Lucas Fernandes Domingues Significados em Ensino de Química: uma perspectiva wittgensteiniana São José do Rio Preto 2022 Câmpus de São José do Rio Preto Lucas Fernandes Domingues Significados em Ensino de Química: uma perspectiva wittgensteiniana Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ensino e Processos Formativos, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ensino e Processos Formativos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Orientador: Prof. Dr. Jackson Gois da Silva São José do Rio Preto 2022 (Verso da folha de rosto, não deve ser contado se imprimir em folhas (anverso). Porém, se preferir a impressão em páginas (frente e verso) deverá observar as regras da ABNT 14724.) Lucas Fernandes Domingues Significados em Ensino de Química: uma perspectiva wittgensteiniana Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ensino e Processos Formativos, junto ao Programa de Pós-Graduação Ensino e Processos Formativos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Comissão Examinadora Prof. Dr. Jackson Gois UNESP – Câmpus São José do Rio Preto Orientador Prof. Dr. Waldmir de Araújo Neto UFRJ – Rio de Janeiro Prof. Dr. Marcos Antonio Pinto Ribeiro UESB – Câmpus Jequié São José do Rio Preto 31 de Janeiro de 2022 (Folha de aprovação. Não deve conter assinaturas.) Dedico este trabalho a os todos que foram, são e virão a ser meus alunos, pois é por eles que busco sempre me aperfeiçoar neste humilde ofício, no qual temos a pretensão de ensinar e a certeza de aprender. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela oportunidade de realizar esse sonho e me tornar um instrumento ainda melhor para sua (e minha) obra. À minha esposa pelo companheirismo (tão importante para mim e que, muitas vezes, reconheço, não retribuo na medida), pela paciência, apoio e compreensão diante dos muitos afazeres e deveres que a vida de docente (e pós-graduando) me trazem (e me trouxeram). Ao Centro Paula Souza pela oportunidade que emergiu de uma parceria com a UNESP. A toda a equipe da Etec de Olímpia por conseguirem me orientar nas questões burocráticas, quando necessário e também por compreenderem as dificuldades de horários, assim como de outros muitos aspectos que envolvem um pós-graduando. Aos meus pais pela educação que me deram e por me ensinarem a colocar a Educação em primeiro lugar. Ao meu orientador, Prof. Jackson Gois da Silva, por me acolher em seu grupo de pesquisa e por ser um orientador brilhante, conduzindo-me pelo caminho acadêmico de modo sempre seguro e maduro, respeitando as minhas limitações, levando-me a refletir sobre como explorar minhas experiências e vivência em sala de aula, para encontrar nelas muitas respostas às perguntas que surgiam ao longo deste trabalho Aos colegas do GPESig, que me acolheram junto ao professor Jackson e me serviram de inspiração e modelo para meus trabalhos. Ao Ibilce, contemplando toda equipe gestora do programa, professores das disciplinas que fizeram parte do meu processo de crescimento profissional. (Agradecimentos – opcional somente se não houver financiamento da pesquisa.) “[...] o mundo é tão cheio de pessoas, tão repleto de milagres, que eles se tornam lugar-comum e nós esquecemos... Eu esqueci. Nós contemplamos continuamente o mundo e ele se torna opaco às nossas percepções. No entanto, encarado de um novo ponto de vista, ele ainda pode ser impressionante. Vamos, enxugue as lágrimas porque você é vida, mais rara do que um quarck e mais imprevisível do que qualquer sonho de um Heisenberg. Dr. Manhatam em Watchmen (por Alan Moore e David Gibbons, publicada em Maio de 1987, p. 27- 28). RESUMO Estudar os processos de elaboração de significados é essencial para a área de ensino, considerando que o papel da linguagem é central nesses processos. Contudo, ainda há aspectos a respeito da elaboração de significados que as principais formas de análise da área de ensino ainda não dão conta. A Química apresenta aspectos empíricos na própria constituição de suas representações e teorias. Com isso, as possíveis relações entre linguagem e os aspectos empíricos presentes nos conhecimentos científicos são relevantes para a compreensão de processos de ensino e aprendizagem de ciências e Química. Uma possibilidade de compreensão dessa relação é a visão não-referencial de linguagem proposta pelo filósofo Ludwig Wittgenstein; nesta, a relação de representação não é necessária para um uso significativo da linguagem. Em nossa dissertação, procuramos contribuir com esse olhar do significado não-representacional para os estudos dos processos de significação, a partir da realização de uma revisão bibliográfica acerca de como Wittgenstein tem sido lido na área de Ensino de Ciências, mais especificamente na área de Ensino de Química, na última década. A partir dos conhecimentos obtidos na literatura, apresentamos uma profunda discussão e identificamos a necessidade de uma nova forma de olhar para os significados no Ensino de Química. Desse modo, a partir de um trabalho específico de identificação de modelos de significados, apresentamos os modelos de significados predominantes no Ensino de Química e o significado wittgensteiniano, que pode complementar lacunas existentes entre a Filosofia da Química e o Ensino de Química. A título de exemplo, mostramos como os pensamentos de Lavoisier, que tanto contribuíram com a Química e o Ensino de Química, apresentam-se claramente dentro dos modelos de significados que ainda predominam na área mesmo após séculos. E, finalmente, sugerimos e justificamos que estudos sejam desenvolvidos na direção de uma Filosofia do Ensino de Química, a partir da filosofia madura de Wittgenstein. Entendemos que as contribuições desse filósofo podem ir além da simples exemplificação de elaboração dos significados em contextos específicos, podendo fornecer elementos para uma compreensão mais ampla de aprendizagem, especialmente se alinhada às contribuições já presentes na Educação em Ciências. Palavras–chave: Significado. Wittgenstein. Ensino de Química. Lavoisier. (Resumo em língua vernácula.) ABSTRACT Studying the processes of elaboration of meanings is essential for the teaching area, considering that the role of language is central in these processes. However, there are still aspects regarding the elaboration of meanings that the main forms of analysis in the teaching area still do not account for. Chemistry presents empirical aspects in the constitution of its representations and theories. Thus, the possible relationships between language and empirical aspects present in scientific knowledge are relevant to the understanding of teaching and learning processes in science and chemistry. One possibility of understanding this relationship is the non-referential view of language proposed by philosopher Ludwig Wittgenstein, in which the representation relationship is not necessary for a meaningful use of language. In our dissertation, we seek to contribute with this look of non-representational meaning to the studies of meaning processes by conducting a literature review on how Wittgenstein has been read in the field of Science Teaching, more specifically, in the field of Teaching of Chemistry in the last decade. Based on the knowledge obtained in the literature, we present a deep discussion and identify the need for a new way of looking at meanings in Chemistry Teaching. In this way, from a specific work of identification of meaning models, we present the predominant meaning models in the Teaching of Chemistry and the Wittgensteinian meaning, which can complement existing gaps between the Philosophy of Chemistry and the Teaching of Chemistry. As an example, we show how Lavoisier's thoughts, which contributed so much to Chemistry and Chemistry Teaching, are clearly presented within the meaning models that still predominate in the field even after centuries. And, finally, we suggest and justify that studies be developed towards a Philosophy of Teaching Chemistry, based on Wittgenstein's mature philosophy. We understand that the contributions of this philosopher can go beyond the simple illustration of the elaboration of meanings in specific contexts, and can provide elements for a broader understanding of learning, especially if aligned with the contributions already present in Science Education. Keywords: Meaning. Wittgenstein. Chemistry teaching. Lavoisier. Fonte: 12 Espaço: 1,5 (Resumo em língua estrangeira.) LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Modelos de significado e papel da linguagem, acrescidos de um modelo (Wittgensteiniano) inexplorado. 74 (Lista de tabelas.) LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS IF Investigações Filosóficas TLP Tractatus Logicus Philosophicus EdC Ensino de Ciências NOS Nature Of Science (Natureza da Ciência) FRA Family Resemblance Approach (Abordagem de Semelhança Familiar) SUMARIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 11 1.1 Por que Wittgenstein ................................................................................... 12 1.2 Uma breve história ...................................................................................... 15 1.3 A alegoria dos jogos de linguagem ............................................................. 17 1.4 Formas de Vida ........................................................................................... 22 1.5 Elaboração de significado no Ensino de Química sob a ótica da alegoria dos ‘jogos de linguagem’ .............................................................................................. 25 1.5.1 Exemplos de jogos de linguagem no Ensino de Química ......................... 27 1.5.2 Sobre os aspectos que diferem a Química das demais ciências sob uma ótica wittgensteiniana ......................................................................................... 33 1.5.3 A necessidade de um outro olhar ............................................................. 38 2. METODOLOGIA .................................................................................................... 44 3. A FILOSOFIA DE WITTGENSTEIN NO ENSINO DE CIÊNCIAS ......................... 51 3.1 Jogos ............................................................................................................... 52 3.2 Semelhanças de Família ................................................................................. 57 3.3 Contexto e inspiração ...................................................................................... 59 3.4 Linguagem e Significado ................................................................................. 61 3.5 Sobre Modelos de Significados e suas relações com a experiência ............... 68 3.5.1 Significado Agostiniano ................................................................................ 69 3.5.2 Significado Empirista ............................................................................... 70 3.5.3 Significado Pragmatista ........................................................................... 71 3.5.4 Significado Wittgensteiniano ................................................................... 72 3.5.5 Uma tabulação dos significados ................................................................... 74 3.6 Uma síntese ..................................................................................................... 75 4. REFLEXÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................ 79 4.1 Exemplos dos diferentes modelos de Significados em Lavoisier .................... 82 4.2 Químicos Wittgensteinianos e Uma Filosofia do Ensino de Química .............. 