UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS
SAN TIAGO DANTAS — UNESP, UNICAMP E PUC-SP
PRISCILA VILLELA
A “guerra às drogas” e a transnacionalização do policiamento estadunidense no Brasil:
as relações entre a Polícia Federal e a DEA entre os anos 1990 e 2000
São Paulo
2020
PRISCILA VILLELA
A “guerra às drogas” e a transnacionalização do policiamento estadunidense no Brasil:
as relações entre a Polícia Federal e a DEA nos anos 1990 e 2000
Tese apresentada ao Programa de Pós-gradua-
ção em Relações Internacionais San Tiago Dan-
tas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Es-
tadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
como exigência para obtenção do título de Dou-
tora em Relações Internacionais, na área de
concentração “Paz, Defesa e Segurança Inter-
nacional”, na linha de pesquisa “Conflitos In-
ternacionais e Violência nas Sociedades Con-
temporâneas”.
Orientador: Prof. Dr. Paulo José dos Reis Pe-
reira
São Paulo
2020
PRISCILA VILLELA
A “guerra às drogas” e a transnacionalização do policiamento estadunidense no Brasil:
as relações entre a Polícia Federal e a DEA nos anos 1990 e 2000
Tese apresentada ao Programa de Pós-gradua-
ção em Relações Internacionais San Tiago Dan-
tas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Es-
tadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
como exigência para obtenção do título de Dou-
tora em Relações Internacionais, na área de
concentração “Paz, Defesa e Segurança Inter-
nacional”, na linha de pesquisa “Conflitos In-
ternacionais e Violência nas Sociedades Con-
temporâneas”.
Orientador: Prof. Dr. Paulo José dos Reis Pereira
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Profa. Dra. Manuela Trindade Viana (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
______________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Chaves Cepik (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
______________________________________________
Prof. Dr. Reginaldo Mattar Nasser (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
______________________________________________
Prof. Dr. Tomaz Oliveira Paoliello (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
São Paulo, 04 de março de 2020
Dedico esse trabalho a meus pais, Luiz e Iris.
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Pereira, agradeço imensamente pela confiança que
sempre guiou nossa relação. Foi um processo longo e muito rico que incluiu monitoria, trabalho
de conclusão de curso, mestrado e, finalmente, doutorado. Com muito orgulho, hoje tenho o
privilégio de ser sua colega de trabalho e amiga. Seus ensinamentos e dedicação foram e sempre
serão minhas fontes de inspiração.
Ao Prof. Dr. Reginaldo Nasser, agradeço pela confiança e apoio ao longo de toda minha
carreira acadêmica. Seus ensinamentos, questionamentos e inquietações sempre guiarão meu
olhar de pesquisadora.
Aos professores que compõem a banca — Profa. Dra. Manuela Trindade, Prof. Dr.
Marco Cepik, Prof. Dr. Reginaldo Nasser e Prof. Dr. Tomaz Paoliello — agradeço pelas
oportunidades de conversas e leituras atentas que permitiram o amadurecimento desta pesquisa.
Aos professores e funcionários do PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-
SP), agradeço pelo apoio ao longo desses últimos quatro anos. Um agradecimento especial à
Graziela, Isabela e Giovana.
Gostaria de destacar que é um enorme privilégio poder trabalhar em uma instituição que
acredita no valor da pesquisa. Por isso, agradeço à PUC-SP pelo auxílio – capacitação que me
viabilizou a dedicação necessária para a conclusão desta tese.
Aos professores de Relações Internacionais da PUC-SP, agradeço pela confiança, apoio
e convívio diários. Devo um agradecimento especial à Profª Dra. Terra Budini que, como
coordenadora do curso, me ofereceu especial suporte para a etapa final de produção da tese.
Aos membros do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) e do recém-
criado Núcleo de Estudos Transnacionais sobre Segurança (NETS), minha enorme gratidão.
Vocês são parte significativa deste produto final que hoje apresento. Dedico um agradecimento
especial ao Reginaldo, Paulo, Tomaz, Rodrigo, Bruno e Helena pelas leituras cuidadosas e
atentas das várias etapas do meu trabalho.
Às pessoas queridas, que me deram todo tipo de acolhimento, força e apoio afetivo
durante esse árduo processo, meu agradecimento infinito. Por sorte da vida, essa lista seria
imensa, mas dedico um destaque especial à Camilla Villela, Arthur Murta, Laís Azeredo,
Rodrigo Amaral, Laura Donadelli, Mari Bernussi, Victoria Perino, Elze Rodrigues, Maria
Fernanda, Anna Gontijo e Lucas Amaral. Vocês foram/são incríveis. Um beijo enorme e um
abraço quentinho a todos vocês.
E, claro, um agradecimento mais que especial a meus pais, Luiz e Iris, a quem dedico
este trabalho. De vocês nunca me faltou amor, segurança, acolhimento e apoio incondicional.
Graças a vocês, pude avançar em cada passinho que me trouxe até esta importante conquista.
Amo vocês!
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – código de financiamento 001.
This study was financed in part by the Cordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001.
RESUMO
A chamada “guerra às drogas” vem desde a década de 1990 impulsionando a
transnacionalização de agências de policiamento estadunidenses, como a Drug Enforcement
Administration (DEA). Interpretou-se que as lacunas entre as diferentes jurisdições nacionais
representavam uma oportunidade à criminalidade transnacional e, ao mesmo tempo, uma
barreira à ação policial. Em razão disso, as dinâmicas do policiamento, cuja jurisdição costumou
restringir-se às delimitações territoriais nacionais, ganharam alcance transnacional. O Brasil,
reconhecido enquanto uma das mais importantes rotas do tráfico internacional de drogas da
América Latina, tornou-se importante espaço de atuação da DEA. Entre as décadas de 1990 e
2000, a DEA e a Polícia Federal brasileira estreitaram suas relações visando o combate ao
tráfico de drogas. Ao promover programas de assistência, treinamento, financiamento de
políticas públicas e operações conjuntas, a DEA logrou influenciar as condutas, diretrizes,
objetivos e estratégias da Polícia Federal. Por meio de uma pesquisa documental e de
entrevistas, este trabalho buscou descrever as diferentes formas pelas quais a DEA e a Polícia
Federal se articularam nesse dado período, destacando a assimetria de poder que marcou essa
relação.
Palavras-chave: Policiamento Transnacional; Guerra às Drogas; DEA; Polícia Federal.
ABSTRACT
The so-called “war on drugs” has, since the 1990s, driving the transnationalization of US
policing agencies, such as the Drug Enforcement Administration (DEA). It was interpreted that
the gaps between the different national jurisdictions represented an opportunity for
transnational crime and, at the same time, a barrier to police action. As a result, the dynamics
of policing, whose jurisdiction used to be restricted to national territorial boundaries, have
gained transnational reach. Brazil, recognized as one of the most important routes for
international drug trafficking in Latin America, has become an important area of policing for
the DEA. Between the 1990s and 2000s, the DEA and the Brazilian Federal Police strengthened
their relations aiming the drug trafficking control. By promoting assistance programs, training,
financing of public policies and joint operations, the DEA managed to influence the Federal
Police’s conduct, guidelines, objectives and strategies. Through documentary research and
interviews, this work sought to describe the different ways in which the DEA and the Federal
Police articulated themselves in this given period, highlighting the asymmetry of power that
marked this relationship.
