga Filho (Uni-FACEF) Examinadora: ______________________________________________________ Nome: Profa. Dra. Maria Cherubina de Lima Alves (Uni-FACEF) Dedico aos meus pais Dorival e Heloisa, pelo apoio e desprendimento ao longo de minha vida e de mais esta jornada. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus por iluminar o caminho de mais esta realização em minha vida; sempre aos meus pais Heloisa e Dorival, como também à toda minha família pela contribuição para a formação de meus valores; à Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz pela exímia orientação, bem como a todos os professores que contribuíram para o meu crescimento; aos colegas do Programa de Doutorado; aos funcionários da UNESP/FCHS; e em especial à Glaucia pelos amplos debates e contribuições; como também a minha gratidão a todos que, mesmo não estando citados aqui, contribuíram para que mais esta etapa pudesse ser concretizada, pois sozinho não chegaria tão longe. Eu fico com a pureza Da resposta das crianças É a vida, é bonita E é bonita Viver E não ter a vergonha De ser feliz Cantar e cantar e cantar A beleza de ser Um eterno aprendiz (Gonzaguinha) RESUMO Este trabalho tem como objetivo compreender como a estrutura e a dinâmica das sociedades contemporâneas impactam no intrincado fenômeno do suicídio. Neste sentido, busca conhecer como as contradições do sistema social do tempo presente relacionam-se e/ou inter-relacionam-se com as ocorrências de morte autoprovocada conscientemente. Em sua estrutura metodológica seguiu a abordagem de pesquisa da dialética científica de Karl Marx, considerando as dimensões quantitativas e qualitativas de observação da realidade concreta. Desta maneira, foi elaborado a partir das perspectivas da História, da Sociologia e da Psicologia/Psicanálise. Foram realizadas pesquisas teórico-bibliográficas, documentais e de dados estatísticos oficiais para a construção do entendimento deste fenômeno. Considera a não- neutralidade da construção do conhecimento nas áreas humanas e sociais; assim, primeiramente apresenta o objeto de pesquisa, o pesquisador, a abordagem eleita e o percurso metodológico realizado. Na primeira seção do trabalho, apresenta os fundamentos teóricos do objeto de pesquisa nas perspectivas da fundamentação dialética. A segunda seção apresenta o contexto contemporâneo das ocorrências deste acontecimento nos cenários mundial e brasileiro, com dados estatísticos e pesquisas aplicadas. A terceira seção ficou reservada para as reflexões que a concretude deste fenômeno suscita, considerando a perspectiva crítica da sociedade. Desta maneira, são apresentados desafios sociais e éticos que o fenômeno do suicídio traz à tona. Por último, o trabalho revelou que as contradições presentes na estrutura e dinâmica social contemporânea, em certa medida, facilitam as ocorrências epidêmicas de suicídios, portanto, constitui-se como desafio social e ético engendrado pelo sistema social capitalista. Palavras-chave: Suicídio; Desafio Ético; Desafio Social; Contradições; Capitalismo. ABSTRACT This paper aims to comprehend how the structure and dynamics of contemporary societies impacts the intricate phenomenon of suicide. In this sense, it demands to know how the contradictions of the social system of the recent time are associated and/or interassociated with the occurrences of consciously self-inflicted death. In its methodological structure, it followed an investigation approach of the scientific dialectic method of Karl Marx, considering the quantitative and qualitative dimensions of observation of concrete reality. In this way, it was labored from the perspectives of History, Sociology and Psychology / Psychoanalysis. It was performed theoretical- bibliographic, documentary and official statistical data inquires to build the understanding of this phenomenon. It considers the non-neutrality of knowledge construction in human and social areas; thus, it presents the survey object, the researcher, the chosen approach and the methodological path taken. The first part of the work introduces the theoretical foundations of the research object from the perspectives of dialectical foundations. The second part presents the contemporary context of the occurrences of this event in the world and in Brazil, with statistical data and applied research. The third part was reserved for the reflections that the concreteness of this phenomenon raises, considering a critical perspective of society. Thus, there are social and ethical challenges that the phenomenon of suicide brings to light. Finally, the study revealed that the contradictions prevailing in the structure and contemporary social dynamics, to a certain extent, facilitates the epidemics of suicides, therefore, it constitutes a social and ethical challenge engendered by the capitalist social system. Keywords: Suicide; Ethical Challenge; Social Challenge; Contradictions; Capitalism. RESUMEN Este trabajo tiene como objetivo comprender cómo la estructura y la dinámica de las sociedades contemporáneas impactan en el intrincado fenómeno del suicidio. En este sentido, se busca conocer cómo las contradicciones del sistema social de la actualidad se relacionan y/o interrelacionan con las ocurrencias de muerte autoinfligida conscientemente. En su estructura metodológica siguió el enfoque de investigación dialéctica científica de Karl Marx, considerando las dimensiones cuantitativas y cualitativas de la observación de la realidad concreta. De esta forma, se elaboró desde las perspectivas de la historia, la sociología y la psicología/psicoanálisis. Se realizaron investigaciones teórico-bibliográficas, documentales y de datos estadísticos oficiales para construir una comprensión de este fenómeno. Considera la no neutralidad de la construcción del conocimiento en el ámbito humano y social, presentando así en primer lugar el objeto de investigación, el investigador, el enfoque elegido y el camino metodológico recorrido. En la primera sección del trabajo, presenta los fundamentos teóricos del objeto de investigación desde las perspectivas de fundamentos dialécticos. La segunda sección presenta el contexto contemporáneo de la ocurrencia de este fenómeno en el mundo y en Brasil, con datos estadísticos e investigación aplicada. El tercer apartado se reservó para las reflexiones que plantea la concreción de este fenómeno, considerando la perspectiva crítica de la sociedad, presentando así los desafíos sociales y éticos que el fenómeno del suicidio pone en primer plano. Finalmente, el trabajo reveló que las contradicciones presentes en la estructura y la dinámica social contemporánea, en cierta medida, facilitan la epidemia de suicidios, por lo que constituye un desafío social y ético engendrado por el sistema social capitalista. Palabras clave: Suicidio; Desafío ético; Desafío social; Contradicciones; Capitalismo. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Mapa mundial dos suicídios ....................................................................83 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Interesse de pesquisa relacionado ao suicídio ......................................26 Quadro 2 – Taxa de suicídio e coeficiente de Gini, Brasil 2019 ...............................93 Quadro 3 – Taxa de suicídios por faixa etária, Brasil 2019.......................................95 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 – Pesquisa sobre suicídio: história e áreas do conhecimento ..................26 Gráfico 2 – Pesquisa sobre suicídio: história e áreas do conhecimento ..................27 Gráfico 3 – Pesquisa sobre suicídio: história e áreas do conhecimento ..................28 Gráfico 4 – Evolução das taxas de suicídio por regiões do Globo ...........................83 Gráfico 5 – Evolução da taxa de suicídio no Brasil, 2000-2190 ...............................91 Gráfico 6 – Distribuição dos suicídios por região, Brasil 2019 .................................92 Gráfico 7 – Distribuição dos suicídios por faixa etária, Brasil 2019 ..........................94 Gráfico 8 – Distribuição dos suicídios por gênero, Brasil 2019 ................................95 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ASR Achieves of Suicide Research CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPS Centro de Atendimento Psicossocial CVV Centro de Valorização da Vida EUA Estados Unidos da América IASR International Academy of Suicide Research MEC Ministério da Educação MS Ministério da Saúde OMS Organização Mundial da Saúde OPAS Organização Pan-americana de Saúde RAPS Rede de Atenção Psicossocial SVS Secretária de Vigilância em Saúde SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................ 16 O PESQUISADOR .................................................................................................... 17 ABORDAGEM DA PESQUISA .................................................................................. 18 PERCURSO METODOLÓGICO ............................................................................... 21 1. O SUICÍDIO ................................................................................... 24 1.1. PERSPECTIVA DA HISTÓRIA ....................................................................... 28 1.2. PERSPECTIVA DA SOCIOLOGIA .................................................................. 43 1.3. PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA .................................................................. 58 2. CONTEXTO CONTEMPORÂNEO ................................................ 76 2.1. CENÁRIO MUNDIAL ....................................................................................... 83 2.2. CENÁRIO BRASILEIRO .................................................................................. 92 3. REFLEXÕES CRÍTICAS ............................................................. 101 3.1. DESAFIOS SOCIAIS E ÉTICOS ................................................................... 107 3.2. CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 112 REFERÊNCIAS ................................................................................... 116 16 CONSIDERAÇÕES INICIAIS O suicídio é um daqueles temas no qual prefere-se evitar, pois choca- nos com o desconhecido fenômeno da morte, ao qual, naturalmente não queremos enfrentar. Pensar sobre este tema impacta os sentimentos e, quando nos deparamos com casos concretos próximos à nós, raramente queremos investigar os motivos singulares daquela pessoa. Contudo, é um tema que está presente no cotidiano contemporâneo da maioria dos países do globo e, quase todos nós, um dia ou outro, deparamos-nos com este assunto fatídico em conversas informais. Na arte, este tema polêmico é retratado em diversas séries e filmes hodiernos, onde as encenações artísticas trazem à tona uma multiplicidade simbólica contida neste ato, representando-o em momentos singulares da vida concreta. Na dura realidade de nossos dias é um fenômeno que expõe as fragilidades da sociedade, preocupando as autoridades políticas e sociais, assim como toda a comunidade civil planetária. Na atualidade fenômenos adjacentes, como o caso da Baleia Azul - surgido na Rússia e associado ao grande número de suicídios de adolescentes em todo o planeta -, como em outras ondas de suicídio atreladas ao uso das redes sociais, preocupam ainda mais pelo amplo impacto que pode gerar nas sociedades locais, regionais, assim como no mundo todo. Fato este, que faz emergir um importante questionamento sobre o situação das sociedades contemporâneas. Assim, se considerarmos que os objetivos deste desenvolvimento das sociedades – projeto civilizatório moderno – fora alcançar condições que pudessem concretizar-se em um modo de vida capaz de proporcionar satisfação e/ou bem-estar – qualidade de vida –, a manifestação deste fenômeno complexo e multifacetado, em alguma medida, demonstra falhas no alcance desta finalidade. Pois, de fato, tem-se como pressuposto que alguém satisfeito com a própria vida não buscaria retirar-se dela. Desta maneira, o fenômeno do suicídio chama a atenção para as características da vida humana, destacando a mais fundamental de todas, qual seja, a de que o ser humano é um animal social, isto é, tem por natureza concretizar/realizar sua vida individual na relação com seus semelhantes. Portanto, destaca-se a relação e/ou inter-relação do indivíduo singular com todo o gênero humano, ou seja, com a sociedade e/ou cultura na qual realiza sua vida concreta. 