94 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 99 11 1. INTRODUÇÃO De uma forma geral, pode-se observar, como fato incontestável, que o ser humano aprende. Como aprendemos? Como ensinamos? Quais os processos envolvidos e como descrevê-los? O que a filosofia tem a ver com isso? Perguntas como essas norteiam o desenvolvimento da epistemologia e, simultaneamente, quando direcionadas a uma área do conhecimento, em específico, dão origem a provocações filosóficas ainda mais intrigantes. Como aprendemos Química? Como ensinamos Química? Quais os processos envolvidos no ensino e aprendizagem de Química e como descrevê-los? O que a Filosofia tem a ver com a Química? Essas são apenas algumas das provocações que motivaram esta pesquisa de mestrado. Assim, para melhor compreensão do caminho trilhado nessa dissertação e do caminho que será trilhado através dela, é importante que iniciemos este trabalho de uma forma indireta, pois a escolha do referencial teórico principal vai além das técnicas e metodologias de ensino conhecidas. Ludwig Wittgenstein, após a publicação do livro Tractatus Lógicus Philosophicus (2017), teve a humildade reflexiva de voltar atrás em algumas de suas falas e pensamentos que acreditava terem o mais alto grau de lógica e concretização e desdizer o que outrora havia asseverado. Isto, mesmo depois de influenciar um grande grupo de Filósofos e ter o Tractatus Lógicus Philosophicus como uma das mais importantes obras do século XX e, quiçá, a principal obra na qual se apoiam, por exemplo, as ideias dos principais filósofos que formavam o círculo de Viena. Wittgenstein, como poucos, reconhece a necessidade de desdobramento dos seus pensamentos com a vivência, com a experiência, com a maturidade. Mesmo tornando-se um referencial, no mínimo influente, com o Tractatus, um Wittgenstein tardio, maduro, abdicou da lógica clássica para explicar os processos de elaboração de significado, fundamentando, assim, a sua própria lógica baseada em jogos (de linguagem) que discorreremos mais à frente. Pois é esta lógica que nos auxiliará para explanar a respeito dos significados no Ensino de Química e a necessidade de se olhar de outra forma para a elaboração de significado nesta área. Isso porque os referenciais que temos, no presente, para estudar a elaboração de significado dos conteúdos químicos, nos serviram e nos servem como fontes primordiais de referências. Contudo, admitindo a maturidade da área de Ensino, 12 necessitamos de um olhar diferenciado para a elaboração de significado quando tratamos da Química em sala de aula. Desse modo, pensamos ser pertinente iniciarmos com uma pequena introdução, explanando “como” chegamos à Wittgenstein e “por que” escolhemos Wittgenstein como referencial teórico para o nosso trabalho. 1.1 Por que Wittgenstein Entender a essência do funcionamento da natureza foi o que me levou para a área química. Saber como se comportam as substâncias, por que e quando interagem e o que as formam. Confesso que, nesses aspectos, fui bem-sucedido e tornei-me ainda mais deslumbrado por essa ciência. Queria que os meus alunos enxergassem a beleza da Química como eu. Passei a desejar, acima de tudo, que os alunos aprendessem os fundamentos da Química e suas relações com o cotidiano. Mas, não é tarefa fácil. Como atingir esse objetivo, então? Deparei-me com a área de Ensino, que possibilita entender os movimentos dos processos de aprendizagem. Imaginei ter encontrado meu caminho definitivo. Em minha primeira tentativa de obter o título de mestre na área de Ensino de Química, busquei trabalhar com o que havia de mais deslumbrante para mim na química: a experimentação. Nada mais vygotskyano que o movimento de externalização para que haja a internalização. Certamente, seria essa a essência do ensino de Química. Acreditava ser este o meio mais eficaz de aprendizagem, por inúmeros motivos. Poderia escrever dezenas de páginas sobre esses motivos, enumerando-os a partir de uma vasta literatura. Um belo dia, durante um intervalo entre aulas, reunido com os colegas da turma de Mestrado na mesma área (Ensino de Química), mas em instituição diferente, um dos companheiros levanta a seguinte questão: “Em que língua o surdo pensa, se ele não fala?” Inúmeras respostas foram propostas. Mas, incrivelmente, para mim, o caçula da turma, único não graduado em universidade pública, a minha resposta foi a mais aceita: “O surdo não pensa em língua. Ele pensa em linguagem. Quando pensamos, não escrevemos uma frase com palavras mentais e a lemos para nós mesmos. Apenas pensamos”. Respondi despretensiosamente. Não tinha a menor 13 intenção de estar certo. Foi um palpite que me fez pensar por longos dias. Mais na resposta do que na pergunta. Ocorreu que, apesar de todo o meu empenho, tendo concluído todas as disciplinas necessárias, o andamento do meu projeto foi comprometido pela minha frustração. Era nítido que a essência da aprendizagem não estava na experimentação. Desliguei-me do programa por esse e muitos outros motivos. Mas nunca desisti da área acadêmica. Queria, agora, era saber mais e entender a essência da linguagem. Mais maduro, já com uma carreira de oito anos em salas de aulas dos mais diversos tipos, busquei o Programa de Ensino e Processos Formativos da UNESP, encontrando em São José do Rio Preto o professor Dr. Jackson Gois da Silva que me acolheu em seu Grupo de Pesquisa em Ensino e Significação (GPESig). O grupo de pesquisa era tudo o que esperava de uma pós-graduação. Agora, sim, eu certamente encontraria o que procurava: a tal essência da linguagem. Foi então que descobri algo me cativou e me fez entender melhor as minhas dúvidas quanto aos processos de elaboração de significados, a aprendizagem e, principalmente, a linguagem: não há essências. Eis aqui, o “por que Wittgenstein”. O desapego da ideia essencialista da linguagem química e a elaboração dos significados dos conceitos permeará, boa parte do tempo, as discussões deste trabalho. Digo isso, pois, na condição de docente da área Química, transitando pelas interfaces dos desafios da profissão, a maior parte do tempo em sala de aula ou em laboratório didático de ensino de Química, pude observar, de uma forma filosófica e reflexiva, que muitos conteúdos das grades curriculares de ensino, como por exemplo representações químicas (moléculas e modelos) e as palavras específicas da linguagem química (tais como: átomo, base, metal etc.), levam certo tempo para serem assimilados por boa parte dos alunos. Assevero que tal fato incomoda, ainda mais por se tratar da disciplina de Química, pois o entendimento dos conteúdos exige elaboração de significado para estes, diante de uma inserção na linguagem própria da Química enquanto ciência e da apropriação de um pacote de representações de fenômenos, nomes de substâncias e modelos, assim como o próprio significado de símbolos, fórmulas e palavras que fazem parte desta linguagem. Nessa direção, a respeito das representações químicas tais quais as fórmulas moleculares, GOIS (2017, p.29) aponta que “... a significação de representações 14 químicas tem forte relação com os aspectos empíricos...”, todavia, “... há uma ingenuidade em esperar que o estudante decodifique essas informações de natureza distinta, por conta própria ou numa aula em que isso não seja explicitamente declarado” (Idem, p. 30). Por vezes, os alunos ainda não compreenderam completamente o conteúdo proposto, mas a falta de tempo para abordá-lo mais vezes ou trabalhar o mesmo tema com outros recursos didáticos faz com que o docente necessite dar sequência às atividades conforme seu planejamento. Isso acarreta uma defasagem e acaba comprometendo a qualidade do ensino. Imagino (na verdade, espero que) esse incômodo didático não seja apenas meu, decerto que outros docentes partilham dessa indigesta -mas genuína- preocupação proveniente da sala de aula. Direcionamo-nos, então, à filosofia da linguagem, e elaboramos este trabalho para contribuir com a área de Ensino de Química, no sentido de fomentar os estudos dos processos de significação, pouco difundidos nos âmbitos da recém-estabelecida Filosofia da Química. Ao longo de toda a dissertação, eventualmente aparecem algumas questões que são apenas de cunho reflexivo. Acreditamos que essas questões, muitas vezes embebidas em uma tônica filosoficamente provocativa, possam desconfortar o leitor na mesma medida que nos desconfortam. Desse modo, convidamos o leitor a nos acompanhar nas reflexões que se darão a seguir, haja vista os fatos já expostos à luz de nossa vivência. Tais reflexões apoiar-se-ão na filosofia de Ludwig Wittgenstein (1889-1951) no que se refere à elaboração de significado a partir dos “jogos de linguagem”, pois, como concluem Giordan e Góis (2013), a influência de Wittgeinstein pode vir a contribuir positivamente na compreensão da relação entre significado e aprendizagem a partir das linguagens. Portanto, neste capítulo falaremos um pouco sobre a vida e obra de Wittgenstein. Discorreremos, brevemente, sobre suas principais realizações acadêmicas, passando pelas suas obras mais marcantes, Tractatus Logicus Philosophicus (1968) e Investigações Filosóficas (1999), dando ênfase à segunda, pois é nesta que se encontra a nossa principal referência de discussão para a elaboração de significado no Ensino de Química: a alegoria dos jogos de linguagem, à qual também dedicamos uma sessão neste capítulo. Em um segundo momento, ainda neste capítulo, abordaremos a importância da filosofia de 15 Wittgenstein para o Ensino de Química e os motivos que nos fazem aderir aos jogos de linguagem para interpretar a elaboração dos significados. Finalmente, na última seção, apresentamos um estado da arte da filosofia de Wittgenstein no Ensino de Química, que corrobora para a elucidação da importância do pensamento deste filósofo para a área, assim como para expor as vertentes que devemos abandonar ou explorar no decorrer das linhas deste trabalho. 1.2 Uma breve história Herdeiro de uma das maiores fortunas austríacas, Ludwig Josef Johann Wittgenstein foi um pensador da modernidade, filósofo da matemática e, por certo tempo, um importante integrante do círculo de Viena, que contribuiu para renovação da lógica na década de 20, sendo considerado um dos pais da filosofia analítica. Filho de saxões que imigraram para a Áustria, Wittgenstein nasceu em Viena, em abril de 1889. Teve educação domiciliar até os 14 anos. Ao construir uma máquina de costura, os pais o matricularam em uma escola em Linz, que enfatizava em seu ensino a Matemática e a Física. Após três anos em Linz, estudou engenharia em Berlim e, posteriormente, em Manchester. Mais tarde, interessou-se pela lógica matemática, tendo estudado sob a orientação de Bertrand Russel, entre os anos de 1912 e 1913, em Cambridge. Entre 1913 e 1914, viveu na Noruega e dedicou-se ao estudo da lógica. Em novembro de 1918, durante a primeira guerra mundial alistou-se e, tempos depois, foi feito prisioneiro do exército italiano, sendo liberto somente após o fim da guerra. Durante esse período no cárcere, dedicou-se a concluir o seu primeiro livro, Tractactus Lógicus Philosophicus, que foi publicado pela primeira vez em 1921. Uma obra que, em primeiro momento, parece querer desconstruir a ética, a filosofia, a religião e tudo aquilo que, a seu ver, estaria desprovido de sentido. Nesse livro, Wittgenstein discorre, por aforismos, sobre pensamentos que culminariam na tradução das proposições da linguagem, de forma lógica, nos limites daquilo que pode ou não ser entendido, o que seria uma “linguagem perfeita”. E, as proposições que não respeitassem uma estrutura lógica que representasse uma imagem-espelho do mundo, lógica, não seriam passíveis de serem analisadas filosoficamente, ou seja, de modo lógico (KIM, 2016). Em outras palavras, uma proposição que não representa algo, não é problema da filosofia. É baseado nisso que ele escreve, como última frase 16 do Tractatus: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar” (WITTGENSTEIN, 1968, §7). Não obstante, todas essas ideias viriam a ser abandonadas anos depois. No final da década de 1920, Wittgenstein volta a dedicar-se ao estudo da filosofia, ingressando, no ano de 1929, na Universidade de Cambridge, recebendo nesse ano, o grau de doutor, com base em sua obra publicada no ano de 1921. A