Keywords: Transnational Policing; War on Drugs; DEA; Brazilian Federal Police
RESUMEN
La llamada “guerra contra las drogas” ha impulsando, desde la década de 1990, la
transnacionalización de las agencias policiales estadounidenses, como la Drug Enforcement
Administration (DEA). Se interpretó que las brechas entre las diferentes jurisdicciones
nacionales representaban una oportunidad para el crimen transnacional y, al mismo tiempo, una
barrera para la acción policial. Como resultado, la dinámica de la policía, cuya jurisdicción solía
estar restringida a las fronteras territoriales nacionales, ha ganado alcance transnacional. Brasil,
reconocido como una de las rutas más importantes para el tráfico internacional de drogas en
América Latina, se ha convertido en un área importante de actividad para la DEA. Entre los
años 1990 y 2000, la DEA y la Policía Federal de Brasil fortalecieron sus relaciones con el
objetivo de combatir el narcotráfico. Al promover programas de asistencia, capacitación,
financiamiento de políticas públicas y operaciones conjuntas, la DEA pudo influir en la
conducta, las directrices, los objetivos y las estrategias de la Policía Federal. A través de
investigaciones documentales y entrevistas, este trabajo buscó describir las diferentes formas
en que la DEA y la Policía Federal se articularon en este período dado, destacando la asimetría
de poder que marcó esta relación.
Palabras clave: Policiamiento transnacional; Guerra contra las drogas; DEA; Policía
federal brasileña.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 Número de escritórios internacionais do FBI (1990-2003) 81
Ilustração 2 Evolução do orçamento total e internacional da DEA (2000-2007) 84
Ilustração 3 Organograma da divisão de operações da DEA 85
Ilustração 4 Agências do Departamento de Justiça que atuam internacionalmente
(2018)
87
Ilustração 5 Fontes de financiamento da DEA para treinamento internacional
(2005)
99
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ATF Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives
BNDD Bureau of Narcotics and Dangerous Drugs
CIA Central Intelligence Agency
CPI Comissão Parlamentar de Inquérito
CSPCCO Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado
DARE Drug Abuse Resistance Education
DEA Drug Enforcement Administration
FBI Federal Bureau of Investigation
FBN Federal Bureau of Narcotics
GAO Government Accountability Office
ICITAP International Criminal Investigative Training Assistance Programam
IDEC International Drug Enforcement Conference
ILEA International Law Enforcement Agency
INCSR International Narcotics Control Strategy Report
INL Bureau of International Narcotics and Law Enforcement Affairs
INM International Narcotics Matters
MDE Memorando de Entendimento
NAS Seção de Assuntos de Narcóticos
NSS National Security Strategy
ONDCP Office of National Drug Control Policy
ONU Organização das Nações Unidas
OPDAT Office of Overseas Prosecutional Development Assistance and Training
OPS Office of Public Safety
PROERD Programa Educacional de Resistência às Drogas
SIS Special Intelligence Service
SIU Sensitive Investigative Unity
UNODC United Nations Office on Drugs and Crime
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 AS DIMENSÕES TRANSNACIONAIS DO POLICIAMENTO 25
2.1 Noções sobre polícia e policiamento: seu papel na manutenção da ordem social
local e globalmente
27
2.2 Quando as Relações Internacionais se voltam à polícia: um olhar sobre a
transnacionalização de agências estatais
36
2.3 O nexo entre criminalidade transnacional e policiamento transnacional 48
3 TRANSNACIONALIZAÇÃO DO POLICIAMENTO ESTADUNIDENSE: A
GUERRA GLOBAL CONTRA AS DROGAS
59
3.1 Da “guerra ao comunismo” à “guerra às drogas”: redefinindo o policiamento
transnacional
61
3.2 A construção da guerra global contra as drogas: o novo imperativo do
policiamento transnacional
71
3.3 A expansão transnacional das agências policiais estadunidenses no combate às
drogas
82
3.4 Assistência e treinamento estadunidense às polícias estrangeiras: a formação de
uma elite profissional aliada
88
3.5 A disseminação do policiamento estadunidense: a americanização do
combate às drogas.
102
4 AS RELAÇÕES ENTRE A DEA E A POLÍCIA FEDERAL 115
4.1 As relações íntimas entre a DEA e a Polícia Federal: a consolidação do
policiamento transnacional contra as drogas no Brasil
119
4.2 Programas de assistência e treinamento estadunidense às polícias brasileiras: a de-
finição do problema e da solução para o problema das drogas
133
4.3 DEA e Polícia Federal em ação: a condução de operações conjuntas 142
4.4 A internalização do modelo de “guerra às drogas” estadunidense no Brasil 148
4.5 Dimensões políticas do policiamento estadunidense no Brasil: influência, poder e
definição de agenda
156
5 CONCLUSÃO 167
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 176
ANEXOS 194
11
1 INTRODUÇÃO
As polícias estão se transnacionalizando e, progressivamente, emergem novos e mais ro-
bustos instrumentos jurídicos — leis, tratados e convenções internacionais — que reagem, re-
conhecem e endossam essa prática. Nesse mesmo sentido, as concepções, normas e práticas de
combate à criminalidade estão cada vez mais compartilhadas transnacionalmente e vêm ocu-
pando um lugar de crescente importância na agenda internacional dos mais diversos governos,
tornando o policiamento um tema crucial das relações internacionais.
O Brasil, reconhecido enquanto rota do tráfico internacional da cocaína produzida na
América Latina, tornou-se um dos importantes alvos do policiamento transnacional antidrogas.
Por conta da designada “guerra às drogas”, agências policiais estadunidenses disseminaram
transnacionalmente seu próprio modelo de repressão à criminalidade e forneceram às agências
estrangeiras assistência e treinamento para esse fim. A Drug Enforcement Administration
(DEA), agência policial criada nos anos 1970 exclusivamente para combater os crimes relacio-
nados às drogas, expandiu suas operações para o estrangeiro e, no Brasil, articulou-se com a
Polícia Federal, com quem estabeleceu laços de proximidade significativos, tema abordado por
esta pesquisa.
A inserção do tema das drogas na agenda da segurança internacional dos Estados Unidos
impulsionou esse processo a partir da década de 1990 (PEREIRA, 2015). A justificativa comum
para a ação policial fora das fronteiras nacionais é a transnacionalização do crime organizado,
que opera o tráfico internacional de drogas, que tornou insuficiente o combate no nível domés-
tico. Entende-se que as lacunas entre as diferentes jurisdições nacionais representam uma opor-
tunidade ao crime organizado transnacional e, ao mesmo tempo, uma barreira à repressão ao
crime. Assim, as agências de policiamento passaram a tomar como ponto de vista a referência
ao global, ao transfronteiriço e ao transnacional, constituindo o processo que a literatura acadê-
mica denomina de policiamento transnacional (ANDERSON, 1989; ANDREAS;
NADELMANN, 2006; BOWLING, 2009; NADELMANN, 1993).
As relações de interdependência que são estabelecidas entre as agências de policiamento
do mundo, situadas localmente, nacionalmente ou internacionalmente, constituem aquilo que
reconhecemos como “transnacional” neste trabalho (BIGO, 2016, p. 398). O termo vem sendo
trabalhado pela literatura de Relações Internacional desde a década de 1970, como uma deriva-
ção do processo de globalização (NYE; KEOHANE, 1971). Nesse contexto, uma série de
12
eventos e transformações no sistema internacional, como as políticas neoliberais e a intensifi-
cação do comércio internacional, a crescente importância do sistema monetário internacional e
das corporações multinacionais, assim como a Crise do Petróleo demonstrou que os Estados já
não eram as únicas unidades de referência relevantes das relações internacionais, como apon-
tavam os teóricos da área até então (KEOHANE; NYE, 2012 [1973]). Os atores e interações
transnacionais que se estabeleciam paralelamente às relações interestatais promoviam uma
maior sensibilidade entre as sociedades, ganhando tamanha relevância que passaram a afetar as
próprias políticas governamentais (NYE; KEOHANE, 1971, p. 336). O transnacional, nesse
sentido, foi definido enquanto “contatos, coalisões e interações através das fronteiras estatais
que não são controlados pelos órgãos centrais de política externa dos governos” (NYE;
KEOHANE, 1971, p. 331).