17 Neste sentido, o objetivo deste trabalho é compreender como a estrutura e a dinâmica das sociedades contemporâneas relacionam-se com este intrincado fenômeno que preocupa diversos campos do conhecimento como: a medicina, a sociologia, a psiquiatria, a psicologia, a saúde pública, assim como a gestão pública de muitos países. O PESQUISADOR Ao partir do princípio de que não há neutralidade em pesquisa em Ciências Humanas e Sociais (RAIZ, 2002), cabe apresentar as lentes de quem pesquisa e escreve, isto é, o conhecimento formal adquirido pelo ser humano que realiza este trabalho, pois, via de regra, é através deste sistema de códigos cognitivos que o objeto de interesse deste trabalho será observado. Cumpre esclarecer que sou bacharel em Administração de Empresas com especialização em Gestão Financeira e Controladoria, e mestre interdisciplinar em Desenvolvimento Regional, com estudo focado nos impactos econômicos e sociais da violência perpetrada pelos homicídios. Portanto, alçando um voo no conhecimento científico um tanto “fora de minha caixinha inicial”, pois, o enquadramento como administrador tem foco de atuação na gestão de instituições privadas, governamentais ou não- governamentais. Porém, para além destes rótulos, como ser humano curioso que sou, interesso-me pela vida concreta, seja nas dimensões políticas, econômicas, sociais e/ou humanas, das quais, procuro instruir-me informalmente. Destarte, cabe destacar que o conhecimento teórico apresentado nesta tese limita a ser uma leitura histórica, sociológica e psicanalítica/psicológica realizada por um não-especialista nestas respectivas áreas do conhecimento. Contudo, parte do interesse constante e profundo de entender e/ou compreender aspectos da vida humana concreta, os quais considero indesejáveis como por exemplo, a desigualdade e a violência em suas mais diversas manifestações. Desta maneira, importante evidenciar que as lentes do autor são compostas por valores que colocam a vida humana singular e social acima de qualquer valor material socialmente construído que se possa ter. Assim, a dimensão espiritual, que conecta todos os seres vivos, manifestada na condição que nos interconecta através do meio 18 ambiente físico e natural, é um princípio fundamental na maneira pela qual este fenômeno complexo e multifacetado foi observado em sua materialidade. ABORDAGEM DA PESQUISA A presente pesquisa tem como objetivo compreender as relações e/ou inter-relações da estrutura e dinâmica social contemporânea com o fenômeno do suicídio. Isto é, busca conhecer como os princípios e pressupostos da organização social hodierna impactam a vida concreta das pessoas através desta manifestação indesejável. Portanto, segue a abordagem da dialética científica proposta por Karl Marx (1818-1883) que considera que as questões e desafios da sociedade nascem das próprias contradições presentes na estrutura e dinâmica social (BOTTOMORE, 1988). A abordagem dialética observa os fenômenos em sua relação com as condições históricas, sociais e/ou culturais que lhe deram origem, das quais dependem e estão em interação direta; assim, leva em conta as condições do local e do tempo em que ocorrem (POLITZER, 1962; LUKÁCS, 2018a). Segundo Lukács (2018a, p.144), Por sua correta elaboração e aplicação, a dialética de continuidade e descontinuidade, de unidade última e opositividade concreta, alcança em um sentido autêntico — porque histórico — seu domínio na ontologia, toma- se em consideração o processo de desenvolvimento também em sua desigualdade. Apenas com isso a verdade dialética, o ser como processo irreversível (portanto: histórico) de complexos processuais, pode alcançar o lugar devido na teoria marxiana que, de fato, lhe pertence como consequência da própria essência da coisa. Neste sentido, ao investigar o fenômeno do suicídio, isto é, a morte autoprovocada conscientemente, investiga-se a questões imanentes da vida concreta. Nesta abordagem científica, o objeto de pesquisa deve ser observado em seu movimento histórico, contemplando suas relações e/ou inter-relações dinâmicas entre os complexos e categorias inerentes às estruturas da sociedade e/ou cultura. Assim, considera-se a materialidade histórica como ponto de partida para o fazer científico. Pois, segundo Lukács (2018a, p. 243): [...] um tratamento retrospectivo, histórico-científico, dos processos decorridos, baseado nos resultados já inexoráveis, factuais, dos processos. Da historicidade dos processos ontológicos como um todo decorre, portanto, a exigência metodológica da precisa cientificidade das investigações. [...]. Que essa cientificidade pode e tem de traspassar a uma 19 abordagem filosófica é decorrência, antes de tudo, da objetividade ontológica das categorias. Segundo Lukács (2018a, p. 611), a dialética materialista marxista considera que “todo fato deve ser compreendido como parte de complexos dinâmicos, em interação com outros complexos, [...]”. Portanto, o ponto de partida está na manifestação objetiva do ser social, qual seja, a morte autoprovocada conscientemente, entendida como uma manifestação de recusa do sujeito à vida concreta na qual está inserido. A partir dos princípios da dialética da natureza, na qual as propriedades quantitativas e qualitativas estão presentes nas determinações dos objetos (LUKÁCS, 2018a), o fenômeno do suicídio será observado qualitativamente através dos estudos referentes ao conhecimento desenvolvido pela psicologia/psicanálise e, quantitativamente através das estatísticas inerentes aos estudos perpetrados pela sociologia, assim como outras áreas como a saúde pública. Segundo Lukács (2018a), a cientificidade não deve perder a ligação com a atitude ontologicamente espontânea da vida cotidiana, devendo elaborar criticamente as determinações ontológicas que toda ciência necessariamente deve tomar por base. Desta maneira, este fenômeno complexo e multifacetado será observado em sua relação com as categorias concretas da vida humana nas sociedades contemporâneas, destacando-se as categorias: trabalho, pois refere-se à dimensão material necessária para a manutenção da vida concreta; e relações sociais, referindo-se à dimensão das necessidades psíquicas do indivíduo em sociedade. Entende-se que a vida humana concreta se realiza através do trabalho, pois, como dito por Marx (apud LUKÁCS, 2018a) é através do trabalho que os seres humanos realizam o metabolismo necessário com a natureza, para a manutenção da vida biológica, assim são engendradas as relações e dinâmicas sociais e/ou culturais, as quais, por sua vez, condicionam as necessidades psíquicas dos indivíduos. Para Lukács (2018a), a construção do conhecimento deve complementar-se com as dimensões de quantidade e qualidade, de maneira que a perspectiva empírica e as abstrações intelectuais possam auxiliar na aproximação da realidade concreta. Para que possa alcançar cientificidade, deve iniciar-se por elementos de significado central, devendo haver uma conexão com a relação fenômeno e essência. 20 Seja agora ainda uma vez mais recordado não apenas o significado da diferença sublinhada por Marx entre fenômeno e essência. Pois, isoladamente considerado, todo fenômeno qualquer, abstraído como »elemento«, poderia ser feito de ponto de partida, apenas que tal via jamais conduziria à compreensão da totalidade; ao contrário, seu ponto de partida tem de ser uma categoria ontologicamente objetivamente central (2018a, p. 587). Desta maneira, Lukács (2018a) aponta que o método de investigação dialético deve compreender três aspectos, sendo: historicidade, processualidade e contraditoriedade dialética. A historicidade compreende o ponto central da dialética científica de Marx, o que leva a um exame mais apurado dos processos sociais e suas dinâmicas respectivas. A contradição dialética, por sua vez, diz respeito à forças que produzem efeitos que tendem a transformar a partir de si próprias, evoluindo através da relação com a realidade concreta. Segundo Bottomore (1988, p. 80), Nas obras econômicas da maturidade de Marx, o conceito de contradição é empregado para designar, entre outras coisas: [...]; (c) contradições dialéticas históricas (ou temporais); e (d) contradições dialéticas estruturais (ou sistêmicas). O tipo (c) envolve forças de origem não-independentes operando de forma que a força F tenda a produzir ela mesma o produto de condições que, simultânea ou subsequentemente, produzam uma força F’ contrária que tende a frustrar, anular, subverter ou transformar F. [...]. Tais contradições históricas estão assentadas nas contradições estruturais (d) [...]. Desta maneira, buscaremos compreender as relações e/ou inter- relações do fenômeno do suicídio em relação à processualidade da práxis da vida cotidiana dos seres humanos na sociedade globalizada da contemporaneidade. Para tanto, partiremos da concretude da realidade objetiva das sociedades hodiernas, em que sujeitos humanos tiram a própria vida em níveis epidêmicos, ou seja, praticam suicídios, a nível tal, que, em sua totalidade global, chegam a preocupar as respectivas autoridades de Saúde Pública do planeta. Assim, buscamos conhecer este fenômeno complexo e multifacetado em sua aparência e essência partindo do concreto da vida cotidiana perpetrado pelas estruturas e dinâmicas sociais e econômicas. 21 PERCURSO METODOLÓGICO Definida a abordagem da pesquisa, o percurso metodológico iniciou-se com a leitura crítica de referências importantes para a compreensão da abordagem da pesquisa, como algumas obras do próprio Marx, de Lukács e Politzer. Posteriormente, foi realizada a leitura crítica das principais questões inerentes ao fenômeno do suicídio na atualidade; portanto, primeiramente foi realizada a leitura dos dados estatísticos e relatórios divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), utilizados como fonte de dados estatísticos oficiais. Posteriormente, foi realizada a leitura crítica das obras fundamentais pela ordem da estrutura dialética de pesquisa, sendo: 1º) a perspectiva da concretude do fenômeno – histórica; 2º) a perspectiva da generidade humana – sociológica; e 3º) a perspectiva da singularidade do sujeito – psicológico. Em seguida, buscou-se compreender as relações e/ou inter-relações destes pontos de vista. Na perspectiva histórica foi eleito o trabalho do historiador francês Georges Minois (1946-*), intitulado História do suicídio - a sociedade ocidental diante da morte voluntária; publicado em 1995, como referência para nosso estudo. Nesta obra são apresentados casos históricos guardados em relatos que, desde os tempos da Grécia e Roma antiga passaram através dos séculos fundamentado discussões filosóficas, religiosas e científicas, que acompanharam as ocorrências deste intrincado fenômeno humano e social até os dias atuais. Na perspectiva gênero humano, a qual corresponde a área sociológica do conhecimento, foi utilizado o estudo de Emile Durkheim (1858-1917) publicado em 1897 com o título: O Suicídio: estudo de sociologia. Nesta obra, Durkheim aplicou seu recém desenvolvido método positivista/empírico para as ciências sociais. Assim, chamou a atenção para a importância da definição explicita dos termos/categorias a serem observadas, assim como da necessidade das comprovações estatísticas para o estudo de fenômenos sociais. Cabe destacar que em sua abordagem positivista Durkheim entende os objetos da sociologia como fatos sociais (MARTINS FILHO, 1997) e, para realizar suas pesquisas científicas desenvolveu um método empírico rigoroso (STOKES, 2012), que fora primeiramente aplicado ao estudo do suicídio. 