partir de 1930, inicia-se uma nova fase em sua filosofia, dando origem ao que chamam de “segundo Wittgenstein”, pois, agora mais maduro, o próprio Wittgenstein abandona as ideias centrais defendidas no Tractatus. Logo, o autor aclamado pelo círculo de Viena, passou a transitar pelos círculos acadêmicos da filosofia e da linguagem, sendo o principal responsável pela virada linguística da filosofia no século XX (GOTTSCHALK, 2007). Nessa fase de sua vida, a filosofia é vista de uma forma terapêutica, dissolvendo as perplexidades filosóficas. É nesse contexto que surge a sua consagrada obra, as Investigações Filosóficas, livro publicado poucos anos após sua morte. Em Investigações Filosóficas, Wittgenstein defende que não existem problemas filosóficos genuínos, mas sim, problemas derivados de uma incompreensão do correto funcionamento da linguagem e da lógica dos conceitos. Isso se dá, pois, para argumentar, com base na razão, que é necessário usar a linguagem de modo cuidadoso e, ao mesmo tempo, preciso, para que as afirmações e argumentos signifiquem exatamente aquilo que imaginamos que significam em círculos sociais, que chamará de formas de vida. Ou seja, para que a mais simples das frases, gestos ou qualquer ato que permita significado seja consistente, não bastará apenas apoiar-se na lógica, é preciso atentar-se à linguagem usada (DOUGLAS, 2016). Assim, para ele, os problemas filosóficos seriam resultantes de intercruzamentos de jogos de linguagem diversos, objeto de explanação da próxima seção. Com base nisso, em Investigações Filosóficas, Wittgenstein desenvolve seu pensamento sobre a alegoria dos jogos de linguagem, que poderia ser descrita como um conjunto de regras pactuadas por grupos de pessoas e que só tem significado dentro de uma forma de vida específica. O autor sai do abstrato da linguagem, utilizando como exemplos, em seu livro, jogos de linguagem reais, i. e. exemplos de aplicações e usos da linguagem e das palavras em diferentes formas de vida, destacando a natureza diversa da linguagem. Para ele, imaginar uma linguagem é como imaginar uma forma de vida, e existem tantas formas de vida quanto podem 17 existir jogos de linguagem (STIGAR, 2016). Portanto, o significado das palavras não está ligado ao objeto ou àquilo que, literalmente ou descritivamente, elas representam, mas, sim, ao seu uso, nos jogos de linguagem, em determinada forma de vida. É a essa obra que dedicamos a nossa atenção e, nesse tom, a alegoria dos jogos de linguagem nos servirá de base para estudos do uso da linguagem, fornecendo-nos subsídios para uma forma alternativa de compreensão, para a elaboração de significado dentro da área de Ensino de Química. 1.3 A alegoria dos jogos de linguagem Um anseio (talvez um hábito) deste pesquisador desponta indômito quando deparado com motes complexos: emerge o professor, o facilitador, a figura do explicador. E, de fato, neste trabalho não se escreve apenas para colegas, mas também para quem quer conhecer a filosofia de Wittgenstein. A verdade é que haverá, perceptivelmente, uma preocupação genuína em escrever também para público um pouco mais amplo, mesmo porque, enquanto químico, nos dedicamos à filosofia das ciências por ter entendido que, praticamente desassistidos, nós, químicos, não temos ferramentas suficientes para darmos conta de determinado tipo de significado tão comum em nossa área: os múltiplos usos da linguagem química, que nos atendem em diferentes situações. Assim, esta seção inicio-a, propositalmente, com uma passagem encontrada em As Confissões, de Agostinho de Hipona, conhecido universalmente como Santo Agostinho (1964, XI, 14, 17): “Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicar a quem me pede, não sei”. Algo similar ocorre com a definição de jogos em Wittgenstein. O que significa: saber o que é um jogo? O que significa sabê-lo e não poder dizê-lo? Esse saber é um equivalente qualquer de uma definição não proferida? De modo que, quando for proferida, posso reconhecê- la como a expressão do meu saber? Não é o meu saber, o meu conceito de jogo, totalmente expresso na explicação que posso dar? A saber, em que descrevo exemplos de diferentes tipos de jogos; mostro como se pode construir, por analogia desses, todos os tipos possíveis de outros jogos; digo que quase não mais chamaria isto e isto de jogo; e outras coisas similares. (WITTGENSTEIN, 1997, p.54, §71) Assim, oferecemos adiante mais de uma analogia para não iniciados na filosofia de Wittgenstein, pois o termo “jogos de linguagem” pode parecer inusitado. Todavia, 18 se nos orientarmos pela perspectiva desse autor, o termo passa a ser inteligível e familiar. Façamos, então, uma analogia sobre isso com um exemplo, parafraseando o próprio Wittgenstein no exemplo dos pedreiros (WITTGENSTEIN, 1997, p.29-p.34) mas trazendo a analogia para a uma interpretação voltada para o Ensino de Química: Um professor, na companhia de um aluno, aponta para uma amostra de certo material poroso, leve e de cor ocre e profere a palavra “madeira”. O jovem aluno repete a palavra. Do mesmo modo o faz para um material cinzento, rígido e brilhante dizendo a palavra “metal”. E o aluno, repete então, a palavra “metal”. Podemos pensar, de modo primitivo, que o professor está ensinando a diferença entre uma amostra de metal e outra de madeira. Algo equivalente a ensinar um bebê a falar e reconhecer o mundo à sua volta. Esse uso da linguagem tal qual um “carimbo” não nos satisfaz na empreita de descrever processos de ensino e aprendizagem. Apesar de serem, sim, parte de processos de aprendizagem, para Wittgenstein as ações de denominar as palavras e descrever em palavras não estão, necessariamente, atreladas entre si. Ou, ao menos, não são o que o filósofo chama de elucidações últimas, isto é, essas ações não bastam para o significado. Não são as palavras, ou apenas a habilidade de usar as palavras, as ferramentas da linguagem responsáveis pelo significado. Um bom vocabulário e uma colocação coesa e coerente das palavras são necessários para o significado, mas não essenciais (WITTGENSTEIN, 1997). Separamos uma passagem de Wittgenstein (1997, p.28, §1) que converge com nosso exemplo e corrobora para nos fazermos entender: Imagine agora este emprego da linguagem: mando alguém às compras. Dou-lhe um pedaço de papel sobre o qual estão os sinais: “cinco maçãs vermelhas”. Ele leva o pedaço de papel ao vendedor; este abre a gaveta sobre a qual está o sinal “maçã”; então procura numa tabela a palavra “vermelho” e a encontra diante de uma amostra de cores; agora ele diz a sequência dos cardinais – eu assumo que ele a sabe de cor – até a palavra “cinco”, e, para cada numeral, ele pega uma maçã da gaveta que tem a cor da amostra. — Assim, e de modo semelhante, opera-se com as palavras. — “Como ele sabe onde e como deve consultar a palavra ‘vermelho’ e o que tem de fazer com a palavra ‘cinco’?” — Bem, assumo que ele age conforme descrevi. As explicações chegam a um fim em algum lugar. 19 Wittgenstein reconhece esses movimentos como parte (muitas vezes) necessária para o processo de aprendizagem, tanto que os nomeia como “ensino ostensivo de palavras” (WITTGENSTEIN, 1997, p.29, §6). Desse modo, no decorrer dos processos de ensino, a aprendizagem jamais se deve limitar a esse nível, pois ele é parte do processo. A filosofia de Wittgenstein, nos ajuda a entender porque denominar ainda não é um lance dentro do jogo de linguagem: a pessoa que domina o conceito ainda não usou o termo ou conceito dominado dentro de um jogo, de uma forma de vida. Denominar e descrever não se encontram na verdade em um único nível: o denominar é uma preparação para a descrição. O denominar não é ainda nenhum lance no jogo de linguagem, - tampouco quanto o colocar uma figura de xadrez no lugar é um lance dentro do jogo de xadrez. Pode-se dizer: ao se denominar uma coisa, nada ainda é feito. Ela não tem nome, a não ser no jogo (WITTGENSTEIN, 1997, p. 46, §49). Logo, é como se nomear os objetos com palavras fosse uma preparação para um jogo, e este evoluísse gradativamente, a ponto de conseguirmos dar significados para conjuntos de palavras, depois conjuntos de sentenças, podendo-se até ver sentido em frases em que as palavras parecem apresentar uma organização sem sentido como em: água mole em pedra dura, tanto bate, até que fura. É claro que a frase acima tem sentido. Mas um sentido poético, um sentido específico dentro dos jogos de linguagem do ditado popular. Encará-la com literalidade seria um devaneio, pois a água não fura uma pedra, não com a intencionalidade que queremos expressar com o dito. No jogo de linguagem da Geologia, pode ser que bastante água, de uma só vez, caindo em cima de uma pedra, ou, pouca água caindo por muito tempo em cima de uma pedra, provoquem a abertura de um orifício, que na realidade é um desgaste, e não, necessariamente, um artifício intencional encontrado pela água para formar um atalho para outro flanco. Então, veja: sob a ótica de Wittgenstein, a frase só tem sentido em um jogo de linguagem específico: o jogo de linguagem da poesia. Nesse jogo, geralmente, as frases são escritas em norma culta, com palavras (e muitas vezes neologismos) que têm um significado apenas para aqueles imersos no contexto poético. Como no caso de alguém que lê em um romance ou livro de poesias a frase: “Marie acertou uma flecha no coração de Pierre”. Essa mesma frase, em uma lauda de inquérito policial, 20 teria outro significado. Note que a frase é a mesma. O cenário muda. Muda a forma de vida na qual as relações humanas se dão. Uma questão que poderíamos levantar sobre isso seria: Muda o significado da frase ou muda o significado que atribuímos à frase? No nosso entendimento, o significado da frase será aquele que atribuímos diante de uma forma de vida. E as diferentes formas de vida, os diferentes jogos de linguagem, dependem das relações sociais, pois nestas estão inseridas a cultura, a vivência e a ética, em uma espécie de solução gasosa com linguagens que permeiam e, por vezes, regulamentam as interações humanas em uma comunidade. Nessa perspectiva, todo o processo de uso primitivo ou elaborado das palavras, como o conjunto composto pela linguagem e as atividades a ela relacionadas, assim como o plano de fundo que permite a compreensão do emprego deste conjunto, são, para Wittgenstein, jogos de linguagem. Norteados pela alegoria dos “jogos de linguagem”, adotamos uma ideia não essencialista para a linguagem, pois entendemos que o essencialismo é a própria ideia de representação, independente do que está sendo representado (empírico, conceitos mentais etc.). Se significa porque representa (o que quer que seja), então não depende da linguagem, e sim de algo externo a ela. Ou seja, adotamos uma visão em que o significado não está apenas nos elementos e na capacidade descritiva do uso da linguagem, mas sim, no emprego da linguagem no mundo à sua volta, no momento do uso. Uma visão Witgensteiniana. Uma visão pautada em pensamentos como: “Pare mais ou menos aqui”? Imagine que eu esteja com alguém em algum lugar, e disse isso. Não irei traçar ali nenhum limite, senão talvez fazer com a mão um movimento de mostrar – como se lhe mostrasse um determinado ponto. E justamente assim explica-se, talvez, o que é um jogo. Dá-se exemplos e se quer que eles sejam compreendidos em um determinado sentido. – Mas com essa expressão não quero dizer: ele deveria, então, nesses exemplos, ver a generalidade que eu – por alguma razão – não posso expressar. Senão: ele deveria, pois, empregar esses exemplos de determinada forma. A exemplificação não é aqui um meio de explicação indireto, – na falta de um melhor. Pois toda explicação geral pode ser também mal compreendida. É assim, com efeito, que jogamos o jogo (quero dizer, o jogo de linguagem com a palavra “jogo”.) (WITTGENSTEIN, 1999, p.54 §71). Uma vez que adotamos essa postura, devemos fazê-lo também para os processos que envolvem essa ideia não essencialista. E esses processos não podem 21 se resumir a, simplesmente, “contextos”, termo sobre o qual discorreremos mais adiante, em outras seções. O que nos interessa, agora, é que a melhor alternativa, seria mesmo “jogos”. E Wittgenstein é muito claro com o que quer dizer a respeito dos “jogos”. Considere, por exemplo, os processos que chamamos de “jogos”. Quero dizer, jogos de tabuleiro, de carta, com bola, de combate, e assim por diante. O que todos eles têm em comum? – Não diga: “Tem que haver para eles algo em comum, senão eles não se chamariam ‘jogos’” – mas veja se todas as coisas são comuns para eles. – Pois se você os examina, não vai ver, na realidade, algo que todos têm em comum, mas semelhanças, parentescos, e, na realidade, toda uma série dessas coisas (WITTGENSTEIN, 1999, p.52, §66). A respeito das duas últimas citações, poder-se-ia questionar a nebulosidade da visão essencialista, no entanto, o próprio filósofo argumenta, mais adiante, nas Investigações Filosóficas, que: Pode-se dizer que o conceito de ‘jogo’ é um conceito com bordas difusas. – Mas um conceito impreciso é realmente um conceito? – Uma fotografia pouco nítida é, afinal, uma imagem de uma pessoa? Ora, pode-se substituir sempre com vantagem uma imagem desfocada por uma bem focada? Não é muitas vezes a desfocada justamente a que precisamos? (WITTGENSTEIN, 1999, p.54, §71). Finalmente, se não basta a clareza Wittgensteiniana, proponho um exercício mental: pense em uma definição para “contextos”. Uma possível resposta seria “um conjunto de fatores, aleatórios ou não, que descrevem um instante”. Com menos esforço, poderíamos fornecer-lhe os fatores e você mesmo elaborar o contexto. Contudo, agora, pense em uma definição para “jogo”. A primeira coisa que lhe vem à mente, certamente é: “que tipo de jogo?”