Embora esse seja o caso das agências de policiamento, tais teóricos utilizam o termo ape-
nas em referência aos atores não estatais, tais quais “empresas multinacionais, movimentos re-
volucionários, sindicatos, redes de cientistas, cartéis de transporte aéreo, atividades de comuni-
cação espacial” (NYE; KEOHANE, 1971, p. 331). Assume-se como transnacional aquela enti-
dade que não faz parte de uma dada sociedade, como se sua condição global o tornasse estran-
geiro ou não-nacional (BIGO, 2016, p. 398). Essa definição pressupõe que as burocracias do
Estado não podem ser definidas como transnacionais, dada sua vinculação com o Estado, o que
necessariamente as tornariam nacionais (BIGO, 2016, p. 398). Ela acaba por opor, portanto,
aquilo que denominam como atores transnacionais (restringindo o conceito a atores não esta-
tais) ao estatal (restringindo-o ao nacional ou ao local), impossibilitando a compreensão sobre
processos de transnacionalização de burocracias do Estado, como as agências de policiamento
(BIGO, 2016, p. 399).
Uma segunda abordagem, com a qual trabalhamos nesta pesquisa, compreende que os
atores transnacionais agem simultaneamente nos espaços sociais nacional e transnacional, sem
que seja possível uma definição essencial de sua natureza (BIGO, 2016, p. 398). Há continui-
dades e sobreposições dessas dimensões, que constituem redes de relações permeadas por atores
transnacionais estatais e não estatais, como polícias, militares e empresas privadas de segu-
rança, que constituem um mesmo campo de ação. Os atores que compõem essa rede de profis-
sionais da segurança comportam-se como agentes duplos. Eles mobilizam recursos do Estado
nacional para competir no campo internacional, ao mesmo tempo em que capitalizam sua ex-
periência internacional para fortalecer seu capital no âmbito nacional (DEZALAY; GARTH,
2011, p. 278). Não é possível defini-los enquanto unicamente “nacionais” ou “transnacionais”.
13
Agências estatais — mesmo aquelas consideradas o núcleo duro do Estado, como as
polícias — adquirem um certo nível de autonomia, em razão de seu conhecimento especiali-
zado, que os permite atuar transnacionalmente junto de seus pares trabalhando para seus pró-
prios fins e prioridades, paralelamente a uma agenda de interesses mais ampla definida pelo
governo (BIGO, 2016, p. 398). Isso não significa que o governo esteja completamente alienado
e que não haja uma agenda política compartilhada entre ambos, mas implica reconhecer que a
ideia de que o Estado se constitui como um ator unitário, comumente sustentada pelas Relações
Internacionais, não permite lançar luz sobre uma diversidade de práticas e articulações que se
desenrolam a partir das burocracias estatais. Partindo dessa definição, o objetivo deste trabalho
é, portanto, compreender as relações transnacionais que se estabelecem entre a DEA e a Polícia
Federal no combate ao tráfico de drogas.
Em certos períodos, os governos conferem às suas agências policiais especial poder e
prerrogativa repressiva, em função de seus próprios interesses. Esse é o caso da “guerra às
drogas”, declarada na década de 1970, a partir da qual a DEA foi criada e fortalecida, com o
restante do aparato repressivo do Estado, como o FBI, as Forças Armadas e as polícias estadu-
ais. Com o passar dos anos, essas burocracias ganham tamanha capacidade que passam a definir
suas próprias agendas e interesses, negociando-as com o próprio governo.
Há uma ampla literatura que estuda a influência da “guerra às drogas” estadunidense na
América Latina e a forma como ela moldou as leis, políticas públicas e a repressão policial
nesses países (p.e. DEL OLMO, 1990; RODRIGUES, 2012). Muitos avaliam de maneira mais
específica o processo de militarização da “guerra às drogas” pelos Estados Unidos, a partir das
intervenções estadunidenses ou do emprego de militares latino-americanos na segurança pú-
blica, sob incentivo dos Estados Unidos (p.e. BAGLEY; SALMERÓN CASTRO, 1991;
TOKATLIAN, 2015). Apenas alguns desses trabalhos desenvolvem os caminhos pelos quais o
modelo de “guerra às drogas” foi disseminado. Há autores que abordaram a importância dos
regimes internacionais como instrumento do qual os Estados Unidos fizeram uso para interna-
cionalizar suas próprias políticas criminais (p.e. ANDREAS; NADELMANN, 2006;
BEWLEY-TAYLOR, 2003), outros se dedicaram a compreender instrumentos mais coercitivos
mobilizados pelos Estados Unidos, como as intervenções internacionais e formas de pressão
diplomática (GRANDALL, 2002; WALKER III, 1999).
Poucos são os autores que deram destaque às relações entre as agências policiais como
uma forma de disseminação da “guerra às drogas” estadunidense na América Latina (p.e.
14
NADELMANN, 1993; RICART, 2018). Visando a contribuir com esse campo, esta pesquisa
se propõe a compreender o policiamento transnacional como um caminho pelo qual a “guerra
às drogas” chegou ao Brasil. A relação entre as polícias, a DEA e a Polícia Federal, é uma
importante dimensão desse processo, segundo hipótese trabalhada nesta pesquisa. A relação
entre as agências policiais compõe a relação entre os Estados, mas e resumem a ela. Por essa
razão, empregamos o termo “transnacional” para designar tais relações.
Os termos “polícia” ou “policiamento” foram utilizados para designar formas organizadas
de controle voltadas à preservação da segurança de certa ordem social (JONES; NEWBURN,
1998, p. 18). As instituições que são hoje conhecidas como “polícia” concentram parte signifi-
cativa dessas funções, sobretudo em sua face repressiva e punitiva, e foram escolhidas como
objetos privilegiados desta pesquisa. Contudo, elas não são as únicas. A função do policiamento
é tradicionalmente compreendida como um mandato do Estado — entidade que monopoliza
para sua capacidade e legitimidade de coerção e a exerce por meio de suas burocracias
(WEBER, 1991). Ao longo da história, contudo, essa função foi exercida por uma gama ampla
de instituições, que incluem o que chamamos de polícia, as Forças Armadas ou as empresas
privadas de segurança, por exemplo (ABRAHAMSEN; WILLIAMS, 2010; JONES;
NEWBURN, 1998).
O policiamento transnacional é definido como “qualquer forma de manutenção da ordem,
aplicação da lei, manutenção da paz, investigação criminal, compartilhamento de inteligência
ou outras formas de trabalhos policiais que transcendem ou atravessam as fronteiras nacionais”
(BOWLING; SHEPTYCKI, 2012, p. 3). Tal definição envolve uma série de práticas, tais como
a cooperação em justiça criminal, a atuação internacional de agências policiais nacionais (fede-
rais ou locais), a cooperação entre polícias de diferentes países (federais ou locais), a propaga-
ção de conhecimento e tecnologias entre as polícias do mundo por meio do comércio e de trei-
namentos conjuntos, desenvolvimento de tecnologias de vigilância e rastreamento e outras prá-
ticas que ultrapassam as fronteiras nacionais ou que envolvam atores transnacionais
(ANDREAS; NADELMANN, 2006, p. 3).