22 Na perspectiva da singularidade humana, qual seja, o ponto de vista da Psicologia, foram utilizados os fundamentos de Sigmund Freud (1856-1939), médico neurofisiológico, considerado o pai da Psicanálise. Em relação à sua acepção filosófica, segundo Stokes (2012), Freud situa-se entre os pensadores materialistas que consideram que “o mundo é inteiramente composto de matéria” (BLACKBURN, 1997, p. 239), comungando da filosofia evolucionista de Darwin que, “associa as mudanças evolutivas a uma concepção progressiva da mudança social, a atitudes positivas perante a competição e a guerra e à justificação das desigualdades de poder” (BLACKBURN, 1997, p. 132). Deste ponto de vista, destacamos que Freud tendo contato com este fenômeno em seu trabalho psicanalítico, realizou suas observações a partir de casos concretos. Para este teórico, a questão que se coloca com o suicídio é sobre como o intenso instinto de vida pode ser sobrepujado, fazendo com que o indivíduo cometa tal ato. Ainda na perspectiva da Psicologia, um importante trabalho para a compreensão do suicídio foi desenvolvido por Edwin Shneidman, um psicólogo clínico e tanatologista, considerado o pai da Suicidologia. Shneidman, como um dos fundadores do Centro de Prevenção ao Suicídio de Los Angeles, trabalhou por mais de 50 anos em contato com casos de suicídios, momento em que formulou as bases de seu trabalho neste campo. Para realizar seu trabalho científico, analisou bilhetes de despedida deixados pelos suicidas e arquivados no banco de dados dos legistas, em conjunto com o estudo de casos de vítimas de tentativas de suicídio que fortuitamente sobreviveram ao ato e de alguns casos que tratou clinicamente. Shneidman publicou algumas obras no campo da suicidologia como editor e como autor, assim como outras obras no campo da Tanatologia. Cabe destacar, que o objetivo de Shneidman neste campo foi buscar uma conceituação teórica e um conhecimento capaz de auxiliar na prática da prevenção ao suicídio, tanto na dimensão individual na clínica, como na coletiva através de políticas públicas. Decorrente disto, esta pesquisa foi composta pelos tipos de investigação: teórico-bibliográfico; documental; dados estatísticos; que tiveram como objetivo compreender a concretude do objeto pesquisado, e assim fundamentar as categorias para a discussão teórica, partido da lógica dialética. Em relação à pesquisa documental foram utilizados relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Ministério da Saúde do Brasil (MS) e do Centro de Valorização da Vida (CVV). Em relação aos dados estatísticos foram 23 utilizadas as fontes da OMS, do Sistema de informações da Saúde (Datasus) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados secundários foram utilizados em quadros e gráficos para exposição da situação quantitativa do fenômeno. Já em relação à dimensão qualitativa da pesquisa foram utilizados os casos e estudos da pesquisa teórico-bibliográfica. Ressalta-se que dado o volume de publicações teóricas-bibliográficas sobre o fenômeno do suicídio na história da humanidade e, principalmente na contemporaneidade, apenas as obras fundamentais foram lidas em profundidade crítica, enquanto que as publicações recentes das áreas específicas foram estudadas em menor profundidade. Desta maneira, uma das fragilidades deste estudo está relacionada a falta de condições para a leitura crítica do volume de conhecimento produzido em torno deste fenômeno. Outra fragilidade refere-se à publicações em língua francesa que não foram traduzidas para o português, nem foi encontrado versões disponíveis na língua inglesa, como no caso da obra de Maurice Halbwachs, que foi lida superficialmente com a ajuda de um tradutor eletrônico. Contudo, foi possível acessar o volume de conhecimento para atingir os objetivos desta pesquisa. 24 1. O SUICÍDIO Como objeto de pesquisa, o fenômeno do suicídio está presente em diversas áreas do conhecimento humano, com reflexões importantes que vão da Filosofia às Artes, passando pelo campo médico, neurológico, psiquiátrico e psicológico, indo até aos estudos sociológicos, culturais, antropológicos e históricos. Na Filosofia, este tema remonta a um passado distante, tendo sido registrado nos costumes dos povos da antiguidade oriental, como nas leis da sociedade ocidental nascente. Na perspectiva filosófica, foi tema de debate de proeminentes pensadores como Voltaire, Montesquieu, Hume e Camus; na Arte, foi eternizado por Shakespeare em Hamlet, assim como por Goethe e outros grandes escritores. Sendo um tema polêmico, historicamente este ato humano ora recebeu aprovação, ora reprovação, dependendo do contexto filosófico e teológico de cada sociedade e/ou cultura em seu tempo histórico. Para o filósofo existencialista Albert Camus (1913-1960) só existe uma questão filosófica realmente séria: a questão do suicídio. Camus (2015) considera que o suicídio é um ato individual, portanto, relacionado apenas à individualidade, não tendo relação nenhuma com as questões advindas da sociedade. Como existencialista, Camus valoriza o ser humano singular que diariamente é submetido à questão dialética da vida, devendo responder cotidianamente para si mesmo e simultaneamente: por que devo ficar e por que devo sair? Camus relaciona este fenômeno ao absurdo da vida moderna, demasiadamente mecanizada e condicionada ao isolamento individual. Segundo Camus (2015), o absurdo é o contraditório da vida, onde apelos humanos são contrapostos com o silêncio despropositado do mundo em que se vive. Para Camus, matar-se é confessar que a vida supera as capacidades de realizar o que se deseja e reconhecer o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento. Para o filósofo empirista David Hume (1711-1776), quando os seres humanos são impactados pelas calamidades da materialidade da vida são levados a empregar este ato como remédio para o sofrimento percebido. Hume (2017) considera que o ato do suicídio é justificável quando busca abreviar os males e misérias da vida concreta. Hume considera que apenas as superstições em conjunto com a coerção dos amigos são capazes de, em alguma medida, engendrar barreiras 25 para este ato. Segundo Hume num primeiro momento da ideação suicida o sujeito é impedido de sua prática pelo medo que a ideia de morte provoca; portanto, somente um sofrimento capaz de sobrepujar este medo inicial pode conduzir o indivíduo a tal ato. Nas sociedades e/ou culturas contemporâneas alguns comportamentos que colocam a vida do sujeito em risco ou que possa abreviar sua existência concreta, como os abusos de alimentos e álcool, ou uso de drogas e tabaco, são questionados e, em alguns debates filosóficos, são considerados comportamentos suicidas involuntários (PUENTE, 2008; CASSORLA, 1986). Estas manifestações, em certa medida, poderiam ser consideradas manifestações de uma tendência suicida inconsciente presente na sociedade e/ou cultura. Contudo, essa discussão busca compreender este fenômeno, do ponto de vista daqueles sujeitos que, conscientemente, escolherem deixar a vida concreta através do suicídio. Em relação ao volume com que o tema do suicídio é discutido no século XXI, observa-se na base de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Ministério da Educação (MEC), que conta com as bases de artigos e publicações nacionais e internacionais, buscando pelo termo Suicídio no campo de assuntos, no período entre os anos 2001 e 2020, encontramos 5.243 artigos acadêmicos, 86 livros e 115 artigos de jornais; já com o termo na língua inglesa, Suicide, encontramos 248.512 artigos acadêmicos, 94 livros, 124.789 artigos de jornais, 126 teses e 1 periódico, abordando este tema. Dentre os tópicos abordados nestas produções, destacam-se as áreas do conhecimento relacionadas à saúde, com abordagens que procuram avaliar este fenômeno, tanto pela perspectiva do indivíduo como da sociedade. Podemos observar no Quadro 1, que as áreas do conhecimento com maior interesse de pesquisa deste fenômeno são as da Medicina, da Psicologia e da Saúde Pública, ficando mais evidente nas publicações de língua inglesa. Observa-se também uma preocupação dos pesquisadores com o número de ocorrências de tentativas de suicídios. Outro tópico que chama a atenção é o dos adolescentes, principalmente pelas estatísticas contemporâneas que demonstram que o suicídio figura como a segunda maior causa de morte nesta fase da vida humana. Destaca- se também o tópico relacionado aos fatores de risco e prevenção ao suicídio, demonstrando o interesse na busca de formas práticas para a diminuição das taxas 26 deste fenômeno humano e social. Sendo assim, um tema que está presente no cotidiano contemporâneo e relevante para diversas áreas do conhecimento. Quadro 1: Interesse de pesquisa relacionado ao suicídio Fonte: Periódicos CAPES, elaboração do autor. Ao focar as perspectivas do conhecimento selecionadas para este estudo, encontramos os seguintes interesses de pesquisa: primeiramente, em relação à História, pesquisando com os termos história e suicídio no campo assunto, encontramos apenas 9 artigos, enquanto com os termos na língua inglesa encontramos 1.072 publicações. Destas publicações, observa-se no gráfico 1 a distribuição do interesse da pesquisa histórica sobre o suicídio e suas relações com outras áreas do conhecimento, onde 51% está relacionado à Sociologia, 18% à Medicina, 16% à Psicologia e 15% à Arqueologia. Gráfico 1: Pesquisa sobre suicídio: História e áreas do conhecimento. Fonte: Periódicos CAPES, elaboração do autor. suicídio suicide Humanos 366 63.311 Suicídio 1.859 38.916 Tentativas de suicídio 20.423 Adulto 29.176 Adolescente 258 19.429 Mulheres 40.150 Homens 34.926 Saúde Pública 657 22.657 Medicina 620 51.098 Psicologia 367 20.205 Psiquiatria 286 Enfermagem 1.000 Epidemeologia 97 Saúde Mental 19.275 Desordem Mental 17.297 Depressão 201 15.198 Fatores de Risco 192 12.154 Ideação Suicida 115 5.972 Mortalidade 106 Prevenção 5.035 Termo da pesquisa Tópicos 27 Ainda nas pesquisas com a perspectiva histórica do suicídio aparecem os temas transversais: a) tentativas de suicídio em aproximadamente 53% dos trabalhos; b) fatores de risco, em 14%; c) comportamento suicida, em 12%; e d) depressão, em 11% dos trabalhos publicados. Já na pesquisa com os termos suicídio e sociologia no campo assunto, temos apenas 9 artigos publicados com os termos na língua inglesa; suicide e sociology no mesmo campo, encontramos 1.171 trabalhos publicados. Nestes, destacam-se os temas transversais: a) tentativas de suicídio, aparecendo em 51%; b) adolescência em 36%; c) fatores de risco, em 31%; e d) prevenção, em 12% dos trabalhos. Em relação às áreas do conhecimento, observa-se no gráfico 2 que a perspectiva sociológica se relacionou com as áreas da Psicologia em 28% dos trabalhos, História Social em 19% dos trabalhos, com a Medicina em 19% e com a Saúde Pública em 18% e Saúde Mental em 16% dos resultados desta pesquisa. Gráfico 2: Pesquisa sobre suicídio: Sociologia e áreas do conhecimento. Fonte: Periódicos CAPES, elaboração do autor. Na pesquisa com os termos suicídio e psicologia, encontramos 31 trabalhos publicados, enquanto que com os termos na língua inglesa suicide e psychology, foram publicados 4.833 artigos com os tópicos transversais relacionados: questões de gênero em 51%; adolescentes em 50%; depressão e desordem mental em 32% cada; comportamento suicida em 20%; ideação suicida em19%; e prevenção em 12%. Em relação à associação com outras áreas do conhecimento, observa-se no gráfico 3 que as pesquisas na perspectiva da psicologia relacionaram se às Humanidades em 53% das pesquisas, ao bem estar- social em 25% e à Medicina em 22% dos trabalhos. 