. Ou, quiçá, você pensou mesmo em um jogo que lhe é familiar, mas não sabe se é a este que nos referimos. A essência do contexto está na descrição (dos fatos e ou fatores), e jogos, assim como a linguagem, não têm uma essência. Donat (2015, p. 98) nos esclarece que: “Em Wittgenstein temos, portanto, a busca pelas condições de possibilidade da linguagem com sentido, condições estas que possibilitam o próprio desenvolvimento e funcionamento dos diferentes jogos de linguagem”. Na leitura que temos de Wittgenstein, as condições que possibilitam a comunicação plena, ou o jogar os jogos de linguagem com proficiência, são, 22 basicamente, o uso de lances de jogos já conhecidos que, a termo de comparação, serão validados ou invalidados dentro de um outro jogo de linguagem. Para que um lance seja válido ou inválido, dentro de um jogo de linguagem, é preciso verificar se as regras para tal jogo foram respeitadas. Não desdobramos o tema “regras”, porque este é um elemento que fortalece a alegoria dos jogos de linguagem, mas não é fundamental a ponto de ser delimitado pois, como o significado está no uso da linguagem, cabe às regras serem compreendidas nos diálogos que emergem dos jogos de linguagem. Como bem colocado por Gottschalk (2006), quando empregamos nossos conceitos, não o fazemos determinados por uma regra, e tampouco se trata de estados subjetivos ou generalizações empíricas que possibilitem a formulação dessas regras. Simplesmente, as regras apenas orientam nossa atividade, como o fazem as placas de trânsito. As regras nos servem como condições de sentido para as nossas ações. Agimos em uma determinada situação segundo o que se espera, ou o que faz sentido naquele momento. Em língua portuguesa, temos até um ditado popular para esse comportamento: “Quando em Roma, faça como os romanos”. Sendo assim, fechamos esta seção com o que o próprio Wittgenstein (1997) nos elucida a respeito das regras dos jogos de linguagem: A regra pode ser um recurso do ensino no jogo. Ela informaria o aprendiz e ensaiaria a sua aplicação. – Ou ela seria um instrumento do próprio jogo. – Ou: uma regra não tem emprego no ensino nem no próprio jogo; ou sequer é relegada a uma lista de regras. Aprende-se o jogo quando se assiste como os outros jogam. Mas nós dizemos que isso é jogado segundo tal e tal regra, porque um observador pode ler essas regras na prática do jogo, – como uma lei natural que as ações do jogo seguem — Como, entretanto, o observador diferencia, nesse caso, entre uma falha dos jogadores e uma ação do jogo correta? – Há, para isso, indícios na conduta do jogador. Imagine a conduta característica daquele que corrige um ato falho. Seria possível reconhecer que alguém faz isso, mesmo quando não compreendemos sua língua (WITTGENSTEIN, p.48, §54). 1.4 Formas de Vida De tal modo, iniciamos esta seção explanando algo importante dentro do escopo de nosso trabalho: nos comprometemos a discorrer sobre Formas de Vida, e o fazemos neste ponto, pois, nas pesquisas bibliográficas realizadas, não 23 encontramos literatura, dentro do Ensino de Ciências ou Ensino de Química, que trate o conceito wittgensteiniano de formas de vida, seja de modo teórico ou aplicado. Portanto, não há, no segundo capítulo deste trabalho, uma seção dedicada exclusivamente a esse importante conceito, embora o consideremos como um ponto extremamente relevante, pois, no nosso modo de entender e aplicar a filosofia de Wittgenstein, a compreensão da “linguagem” depende de uma espécie de amálgama de alguns termos, que não funcionam desconexos. Tampouco a linguagem, em Wittgenstein, pode ser compreendida se abstiverrmo-nos de um dos conceitos principais (uso, signo, jogos de linguagem e formas de vida). Por outro lado, o termo “formas de vida” soa autoexplicativo. Contudo, uma série de vertentes acadêmicas nos apresentam estudiosos de Wittgenstein aprofundando-se nesse termo, nos campos da Linguística, Linguagem e Filosofia, áreas transversais ao nosso estudo e que merecem atenção, apesar de não serem essenciais, justificando, assim, esta seção. Logo, trazemos adiante alguns trabalhos que podem ajudar a elucidar melhor a ideia da leitura que temos de Wittgenstein e o que este trata como formas de vida. Falar sobre esse termo é um desafio, e os trabalhos que citaremos concordam diretamente com isso (SPANIOL, 1990; SANTOS, 2016; PERUZZO JUNIOR, 2019), mesmo porque Wittgenstein não atribui importância maior à expressão como tal. O mesmo já não se pode afirmar do conceito traduzido por esta expressão, bem como da função deste mesmo conceito no pensamento de Wittgenstein. A observação: "O que precisa ser aceito, o dado — poder-se-ia dizer — são formas de vida" (IF p. 218) parece aludir a uma função básica. E N. Malcolm, filósofo e amigo pessoal de Wittgenstein, escreve que dificilmente se pode exagerar a importância daquela noção no pensamento de Wittgenstein (MALCOM, 1963:91 apud SPANIOL, 1990). Fazemos isso porque o termo “formas de vida” é confundido com “contexto”, porém, no nosso entendimento, possui características distintas, como defendemos na seção 2.3 do capítulo seguinte. Entendemos uma exploração desse tema, a esta altura da dissertação, como necessária. Mais especificamente, na tentativa de explicar o termo “formas de vida” Peruzzo Júnior (2019) utiliza-se da seguinte definição: “... contexto em que as palavras se manifestam e possuem significado” (p.75). Tal colocação diz muito sobre o modo 24 como o autor encara a filosofia segundo Wittgenstein, e é um ótimo contraponto para reforçar o nosso modo de leitura do mesmo filósofo. Para nós, a partir do momento que se desconecta o termo “formas de vida” dos demais aspectos da filosofia segundo Wittgenstein, passa-se a ter uma visão fragmentada dessa mesma filosofia, de modo que compromete o que Wittgenstein “quis dizer” e, no nosso caso, tal fato tem um peso muito relevante, pois é justamente a visão ampla do significado que torna possível, por exemplo, a análise de dados do modo que nos compete nesta pesquisa. Chama-nos atenção que, em um determinado momento, o próprio Peruzzo Júnior (2019, p.79) corrobora com a nossa visão, quando cita que: A noção de formas de vida não acaba sendo definida por Wittgenstein, pois ela adquire significado na conjunção com os jogos de linguagem e com as regras utilizadas nas mais variadas circunstâncias. A forma de vida consistirá na concordância de respostas de qualquer certa comunidade linguística, o que consequentemente, desemboca na concordância de juízos e definições dentro de um discurso com valor de verdade. Wittgenstein indica que é necessário “ver a frase como instrumento, e o seu sentido como seu emprego” (IF, 1996, §421). Ora, causa-nos estranheza que Peruzzo Júnior (2019) tente, de algum modo, definir formas de vida, quando o próprio Wittgenstein não o faz. E ainda justifica o motivo do filósofo não o fazer. Enfim, a nosso ver, contraditório e desnecessário, quando o termo já soa autoexplicativo. Contudo, ainda encontramos na literatura, segundo as vertentes citadas, quem defenda duas linhas de compreensão para formas de vida, como Santos (2016, p. 26- 27): De um modo geral, o termo formas de vida tem recebido duas interpretações que delimitam dois polos simétricos: uma naturalista e outra etnológica, que demarcam respectivamente, uma abordagem mais universalizante e relativizante do termo. A Interpretação naturalista considera que Wittgenstein, quando usa essa expressão, quer sublinhar que nossas práticas são, em alguma medida, restritas a nossas peculiaridades biológicas que distinguem e delimitam nosso modo de ser e agir diante de outras formas de vida naturais (como cães, leões, etc.). Já a interpretação etnológica enfatiza a natureza social da linguagem e da conduta humanas, sua dependência de práticas e convenções culturais. Aqui a ênfase recai sobre o caráter irredutivelmente múltiplo das formas de vida humana, convidando-nos a ler a expressão a partir de um viés relativista, em que se apaga qualquer lastro universal (ontológico, psicológico, biológico, etc.) em favor de uma leitura do termo diante da multiplicidade de culturas humanas. 25 A autora supracitada adota uma postura de entendimento em um “meio-termo” entre a dicotomia por ela mesma apresentada, contudo, para fins de esclarecimento do nosso modo de ler Wittgenstein, entendemos que nos enquadraríamos no segundo grupo. Ou seja, se existe mesmo uma segregação para a compreensão do termo, temos uma interpretação etnológica do conceito de formas de vida (SANTOS, 2016). Não destituímos o valor das formas de entendimento que fragmentam a ideia, apenas não concordamos, mas entendemos que estas são importantes para não- iniciados em Wittgenstein por um motivo estritamente didático. E, até mesmo pelo fato deste trabalho não estar voltado para epistemologia deste termo, recomendamos a leitura destas e outras relacionadas ao termo. Se está correto o que dissemos até aqui, apresentar a noção de forma de vida isoladamente de sua função parece, de um lado, mais ou menos inútil ou supérfluo, de outro, deveria ser tarefa nada fácil, senão impossível. Se, apesar disso, o fazemos, é mais por razões didáticas (SPANIOL, 1990, p. 12) Em suma, no nosso entendimento, segundo Wittgenstein não existe a linguagem, mas na verdade, linguagens que, quando colocadas em uso, através dos signos, dentro de um jogo de linguagem, estabelecidos em uma forma de vida, culminarão no significado. Podemos ainda dizer o mesmo de outra forma, quiçá tornar uma máxima wittgensteiniana sobre a linguagem, mas no mínimo definir nosso entendimento como: o significado está no uso da linguagem empregado nos jogos de linguagem de uma determinada forma de vida. No entanto, é válido lembrar que o significado não pode ser estabelecido como ‘resultado lógico’ desta linha de pensamento, mas sim como parte integrante inseparável de um ‘falar com sentido’, que contempla os jogos de linguagem, os significados e as formas de vida. 1.5 Elaboração de significado no Ensino de Química sob a ótica da alegoria dos ‘jogos de linguagem’ Nesta seção, queremos ambientar o leitor sobre as nossas concepções, isto é, como a filosofia de Wittgenstein nos