Ainda que essa não seja uma prática nova ou excepcional, conhece-se muito pouco sobre
como se opera o policiamento transnacional empiricamente; ou seja, quais são as atividades que
as polícias realizam em outros países, quais são as formas pelas quais se articuladas com as
polícias estrangeiras, quais são suas agendas e objetivos ou como se articulam com seus
15
governos e governos estrangeiros. Tal lacuna torna esse um tema ainda não explorado no campo
das Relações Internacionais no Brasil e sobre o Brasil.
As décadas de 1990 e 2000, por sua vez, é um período privilegiado para observar essas
relações, dada a sua intensificação. Esse dado contexto é mercado por um investimento dos
Estados Unidos após a Guerra Fria, sobretudo a partir do governo de William Clinton, em re-
direcionar os esforços de segurança internacional, antes dedicados ao combate ao comunismo,
à “guerra às drogas” e ao combate à criminalidade transnacional, de maneira geral (PEREIRA,
2015). Identificamos haver uma intensificação das relações entre a DEA e a Polícia Federal
entre as décadas de 1990 e 2000, período marcado pelo adensamento dos programas de finan-
ciamento e assistência, treinamento e disseminação de políticas públicas. Sem deixar de levar
em consideração as origens históricas da transnacionalização do policiamento estadunidense no
Brasil, esse período foi selecionado em razão da redefinição desses programas para o combate
às drogas.
A DEA e a Polícia Federal foram selecionadas como objeto desta pesquisa pois são elas
as responsáveis pelo combate às drogas em seus respectivos países e porque referem-se a elas
os acordos bilaterais assinados bilateralmente. Para além da DEA, muitas outras agências de
policiamento estadunidenses se transnacionalizaram e passaram a atuar no Brasil na repressão
às drogas. Entretanto, a relação entre elas e a Polícia Federal costumam ser mediadas pela DEA,
agência com quem os Departamentos de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal mantêm
relações mais próximas.
O Brasil é um importante parceiro estadunidense no controle do tráfico internacional de
drogas, de maneira que ilustra as mais diferentes formas de policiamento transnacional antidro-
gas promovidas pelos Estados Unidos. Entrevistas realizadas ao longo da pesquisa sugerem que
a relação entre a Polícia Federal e a DEA é recorrente e usual – com dinâmicas muitas vezes
informais. Ela se manifesta na promoção de treinamentos e seminários conjuntos, na transfe-
rência de informações e evidências, bem como na condução de operações conjuntas.
Por exemplo, em 2001 foi realizada uma operação que contou com o escritório da DEA
em Bogotá, o exército colombiano e a Polícia Federal do Brasil na captura de Fernando da
Costa, mais conhecido como Fernandinho Beira-Mar, importante líder de uma organização cri-
minosa no Brasil. Em seguida, o governo da Colômbia o deportou para o Brasil, onde pôde ser
julgado e preso por homicídio e tráfico internacional de drogas (DEPARTMENT OF STATE,
2002). Posteriormente, em novembro de 2007, a Unidade Especial de Investigação da Polícia
16
Federal (DPU), sediada no Rio de Janeiro, conduziu uma investigação, apelidada de Operação
Fênix, que visava a desmantelar a organização criminosa liderada a partir da prisão por Fernan-
dinho Beira-Mar. A operação contou com auxílio financeiro da DEA e da Sessão de Assuntos
de Narcóticos (NAS) da Embaixada dos Estados Unidos (WIKILEAKS, 2007).
Tais operações estão sustentadas por tratados internacionais acordados entre os dois Es-
tados, como o “Acordo de Cooperação Mútua entre o Governo da República Federativa do
Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para a Redução da Demanda, Prevenção do
Uso Indevido e Combate à Produção e ao Tráfico Ilícitos de Entorpecentes” de 1995. Nele são
previstas diferentes formas de cooperação que são descritas por meio de “Memorandos de En-
tendimento” (MdE), instrumento que estabelece o orçamento da assistência e treinamento.
Além das operações conjuntas, o acordo prevê o treinamento de agentes de policiamento,
como policiais federais, policiais estaduais, juízes e agentes de alfândega, por exemplo. Os
treinamentos são oferecidos nas National Academy, localizadas nos Estados Unidos, na Inter-
national Academy, localizada em El Salvador ou no Brasil. Com isso, conseguem penetrar o
sistema de policiamento do país e influenciar as ideias, práticas, tecnologias e padrões organi-
zacionais de um grupo seleto de policiais que pudesse disseminar em suas instituições
(HUGGINS, 1998, p. 22).
É essencial considerar, ainda, outras maneiras mais sutis de policiamento transnacional,
como os mecanismos de avaliação e recomendação internacionais. Por parte dos Estados Uni-
dos, foi criado na década de 1980 o processo de “certificação”, por meio do qual são avaliados
anualmente os esforços dos países produtores e de trânsito em controlar o tráfico de drogas. Por
meio desse mecanismo, é condicionada a ajuda estadunidense, bem como seus votos nas agên-
cias internacionais de ajuda (p.e. Banco Mundial). Além disso, aos países não certificados tam-
bém são aplicadas sanções econômicas e negada a assistência militar, por exemplo. A partir da
década de 1990, esse dispositivo passou a ser recorrentemente utilizado para pressionar os paí-
ses da América Latina (RODRIGUES, 2012).
Poucos trabalhos se aprofundam em estudos de casos específicos, de maneira que com-
preender a relação entre a DEA e a Polícia Federal pode revelar o que a maior parte da literatura
dedicada aos estudos sobre policiamento transnacional só trabalha de maneira teórica e concei-
tual (BOWLING; SHEPTYCKI, 2012; GOLDSMITH; SHEPTYCKI, 2007). Trazer essa refle-
xão com base em fatos concretos pode revelar concordâncias ou discordâncias com a literatura
especializada, de maneira que os ganhos potenciais desta pesquisa possam apresentar-se no
17
sentido de explicitar, complementar, reforçar ou até contradizer as reflexões por ela apresenta-
das.
Apesar de importantes avanços alcançados por estudiosos nesse campo, ainda existem
poucos trabalhos empíricos que se aprofundam em estudos de caso específicos. Dentre esses
poucos, podemos citar Ethan Nadelmann (1993), que reconstitui historicamente o processo de
transnacionalização do policiamento estadunidense desde a independência e consolidação das
próprias polícias no âmbito doméstico. Outra importante referência para este trabalho é Martha
Huggins (1998), que se dedicou a compreender o papel da assistência e treinamento estaduni-
dense às polícias brasileiras durante o regime militar (1964-1985) no combate aos movimentos
de esquerda. E, em um trabalho mais recente, Carlos Ricart (2018) analisa o desenvolvimento
de um corpo institucional de repressão às drogas na América Latina a partir da atuação da DEA
na região.