28 Gráfico 3: Pesquisa sobre suicídio: Psicologia e áreas do conhecimento. Fonte: Periódicos CAPES, elaboração do autor. Neste sentido, observa-se uma ampla relação das perspectivas do conhecimento eleitas para o estudo em relação ao fenômeno do suicídio. Destaca- se nas pesquisas recentes a preocupação com adolescentes, com os comportamentos de risco, com os fatores sociais e históricos relacionados à este fenômeno, assim como a busca do conhecimento sobre os fatores de risco e a prevenção ao suicídio. 1.1. PERSPECTIVA DA HISTÓRIA Para o historiador George Minois, somente o “ser humano é capaz de refletir sobre sua própria existência e tomar uma decisão de prolongá-la ou pôr fim a ela” (MINOIS, 2018, p. 3). Sendo assim, considera o suicídio um ato especificamente humano relativo à sua vida concreta em sociedade. Segundo Minois, é importante compreender as razões que levam os indivíduos a tirarem suas vidas, pois este ato pode revelar “os valores fundamentais da sociedade” (MINOIS, 2018, p.3). Neste ponto de vista, este fenômeno está diretamente relacionado aos aspectos concretos da vida humana que, em última instância, são condicionados pelas estruturas, instituições e dinâmicas sociais responsáveis por concretizar estes valores na vida singular dos indivíduos. Nesta perspectiva, o fenômeno do suicídio é um daqueles que dificilmente podemos precisar o momento de seu surgimento, pois podemos chegar apenas até o momento em que houveram registros de suas ocorrências. Desta maneira, é necessário compreender que nem sempre o ato do suicídio teve o 29 significado que assumiu nas sociedades contemporâneas. Pois, via de regra, seu significado está relacionado aos contornos culturais assim como aos valores de determinada sociedade. Por conseguinte, esta ação que precipita a morte dos seres humanos voluntariamente, assume significados diferentes em sociedades e/ou culturas variadas, e está diretamente relacionado a como indivíduo relaciona-se na esfera de sua vida concreta. Desta maneira, é um fenômeno carregado de significado histórico, cultural, social e humano, com características singulares do tempo e da cultura em que ocorrem. Neste sentido, antes de apresentar este fenômeno nas sociedades ocidentais, cabe destacar que nas culturas orientais, desde os tempos imemoriais, o suicídio é conhecido como um meio de auto-sacrifício, onde na Índia Antiga correspondia ao costume das viúvas caminharem para a morte voluntária com o objetivo de serem enterradas juntamente com seus maridos. Além da cultura indiana antiga, observou-se em outras culturas deste período da humanidade o hábito de servos entregarem-se para o sacrifício de suas vidas logo após a morte de seus líderes soberanos, com o objetivo de continuarem a servi-los no além. Já no Japão, esta prática sacrificial permaneceu na cultura Samurai medieval dos séculos XII ao XVII com o cerimonial do haraquiri, onde o objetivo era a defesa da honra do indivíduo que procurava esquivar-se da vergonha de suas fraquezas (DIAS, 1997). De volta à sociedade ocidental, na Antiguidade pagã o registro de casos de morte voluntária de personalidades demonstra a presença deste fenômeno nas camadas ilustres da sociedade daquele período. Nesta fase inicial da civilização ocidental não havia consenso sobre o valor deste ato, sendo ora aprovado em algumas localidades e ora reprovado em outras, variando segundo a filosofia adotada. Neste contexto, observa-se que este fenômeno, que consiste na busca voluntária da própria morte, era praticado para escapar das derrotas de guerra, como Brutus e Catão, ou por uma ordem superior, como o de Sêneca, ou para escapar à violência, como fez Lucrécia. Dessa maneira, guardado o caso de Sêneca que fora ordenado a cortar os próprios pulsos, o suicídio era praticado frente a momentos adversos com objetivo de evitar sofrimentos. Minois observa que, desde a “época mais remota, o pensamento grego formulou a questão fundamental do suicídio filosófico”, ora aprovando, ora reprovando. Como exemplo desta ambiguidade, pontua que as filosofias dos cirenaicos, dos cínicos, dos epicuristas e dos estoicos, que consideram que “a vida 30 só merece ser conservada se for um bem” (MINOIS, 2018, p. 53), aprovavam a prática do suicídio, enquanto as pitagóricas, que consideram que este ato pode perturbar a relação entre o corpo e a alma, e as platônicas e aristotélicas, que consideram a responsabilidade do indivíduo perante a sociedade na qual se insere, foram contrárias à morte voluntária. Minois, ainda pontua que Platão, com uma posição mais flexível, aceitava três exceções do suicídio: por condenação - como no caso de Sócrates; por doença dolorosa e incurável; e por um destino miserável, que poderia abranger diversas situações. Já Aristóteles condenava em absoluto, considerando como uma injustiça contra si mesmo, contra a cidade e sociedade, isto é, como um ato que se opõe à virtude. Chegando à Idade Média, período que vai do século V ao XV, há a ausência de registro de casos de personalidades ilustres por mais de mil anos. Contudo, Minois indica que a “frequência dos textos legislativos, canônicos e civis, a quantidade de tomadas de posição filosófica e teológica sobre o assunto” (2018, p. 10), são indicativos da presença contundente na vida cotidiana deste período. Para Minois, esta ausência de suicídios de personalidades deve-se ao papel do catolicismo, que colocou em descrédito o uso desta prática nas elites da época. Porém, Minois observa que, a aristocracia deste período desenvolveu uma prática substitutiva ao suicídio, qual seja, os torneios e duelos com armas, onde os indivíduos arriscavam a própria vida voluntariamente. Minois (2018), aponta que neste período havia a presença do tema do suicídio nas artes, como nas crônicas medievais com exemplos de suicídios indiretos, em duelos e batalhas, e em mulheres para escaparem do estupro; nas canções de gesta com temas relacionados ao amor, à mágoa e ao orgulho frente as derrotas; na literatura cortesã, nas ocorrências de desgraças presentes nos romances, como também frente ao fracasso de figuras heroicas que se suicidam para redimirem-se da culpa da derrota; e no teatro popular, com encenações da moral proveniente da Igreja Católica condenando o suicídio irrevogavelmente. Desta maneira, observa-se que os temas da Antiguidade pagã são reproduzidos em meio aos motivos da Idade Média, nestes veículos culturais, com a mesma dicotomia de valores do período precedente. Segundo Minois, na arte deste período existia: [...] um acordo absoluto entre o comportamento real e a literatura, que diferenciam o suicídio nobre do suicídio desprezível. Mais do que o gesto, é a personalidade do suicida que importam. Tanto no romance como na vida, 31 o camponês que se enforca para escapar da miséria é um covarde cujo corpo tem de ser suplicado e cuja a alma vai para o inferno; o cavaleiro impetuoso que prefere a morte no campo de batalha à rendição é um herói ao qual se prestam as honrarias civis e religiosas. (MINOIS, 2018, p. 17). Portanto, a ambivalência de valores em relação ao fenômeno do suicídio presente na Antiguidade pagã permanecera neste período histórico, contudo, assumindo um contorno diferente, dado à autoridade eclesiástica católica que assumiu um papel proeminente nas sociedades e/ou culturas ocidentais desta época. Assim, no ocidente a autoridade religiosa da Idade Média exerceu um papel de destaque na condenação deste ato humano, atribuindo-o à inspiração diabólica sobrenatural. Minois (2018), aponta que neste período histórico, o corpo do suicida era julgado, condenado e executado pelos poderes de direito, onde os bens daquele que praticara tal ato eram confiscados pela coroa, e seu corpo sofria retaliações como o enforcamento do cadáver, a fixação de uma estaca no peito antes do sepultamento e o sepultamento de costas, práticas utilizadas para provocar medo na população. Em relação ao cristianismo, Minois (2018) observa que na Idade Média os textos fundadores da religião não abordavam a morte voluntária e, somente aos poucos a Igreja estabeleceu sua posição sobre tema. Foi com Santo Agostinho (354- 430) que foi declarada oficialmente a proibição da morte voluntária com base no quinto mandamento: não matarás. Porém, aponta que foi São Tomás de Aquino (1225-1274) quem sintetizou argumentos que foram utilizados para condenar este ato por séculos, situando-os em três razões fundamentais: como um atentado contra a natureza, pois é contrária à inclinação natural de viver; contra a sociedade, com a qual temos um papel a exercer; e contra Deus, que nos deu a vida. Contudo, observa que entre os séculos V e X, o endurecimento da moral cristã em relação ao suicídio fora fundamentado por um contexto sociopolítico. Segundo Minois (2018, p. 34) […] A carência aguda de mão de obra e de braços para defender o Império exige a requisição de cada vida humana para apoiar a economia e a defesa. […]. Doravante, os bens de quem se suicida para escapar de uma acusação serão confiscados, enquanto vai se estabelecendo aos poucos a ligação entre o confisco e a culpa do suicida. […] A pressão da situação econômica, social e política se sobrepõe à moral, transformando o suicídio em um crime contra Deus, contra a natureza e contra a sociedade. Nesse momento histórico, conforme observou Minois (2018), havia uma queda na taxa de natalidade, e a Igreja, além dos esforços para conter o 32 número de suicídios, iniciou um trabalho de revalorização do casamento e proibição das formas contraceptivas, assim como outras medidas para proteger a sociedade, “ameaçada em sua própria existência” (MINOIS, 2018, p. 34). Aponta que, os poderes civis e religiosos, misturaram-se neste momento, sendo inútil tentar descobrir qual deles influenciou o outro, pois “desde Constantino os dois colaboram estreitamente” (MINOIS, 2018, p. 34), nas duas dimensões, fundamentando tanto a concepção social, como a religiosa deste período da humanidade. Portanto, na Idade Média o suicídio configurava um desafio que incomodou as autoridades que ditavam as regras, assim como toda a dinâmica da sociedade e, a vida concreta das pessoas que viveram neste tempo histórico. Em relação às classes sociais, Minois (2018) aponta que as proibições e ações para conter a ocorrência deste fenômeno, apresentou faces ambíguas, pois o nobre tinha a possibilidade de práticas substitutivas nos duelos e torneios, enquanto o plebeu era julgado e recebia punição post mortem. Já para os membros do clero, os suicídios eram disfarçados de acidentes e, até mesmo, registrados como morte natural. Neste sentido, Minois considera que a sociedade ocidental da Idade Média apresentava valores heterógenos em muitos aspectos, principalmente na relação de classes sociais. Todavia, diferente da Antiguidade pagã neste período histórico, o fenômeno do suicídio estava mais presente na classe trabalhadora, responsável por sustentar a vida material – através de seu labor – da sociedade como um todo. Segundo Minois (2018, p. 49) O suicídio comum na Idade Média diz respeito, antes de mais nada, ao mundo dos laboratores, os trabalhadores. São os camponeses e os artesãos que buscam a morte, em geral depois de uma piora brutal em sua condição de vida. Os bellatores, os guerreiros e os nobres, não procuram a morte