elucida quando pensamos em elaboração de significados no ensino de Química. Tendo apresentado um cenário base de nossa forma de ler Wittgenstein, buscamos aqui esclarecer, por meio de exemplos, aspectos que podem vir a ser questionados a respeito da aplicação desta forma de olhar para os jogos de linguagem 26 do Ensino de Química como: Por que devemos ter um olhar diferente para o ensino de química? ou quiçá Por que não utilizar as teorias e modelos de significado mais tradicionais como Modelos Mentais e Perfis Conceituais? Escolhemos esta direção pelo fato de, dentro da área de Ensino de Ciências, existir uma concepção de que uma representação química, seja ela um símbolo, um modelo ou até mesmo um conceito, significa porque representa, porque descreve, porque é uma transposição literal daquilo que se diz, a ponto de ser encarada como uma tradução do universo, ou de qualquer que seja o objeto de estudo proposto. Discorreremos mais sobre este aspecto tão importante através da revisão bibliográfica no Capítulo II, pois o que nos compete agora é esclarecer que, no nosso entendimento, nem toda representação representa alguma coisa. Deveria? Na verdade, quando escreveu Investigações Filosóficas, o próprio Wittgenstein desacreditou do modo de atribuir significado, outrora contido no Tractatus, argumentando, assim, contra sua própria obra, elaborando, em um momento mais maduro de sua vida, a alegoria dos jogos de linguagem. Por que quando me alimento, o faço com talhares, os japoneses com hachi e os indianos com as mãos? Por que eu ajo como ajo? É uma das questões centrais em Investigações filosóficas (DONAT, 2015). É preciso entender as proposições, que muitas vezes são desprovidas de qualquer lógica, para entendermos a linguagem e seu permear a realidade nos jogos de linguagem. Esclarecemos, desde já, que as questões das quais Wittgenstein se ocupa em seus trabalhos são diferentes daquelas enfrentadas pelos profissionais da Educação, em específico, profissionais envolvidos com o Ensino de Química. Apesar disso, há nítidas semelhanças que aproximam a linguagem química da filosofia da linguagem wittgensteiniana. Um exemplo claro é o fato de a Tabela Periódica ser dividida em Períodos e Grupos. Requeremos a atenção para esses “grupos”, que podem ser chamados de “Famílias”. E, como abordado no segundo capítulo deste trabalho, “semelhanças de família” é um termo originalmente wittgensteiniano que, curiosamente, acomoda de modo espontâneo e harmônico o significado do termo usual/informal “Família” para os Grupos da Tabela Periódica. É impressionante a coincidência (ou não) de como o termo Família se ajusta ao significado. Por exemplo, quando nos referimos aos elementos da Família B, estamos falando de elementos que compartilham entre si certas características que 27 os fazem serem adequados dentro de um mesmo conjunto. Características estas que podem muito bem ser adotadas como “semelhanças de família”. Claro que estamos cientes de que a IUPAC, há algum tempo, não recomenda a nomenclatura “Família” para os grupos da Tabela Periódica, talvez, muito pelo movimento educacional contrário a estabelecer aspectos vitais e carácter animado àquilo que não os detenham. No entanto, em nossa concepção, não vemos problema algum em estabelecer esse tipo de relação, embora este tema não esteja no cerne desta pesquisa. Na verdade, o que queremos expor é que, tanto a filosofia da linguagem de Wittgenstein, quanto sua forma de abordar a relação controversa entre o empírico e o convencional, são extremamente úteis para a compreensão de como ocorre a elaboração de significados no Ensino de Química. Por isso, o caráter não representacional e plural da Química, em que os conceitos estão interligados além da lógica, leva-nos a termos e conceitos desta ciência (ou da sua própria linguagem química) e permite que nos apoiemos na alegoria dos jogos de linguagem. 1.5.1 Exemplos de jogos de linguagem no Ensino de Química Nesta seção, esclareceremos, por meio de exemplos, aquilo que entendemos como jogos de linguagem no ensino de Química, e a importância de aplicarmos a filosofia de Wittgenstein nesta seara. Como exemplo, vamos supor que um aluno de nono ano, durante a aula de Ciências, se depare com a grafia (1): (1) O=O Certamente, mesmo com um breve histórico de estudos de ciências, ou até mesmo introduzido em alguns conceitos da Química, o estudante concluirá que “ó é igual à ó”. Para que esta representação faça sentido químico, é preciso que o aluno esteja inserido no que Wittgenstein chamará de jogo de linguagem. Na percepção deste filósofo, “jogamos” com as palavras o tempo todo, isto é, usamos as palavras como se fossem jogos, quando queremos nos comunicar ou expressar sentido. Aprendemos estes jogos de linguagem não de forma inata, como na perspectiva agostiniana e do primeiro Wittgenstein, mas sim nos processos de fala e nas atividades a ela relacionadas. E os aprendemos jogando. 28 Logo, para que uma representação, por exemplo, a grafia (1) tenha significado, precisamos de um plano de fundo. No caso, o plano de fundo é jogo de linguagem, em específico. O jogo de linguagem das representações químicas. Para ser inserido neste jogo de linguagem e ser capaz de elaborar significado para o exemplo (1), o estudante precisa, antes, ter jogado outros jogos de linguagens menos sofisticados, como o do ensino de ciências durante o período do Ensino Fundamental e, quem sabe, até outros jogos mais sofisticados, no ensino médio. De modo análogo, podemos entender que o aluno que chega aos anos finais do Ensino Fundamental, no decorrer de sua vida escolar participou de jogos de linguagem mais superficiais dentro do Ensino de Ciências. E a elaboração de significados nestes jogos de linguagem iniciais sobre ciências permitem ao estudante a participação em um jogo mais elaborado. Na verdade, a apresentação de uma área das Ciências da Natureza, em particular a Química, ciência que estará presente nos seus estudos (pelo menos) até a conclusão do Ensino Médio. Para elaborar significado dentro do contexto das ciências para o exemplo (1), o estudante precisa da linguagem em que o jogo de linguagem “Química” é jogado. A aquisição desta linguagem passa por jogar o jogo, e o principal mecanismo para que isso se concretize é a fala. Uma questão pertinente em Wittgenstein é “como podemos falar significativamente sobre as coisas?”. Refletindo sobre isso, ousamos afirmar que falar significativamente sobre as coisas pode ser: jogar um jogo de linguagem onde há tantos planos de fundo quantos sejam os jogos de linguagens mais amplos, que permitem a linguagem, os jogos e, por consequência, o significado (DONAT, 2015). Partindo da elaboração de significado para exemplo 1, podemos falar significativamente sobre a representação química da molécula do gás oxigênio se, e somente se, estivermos num contexto em que o pano de fundo é a Química Geral e os conceitos de ligações químicas (mais especificamente a ligação química covalente). Fora deste jogo de linguagem, a transcrição O=O, nada representa ou significa quimicamente. Talvez, em outro jogo de linguagem, represente (mesmo) “ó é igual à ó” ou então, “zero é igual a zero”. Outra analogia que podemos fazer é para o caso de uma criança que não sabe ler e ainda não possui um significado elaborado para o os signos “=” e “O”. Nesta analogia, O=O pode não significar absolutamente nada em contexto algum. Fica claro, então, que jogos de linguagem superficiais permitem a elaboração de significados 29 mais simples e servem de base para que haja possibilidade de se jogar jogos de linguagem mais elaborados. Uma pergunta que seria pertinente neste contexto seria: A Linguagem da sala de aula de Química do Ensino Médio é a mesma do cotidiano do Químico bacharel em exercício? Esta, certamente, é uma inverdade. Cada uma é uma grande família de jogos de linguagem diferentes. Tampouco a linguagem do Ensino Médio regular (Base Comum) é a mesma do Ensino Médio Técnico. Contudo, ambas podem ter (e têm) lances iguais ou semelhantes. E, certamente, iniciado em uma, estão ligeiramente aptos para os jogos de linguagens da outra. A busca wittgensteiniana pelo modo que as coisas significam é pertinente também no Ensino de Ciências. O nosso segundo capítulo traz uma visão panorâmica dessa pertinência, através de uma revisão bibliográfica do tema, na última década. E, pelo que pudemos notar na elaboração do Capítulo 2, em uma ciência com raízes analógicas como a Química, nos deparamos, muitas vezes, com equívocos no uso da linguagem desta ciência. Isso se dá, muitas vezes, pelos significados atribuídos a sentenças empíricas. Pense no seguinte exemplo hipotético: Alunos de Ensino Médio, quando são apresentados a uma solução com pH de 5,8 afirmam que aquilo É um ácido. Quando são apresentados a um rótulo de água mineral, espantam-se com o fato de estarem “bebendo ácido”. Isso ocorre, pois tendem a ter para si que “ácidos têm pH menor que 7, água tem pH igual a 7 e bases pH maior que 7”. Portanto, é pertinente, nesta altura, destacar os conceitos de sentenças/proposições empíricas e sentenças/proposições gramaticais da filosofia de Wittgenstein. Basicamente, as sentenças gramaticais não possuem um significado literal, mas fazem todo sentido em nossa comunicação, de acordo com o seu emprego, ou seja, significam de acordo com seu uso, com suas regras de uso. Segundo Donat (2015), ao divergir dos pensamentos de Moore, Wittgenstein nos revela, na verdade, que são os fundamentos da linguagem as sentenças gramaticais e não as empíricas, pois as sentenças empíricas são passiveis de dúvidas científicas e, logo, não podem ser fundamentais. Entender que as sentenças 30 gramaticais é que são fundamentais, permite-nos olhar para a linguagem com uma percepção sólida, quase material. Fato é que temos, para nós, como fundamentos de nossas formas de vida, muitas sentenças empíricas. Já observou como admitimos verdades científicas com tal facilidade, a ponto de perdermos a noção de que a ciência evolui e que, portanto, tais conhecimentos podem ser equivocados por serem passíveis de dúvida? As sentenças podem ser entendidas como os lances dos jogos. E esses lances só poderão existir se estabelecidos os fundamentos e regras necessários. A análise gramatical deverá revelar as condições de possibilidade dos jogos de linguagem, que podem ser compreendidas como os fundamentos dos mesmos, no sentido em que serão estas condições que determinarão o que faz e o que não faz sentido num jogo de linguagem, que mostram o que é o que não é um lance válido naquele jogo de linguagem (DONAT, 2015, p. 99). Portanto, se eu disser que “o cheiro de baunilha lembra o cheiro do pudim da minha avó”, ninguém poderá duvidar. Ninguém poderá prover evidências que apoiem as leis aceitas. E esse movimento, no sentido de sanar a dúvida, é essencial nesta análise, pois só é passível de dúvida aquilo que poder ser sanado (WITTGENSTEIN, 1997). Por outro lado, um exemplo empírico oposto pode ser a Lei da Conservação das Massas. Há incontáveis experimentos que podem comprovar essa lei das Ciências que, não necessariamente, é uma regra nos jogos de linguagem. De tal modo, pode-se então melhor entender a famosa colocação de Wittgenstein quando este afirma que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo” (WITTGENSTEIN, 1968, p.111). A ilustração dos jogos de linguagem nos é pertinente, a ponto de considerarmos uma contribuição inestimável, principalmente quando estamos direcionados ao Ensino de Química. Pois, como dito, esta ciência possui uma linguagem própria. É valido ressaltar que: Essa contribuição aponta para a relação entre pensamentos e expressões. Como a filosofia de Wittgenstein tem por alvo as ilusões que assolavam os filósofos de sua época, ele nunca pretendeu fazer uma filosofia da linguagem. O papel da linguagem na filosofia de Wittgenstein é que era necessário olhar para determinados aspectos de funcionamento da linguagem para