Uma parte da literatura compreende o policiamento transnacional como resposta, por
parte dos Estados, ao crescimento do crime organizado transnacional, um produto do processo
de globalização em curso, sobretudo desde a década de 1990 (SHELLEY, 1995; WILLIAMS,
1994). Tal avaliação está alinhada à justificativa de que os atores políticos têm mobilizado para
promoverem o policiamento transnacional. O então secretário geral das Nações Unidas, Koffi
Annan, no prefácio da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacio-
nal, declara que:
Se o crime cruza as fronteiras, o mesmo deve acontecer com as autoridades. Se o
estado de direito é prejudicado não só em um país, mas em muitos, então aqueles
que o defendem não podem se limitar a meios puramente nacionais. Se os inimigos
do progresso e dos direitos humanos buscam explorar a abertura e as oportunidades
da globalização para seus propósitos, então devemos explorar esses mesmos fatores
para defender os direitos humanos e derrotar as forças do crime, da corrupção e do
tráfico de seres humanos (ONU, 2000).
Autoridades estadunidenses e brasileiras também compartilham dessa interpretação. Em
1993, o presidente William Clinton lançou a Presidential Decision Directive nº 14 (PDD/ NSC-
14), mecanismo do órgão Executivo usado para promulgar as decisões presidenciais sobre ques-
tões de segurança nacional, declarando que:
Como o tráfico de drogas é um empreendimento criminoso mundial que ofusca as
capacidades e os recursos antinarcóticos de qualquer nação, os Estados Unidos lide-
rarão um esforço para mobilizar a cooperação e ação internacional contra todos os
aspectos do comércio de drogas ilícitas (THE WHITE HOUSE, 1993b).
18
Conforme é descrito no portal online da Polícia Federal, a cooperação internacional é um
importante “instrumento para combater de maneira eficaz a criminalidade organizada transna-
cional e para preservar a segurança interna. Para tanto, formaliza parcerias com instituições
estrangeiras, fomentando a cooperação e assistência mútuas”1.
Outro grupo de autores discorda dessa relação funcional. Assim, questionam que o crime
organizado transnacional seja um fenômeno novo e que a transnacionalização do policiamento
tenha servido unicamente como resposta reativa ao aumento da criminalidade transnacional.
Logo, afirmam uma importante transformação nas narrativas políticas que elevaram o tema do
crime organizado transnacional ao topo das prioridades da segurança internacional dos Estados
Unidos, mobilizando e justificando uma série de respostas políticas no sentido de combatê-la,
como a transnacionalização do policiamento (ANDREAS; NADELMANN, 2006; BOWLING;
SHEPTYCKI, 2012; EDWARDS; GILL, 2002).
Complementarmente, tais autores também reconhecem o policiamento transnacional
como prática antiga, apesar de sua crescente disseminação (NADELMANN, 1993). Um olhar
histórico revela que o policiamento transnacional não se circunscreve a contextos excepcionais
de ameaça, como resposta ao crime transnacional, mas trata-se de uma prática comum que afeta
todas as regiões cujas fronteiras sejam permeáveis ao trânsito de bens, pessoas e serviços
(BIGO, 2016, p. 403). A “guerra às drogas” apresenta-se, portanto, como mais um imperativo
discursivo que justifica e estimula o policiamento transnacional nesse dado período sobre o qual
a pesquisa se debruça.
A partir disso, torna-se possível interpretar o policiamento transnacional a partir de sua
dimensão política, de maneira a colocarmos sob questionamento a premissa básica de que a
ação da polícia é reativa, técnica e neutra. As polícias tiveram um papel fundamental na defini-
ção das ameaças e das soluções a serem empregadas. Buscando produzir um regime de verdade,
as instituições policiais batalham para estabelecerem uma interpretação legítima sobre o pro-
blema das drogas. Para isso, a estratégia desses profissionais incluiu articular-se transnacional-
mente, de forma que puderam formar alianças que reafirmassem sua autoridade e credibilidade
no campo (BIGO, 2008, p. 12). Há, simultaneamente, negociações e disputas que se desdobram
entre as agências na definição dos problemas e das soluções de segurança. Essas interações
1 Site da Polícia Federal disponível em: http://www.pf.gov.br/servicos-pf/acordos-de-cooperacao (último acesso:
10/07/2019).
19
perpassam os espaços nacionais — entre as diversas burocracias estatais — e o transnacional
— entre burocracias de diferentes Estados. Há uma hierarquia entre elas que define as relações
entre as polícias transnacionalmente.
Pensar o exercício de poder nesses termos exige um cuidado. Bigo (2016) percebe que
existe uma certa “solidariedade a distância” que torna o trabalho cooperativo entre agências
policiais transnacionalmente que transcendem a agenda mais ampla da política externa dos Es-
tados. Por outro lado, Dezalay e Garth (2011, p. 276) avaliam o policiamento transnacional
como uma forma de difusão de conhecimento estatal que, segundo os autores, constitui-se como
um elemento-chave para o exercício de poder hegemônico internacional.
O processo de importação e exportação de conhecimento especializado entre as agências
também reflete a posição em que elas ocupam no nível estatal e internacional. Ou seja, ainda
que a DEA dissemine um conhecimento especializado cujos objetivos tenham certa autonomia
com relação à agenda governamental estadunidense, sua capacidade de disseminação de conhe-
cimento está intimamente relacionada com seu poder no nível estatal — os recursos e prestígio
de que dispõe —, bem como a posição hegemônica ocupada pelos Estados Unidos internacio-
nalmente. Há, portanto, uma competição internacional entre formas de conhecimento com pre-
tensões universais e, também, entre Estados em busca de poder hegemônico por meio dos atores
transnacionais (DEZALAY; GARTH, 2011). Assim, é possível intuir que os governos se utili-
zam de suas burocracias para exercer poder internacionalmente, mas a interação entre elas não
se define ou não se limita às relações interestatais.
Ao analisar o papel da DEA na homogeneização das instituições dedicadas ao combate
às drogas na América Latina, Ricart (2018, p. 12-14) identificou três mecanismos por meio dos
quais ela pôde exercer essa influência, a saber: o coercitivo, o normativo e o de mimetização.
No primeiro deles, é possível notar pressões formais e informais para que as organizações locais
se adaptem àquelas das quais dependem. Os instrumentos normativos, por outro lado, apresen-
tam-se de maneira mais sutil, criando formas de socialização e de formação de redes de profis-
sionais especializados no tema, por meio das quais os saberes e expectativas podem ser cons-
truídas e compartilhadas. No caso da mimetização, não é necessária nenhuma forma de socia-
lização, mas as organizações reproduzem os modelos externos por percebê-los como mais avan-
çados ou vantajosos (RICART, 2018, p. 12).
Levando em consideração essas diferentes formas de se exercer poder, o caso avaliado
nesta pesquisa revela as diferentes formas pelas quais a DEA buscou influenciar a Polícia
20
Federal. Identificamos práticas de pressão e coerção para que o governo brasileiro e suas buro-
cracias seguissem as diretrizes postas pelas agências estadunidenses. Por outro lado, destaca-
mos os instrumentos pelos quais a DEA logrou moldar as preferências da Polícia Federal, cri-
ando redes de confiança, fornecendo conhecimento, tecnologia e recursos. Essa estratégia tam-
bém possibilitou que a DEA ganhasse prestígio dentre os policiais federais, fazendo com que
eles próprios demandassem essa cooperação e estimulassem a reprodução do modelo estaduni-
dense de repressão às drogas.