diretamente; os oratores, o clero, o fazem às vezes, mas a explicação é sempre a loucura, e os corpos não são justiçados. O suicídio inferior, o suicídio mesquinho, egoísta, o suicídio covarde que foge das provações é sempre o da pessoa rude, do vilão, do trabalhador manual, do artesão. Neste contexto, observa-se que a história da Idade Média fora permeada de discussões acerca deste intrincado fenômeno humano e social, destacando-se a importância dada ao tema pelas autoridades civis e religiosas. Estas, criteriosamente procuraram coibir através da proibição o número de ocorrências, indicando que, naquele momento, o suicídio configurava um desafio para as autoridades responsáveis pela organização da sociedade, ditando os valores e estruturas, assim como toda a dinâmica de organização dos indivíduos 33 inseridos na sociedade. Portanto, observa-se que este fenômeno humano e social em perspectiva histórica saiu das personalidades ilustres da Antiguidade pagã passando pelas classes sociais trabalhadoras no decorrer da Idade Média e chegando assim ao Renascentismo Segundo Minois (2018), no século XV com o Renascimento e os primeiros sinais da modernidade, a herança da Antiguidade pagã, contida nos exemplos clássicos de Lucrécio, Catão e Sêneca são retomados pelos humanistas em defesa da prática do suicídio e contra os julgamentos. Condenações e execuções de cadáveres que marcaram o período anterior e, neste tempo histórico provocaram horror nas camadas populares e nos proeminentes pensadores que se manifestaram sobre este tema. Além do mais, Minois indica que na sociedade renascentista havia a impressão de haver um grande número de ocorrências de suicídios, principalmente de intelectuais, os quais pareciam estar relacionados ao tédio vital, provocado pelo profundo questionamento dos hábitos e valores tradicionais da época. Segundo Minois (2018, p. 71), este período histórico foi “marcado pela impressão muito clara de que havia um aumento de suicídios”, fato que pode ser constatado nas declarações de lideres religiosos, como Martinho Lutero, que chegou a declarar sua preocupação com uma onda de suicídios na Alemanha daquela época. Da mesma maneira, Minois aponta que essa percepção de um grande número de ocorrências também ocorrera na Inglaterra, assim como em outros países europeus. Contudo, chama a atenção para que os estudos estatísticos conduzidos posteriormente na modernidade não indicaram um grande aumento no número de suicídios, assim como fora percebido pela sociedade da época. Além do mais, considera-se que os registros de casos não tinham procedimentos para garantir a fidedignidade do número de casos ocorridos, pois havia o interesse das famílias aristocratas de esconderem este ato para não terem seus bens confiscados, assim como do clero, para não impactar em sua reputação. Neste momento histórico, havia um intenso questionamento sobre os valores determinados pelas autoridades feudais e religiosas e, no que tange ao suicídio, a indagação proeminente das camadas intelectuais e populares, era impulsionada, em certa medida, pela falta de lógica dos julgamentos, condenações e execuções, que em última instância engendrava sofrimento apenas nos familiares que permaneciam vivos. Este fato, por sua vez, impulsionou as reflexões e 34 discussões acerca deste fenômeno humano e social, a tal ponto de causar a impressão de que havia um aumento substancial no número de ocorrências de suicídios. Assim, a Filosofia e a Arte refletiram esse momento histórico com um grande número de produções que trouxeram à tona indagações sobre as superstições dadas como causa geradora deste fenômeno. No campo das Artes, em conjunto com as publicações literárias acessíveis apenas à pequena elite de burgueses e à nobreza da época, uniu-se o teatro levando discussões em torno do suicídio para o amplo público analfabeto das camadas populares. Dentre estas peças teatrais, Minois destaca as obras de William Shakespeare (1564-1616): Hamlet, responsável por sintetizar o questionamento que marcou esta época: Ser ou Não Ser? e a de Christopher Marlowe (1564-1593): A trágica história do dr. Fausto, onde o protagonista busca igualar-se à divindade por meio do acesso ao conhecimento e, decepcionando-se com a compreensão de sua condição humana e com a futilidade do conhecimento adquirido, precipita-se ao suicídio. Para Minois, estas duas obras teatrais representaram o sentimento comum da vida cotidiana deste período histórico. Neste contexto, os exemplos de mortes voluntárias heroicas e mitológicas foram retomados através da representação de obras das filosofias estoica e epicurista, juntamente com as adaptações das peças de Sêneca, que trouxeram valores paralelos à moral dominante do cristianismo. Segundo Minois (2018, p. 107) o teatro inglês encenou “mais de duzentos suicídios em uma centena de peças” que foram produzidas em um intervalo de 40 anos, revelando assim, a presença marcante da dimensão social deste fenômeno na vida cotidiana deste período histórico. Não menos importantes, algumas das obras literárias deste período trataram a temática do suicídio, como por exemplo a obra de Thomas More (1478-1535) publicada em 1515: Utopia, que defende o uso desta prática para no caso de sofrimento provocados por doenças incuráveis, desde que a decisão fosse tomada em conjunto com os padres. Havia uma atenção ao tema do suicídio nesta época, principalmente pelos humanistas que questionavam os valores tradicionais. Para Minois (2018, p. 107) Este fato é confirmado por uma sequência de textos que, pela primeira vez, tomam o suicídio como tema central de reflexão, questionando as proibições tradicionais a fim de analisar as motivações e o mérito desse ato à luz da razão e dos exemplos antigos. 35 Dentre estes, Minois (2018) destaca a posição de Montaigne (1533- 1592), que considerou a morte voluntária uma questão de moral em situação, ao invés de uma questão de moral absoluta; ora sendo crítico ao ato do suicídio, ora admirando alguns exemplos célebres. Minois ainda evidencia o tratado escrito em defesa ao suicídio por John Donne (1572-1631), que postulava que tanto a teologia medieval como a moderna baseavam-se em uma falsa evidência para condenar o suicídio e, portanto, defendiam a liberdade do ser humano para escolher entre a vida e a morte. Contudo, aponta que Donne hesitou em publicá-la com medo de provocar uma onda de suicídios, sendo publicada apenas após sua morte. No debate filosófico e moral deste período evidencia-se também o posicionamento de Thomas Hobbes (1588-1679) contrário à prática do suicídio, que dedicou um trecho ao tema em sua obra Leviatã, utilizando o argumento da responsabilidade do indivíduo perante à sociedade, e de René Descartes (1596- 1650), que sustentava sua posição na dúvida quanto ao que poderia encontrar-se no pós-morte. Assim, em meio às defesas e posições contrárias, o fenômeno do suicídio marcou sua presença contundente na sociedade ocidental renascentista com um grande volume de debates, muito provavelmente impulsionados pelo horror causado pelas perseguições aos suicidas que estiveram presentes na Idade Média e continuavam a chocar a opinião pública e a população deste período. Com a crise de valores do Renascimento surgiu uma insatisfação de alguns intelectuais e médicos com os exageros do clero e com a forma pela qual este fenômeno humano e social era tratado pelas autoridades da época, o que fez com que novos pontos de vista viessem à tona. Neste momento histórico, Robert Burton (1577-1640), um pioneiro no estudo das doenças mentais, passou a procurar outras possibilidades, verificando que o maior número de suicídios ocorria entre os indivíduos com maior acesso aos estudos. Segundo Minois (2018), Burton foi responsável por atribuir o ato do suicídio ao sentimento de melancolia, portanto, fundamentando pela primeira vez na história, uma causa relacionada ao psiquismo do indivíduo. Segundo Minois, Burton também torna a organização socioeconômica indiretamente responsável pela melancolia, ao transformar a pobreza em uma causa importante dos distúrbios psíquicos. […] (MINOIS, 2018, p. 121). Desta maneira, o conceito de melancolia surgiu neste momento histórico como um “instrumento de dessacralização e descriminalização do suicídio” 36 (MINOIS, 2018, p. 123) que, desde então, fora utilizado para advogar contra as penas impostas aos cadáveres e seus herdeiros, assim como contra a satanização deste ato. Além do mais, este avanço no conhecimento científico do campo da medicina, abriu espaço para a observação dos desafios engendrados pela relação indivíduo e sociedade, colocando em destaque a psique humana e sua relação com as estruturas sociais e a dinâmica da vida concreta. Cabe destacar que, segundo Minois (2018) com o advento da burguesia, houve um avanço do individualismo e das “incertezas culturais e materiais” (MINOIS, 2018, p. 99) que impulsionaram os indivíduos para o suicídio, como fora observado por Emile Durkheim (1858-1917) posteriormente. Minois (2018, p. 141) considera que por este motivo os dirigentes da sociedade não puderam tolerar este ato humano e social, pois simbolizava “uma afronta a todos os sistemas políticos e religiosos”. Portanto, demonstrava que o indivíduo não tinha “nenhuma confiança nas teorias, nas ideologias, nas crenças, nos projetos e nas promessas dos dirigentes de todos os quadrantes”. Neste contexto contraditório, Minois (2018) aponta que tanto o direito canônico - que passou a endurecer ainda mais o tom de proibição em seus textos teóricos com a reafirmação da recusa de sepultura e proibições de orações para os suicidas - quanto o direito secular, que apesar de continuar sendo severo, foram questionados em relação a execução de cadáveres que permanecia ao final do século XVI e início do XVII. Contudo, indica que as discussões judiciais passaram a admitir a loucura como causa, isto é, a considerar as patologias psicológicas, como a melancolia, proporcionando um relaxamento das penas impostas. Porém, destaca que apenas a nobreza e o clero foram beneficiados com este fato. Assim, o debate sobre a legitimidade do suicídio suscitado pela primeira crise da consciência europeia - 1580-1620 - continuou a ser debatida durante o século XVII, chegando à segunda crise da consciência vivenciada na Europa, entre os anos 1680-1720. Minois (2018), destaca que um século após conhecer o questionamento colocado por Shakespeare em Hamlet, a Inglaterra passou por uma série de suicídios praticados por nobres e religiosos que se tornaram famosos e formaram o pano de fundo destas discussões. Neste contexto, Minois (2018) aponta o surgimento do termo: suicídio para diferenciar o matar a si mesmo do homicídio, pois, até então as mortes causadas pela própria vitima ainda não recebiam esta terminologia. 