perceber as armadilhas nas quais os filósofos estavam caindo sem perceber. Apesar de seus métodos se direcionarem para a Filosofia e os filósofos, esses métodos apontam na direção de determinada concepção ou modelo 31 de linguagem ou, mais especificamente (e inegavelmente), para a observação do uso de nossa linguagem. Com isso, o que existe na filosofia de Wittgenstein é uma concepção de linguagem e não a concepção de linguagem. Em nossa tese, partimos do pressuposto que Wittgenstein, ao propor a noção de jogos de linguagem, indica, sim, uma direção de funcionamento da linguagem que é interessante como pressuposto para uma concepção de ensino (GOIS, 2017, p.92). Assim, dentro das contribuições filosóficas de Wittgeinstein, as definições verbais, escritas ou faladas, são estritamente necessárias para a elaboração de significado e para aprendizagem. Desconstruir essa analogia e os conceitos enraizados por uma “regra” de um jogo de linguagem é extremamente oneroso. Daí a importância da filosofia de Wittgenstein e a alegoria jogos de linguagem: reorganizar as (novas) regras dos jogos de linguagem, das classificações das substâncias inorgânicas, de modo que as regras anteriores de outros jogos de linguagem permitam a aprendizagem de regras mais elaboradas e, por consequência, a possibilidade de jogos de linguagens também mais elaborados. Discorreremos mais sobre tais pontos na próxima seção. Em outras palavras, lances e movimentos de comunicação, que têm um determinado significado dentro de um jogo de linguagem, podem (e são) utilizados para se fazer entender dentro de outros jogos de linguagem, até que se estabeleçam entre locutores e interlocutores as regras daqueles jogos de linguagem naquela forma de vida. Em Wittgenstein, a diferenciação entre os jogos de linguagem deve-se ao uso que fazemos das palavras. Retomamos, rapidamente, o clássico exemplo da comunicação entre pedreiros, contido no livro Investigações Filosóficas. Nesse exemplo, quando um dos pedreiros diz “bloco” (WITTGENSTEIN, 1997, p. 28, §2), não está se referindo necessariamente ao tijolo enquanto material. Na verdade, quer se referir à necessidade de seu transporte para uso. Como um médico em cirurgia, que sobre o plano de fundo de uma intervenção cirúrgica solicita um bisturi ao seu instrumentista apenas usando a palavra “bisturi”, por exemplo. Fato é que o outro pedreiro entende o que lhe foi solicitado. Assim como o instrumentista sabe que tem de passar o bisturi para o médico. Ambos os exemplos estão alocados em jogos de linguagens semelhantes, mas o significado atribuído ao contexto em que se expressam as palavras será determinante para a elaboração do(s) significado(s) destas. 32 Nessa direção, entendemos que o que constitui um jogo de linguagem nada mais é que uso das palavras e o valor significativo que atribuímos a estas palavras a partir das relações sociais. No caso do exemplo (1), precisamos do conceito de ‘ligação química covalente’ para compreender a representação exemplificada para a molécula do gás oxigênio. Atentando-nos, agora, para a palavra ‘ligação’ e a palavra ‘química’, separadas e em contextos distintos, podemos perceber nitidamente que estas terão significados completamente diferentes, tais quais aqueles estabelecidos pelas relações sociais que os englobam no momento e contexto do seu uso. Para que o conceito a que se refere termo ‘ligação química’ tenha algum significado, é necessário que se trate deste em contexto mais particular, em um jogo de linguagem com amplitude tal que este termo se refira a uma definição particular de um fenômeno para um grupo social. Nesse caso, a ciência é o grupo social e o conceito científico de ligação química é aquele estabelecido por uma convenção dos integrantes desse grupo em suas relações sociais. A partir daí, sobre o plano de fundo dos jogos de linguagem da Química e tendo por estabelecido, na comunidade científica, o significado para o termo ‘ligação química’ será determinante nos jogos de linguagens envolvidos para a elaboração de significado para o exemplo (1). Logo, os jogos de linguagens dos contextos sociais nos quais nos inserimos ou somos inseridos, ao serem jogados, pela necessidade ou desejo de interação social, culminarão na elaboração de significados mais amplos, que possibilitarão jogarmos outros jogos de linguagens, e estes, por sua vez, permitirão que significados mais sofisticados sejam elaborados. Esses significados podem se tornar tão sofisticados a ponto de uma representação representar outra representação. No jogo de linguagem das ciências, é caso dos significados semelhantes apresentados pelas representações: (2) O=O ≡ O2 (g) ≡ gás oxigênio. Todavia, é possível falar significativamente sobre o gás oxigênio em diferentes esferas sociais sem a estrita necessidade do uso de uma ou outra representação, seja ela uma notação química ou a combinação das palavras “gás e oxigênio”. Gottschalk (2007, p.464) nos ajuda a pensar que... 33 [...] o significado de uma palavra está no uso que fazemos dela em um determinado contexto ou jogo de linguagem. Wittgenstein utiliza essa expressão para enfatizar que não há significados fixos e imutáveis que seriam apenas etiquetados por meio das palavras. Complementamos este raciocínio com uma citação de Moreno (2012, p.78): De fato, em nossas formas de vida, talvez seja mais importante e difícil saber o que é o tempo do que quais são suas causas, uma vez que essa segunda pergunta pode ser respondida por diferentes modelos científicos provisórios e falseáveis, enquanto que a primeira solicita uma reposta única e definitiva. Ao procurar explicações únicas e definitivas, pela indicação da essência, a filosofia leva a dificuldades infindas, impedindo-nos de ver o que está à nossa frente quando usamos os conceitos, a saber, as aplicações das respectivas palavras em situações específicas de uso da linguagem. A diversidade de aplicações contrasta com a suposta exclusividade do que deve ser a essência do conceito – assim como a diversidade de objetos triangulares empíricos contrasta com a essência conceito de triângulo, como já haviam notado os antigos filósofos gregos[...] Logo, tal pensamento, além de nos auxiliar na compreensão da dimensão dos jogos de linguagem, nos ajuda a alinhavar o nosso próximo objeto de estudo, que é justamente a esfera social. Esta, delimitará os jogos de linguagem que serão jogados, os significados e usos dos signos e das palavras que permitirão aos envolvidos falar com sentido. Por ‘esfera social’ entendemos como ‘um recorte de uma cultura’. Ainda assim, não estamos tão distantes do que Wittgenstein quer dizer (e diz) com o termo autoexplicativo ‘formas de vida’. Porém, uma vez comprometidos a falar dos planos de fundo, sentimo-nos na responsabilidade de discorrer mais sobre esse termo. 1.5.2 Sobre os aspectos que diferem a Química das demais ciências sob uma ótica wittgensteiniana Aqui, caminhamos para a conclusão de nossas concepções de significado baseados no olhar do segundo Wittgenstein. Concepções essas que empregaremos para evidenciar, estudar e descrever processos de elaboração de significado no Ensino de Química e faremos ao analisar os Significados no Ensino de Química. Uma visão que, somada às demais visões colocadas por Gottschalk (2010) no quadro 1 do Capítulo III, colaborará com a descrição dos processos de elaboração de significado no ensino de Química. 34 Para tal, como abordamos no início deste trabalho, a linguagem, proveniente das convenções estabelecidas nas mais variadas formas de vida, tem um papel fundamental na elaboração de significados. Ora, toda a forma de significado que envolva alguma relação humana parte de uma convenção. Essas convenções podem ser de ordem ampla com relação à linguagem, mas, por serem convenções, faz-se necessário um modelo de significado que leve em conta os aspectos mais específicos da linguagem, uma vez que a linguagem permeia as relações socioculturais como o ar permeia a atmosfera. Diante disso, entendemos que uma perspectiva mais adequada seria justamente uma perspectiva baseada na filosofia. Isto é, no Ensino de Ciências, o significado em si está diretamente relacionado à verificação empírica e, em poucos aspectos, com a linguagem. A ponto de o papel da linguagem ser visto de modo ordinariamente lógico, com aplicação desconexa com o seu real papel na descrição de processos (GOTTSCHALK, 2010). Na nossa percepção, a linguagem é a verdadeira protagonista dos processos de elaboração de significado, principalmente no que se refere à Química. Ao apresentarmos as lentes da filosofia de Wittgenstein para enxergarmos sob uma outra ótica o Ensino de Ciências, mais especificamente, o Ensino de Química, nos deparamos com vários aspectos de sua filosofia, o mais importante deles sendo a alegoria dos jogos de linguagem. Resgata-nos, enquanto profissionais e pesquisadores da Educação, os estudos de Vygotsky e a ZPD (Zona de Desenvolvimento Proximal): O conceito de Vygotsky sobre a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) tem, primeiramente, um alcance teórico. Na concepção sociocultural do desenvolvimento, não se pode considerar a criança como um ser isolado de seu meio sociocultural. Não se pode analisar o desenvolvimento da criança nem avaliar suas aptidões, nem sua educação, se omitirmos seus vínculos sociais. O conceito de ZDP ilustra precisamente esse ponto de vista (PRASS, 2012, p. 21). No nosso entendimento, os aspectos teóricos que se aplicam para a criança podem ser aplicados para qualquer indivíduo em fase de aprendizagem. Diante disso, esclarecemos que a direção de nossa proposta é uma perspectiva sociocultural. E também que pretendemos contribuir para a educação, neste âmbito, na mesma direção que outros autores, mas de uma forma que torne mais amplo e mais palatável o entendimento dos processos formativos. 35 De modo incipiente, sugerimos focalizar o olhar nos processos formativos, interpretando-os por uma direção filosófica e não por uma direção exclusivamente psicológica e abstrata, i. e., sugerimos um outro olhar, no caso, pela ótica wittgensteiniana. Nessa direção, traremos algumas concepções enraizadas na representação como significação, do que discordamos, e apontaremos um possível caminho alternativo para a compreensão da significação, uma concepção não- representacional. À luz da filosofia de Wittgenstein, entendemos que a aprendizagem de conceitos químicos provém das corretas relações entre os próprios conceitos. Nessas relações, estão intrínsecos os valores socioculturais. E, por esses valores serem socioculturais, o são, por consequência, convencionais. Ocorre que, no ensino de ciências, no que concerne ao paradigma filosófico que estamos abordando, temos ainda outra errônea percepção de algo (conteúdo, conceito, representação, até mesmo enunciação) significar por ser empírico. Haja vista que Laszlo (1995) destaca que o trabalho dos químicos consiste em decifrar a natureza da matéria e traduzi-la em enunciados significativos. Ao analisar o trabalho de Laszlo (1995), lançamos mão das definições científicas e de significados que significam porque são empíricos. A partir das contribuições de Wittgenstein, o autor chama isso de ‘empirismo’. Nesse sentido, o próprio termo ‘tradução’ utilizado por Laszlo já traria consigo uma ideia de significação por empiria. Mais especificamente, o empirismo, para Gois (2012), consiste em atribuir significados empíricos a proposições gramaticais, termo wittgensteiniano: Wittgenstein procura delinear dois tipos de proposições: as ‘gramaticais’ e as ‘empíricas’. As proposições gramaticais são aquelas que têm sentido em função exclusivamente das regras da linguagem. As proposições empíricas são aquelas que ou se referem a objetos empíricos ou que podem ser verdadeiras ou falsas quando verificadas empiricamente (2012, p.235, grifo nosso). E, ainda, há expressões de origem empírica que são utilizadas de forma gramatical, por exemplo: dizer que, em um sistema fechado, a soma das massas dos reagentes é igual à soma das massas dos produtos, é uma proposição gramatical com origem empírica, pois é verificável. 