De acordo com Cruz (2017, p. 639), não é possível afirmar que exista uma relação unila-
teral de poder. O autor acusa os mais importantes trabalhos sobre o tema de assumirem os países
da América Latina — importantes alvos da guerra global contra as drogas — como passivos
receptores das pressões estadunidenses. A participação dos governos latino-americanos nos
processos de negociação das Nações Unidas em torno do problema das drogas ou a postura
ativa deles em definir as drogas como uma ameaça à segurança internacional de seus Estados
são expressões do protagonismo desses atores no processo de construção da “guerra às drogas”
em seus países. Segundo o autor, tem sido pouco abordado pela literatura o papel “desempe-
nhado pelos países latino-americanos na definição do problema global das drogas e na busca de
soluções”, pois são considerados “privados de força de vontade ou têm margens insignificantes
de autonomia” frente às ações estadunidenses" (CRUZ, 2017, p. 638). Assim, sustenta que fato
de as agências estadunidenses serem dominantes não significa que sejam as únicas que deter-
minam os rumos da repressão às drogas transnacionalmente (CRUZ, 2017).
Levando em conta essa crítica, notamos que a disseminação transnacional do modelo de
policiamento contra as drogas permitiu que os importadores fizessem adaptações a depender da
forma como esse conhecimento tocou posições e interesses dos atores locais (DEZALAY;
GARTH, 2011, p. 722). Há, portanto, um processo de reinterpretação e instrumentalização des-
sas noções universais que foram incorporadas a fim de torná-las localmente compreensíveis e
aceitáveis (AAS, 2013). Com isso, identificamos no país anfitrião a emergência de modelos
híbridos que incorporam lógicas locais e pressões externas (RICART, 2018, p. 14).
Esse é um tema fundamental para as Relações Internacionais porque resgata noções sobre
Estado, soberania, poder e a maneira como são definidas as prioridades de segurança pública e
internacional sobre questões que são tão sensíveis à sociedade, como a criminalidade e suas
formas de repressão. De 1990 a 2017, a taxa de homicídios no Brasil – a cada 100 mil habitantes
–, evoluiu de 22,22 (32.015 homicídios) para 31,59 (65.602 homicídios), tornando o Brasil o 2º
21
país mais violento da América do Sul2. Parte significativa dessa violência é associada ao crime
organizado, que “causou muito mais mortes em todo o mundo do que conflitos armados e ter-
rorismo, combinados” (UNODC, 2019, p.1). Ainda, parte desse crescente índice é composto
por homicídios cometidos por policiais. Em 2015, a polícia brasileira assassinou 1.599 pessoas,
em comparação com 442 nos Estados Unidos (UNODC, 2019, p.74). No mesmo ano, foram
mortos no Brasil 80 policiais, comparado com 41 nos Estados Unidos (UNODC, 2019, p.74).
Ao mesmo tempo, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. A taxa
de encarceramento no Brasil passou de 132 em 2000 (232.755 presos) para 347 em 2016
(726.712 presos)3. Um a cada três destes cumprem pena por tráfico de drogas. Desde a aprova-
ção da “Nova Lei de Drogas” em 2006, o percentual de presos por tráfico de drogas passou de
8,7% para 32,6% em 2017 (VELASCO et al., 3 de fevereiro de 2017). O tema da “guerra às
drogas” e seus impactos sobre o Brasil – termos de violência policial e encarceramento em
massa e violações de direitos humanos no sistema de saúde, por exemplo – são hoje pautas
centrais de grupos da sociedade civil.
Reagindo a esse cenário, uma série de pesquisadores, com os quais pretendemos dialogar
e contribuir, tem procurado compreender esse fenômeno e indagar o que há de novo e excepci-
onal nessa prática, que parece estranha aos parâmetros teóricos sobre os quais as ciências da
Criminologia e das Relações Internacionais sempre se sustentaram (ANDREAS;
NADELMANN, 2006; FRIEDRICHS, 2008).
O objeto de pesquisa aqui definido trouxe consigo uma série de dificuldades. A primeira
delas foi a escassez trabalhos que explorassem empiricamente o policiamento transnacional,
que poderia nos fornecer caminhos sobre como aplicar metodologicamente a literatura teórico-
conceitual. Ainda, inexistem trabalhos que se debruçassem sobre as relações entre a DEA e a
Polícia Federal, o que nos exigiu construir a pesquisa majoritariamente em cima de documen-
tação primária. A segunda dificuldade enfrentada pela pesquisa foi o acesso aos documentos
governamentais. Parte deles foram acessados via “lei de acesso à informação”, mas outros não
estão disponibilizadas ao público. Essa limitação demandou que recorrêssemos a outras fontes,
como os documentos vazados e publicados pelo Wikileaks e reportagens realizadas pela im-
prensa.
2 Dados disponíveis no “Atlas da Violência”:
3 Dados disponíveis no “World Prison Brief”:
22
Assim, para realizar esta investigação foram acessados documentos governamentais do
Brasil e dos Estados Unidos que descrevem os termos da cooperação entre as duas agências
policiais. Da parte estadunidense, foram analisados documentos publicados pelo Departamento
de Estado, pelo Departamento de Justiça, pelas próprias agências policiais e pelo Government
Accountability Office (GAO), que recorrentemente demanda prestação de contas das atividades
da DEA ao governo. Uma das mais importantes fontes da pesquisa foram os International Nar-
cotics Control Strategy Report (INCSR), relatórios publicados anualmente pelo Departamento
de Estado avaliando as políticas de drogas dos principais países produtores e de trânsito de
drogas, bem como seus esforços de cooperação com os Estados Unidos.
Da parte brasileira, foram acessados os MdE assinados entre o Brasil e os Estados Unidos
de 1992 a 2008. Neles são descritos os recursos materiais, financeiros e humanos necessários à
execução dos termos acordados entre os países. Para compreender a informalidade dessas rela-
ções, foram utilizadas investigações jornalísticas que denunciam a presença da DEA no Brasil
e sua íntima relação com a Polícia Federal. A partir delas, tivemos acesso a relatórios de inves-
tigações que se sucederam no governo, como a CPI do Narcotráfico de 2000 e a Audiência
Pública da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado em 2003. Para
auxiliar na interpretação desses dados, foram realizadas conversas e entrevistas com membros
do Ministério de Justiça, da Polícia Federal, do Instituto Sou da Paz e com o próprio jornalista
Bob Fernandes, que conduziu as principais investigações jornalísticas sobre o tema.
Por fim, conforme concluímos ao longo da pesquisa, parte das atividades rotineiras são
informais e muito mais diversificadas que os termos demasiadamente abrangentes previstos nas
leis e nos acordos bilaterais. Essa constatação tornou a documentação oficial insuficiente. Para
coletarmos as evidências necessárias à sustentação das hipóteses do trabalho, buscamos superar
esta dificuldade de diferentes formas. A literatura acadêmica nos forneceu dados e reflexões
sobre outros casos estudados (como Colômbia ou México) que permitiram um olhar mais crítico
e refinado às poucas evidências que tínhamos em mãos. Além disso, recorremos a muitas in-
vestigações e reportagens de qualidade produzidas pela imprensa que buscavam denunciar ca-
sos de ingerência, influências e até irregularidades das agências policiais estadunidenses no
Brasil.
Entrevistas com agentes da Polícia Federal, Ministério da Justiça, da imprensa (Jornalista
Bob Fernandes) e do Instituto Sou da Paz (Bruno Langeani) me forneceram direcionamento às
minhas perguntas de pesquisas, ao narrarem suas avaliações, eventos e dinâmicas que se
23
revelam a partir de seus trabalhos diários. Esse não foi um investimento significativo do pro-
cesso de pesquisa, mas os ganhos foram enormes. Assim, parece imprescindível que pesquisas
futuras invistam em pesquisa de campo, etnografia ou outros métodos que se beneficiem de
entrevista com o atores que compõem o objeto de estudo.