37 Curiosamente, este termo surgiu em um momento em que a Inglaterra passou a adotar o registro das causas de morte que ocorriam no país, as chamadas bills of mortality. A publicação destes registros pela imprensa inglesa da época causou a impressão de haver um aumento substancial das ocorrências de suicídios, de tal maneira que a recente criada terminologia para a morte autoprovocada – suicídio – fora associada à uma doença presente naquele país, fomentando o surgimento do mito do mal inglês, que fora oficializado pela publicação da obra do médico George Cheyne (1672-1743). Contudo, Minois (2018) destaca que este movimento perceptivelmente crescente de suicídios observado na Inglaterra, ocorria também nos demais países europeus, portanto, não era exclusivos dos ingleses. Para Minois (2018, 229), a modernidade e seu modo de vida fundamentado no sistema capitalista em sua fase inicial e em franco desenvolvimento naquele momento histórico da Inglaterra, já carregava em si “um elemento de instabilidade e insegurança”. Esta característica peculiar do sistema social e econômico nascente com sua dinâmica competitiva com base individualista e hierárquica, forneceu “um contingente suplementar aos suicídios tradicionais” (MINOIS, 2018, p. 229), pois rompeu com os sistemas de solidariedade tradicionais. Segundo Minois, após uma crise econômica Londres contabilizou um aumento de aproximadamente 93% no número de suicídios, saindo de 27 suicídios no ano de 1720 e chegando a 52 suicídios em 1721, pois, bastava a possibilidade da ruína para que os burgueses se precipitassem ao suicídio no capitalismo nascente. Assim, chegado ao século das Luzes, o suicídio, assim como nos períodos históricos precedentes da civilização ocidental, continuou a incomodar os poderes que organizavam a sociedade, porém com um novo contorno. Neste momento histórico, o avanço do conhecimento científico proporcionou condições para que os suicidas passassem a ser vistos como vítimas da sociedade, modificando toda as possibilidades de compreensão deste intrincado fenômeno e, assim, passou a ser percebido como um indicativo das péssimas condições de vida concreta. Este fato incomodou as autoridades deste tempo histórico, de tal maneira, que demonstraram sua preocupação com o tema e passaram a mudar seu entendimento, dando início ao processo de descriminalização deste fenômeno humano e social. Neste cenário entre o final do século XVII e meados do século XVIII, uma época marcada pelas revoluções e pela transição entre o antigo regime político 38 e econômico e o atual – sistema feudal e o capitalista nascente -, o suicídio fora praticado pelos revolucionários em nome da suprema liberdade do ser humano. Minois (2018) observa que de ambos os lados, tanto dos revolucionários como dos contrarrevolucionários, os indivíduos que suicidavam eram considerados mártires em sacrifício da vida em prol da sociedade. Entretanto, destaca que entre as camadas populares os suicídios tornaram-se mais frequentes neste momento histórico, principalmente para aqueles mais vulneráveis e que, por consequência, sofriam maiores impactos com as frequentes crises econômicas do novo sistema social; porém, com uma nova condição: não podiam contar com as redes de solidariedade tradicionais. De acordo com Minois (2018, p. 251), neste período as autoridades políticas e religiosas encontravam-se em meio à contradição, entre ocultar os suicídios que ocorriam na nobreza e no clero e a necessidade de coibir esta prática nas classes trabalhadoras, pois o crescente número de suicídios colocava em xeque “o vigor e a moral da nação”. Assim, indica que a ambiguidade dos responsáveis por organizar a dinâmica da vida humana em sociedade, que “a despeito do grande número de exceções, continua-se a punir com violência os suicidas plebeus” (MINOIS, 2018, p. 251), ao invés de coibir esta prática, provocou ainda mais ocorrências deste fenômeno. Minois (2018) aponta que em meio aos avanços que a sociedade galgava, esta intrincada questão, situada entre a religião, a justiça e os costumes da sociedade, não permitiu que os filósofos deste período ficassem indiferentes frente este fenômeno, produzindo assim, um grande número de tratados. Minois (2018), destaca que o Século das Luzes foi inundado pelos casos de suicídio na literatura, pois os intelectuais deste período demonstravam um fascínio pela morte e uma admiração espantosa por este ato humano. Para Minois, foi Voltaire (1694-1778) quem conseguiu traduzir o sentimento que emanava dos dramas que dominaram a arte literária iluminista. Voltaire, com o personagem Alzira encarava a morte como algo natural, pois, considerava que a Divindade nos fizera mortais, assim, questionou a proibição do suicídio por parte de Deus. Contudo, Minois enfatiza que Voltaire tenha apresentado mais curiosidade do que simpatia em relação ao suicídio, pois, mesmo tendo motivos pessoais para cometê-lo, não buscou essa saída. 39 Entre os filósofos Minois (2018, p. 283) destaca a preocupação de Montesquieu (1689-1755) em “demonstrar que o suicídio não prejudica nem a sociedade nem a Providência”, pois considerava que a relação indivíduo e sociedade deveria ser vantajosa para ambos e, que este ato não seria forte o suficiente para impactar os desígnios da providência divina. Entre aqueles que apresentam hesitações, Minois destaca o trabalho de Diderot (1713-1784), que é claramente contrário ao suicídio, pois considerava que há incertezas sobre o fim do sofrimento através da prática do suicídio e, que este ato, seria, sim, capaz de impactar no conjunto da obra divina. Destaca-se ainda, que para Diderot as causas principais deste fenômeno estavam relacionadas à gestão dos governos, isto é, sobre as ações dos governantes sobre a vida individual. Já no século XVIII, para os filósofos e intelectuais o suicídio passou a ser compreendido como um problema psicológico, fato que ajudou a desvincular este fenômeno humano e social das explicações supersticiosas dadas pelas autoridades religiosas que permaneciam imputando as ocorrências deste ato humano às influências do demônio. Portanto, apesar das opiniões contraditórias e divididas, Minois observa que a maioria hesitou e ficou constrangida diante da aprovação ao ato do suicídio, pois embora o pessimismo característico deste período “em relação ao mundo e à sociedade eles preferiram conclamar as pessoas a transformá-los em vez de fugir deles” (MINOIS, 2018, p. 306). Sendo assim, a posição mais defendida fora pela manutenção da vida frente aos desafios cotidianos enfrentados pelas pessoas. Segundo Minois (2018), ainda no século XVIII a filosofia epicurista passou a influenciar a elite culta dando um sentido prático para o suicídio, retomando a crença de que se deve recusar a vida “a partir do momento que ela nos traz mais sofrimentos do que alegrias” (MINOIS, 2018, p. 309). Entre os defensores do suicídio, Minois (2018) considera que a contribuição mais impactante foi a de David Hume (1711-1776), que refutou com argumentos contundentes os que consideravam o suicídio um ato contra Deus, sociedade e a si mesmo. Para Hume (2017), abreviar uma vida em sofrimento, assim como prolongá-la curando uma doença adquirida naturalmente, podem ser consideradas ações que interferem nos desígnios da divindade da mesma maneira; portanto, considerava estes atos permitidos por Deus. Contudo, cabe destacar que Hume, assim como Donne, 40 hesitou em publicar suas reflexões, que apenas após sua morte vieram a ser publicadas. Entre os romances do Século das Luzes, destaca-se as obras de Goethe (1749-1832) Os sofrimentos do jovem Wether que, apesar de não ser uma obra de apologia ao suicídio, muitos jovens deste tempo histórico suicidarem-se com um exemplar deste romance em suas mãos; e Fausto que, examinou a questão colocada por Hamlet para justificar a decisão de permanecer nesta vida, qual seja, a dúvida sobre a continuidade da vida no além. Com o personagem Fausto, Goethe recomenda: não ser, pois, considerava ser infundado o medo da morte colocado por Shakespeare. Contudo, Minois enfatiza que as ocorrências de suicídios entre 1770 e 1780 invocaram “mais Werther do que Fausto” (MINOIS, 2018, p. 338). Além do mais, indica que naquele momento histórico o fenômeno do suicídio estava muito mais relacionado ao ambiente social e/ou cultural do que ao amplo debate perpetrados por estes intelectuais e filósofos. Nesta época histórica os suicidas adquiriram o hábito de escrever cartas para os dirigentes da polícia afim de auxiliar as investigações e garantir-lhes a sepultura; assim, passaram de deixar bilhetes justificando seu derradeiro ato. Aponta que, alguns destes bilhetes eram inclusive publicados pelos jornais, o que de fato promovia o debate público mais acalorado. Minois (2018), aponta que entre as motivações deixadas nestas mensagens estava sempre presente a incapacidade do indivíduo em resolver seus problemas através de seus próprios esforços diários. Minois destaca que a urbanização e o consequente enfraquecimento dos vínculos familiares tradicionais, juntamente com as crises econômicas que eram experimentadas naquele momento, compunham o conteúdo destes bilhetes. Porém, aponta que o conteúdo destas despedidas, na verdade, expressavam o desejo de viver destes indivíduos. Minois (2018) observa que no contexto histórico do final do século XVIII, a responsabilidade das organizações políticas e sociais estava presente nos debates sobre o suicídio, particularmente na França, onde as autoridades religiosas e políticas começaram a perceber que a taxa de suicídios demonstrava o “nível de bem-estar do grupo social” (MINOIS, 2018, p. 376). Assim, chegando ao século XIX as autoridades religiosas e políticas tentaram esvaziar o debate em torno do suicídio, com a intenção de abandonar as conquistas e o reconhecimento deste fenômeno como uma manifestação humana e social. Entretanto, aponta que apesar 41 deste esforço, com o desenvolvimento das ciências humanas, especificamente da psiquiatria e da sociologia, as fragilidades “morais e mentais do indivíduo, bem como as deficiências e injustiças da estrutura social” (MINOIS, 2018, p. 392), trouxeram uma nova perspectiva para o debate secular do suicídio. Neste cenário que consolida a época Moderna da humanidade, o desenvolvimento científico colocou em destaque o papel das autoridades responsáveis pelo bem-estar da sociedade, trazendo à tona os efeitos degradantes do novo sistema social, responsável por promover o enfraquecimento das redes de solidariedade e isolar o indivíduo frente à sua própria sorte. Assim, no século XIX as amplas discussões sobre o suicídio se encerram fechando o parêntese, pois a questão colocada por Shakespeare - ser ou não ser - passou a ser inconveniente e inoportuna para o pensamento moderno e, assim, foi cuidadosamente colocada no esquecimento pelas autoridades políticas, religiosas e morais. No entanto, as ocorrências não se encerram na mesma medida que tentou-se esquivar das discussões públicas em torno deste fenômeno humano e social. Segundo Minois, No século XVI, o suicídio era uma questão entre o diabo e o pecador; era um problema apenas de moral religiosa, sancionado pelas autoridades civis e eclesiásticas. Embora não tenha desaparecido por completo, no fim do período iluminista essa concepção deu lugar, em grande medida, a uma concepção secularizada na qual o suicídio é visto como um problema entre a sociedade e a psicologia individual. (MINOIS, 2018, p. 376). Já no Século XX, destaca-se a contribuição do filósofo existencialista Albert Camus (1913-1960), que associou o suicídio ao absurdo da vida moderna, caracterizada pelas tarefas repetitivas, cansativas e sem sentido algum. Para Camus (2015), a concretude da vida cotidiana moderna, pode ser metaforicamente comparada ao mito grego de Sísifo, que representa o mito dos trabalhos infrutíferos. Neste sentido, Camus considera que os seres humanos diariamente refletem sobre o absurdo desta vida repetitiva e, que em certa medida, é nesta reflexão que os pensamentos suicidas surgem nas pessoas. Minois (2018) ainda destaca os eminentes trabalhos da Sociologia elaborado por Emile Durkheim (1858-1917) e da Psicanálise desenvolvido por Sigmund Freud (1856-1939), como importantes marcos para o estudo do fenômeno do suicídio. Aponta que tanto Durkheim, que buscou explicar este fenômeno como resultante das condições sociais, como Freud, que fundamentou o ponto de vista do indivíduo, receberam críticas em suas teorias. Apesar disso, são amplamente utilizados até os dias atuais. Já no século XXI, o debate sobre o suicídio “reaparece 42 pressionado pelas estatísticas”, preocupando principalmente as autoridades de saúde pública