36 Para complementar, posso me referir a um modelo atômico quando digo que ‘os elétrons orbitam o núcleo do átomo’ e ter uma proposição gramatical e não uma proposição empírica, pois apesar de passível de verificação, o termo ‘orbitar’ não está sendo usado com uma intenção lógica, a ponto de poder ser verificado, mas sim com uma finalidade didática. Termos como ‘nuvem de elétrons’, ‘mar de elétrons’, ‘camada’ ou mesmo ‘orbital’ significam por que são termos científicos? Significam por que são empíricos? Nessa direção, como sujeitos inseridos no âmbito escolar, afirmamos, com propriedade, que muitos estudantes (e até professores) tratam esses termos como se fossem literais. Como se a molécula de etanol, por exemplo, por representar algo, possa ser (traduzida) significada, literalmente, por um ou outro modelo que a representa. E todas essas observações anteriores são importantes, pois denotam, com evidência, a necessidade de um outro olhar para os jogos de linguagem da química. Fato é que o próprio Laszlo (2012), anos depois, tende a reconhecer que esse empirismo é perigoso para o Ensino de Química, pois nos remete, automaticamente, ao fisicalismo e ao reducionismo. O fisicalismo e o reducionismo não são instrumentos pedagógicos eficazes na solução de alguns problemas da química: [...] o caráter enciclopédico dos conteúdos químicos, fruto tanto do seu crescimento exponencial como de sua natureza sistêmica e organizacional; da multiplicidade de esquemas, modelos e representações; do pluralismo constitutivo; das contradições e circularidade dos conceitos centrais; do carácter inobservável e da falta de referentes das entidades químicas que faz o laboratório ter um caráter de conversão teológica e necessitar da transcrição; do carácter icônico da linguagem química, que constrói uma semiótica própria e faz trabalhar com a abdução e necessitar da visualização e competência representacional (Laszlo, 2012). A conversão teológica e o trabalho com a abdução (Aristotélica) referem-se ao caráter mental improvável da Química, como, por exemplo, os modelos atômicos. Em outras palavras, o que queremos dizer é: os químicos se comunicam com linguagem própria e com palavras que possuem significados diferentes em jogos de linguagens diferentes, de tal modo que conseguem estabelecer significados para aquilo que não podem ver e, de tal modo, são capazes de entender-se em seus diferentes jogos de linguagens dentro e fora da química. 37 Posso colocar esse pensamento de outro modo ainda: Como podem os químicos falar em proporções atômicas sem estabelecer um consenso de um modelo atômico ideal? Mais uma vez, Wittgenstein nos elucida quanto à disposição de variados modelos que possuímos para aquilo em que não temos a menor pretensão de sermos exatos: [...] a lógica não trata da linguagem – ou do pensamento – no sentido em que uma ciência natural trata de um fenômeno natural e no máximo podemos dizer que construímos linguagens ideais. Mas aqui a palavra “ideal” induziria a erro pois soa como se essas linguagens fossem melhores, ou mais completas que nossa linguagem cotidiana; (WITTGENSTEIN, p. 58, §81). Ora, o pluralismo dessa ciência nos permite isso. Temos vários modelos de representações (inclusive, atômicos) e usamo-los da forma que nos for mais conveniente em cada momento (em cada lance dos jogos de linguagem da química) e da forma que nos fizermos melhor entender. De modo análogo, os químicos jogam seus jogos de linguagem de acordo com as regras dos jogos de linguagem da Química e suas convenções. Os alunos tendem a utilizar as regras dos jogos de linguagem que já conhecem para estabelecer, por aceitação ou negação, regras de significado para novos jogos de linguagem, enquadramento linguístico do termo em um lance e referência para usos a posteriori. E o que discorremos acima, sobre o uso das palavras, recorre sobre a competência de leitura visual das representações químicas. GOIS (2012) salienta que: Em nenhuma outra área de conhecimento ocorreu essa convergência de informações empíricas e convencionais de maneira tão pronunciada. O objeto molecular dos químicos é uma quimera epistemológica, pois junta, numa mesma escrita, dados e propostas. Acreditamos que nesse aspecto, ou seja, de que nas representações químicas as informações empíricas e convencionais estejam grafadas de maneira amalgamada e ingênua, a química apresenta um diferencial em relação às outras áreas de conhecimento, mesmo as mais próximas (p.33). Podemos, também, destacar convenções filosóficas, teóricas, que são estabelecidas para conhecimentos empíricos. Haja vista, na química, a existência de uma comunidade específica para este fim: a IUPAC (International Union of Pure and Applied Chemistry). Ora, essa instituição estabelece critérios (regras) para a (os jogos de) linguagem da Química enquanto ciência. 38 Isso se dá, pois, nós, químicos, muitas vezes, possuímos mais de uma representação para um mesmo objeto, e essa segunda representação pode contemplar aspectos empíricos e convencionais distintos da primeira. E, ainda assim, nos entendemos, nos comunicamos, devido às regras estabelecidas para os usos de nossa linguagem. Muitos cientistas, principalmente de outras áreas, nos questionam: Para que mais de uma representação para algo, se já há uma? Não seria esta suficiente? A resposta para isso é que a Química é uma ciência plural e análoga. De tal modo, entre os químicos, não há uma cultura de objeções à criação de modelos que cumpram suas funções e, ao mesmo tempo, não divirjam das evidências empíricas. De uma maneira mais clara: O que importa entre os químicos é que haja uma comunicação legítima, mesmo que seja preciso uma analogia excêntrica. Haja vista que chamamos o modelo atômico de Dalton de ‘bola de bilhar’. 1.5.3 A necessidade de um outro olhar Podemos iniciar esta seção destacando outro motivo pelo qual os químicos desenvolvem representações que contemplam tanto aspectos empíricos quanto aspectos convencionais: é o fato de o nosso objeto de conhecimento ter as dimensões atômicas e moleculares das propriedades da matéria e, portanto, não ser diretamente acessível aos sentidos humanos. Essa característica torna filosófico esse objeto de conhecimento e, por consequência, fertiliza a identidade dessa ciência. Roque e Silva (2008) nos elucidam quanto a isso quando citam que: A linguagem da Química descreve através de modelos, representados por fórmulas estruturais, equações, gráficos e figuras, as coisas do mundo como compreendidas pelo químico. Para estudar e entender a ciência química é necessário em primeiro lugar aprender essa linguagem. As dificuldades de aprendizagem da linguagem da química estão associadas à distinção em relação à linguagem comum, à sua especificidade quase hermética e, muito provavelmente, às dificuldades em se estabelecer as necessárias relações entre os entes químicos do mundo microscópico e do macroscópico (p.921-922). Só é passível de significado aquilo que pode ser verificado empiricamente? Acreditamos que não. De tal modo, nossa preocupação não é apenas com significado empírico, mas também com outras interpretações de significado correlatos a este, como são os 39 significados em forma de ‘rótulos’, professados por Santo Agostinho, e o significado pragmático (GOTTSCHALL, 2009) Se um conceito não significa apenas por ser empírico, que outras cargas carrega consigo para que haja um significado diferente deste? Obviamente, a linguagem. Mas, a linguagem em seu uso e forma não-representacional. Quando falamos de linguagem não representacional, nos referimos à quarta interpretação do significado proposto por nós, no quadro 1 da seção 2.4, baseados no trabalho de Gottschalk (2009), que faz inferências importantes a respeito do pensamento do segundo Wittgenstein na Educação. Resgatando o exemplo em Roth et. al. (1997), da captura de imagens de uma bola rolando, quando foram registradas suas posições em instantes específicos, ressaltamos que os registros do que falamos, as imagens, são fontes de informações para desenvolvimento de equações, gráficos e ou tabelas. Todavia, não há como evidenciar uma relação entre a bola em movimento e os dados que ela fornece. Um outro exemplo que poderíamos citar aqui seria o registro fotográfico, em triplicata, de um carro Fórmula 1 passando em frente ao espectador. Há dados para estatísticas e conclusões lógicas, mas não temos o movimento. Na área de ensino, interessa-nos, justamente, o movimento, e não as equações. E o movimento não pode ser representado. Pelo menos, não de modo fidedigno. Ora, os químicos agem assim, o tempo todo, em sua ciência. É assim que os químicos usam a sua linguagem. E o que o aluno faz quando aprende, é muito diferente disto? Quero dizer, quando o aluno aprende, ele tenta se comunicar com o vocabulário e os conceitos que possui, sejam eles provenientes do senso comum ou da propedêutica. Neste contexto, façamos então uma analogia. Uma analogia fundamentada no que temos discutido nesta seção. Para fins didáticos, vamos chamar de ‘analogia do etanol’. O etanol não é, e nem deve ser, um signo carregado com o significado primitivo e essencialista de Santo Agostinho. Pois, juntos e segregados, os signos et, an, e ol, têm significados empíricos, admitidos por umas regras, estabelecidas por um órgão regulador, a IUPAC, ou seja, temos um significado claramente empirista. Teria, então, a linguagem, neste exemplo, um caráter descritivo e justificativo tal qual aqueles estabelecidos no Ensino de Ciências? De modo algum, pois, além dos signos segregados terem seus significados empíricos, há ainda uma outra forma 40 empírica, não oficial, que pode dar nome ao mesmo composto: posso chamar o etanol de álcool etílico. Nome proveniente de uma outra convenção e usado por um certo grupo. Portanto, temos aqui um significado pragmático, i. e., um significado carregado “causado” pela experiência empírica que o antecede. Mas, se ainda assim quisermos nos referir de um modo mais amplo e menos científico à mesma substância, podemos chamá-la de álcool. Ora, um nome estabelecido por uma convenção sociocultural. Esse seria um substantivo que, do mesmo modo, não pode estabelecer-se apenas por um significado agostiniano pois, para os químicos, em sua comunidade, álcool é um conceito científico (e oficial). Ou seja, um significado ao mesmo tempo aceito pela comunidade científica e que descontrói o conceito semântico estabelecido pela convenção científica da palavra álcool. Fato é que, ainda assim, mesmo com esta multicotomia, os químicos se entendem. Entre si e em sociedade. Portanto, se nem toda convenção tem origem empírica, ou seja, verificável e provável à luz do método científico; na verdade, em sua grande maioria, as convenções são socioculturais, como pode o significado apenas por ser exclusivamente empírico? Existem coisas que possuem significados estritamente convencionais. Incontáveis. Mas vamos exemplificar com a palavra ‘vermelho’. Wittgenstein mesmo faz um questionamento acerca do ‘vermelho’: “Poder-se-ia, para a elucidação da palavra ‘vermelho’, indicar algo que não fosse vermelho? A resposta é Sim!, mediante uma convenção”. E, pasme, não é preciso muito esforço para atribuir significado a vermelho para algo que não é vermelho: Até pouco tempo, quando nos referíamos à cor da pele dos indígenas brasileiros, o fazíamos com a palavra “vermelho (a)”. Ocorre que, no laboratório didático de Química, temos desafios de ensino um tanto diferentes, mas que, ainda assim se relacionam com a prática linguística desta área das ciências naturais, adicionando à linguagem química teórica práticas manuais, pois as práticas linguísticas (ou já poderia dizer, os jogos de linguagem da química que contemplam aspectos linguísticos), manuais, teóricas, práticas, representacionais e mentais, estão