Esta pesquisa nasceu com o propósito de investigar um fenômeno inexplorado pela lite-
ratura acadêmica das Relações Internacionais, qual seja, as relações entre a DEA e a Polícia
Federal no combate às drogas no Brasil. Concluímos que a ação da DEA influenciou a Polícia
Federal, moldando seus objetivos, interesses, diretrizes e capacidades no combate ao tráfico de
drogas. De maneira mais específica, compreendemos as formas pelas quais a DEA atuou com
a Polícia Federal, trazendo consigo um conjunto de práticas e concepções que foram incorpo-
radas às instituições brasileiras para o combate às drogas.
O argumento está estruturado a partir de outros quatro capítulos, além desta introdução.
A seguir, no Capítulo 2, propomos um debate sobre as dimensões transnacionais do policia-
mento, levando em consideração como as polícias exercem seu papel de manutenção de ordem
social para além das delimitações territoriais estatais, como tornaram-se atores relevantes do
sistema internacional, em resposta ao crescimento da criminalidade transnacional e, a partir
disso, como têm sido consideradas objetos de estudo das Relações Internacionais. Nesse capí-
tulo, trabalhamos indagações teóricas que sustentam as evidências empíricas apresentadas nos
demais capítulos.
Em seguida, no Capítulo 3, reconstituímos o processo de transnacionalização das agên-
cias de policiamento estadunidenses, dando destaque à DEA. Partindo do pressuposto de que o
policiamento transnacional não é uma novidade na história, apresentamos a forma como a
“guerra às drogas” tornou-se o novo imperativo desses esforços no Brasil, antes mobilizado
pela “guerra ao comunismo”. A partir disso, descrevemos o processo de inserção da “guerra às
drogas” no centro da agenda de segurança internacional estadunidense e como o policiamento
transnacional tornou-se uma das principais frentes desse empreendimento globalmente. A partir
disso, buscamos compreender uma importante dimensão política desse processo, que decorre
dos objetivos definidos pela DEA de construir uma rede transnacional de profissionais aliados.
No Capítulo 4, aproximamo-nos de nosso objeto de estudo, desenvolvendo em quais ter-
mos se expressam as relações entre a DEA e a Polícia Federal durante os anos 1990 e 2000. A
partir do estabelecimento de uma rede de confiança entre as duas instituições, dos programas
de assistência e treinamento, do financiamento de políticas públicas e das operações conjuntas,
24
identificamos as formas pelas quais a DEA exerceu poder sobre a Polícia Federal, estabelecendo
agenda e influenciando suas diretrizes, estratégias e objetivos. Por fim, no capítulo conclusivo,
resgatamos os principais resultados alcançados por esta pesquisa, bem como suas lacunas e
potenciais agendas de investigação que a partir dela puderam ser abertas.
25
2 AS DIMENSÕES TRANSNACIONAIS DO POLICIAMENTO
A transnacionalidade do policiamento não é uma novidade na história. Esforços unilate-
rais, bilaterais e multilaterais contra a pirataria, o crime de fronteira, o tráfico ou o contrabando
datam da própria definição das fronteiras nacionais. Ao longo do século dezenove, podemos
destacar o papel que a Grã-Bretanha assumiu na criminalização e policiamento transnacional
contra o tráfico de escravos africanos, por exemplo (ANDREAS; NADELMANN, 2006, p. 4).
Contudo, assistimos ao crescimento da importância que o tema tem ganhado na agenda política
internacional dos Estados, o que se expressa na disseminação de regimes internacionais desti-
nados a proibir atividades transnacionais, no estabelecimento de mecanismos para combatê-las,
na circulação cada vez mais frequente de agentes policiais pelo mundo ou na intensificação dos
esforços de cooperação entre agências de policiamento.
Ao se perguntarem sobre o sentido de tais mudanças, estudiosos identificam que o poli-
ciamento transnacional corresponde a mais uma expressão do processo de globalização em
curso. De maneira geral, assume-se que as mudanças trazidas pela globalização tornaram turvas
as distinções entre os domínios doméstico e internacional, o que permitiu a transnacionalização
de diferentes processos sociais, incluindo a criminalidade e seu policiamento (BIGO, 2008;
BOWLING; SHEPTYCKI, 2012).
Contudo, o policiamento transnacional também deve ser interpretado como resultado da
criação dos novos estatutos criminais produzidos pelas autoridades políticas domésticas nas
últimas décadas, o que resultou na criminalização de práticas até então não reguladas ou não
prioritárias na política criminal (ANDREAS, 2011; ANDREAS; NADELMANN, 2006). Mui-
tos dos esforços que marcam o policiamento transnacional na contemporaneidade dizem res-
peito a atividades que tampouco eram proibidas há um século ou até há poucas décadas — como
as drogas, lavagem de dinheiro, pirataria virtual ou contrabando de armas, para citar alguns
exemplos (NADELMANN, 1993, p. 1). Isso significa que o crescimento da criminalidade trans-
nacional pode ser explicado pelo crescente esforço dos Estados em controlar certos trânsitos de
bens e pessoas, elevando o crime organizado transnacional ao centro da agenda de segurança
internacional (ANDREAS; PRICE, 2001). Assim, não assistimos à emergência de um fenô-
meno completamente novo e que esteja necessariamente relacionado à globalização, mas à sua
ressignificação e, a partir disso, sua intensificação.
Os Estados Unidos têm sido um protagonista nesse processo. As agências de policiamento
estadunidenses se transnacionalizaram de maneira bastante capilarizada pelo mundo, buscando
26
controlar e reprimir crimes transnacionais que afetem a segurança estadunidense. Como um
ator-chave na construção de regimes internacionais de proibição das drogas e na inserção do
tema na agenda da segurança internacional, os Estados Unidos tiveram um papel fundamental
na formulação e na difusão transnacional do modelo de policiamento contra seu tráfico.
A inclusão do tema das drogas na agenda da segurança internacional estadunidense, a
crescente disponibilidade de recursos destinados à “guerra às drogas” e a posição hegemônica
dos Estados Unidos no sistema internacional, nesse período, conferiu à DEA uma capacidade
única de agir, influenciar e exercer poder transnacionalmente. O policiamento transnacional
deve ser compreendido não como uma simples resposta lógica e necessária ao crescimento da
criminalidade transnacional, mas também como uma forma de exercer poder. Ao transnaciona-
lizar o modelo estadunidense de “guerra às drogas”, a DEA pôde construir narrativas e defini-
ções em torno do “problema” das drogas, de onde derivaram as “respostas” dadas como ade-
quadas e eficientes (EDWARDS; GILL, 2002, p. 247).
Isso significa dizer que a concepção de polícia adotada neste trabalho não se limita à sua
funcionalidade reativa à criminalidade. Compreendemos o policiamento como um poder pro-
dutivo, designado a fabricar e manter a ordem social. Resgatando as definições de polícia tra-
balhadas pelo campo da Criminologia, indagamos sobre as especificidades de seu alcance trans-
nacional. O papel da polícia perante o Estado doméstico e internacionalmente é uma questão
fundamental para compreender suas interações transnacionais.
As diferentes interpretações da literatura sobre o processo de transnacionalização do
crime e do policiamento nos direciona a diferentes possibilidades de compreensão sobre o caso
brasileiro e as contribuições que o presente trabalho pode propor ao campo de estudo. Por essa
razão, esse tópico reconstitui o campo de estudos sobre policiamento e sua dimensão transna-
cional, buscando identificar as bases conceituais e teóricas, de onde partem as reflexões sobre
o tema.