mundial. Dentre os pontos discutidos na atualidade, Minois (2018) destaca a perspectiva bioética com discussão levantada pela eutanásia e os limites da medicina no prolongamento da vida em casos extremos; retomando, assim, a questão suscitada pelos estoicos em relação a preservar-se a vida de sofrimento, como nos casos de doenças incuráveis e/ou nos casos graves de saúde. Desta maneira, o fenômeno do suicídio chega ao final do século XX como um desafio para as sociedades, pois o significativo número de ocorrências, principalmente em países desenvolvidos, engendrou a necessidade do surgimento de um novo campo de pesquisa científica: a Suicidologia, derivado da área do conhecimento da Psicologia. Este novo campo científico, que surgiu entre o final da década de 1960 e meados da década de 1970 nos Estados Unidos da América, e que fora motivado pelos estudos do psicólogo clínico e tanatologista Edwin Shneidman (1918-2009), em conjunto com Norman Farberow (1918-2015) e Robert Litman (1921-2010), demonstra a relevância deste fenômeno na história da humanidade e, principalmente nos tempos modernos. Assim, o fenômeno do suicídio chega ao século XXI estando entre as três principais causas de morte na faixa etária entre os 15 e 29 anos de idade. Portanto, é um fenômeno concreto que esteve presente ao longo da história da humanidade, embora assumindo significado e valores nas diferentes filosofias, culturas e sociedades. Em sua concretude, a liberdade de escolha que o ser humano tem frente sua vida; pois, por mais que algumas filosofias sociais e religiosas tentaram erradicar suas ocorrências com condenações, não foram capazes de suprimir a liberdade de cada pessoa em decidir sobre a continuidade de sua própria vida. Com a evolução da sociedade e da cultura através do conhecimento científico, compreende-se que este ato humano, longe de ter uma única causa, é um fenômeno multifacetado e complexo que envolve a relação do indivíduo com a sociedade. Neste contexto histórico, o que temos de concreto é que os seres humanos, por motivos adversos, suicidam-se, isto é, em dadas situações os indivíduos podem ser levados a considerar que a experiência de vida não é desejável e, com isso, colocaram fim à suas próprias vidas. Esta decisão, por sua vez, pode ser advinda da confluência lógica de duas cadeias de raciocínio: na primeira dela, em que a pessoa que se mata busca união com fluxo cósmico 43 universal, com seus antepassados, indo de encontro à beatitude do além; e na outra, em que o que a pessoa busca é o fim da vida, isto é, o sujeito procura terminar com sua experiência de vida e nada além disso. No contexto cultural da sociedade ocidental contemporânea esta última perspectiva prevalece; portanto, concretamente o suicídio significa uma recusa à vida. Contraditoriamente, após séculos de desenvolvimento de tecnologias que permitiram a humanidade dominar a produção de alimentos e outros bens e serviços necessários à vida, como as próprias questões sanitárias necessárias para uma boa saúde e, não estando mais sujeita às variações naturais das condições, ao que parece, as sociedades e a cultura ocidental não foram capazes de promover condições desejáveis de vida, ou seja, o modo de vida não engendrou a satisfação necessária para que o indivíduo deseje permanecer nesta relação. Pois, para parte crescente de sua população, independente do nível socioeconômico, de sua localização geográfica, ou de seu desenvolvimento pessoal, as condições da vida concreta não tem despertado o desejo de continuarem. 1.2. PERSPECTIVA DA SOCIOLOGIA Para o sociólogo e filósofo Emile Durkheim, o fenômeno do suicídio caracteriza-se por ser episódio onde a morte do sujeito “[...] resulta mediata ou imediata de um ato positivo ou negativo realizado pela própria vítima” (DURKHEIM, 2000, p. 11) “[...] e, que este próprio sujeito saiba que seu ato produziria esse resultado” (DURKHEIM, 2000, p.14) fatal. Durkheim (2000) argumenta da importância desta definição, para melhor avaliar as ocorrências deste fenômeno em termos numéricos e estatísticos, pois, poderíamos considerar outros atos que sem intencionar a morte, abreviam a vida do indivíduo, como por exemplo, o abuso de álcool e/ou drogas. Em seu estudo sociológico, Durkheim (2000) parte do pressuposto que o suicídio se configura como uma doença coletiva, e sua ocorrência um fato social que deve ser estudado como uma realidade exterior ao indivíduo, isto é, tem sua causa impulsionadora na realidade social exterior que concretiza os aspectos da vida de cada pessoa, ao invés de uma predisposição interna ao sujeito. Para confirmar sua tese, Durkheim (2000) primeiramente estuda os fatores extrassociais como: as disposições orgânico-psíquicas e os fatores do meio 44 físico, ou seja, clima, posição geográfica, entre outros, aos quais este fenômeno havia sido relacionado até então. Durkheim avaliou estatisticamente as taxas de suicídios entre os grupos psicológicos que apresentaram patologias psíquicas, como também para os estados psicológicos considerados normais avaliando questões como a hereditariedade e a imitação, não encontrando confirmações estatísticas que pudessem atribuir o suicídio a causas singulares dos indivíduos. Após estas conclusões, Durkheim ainda analisou questões relacionadas à posição geográfica, às estações do ano e à temperatura, e também não foram encontradas relações das taxas de suicídios com estes fatores extrassociais. Em suas análises, Durkheim (2000) considera que os mapas indicavam que "os suicídios não dependem de circunstâncias locais, variáveis de uma cidade para outra, mas que as condições que o determinam são sempre de certa generalidade” (DURKHEIM, 2000, p. 152). Durkheim observou, que naquele momento, as maiores taxas de suicídio ocorriam em grandes cidades, enquanto apresentava menores níveis nas zonas rurais e pequenos centros urbanos, evidenciando uma mudança brusca no número de ocorrências com a mudança do meio social. Segundo Durkheim (DURKHEIM, 2000, p. 165), […] com efeito, que existe para cada grupo social uma tendência específica ao suicídio que não é explicada pela constituição orgânica-psíquica dos indivíduos nem pela natureza do meio físico. Disso resulta, por eliminação, que ela deve depender necessariamente de causas sociais e constituir por si mesma um fenômeno coletivo; […]. Durkheim passou então a investigar “as situações dos diferentes meios sociais” (DURKHEIM, 2000, p. 175), isto é, as diferenças entre as confissões religiosas, entre os grupos profissionais, as sociedades políticas, as composições familiares, entre outros, em que o indivíduo participa. Ao analisar detalhadamente as taxas de suicídios, em algumas nações europeias daquele momento, pelo viés das religiões, encontrou uma tendência mais acentuada nas confissões religiosas protestantes, enquanto observou as menores taxas nas populações de confissão católica. Em relação aos judeus, deparou-se com uma grande diferença em relação à taxa de suicídios dos protestantes, com uma proximidade dos católicos, porém ainda menor que estes. Com base nestas observações, somada à análise qualitativa das características principais destes grupos religiosos elaborou sua tese da integração social como uma das causas sociais a colocar os indivíduos em uma corrente suicidógena. 45 Neste ponto de vista, a diferença dos fundamentos responsáveis pela integração dos indivíduos em cada uma destas confissões religiosas ficou evidenciado. O individualismo engendrado pela característica do grupo protestante foi confirmado estatisticamente, comprovando ser uma causa social e/ou cultural do fenômeno do suicídio. Pois esta particularidade dos protestantes, que diz que o indivíduo é responsável por sua própria sorte material, isto é, por suas condições materiais concretas de vida, em seu viés negativo, trouxe-se consigo a tendência das pessoas sentirem-se sós frente à seus próprios desafios cotidianos que, em situações adversas, engendrou a ideação e o ato suicida nos sujeitos. Durkheim (2000) considerou que a tendência ao suicídio se fundamentava na equação de forças entre a tradição das crenças e sua força integradora, e o gosto do indivíduo pela instrução e a consequente força desintegradora gerada. Força esta, que segundo Durkheim, é responsável por levar o indivíduo à um estado de individualismo exacerbado. Durkheim observou que “[…] nos meios mais instruídos, a propensão ao suicídio se agrava, esse agravamento se deve, como dissemos, ao enfraquecimento das crenças tradicionais e ao estado de individualismo que resulta disso […]” (DURKHEIM, 2000, p. 200). Assim, considerou que é pela intensidade da experiência coletiva, que as religiões exercem um efeito profilático sobre os indivíduos diminuindo a incidência de suicídios. Segundo Durkheim (2000), para que estas observações pudessem ser comprovadas, elas deveriam ser constatadas em outros grupos sociais, tais como nas sociedades políticas e nas famílias, em que passou a buscar comprovações estatísticas. No grupo conjugal – família, observou as diferenças entre as faixas etária e entre os gêneros, e comparou também com a situação dos grupos de divorciados e viúvos de ambos os sexos. Neta análise, Durkheim encontrou comprovações estatísticas para sua tese da integração social, observando o efeito protetivo engendrado pelo casamento. Contudo, pontuou sobre a diferença que este exercia em cada um dos sexos, pois segundo suas observações no grupo das mulheres este efeito protetivo era menor. Esta causa social do fenômeno do suicídio, Durkheim (2000) denominou como egoísta, isto é, o suicídio provocado pelo excesso de individualidade provocado pelos aspectos sociais e/ou culturais. Cabe destacar que Durkheim define egoísmo como sendo o “[…] estado em que o eu individual se afirma excessivamente diante do eu social […]” (DURKHEIM, 2000, p. 258). Aqui 46 nos deparamos com um conceito chave para o desenvolvimento de nossas discussões. Podemos perceber nesta definição que Durkheim considera a individualidade psíquica dos seres humanos composta por duas áreas distintas, sendo elas: a) personalidade individual - o eu; e b) personalidade coletiva - a sociedade. Vemos ainda que considera que o desequilíbrio entre estas duas esferas da personalidade humana, pode resultar em um estado psicológico, o qual, levaria o indivíduo ao suicídio. Neste momento de sua pesquisa, Durkheim (2000) indagou: “como o suicídio pode ter tal origem?” (DURKHEIM, 2000, p. 259), e buscou elementos para sua resposta na relação indivíduo vs. sociedade. Em sua exposição, fez relação à força que um grupo social fortemente integrado exerce no indivíduo, e questionou sobre as proibições impostas pela sociedade nos momentos em que o sujeito já não encontra motivos para se manter subordinado à autoridade do grupo social. Neste ponto, Durkheim nos deu um exemplo da liberdade ontológica do ser humano, capaz de decidir sobre o próprio destino ao decidir sobre o termo de sua vida, pois observou que as sociedades não são capazes de se impor ao sujeito quando este já não encontra razões para subordinar-se. Segundo Durkheim (2000), quando os vínculos que unem o indivíduo à sociedade são perdidos, perde-se também as razões para se suportar os desprazeres da vida material. Assim, considerou que nas situações onde os seres humanos sentem-se isolados, os objetivos da sociedade deixam de ser capazes de sustentá-los na vida cotidiana. Portanto, para Durkheim os seres humanos, em sua constituição psicológica natural, necessitam de razões lógicas para tolerar as intempéries da vida concreta, apontando que objetivos única e exclusivamente individuais não são capazes de fomentar a força psíquica necessária para manter os sujeitos nesta vida. Durkheim considerava que, [...] o