profundamente imbricadas (GOIS, 2017). Talvez um aluno de ensino médio propedêutico nunca tenha feito ou nunca faça uma titulação em laboratório, contudo, profissionais da área química como técnicos e bacharéis, acabam jogando todos esses diferentes jogos de linguagem citados acima no seu cotidiano. E o que nos preocupa, nesse nível de ensino, é que, evidentemente, 41 prevalecem, justamente, os significados provenientes do empirismo, ou estudos de elaboração de significado voltados, exclusivamente, para a interpretação empirista. Ora, a Química tem a sua origem na filosofia natural, na alquimia e nas artes práticas. Para nós, enquanto autores, entendemos esta ciência como uma ciência de identidade própria e bem definida. Todavia, é descrita por inúmeros autores e profissionais desta e de outras áreas como “a ciência Central”, que transita entre a Biologia e a Física. E esse estigma (com o qual não concordamos) é cultuado por boa parte dos Químicos, e causa confusão tanto na sua definição de ciência, como nos modos de pensá-la e defini-la (KAVALEK et al, 2014). Talvez a maior dificuldade em pensar a química deva-se ao fato de ela não constituir um corpo disciplinar homogêneo e, como ciência central que é considerada, estar inscrita em mais do que um registro filosófico, o que acarreta a mobilização de diversos estilos cognitivos e de estilos de aprendizagem e modos de ensino diferentes. Este fato, aparentemente incontroverso está ainda muito pouco investigado. Não assumir este pluralismo constitutivo, não descrevê-lo e determiná-lo, dificulta pensá-lo e por consequência ensiná-lo, isto porque faz com que o currículo, a pesquisa e o ensino sejam socializados em boa parte por códigos de natureza tácita ou implícita. Assim, se tencionarmos melhorar o ensino de química é necessário primeiro assumir explicitamente este pluralismo constitutivo, depois cartografá-lo na busca de eixos orientadores: primeiro do pensamento, depois do currículo e finalmente do ensino, de tal sorte que o ensino seja o mais próximo possível da forma química de operar, de pensar. (Ribeiro; Costa Pereira, 2012, [não paginado] apud KAVALEK et al., 2014, p. 5). Desse pluralismo da práxis química derivam os vários estilos cognitivos, didáticos e de aprendizagem. Portanto, a identidade plural da Química faz com que haja visões plurais acerca desta ciência, assim como divergências dos mais variados tipos nas propostas de ensino e aprendizagem de conteúdos e, ainda mais, no entendimento dos processos de elaboração dos significados destes conceitos. Não obstante, a Química é mais que uma ciência central, é uma ciência que está além das representações físicas, descritivas e observáveis. É uma ciência não- representacional, com conceitos interligados consigo mesmos, com seus próprios modelos, suas próprias leituras e com sua própria linguagem. Demonstra-se, aqui, a importância deste trabalho. A importância desta visão ampla e dicotômica de significado é que permite trafegar nas vias inalcançadas pelas teorias da construção do conhecimento, da mudança dos conceitos e dos perfis 42 epistemológicos. E fazemos isto à luz da filosofia de Wittgenstein, a partir da concepção de jogos de linguagem no Ensino de Química. Apesar da área de Ensino de Química ter se dedicado ao estudo das teorias da construção do conhecimento, da mudança dos conceitos e dos perfis epistemológicos, não temos a intenção de trabalhá-las diretamente, pois o foco deste trabalho é na filosofia tardia de Wittgenstein e no olhar que esta nos fornece, mediante a alegoria dos jogos de linguagem e como isso pode contribuir para o Ensino de Química tanto quanto as demais teorias citadas. Em suma, entendemos que a área de Ensino carece de uma visão mais ampla de significado, que leve em considerações aspectos até então ainda não contemplados da linguagem, como as formas de vida (para Wittgenstein, os jogos de linguagem) para descrever os processos. Baseados no Trabalho de Gottschalk (2010) e inspirados pelas pesquisas de Siebel Erduran (2019) e pela forma com que esta trabalha com a aplicação dos conceitos do segundo Wittgenstein a respeito de semelhanças de famílias para contribuir para discussão dos processos de elaboração de significado no Ensino de Ciências, propomos, algo semelhante, mas na direção da alegoria dos jogos de linguagem. Propomos analisar Significados no Ensino de Química sob esta forma de olhar, isto é, para os processos de elaboração de significado baseados no uso da linguagem, dentro dos jogos de linguagem, em uma determinada forma de vida. Para tal, fundamentamos neste capítulo a ótica wittgensteiniana que temos sobre os significados, assim como a nossa percepção de haver, sob essa ótica, quatro tipos de significados, sendo que três deles limitam a linguagem a aspectos extrínsecos e outro que levaria em conta a abrangente ação da linguagem sobre os as relações humanas e suas convenções para com os signos e seus significados. Uma vez que nos posicionamos nos parágrafos acima, no tocante ao nosso ponto de vista, é importante esclarecer nossa interpretação da alegoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein, mesmo que de modo sucinto. Para isso, nos parece prático asseverar que, para nós, os jogos de linguagem são desprovidos de essência ou de qualquer outro tipo de fundamentação ontológica invariável. São percebidos e demarcados pelo uso de expressões em diferentes formas de vida, e, quando analisados, estudados e ou comparados, devem ser feitos pelas semelhanças de família, isto é, vistos com olhar qualitativo e interseccional entre suas similaridades, sem desprezar as individualidades. 43 Deste modo, tendo nos posicionado, encerramos nesta seção nossa discussão acerca da visão ampla do significado, do papel transcendental da linguagem nesta visão, da importância desta visão para o ensino de Química, assim como o entendimento da Química enquanto ciência, dos conceitos químicos estabelecidos nas convenções socioculturais entre os químicos (linguagem química), do desapego dos vieses empiristas de significado e da função ordinária da linguagem no Ensino de Química, apresentando um novo olhar para estes objetos de estudo baseado na filosofia de Wittgenstein. 44 2. METODOLOGIA No capítulo anterior, trouxemos uma revisão bibliográfica dos trabalhos que envolvem Wittgenstein na área de Ensino de Ciências, entre os anos de 2010 e 2020. Neste capítulo, discorreremos acerca da pesquisa qualitativa, do conceito e da importância de uma revisão bibliográfica e do roteiro que elaboramos para mantermo- nos críticos e criteriosos durante o processo de revisão. As tendências atuais das pesquisas em educação têm por base legítima e dominante a preocupação com os problemas de ensino, cerne das tribulações que repercutem nos demais aspectos da educação em nosso país (LUDKE; ANDRÉ, 1986). Cientes disso e testemunhas diárias dos desafios de ensinar Química a alunos do Ensino Médio, surge o interesse desta pesquisa: exemplificar como os modelos de significados contribuíram (e contribuem) para o desenvolvimento da química e chamar a atenção para a necessidade de um outro olhar, que vá além daqueles modelos de significados, uma vez que o mundo muda e, com ele, as práticas de ensino e os jogos de linguagens da sala de aula. Fato é que a Química é uma ciência que apresenta a peculiaridade de manter uma linguagem ímpar que a caracteriza, uma linguagem que permite falar de diferentes modelos e teorias para uma mesma coisa que precise ser significada. E, ainda assim, os químicos entendem-se entre si e em diferentes grupos sociais Neste trabalho, nos valeremos, adiante, de aspectos das filosofias dos pensamentos de Lavoisier, para explanar nossa visão acerca dos modelos de significado presentes no Ensino de Química e enaltecer a necessidade de um outro olhar para esta área. A partir do repertório bibliográfico encontrado por nós, nas mais vastas fontes de pesquisa, argumentaremos sobre com base em que os trabalhos nos favorecem, de que modo se aprofundam na filosofia dos pensamentos dos respectivos cientistas, assim como as suas contribuições para a Química. No que concerne à filosofia de Wittgenstein, a sua aplicação será o nosso referencial para estabelecer uma discussão e exemplificar a prática de nosso pensamento, baseando-nos na ilustração dos jogos de linguagem contida em uma das suas principais obras, as Investigações Filosóficas (WITTGENSTEIN, 1999), e suas recentes contribuições para Ensino de Química. 45 Vale ressaltar que, na obra citada, Wittgenstein desenvolve a alegoria dos jogos de linguagem. O autor foca nas aplicações e usos da linguagem e das palavras em diferentes formas de vida, destacando a natureza diversa da linguagem. Para Wittgenstein, imaginar uma linguagem é como imaginar uma forma de vida, e existem tantas formas de vida quanto podem existir jogos de linguagem, de tal modo que os jogos de linguagem empregados hoje no Ensino de Química precisam ser diferentes dos jogos de linguagem que constituíram e ajudaram a estabelecer a Química enquanto ciência pois, os significados, na química, são diferentes daqueles de outrora. Assim, a partir de categorias, a priori baseadas em GOTTSCHALK (2010), enquadramos pensamentos dos cientistas em questão entre os modelos de significados propostos pela autora (agostiniano, empirista, pragmatista e wittgensteiniano) e apresentamos a possibilidade de uma outra forma de olhar os jogos de linguagem da sala de aula de Química, assim como os processos de elaboração de significado no Ensino de Química. A pesquisa em educação e ensino, inúmeras vezes, remete-nos à pesquisa qualitativa, e neste trabalho não é diferente. A principal característica da pesquisa qualitativa, certamente, é a análise integrada do fundamento e do contexto no qual se insere o objeto analisado, considerando todos os pontos de vista coletados como dados relevantes, partindo de questionamentos amplos que, aos poucos, vão sendo esclarecidos, muitas vezes no decorrer do processo investigativo (GODOY, 1995). Desse modo, o caráter desta pesquisa exige um olhar qualitativo devido ao interesse dos pesquisadores estar voltado ao processo de aprendizagem e utilização dos conceitos aprendidos. Assim, nos enquadramos como pesquisadores qualitativos na visão de Denzin e Lincoln (1994, p.4, apud LIMA, 2018): [...] “pesquisadores qualitativos se interessam pela natureza da realidade dos constructos sociais; pela íntima relação entre o pesquisador, o objeto de estudo e a restrição situacional que forma (que dá corpo) ao questionamento. Tais pesquisadores enfatizam o valor contido na natureza dos questionamentos. Eles procuram responder questões importantes; como a experiência social é criada e como lhe é dada significado. Em contraste, os estudos quantitativos enfatizam a mensuração e a análise das relações causais entre variáveis, não o processo...” Estando situados quanto às características da pesquisa, apresentamos a seguir a revisão de literatura, método pelo qual desenvolvemos o capítulo anterior, e 46 que nos repertoria para estudar os diferentes modelos de significado em Lavoisier e propor um novo olhar para o significado no Ensino de Química. Uma revisão de literatura talvez seja a metodologia de pesquisa mais utilizada dentre os pesquisadores das mais variadas áreas, uma vez que, praticamente, todos necessitam de uma preparação uma para, praticamente, todos os trabalhos que publicam (OKOLI, 2019). Esse método consiste em pesquisar a fundo as contribuições bibliográficas de teorias de outros autores para uma outra pesquisa, ou seja, é desenvolvida com base em materiais já elaborados, como, por exemplo, livros e artigos científicos (GIL, 2008). Segundo Dane (1990), a importância da revisão bibliográfica está em definir uma linha limítrofe da pesquisa a ser desenvolvida a partir de uma perspectiva cientifica, sendo necessária a definição dos tópicos, palavras-chave, autores, periódicos e fontes iniciais de dado