indivíduo, por si só, não é um fim suficiente para sua atividade. Ele é muito pouca coisa. […]. Em suma, o estado de egoísmo estaria em contradição com a natureza humana e, por conseguinte, seria precário demais para ter possibilidades de perdurar. (DURKHEIM, 2000, p. 260). Neste ponto, Durkheim elaborou duas questões relevantes acerca da essência da vida dos seres humanos: 1º) que existe a necessidade de uma razão e/ou objetivo para a vida concreta; 2º) que esta razão e/ou objetivo quando é apenas para si mesmo, não é capaz de promover satisfação no indivíduo, pois está em contradição com a essência natural dos seres humanos. Desta maneira, evidencia- 47 se a questão da individualidade engendrada pela estrutura da sociedade e/ou do grupo social em questão, como uma das causas que condicionam o sujeito à ideação suicida, fazendo com que entre em um processo de suicídio que o conduzirá ao ato fatal. Portanto, destaca-se o complexo de desafios do campo da ética, no que tange ao entendimento da relação entre a base axiológica da sociedade e/ou cultura e, o comportamento dos indivíduos singulares. Para Durkheim (2000), os seres humanos necessitam encontrar laços de solidariedade, tanto na relação com seus semelhantes, quanto nos objetivos e valores engendrados pela coletividade social para manterem-se interessados na vida. Desta maneira, observa-se que deste ponto de vista o condicionamento que a sociedade exerce sobre o indivíduo é uma categoria central para a compreensão do fenômeno do suicídio, pois, via de regra, é através dos valores engendrados pelas instituições sociais e/ou culturais na vida dos indivíduos singulares, que estes, percebem, sentem, refletem e agem na realidade concreta da vida cotidiana. Portanto, destaca-se a dimensão ética que fundamenta a base das estruturas e instituições que dinamizam e materializam a sociedade em sua relação com o indivíduo. Para Durkheim, “por mais individualizado que seja cada indivíduo, há sempre algo que continua sendo coletivo” (2000, p. 266) e o resultado da individuação exacerbada, ou seja, do “estado em que o eu individual afirma-se diante do eu social” (DURKHEIM, 2000, p. 258), conduz os seres humanos à melancolia e à depressão. Portanto, quando o ser humano se encontra demasiadamente concentrado em sua própria dimensão, como no estado de egoísmo, de maneira que o sujeito experimenta uma individuação exacerbada, ele é jogado em correntes suicidógenas, que a própria forma de organização da sociedade pode suscitar nele, fazendo com que os incidentes da vida privada desencadeiem o ato derradeiro de sua vida. Para Durkheim (2000), esta é uma das extremidades do fator de integração social, o qual, no outro polo encontra a causa altruísta, em que a forte integração dos indivíduos também coloca os sujeitos em processos suicidas. Diferentemente do suicídio egoísta, em que o sujeito se dá o direito de evadir à sua vida, no suicídio altruísta o indivíduo encontra um dever a ser cumprido para com seu grupo social. Durkheim (2000) observou essa característica nas sociedades e/ou culturas da antiguidade, destacando os costumes de morte 48 voluntária ao limiar da velhice ou quando há doenças que afligem o indivíduo limitando sua atuação na sociedade e, no case de indivíduos saudáveis, na prática do suicídio de esposas em rituais funerais de seus maridos, assim como de servos que seguiam o destino de seus senhores quando deixavam a vida, para servirem-no no além. Portanto, segundo Durkheim (2000, p. 272), “em todos esses casos, se o ser humano se mata não é porque arroga o direito, mas o que é bem diferente, porque tem o dever”. Durkheim (2000) observou que nestas sociedades a personalidade individual tinha pouco valor, fato que dava condições para coerção da sociedade sobre o indivíduo. Neste sentido Durkheim ponderou sobre a forte integração destes pequenos grupos sociais da antiguidade, em que a proximidade dos indivíduos era intensa e todos viviam a mesma vida, compartilhando “ideias, sentimentos e ocupações” (DURKHEIM, 2000, p. 274), o suicídio altruísta ocorria pelo desprendimento de si que os individuo comungavam entre si. Assim, ao menor dos motivos, quando o grupo social solicitava a morte do indivíduo, este cumpria seu dever, pois individualmente sua vida tinha pouco valor. Nesta perspectiva, Durkheim (2000) buscou fundamentos nas milenares religiões orientais: o Hinduísmo, o Budismo e o Jainismo. Observou que, apesar de algumas proibições, como no caso do Budismo que condenava os atos e manobras violentas para atingir a morte, muitos buscavam o suicídio deixando-se morrer de fome, fato que também ocorria no Jainismo. Portanto, o desapego à vida material que fundamenta estas confissões religiosas, em certa medida, é vista como uma facilitação para o indivíduo deixar sua vida, pois, consideram que a morte significa retornar às origens, fundindo-se à energia universal criadora. Assim, além do costume de deixar a vida, quando o indivíduo se sente incapaz de contribuir, ou até mesmo um fardo para seu grupo social, ou das esposas e servos para seguirem seu senhor, destaca-se nesta questão o fundamento – código cognitivo – que condiciona a maneira como o indivíduo compreende sua vida material. Durkheim (2000) ainda avaliou a relação das crises econômicas com este fenômeno, pois naquele momento havia uma percepção de que estas crises provocavam o aumento da taxa de suicídios. Contudo, considerou que para que esta hipótese pudesse ser verdadeira o inverso deveria provocar um efeito contrário diminuindo o número de ocorrências de suicídios. Porém, este fato não foi observado nas estatísticas utilizadas por Durkheim, e a análise das taxas deste 49 fenômeno demonstraram que, assim como nos momentos de depressão da economia, também havia um aumento das ocorrências de suicídios nos momentos em que as economias nacionais cresciam a todo vapor. De acordo com estas observações, Durkheim (2000) elaborou a tese de que o suicídio acompanha o ritmo da vida social, isto é, as ocorrências deste fenômeno aumentam conforme a intensidade na qual o indivíduo participa nas estruturas e dinâmicas da vida em sociedade. Fundamentou esta tese na diferença observada nas taxas de suicídio entre os sexos, ao qual atribuiu ao papel social da mulher e do homem que, naquele momento participava mais ativamente das relações sociais fora da família; portanto, apresentava uma taxa maior que as mulheres, conforme as estatísticas demonstravam. Observando este tema, ponderou que quanto mais complexo o ser social, mais pontos de sustentação são necessários para que o sujeito se mantenha em equilíbrio e, em consequência disto, perturba-se com maior facilidade à menor das frustrações de suas necessidades. Cabe destacar que para Durkheim além das necessidades físicas e/ou biológicas, às quais o organismo faz o papel de regular a satisfação, os seres humanos, em função da consciência que nos diferencia dos demais seres, necessita-se de uma força reguladora, a qual só pode ser exercida pela dimensão social responsável pela esfera de valores morais. Como pano de fundo da dinâmica psíquica em que os sujeitos se encontram, há a concretude da vida cotidiana organizada pela divisão social do trabalho e todas as questões da dimensão econômica que emanam desta estrutura que organiza os indivíduos nas sociedades e/ou culturas. Portanto, evidencia-se a maneira pela qual as necessidades físicas e/ou biológicas são satisfeitas e, não menos importante, como esta dinâmica relaciona-se e/ou inter-relaciona-se com as necessidades psíquicas e/ou emocionais são engendradas e satisfeitas. Segundo Durkheim (2000), há ainda uma outra causa social responsável por engendrar ideações suicidas, assim como toda a cadeia de comportamento suicida, até o ato fatal, qual seja, a força reguladora que a sociedade exerce no indivíduo. Neste fator social, assim como no caso da integração social, Durkheim observou duas polaridades impactando diretamente nas ocorrências deste fenômeno, sendo elas: de um lado a anomia e do outro o fatalismo. Para Durkheim, a anomia caracteriza-se pela situação em que o sujeito não percebe limites para a satisfação de seus desejos e necessidades ou pelo 50 excesso de desejos, que faz com que fique constantemente insatisfeito com sua própria vida. Já no caso do fatalismo, usa o exemplo da escravidão, em que o ser humano fica privado da satisfação de qualquer necessidade que não seja a puramente física e/ou biológica necessária para manutenção de sua vida de trabalho. Buscando testar estas afirmações, Durkheim (2000) analisou as estatísticas de suicídios comparando as taxas de ocorrência entre profissões e classes sociais, observando que naquele momento a menor incidência de suicídios ocorria nas classes sociais economicamente vulneráveis. Para Durkheim, os indivíduos mais pobres sofrem uma limitação econômica que engendra limites para seus desejos e/ou necessidades, enquanto as classes privilegiadas não encontram estes limites e, com isso, ficam sujeitas àquilo que denominou de mal do infinito, ou seja, a falta de limites para satisfação de sues desejos e vontades. Como fora observado, contraditoriamente esta situação de possibilidade de satisfação plena dos desejos e necessidades engendra nos sujeitos um sentimento de insatisfação com a própria vida. Para Durkheim, Certamente, esse suicídio e o suicídio egoísta não deixam de ser aparentados. Ambos provêm do fato de a sociedade não estar suficientemente presente para os indivíduos. Mas a esfera que ela está ausente não é a mesma nos dois casos. No suicídio egoísta, ela está ausente da atividade propriamente coletiva, deixando-a assim desprovida de objetivo e significado. No suicídio anômico, ela falta às paixões propriamente individuais, deixando-as assim sem freio que as domine (DURKHEIM, 2000, p. 329). Sobre estes dois fatores sociais, Durkheim (2000) pontua que apesar desta relação são tipos de suicídio independentes, porém podem atuar conjuntamente colocando os indivíduos em uma corrente suicida. Assim, observou que cada um destes encontra terreno fértil nas diferentes atividades da sociedade, pois enquanto as carreiras intelectuais favorecem mais o tipo de suicídio provocado pelo excesso de egoísmo, o mundo industrial e comercial favorece tipo de suicídio provocado pela anomia da dimensão econômica. Importante destacar aqui que Durkheim (2000) considerava duas causas fundamentais engendrando a corrente suicidógena nos seres humanos, que essencialmente, relacionam-se a dois aspectos da relação indivíduo e sociedade, quais sejam: a) integração social; e b) regulamentação social. Isto é, duas fontes da corrente suicidógena relacionadas ao complexo de desafios da Ética. Neste sentido, urge evidenciar o papel desta área do conhecimento humano para a compreensão 51 dos desafios enfrentados na sociedade contemporânea para construção de condições sociais, econômicas e humanas, dignas e capazes de promover o desejo de permanência das pessoas na vida. Para Durkheim (2000), há uma relação entre a causa suicidógena egoísta e a anômica, naquilo que denominou de: mal do infinito; isto é, o estado onde o indivíduo não encontra satisfação com a vida, dado a falta de limites para satisfazer seus desejos. Porém, considerou que assumam formas diferentes em ambos os casos, onde no egoísta “a inteligência racional é atingida e se hipertrofia além da medida”, enquanto na anomia é "a sensibilidade que se superexcitada e se desregula” (DURKHEIM, 2000, p. 368). Contudo, aponta que as manifestações singulares dos sujeitos apresentam formas psicológicas diversas, como: a melancolia característica da filosofia estoica; ou do sangue frio provocado pelo ceticismo da filosofia epicurista. Assim, aponta que as formas psicológicas