Este capítulo está organizado em três subtópicos, além desta introdução. No primeiro de-
les (2.1), resgatamos as noções de polícia e policiamento trabalhadas pela Criminologia, desta-
cando sua função perante o Estado e suas especificidades enquanto um ator transnacional. No
segundo tópico (2.2), mobilizamos a literatura que passa a olhar para as polícias enquanto um
fenômeno ou enquanto atores das Relações Internacionais. O objetivo é, nesse sentido, estabe-
lecer um diálogo com a literatura que reflete sobre o “policiamento transnacional”, identifi-
cando diferentes interpretações sobre suas motivações, causas e realização. A partir disso, no
27
terceiro tópico (2.3), questionamos o nexo estabelecido politicamente entre criminalidade trans-
nacional e policiamento transnacional. Assim, questionamos a ideia de que o policiamento tran-
sacional seja apenas uma reação à ascensão da criminalidade transnacional. Para além disso,
procuramos compreender o papel produtivo das polícias e seu protagonismo, com seus gover-
nos, na construção narrativa do “problema” de onde se derivaram as “respostas’ adequadas para
resolvê-lo.
2.1 Noções sobre polícia e policiamento: seu papel na manutenção da ordem social local e
globalmente
Parte significativa dos estudos sobre policiamento volta sua atenção às mais eficientes
formas de exercer seu papel definido em termos de aplicação da lei e repressão à criminalidade,
entendida como relevante transgressão de normas socialmente definidas. Se há crime, faz-se
necessária a criação de uma instituição que o controle, portanto. Contudo, as noções, significa-
dos e funções das polícias se constituíram historicamente e nem sempre se restringiram a esse
papel funcional e reativo. O objetivo deste tópico é reconstituir o campo de estudos sobre polí-
cia e policiamento na Criminologia, destacando os encontros e contraposições entre as mais
diversas abordagens desenvolvidas no campo. Assumindo a polícia enquanto um ator transna-
cional, este tópico também visa a refletir sobre o papel fundamental que ela exerce no aparelho
do Estado. A partir dessa reflexão, é possível pensar sobre quais bases o campo de estudos sobre
policiamento transnacional desenvolveu-se.
Ainda que a sociologia do controle social já estivesse consolidada academicamente, a
área da Criminologia passou a mirar as instituições policiais como objeto de estudos apenas a
partir da década de 1960, nos países anglo-saxões (NEWBURN; REINER, 2007). Os primeiros
estudos sobre o tema inseriam-se no contexto do debate público sobre os direitos civis nos
Estados Unidos e, portanto, avaliavam as polícias a partir de seus problemas, desvios e desfun-
cionalidades (BECKER, 2009). De acordo com Newburn e Reiner (2007, p. 910), a chamada
Labelling Theory (Teoria da Rotulação da Reação Social) desenvolvida nesse período abriu
portas para a chamada criminologia crítica que se desenvolveria posteriormente. Essa teoria
inverteu a noção básica sustentada pela Criminologia de que o controle é uma reação ao desvio.
Tais teóricos sugeriram que o Estado é o próprio agente a criar o crime, uma vez que detém a
capacidade de classificar certos comportamentos como inadequados e, portanto, criminosos. A
partir dessa abordagem, os estudos passam a chamar a atenção para o poder discricionário da
28
força policial, autônoma para decidir, interpretar e aplicar códigos normativos e valores domi-
nantes na sociedade (MUNIZ; PAES-MACHADO, 2010, p. 437).
Na década de 1970, o movimento da “lei e ordem” nesses dois países moldou os estudos
sobre polícia que se desenvolveram nesse período. Os trabalhos voltaram-se a pensar formas
mais eficientes de controlar os desvios sociais e a criminalidade, assumindo as polícias como
forças reativas e necessárias à manutenção da ordem (NEWBURN; REINER, 2007, p. 911). É
nesse mesmo contexto que a “guerra às drogas” é anunciada e que os altos índices de crimina-
lidade urbana entram no centro da agenda das campanhas presidenciais e do mandato presiden-
cial de Richard Nixon. Desde então, as produções acadêmicas assumiram um caráter bastante
normativo. Nos termos de Manning (2005, p. 438), foram trabalhos formulados para a polícia
e não sobre as polícias, uma vez que se voltavam a pensar e propor melhores políticas públicas
e formas mais eficientes de mobilizar o poder policial.
Aquilo que Reiner (2004) denomina como “mito da lei e ordem”, inaugurado nesse perí-
odo, retrata a polícia como a solução mágica para uma série de problemas de ordem pública.
Essa abordagem foi retomada e reforçada na década de 1990, período em que a preocupação
com a gestão e medição da performance policial seria expressa nas diretrizes de “tolerância
zero”, como a política de segurança pública aplicada pelo então prefeito de Nova York, Rudolph
Giuliani (1994-2001). O policiamento de “tolerância zero” reforça a importância da presença
policial e da punição agressiva, inclusive para pequenas contravenções, visando a gerar um
efeito dissuador aos que possam estar dispostos a cometer um crime (GREENE, 2014, p. 173).
Esse modelo foi inspirado na “tese das janelas quebradas”, desenvolvida por Wilson e Kelling
na década de 1980, segundo a qual a tolerância sobre pequenos delitos (como lixo nas ruas,
pichações ou prostituição) poderia tornar permissiva ou estimular formas mais graves de crimi-
nalidade. A prevenção ao crime, portanto, exige que as janelas sejam consertadas e que peque-
nos delitos se tornem intoleráveis às autoridades públicas (AAS, 2013, p. 64).
Críticos apontam como as políticas de “tolerância zero” acabaram por se voltar a grupos
socialmente marginalizados e às atividades a eles associadas, como as subculturas juvenis, os
moradores em situação de rua, imigrantes e minorias éticas, em razão da desordem social que
potencialmente poderiam criar (AAS, 2013, p. 64). De maneira reativa, uma gama de estudio-
sos, como é o caso de Hancourt (2009), demonstrou a ineficiência das políticas baseadas na
teoria das janelas quebradas.
29
Assim, a partir da década de 1990, emerge uma literatura crítica às políticas de “tolerância
zero”, levando em conta os exageros e desvios presentes em suas estruturas institucionais e
condutas diárias. Tais estudiosos assumem uma concepção liberal, segundo a qual a polícia
constitui-se como mais um instrumento de garantia do contrato social, o que pressupõe o con-
sentimento daqueles que são governados (BOWLING; SHEPTYCKI, 2012, p. 14). Assumindo
a premissa do consentimento, essa abordagem reforça que um trabalho policial eficaz só pode
ser baseado na cooperação e legitimidade perante a sociedade (SKOLNICK; BAYLEY, 2002).
Concomitantemente, nos anos 1980 uma outra literatura desenvolvia a noção de “polícia
comunitária”, criticamente ao recrudescimento da repressão policial que marcaram esse perí-
odo. Esse modelo é descrito por Skogan (2008, p. 43) como “uma estratégia organizacional que
complementa o combate tradicional ao crime com programas orientados para a resolução de
problemas e prevenção que enfatizam novos papéis para o público”. Nesse sentido, tem como
objetivo adaptar-se às necessidades e prioridades locais contando com o envolvimento dos ci-
dadãos na identificação dos problemas que os atingem (TROJANOWICZ; BUCQUEROUX,
1990). Esse modelo de policiamento surgiu nos Estados Unidos e no Reino Unido em resposta
à deterioração das relações entre a polícia e as comunidades locais, particularmente com relação
à violência racista (SKOGAN; HARTNETT, 1997). De maneira crítica, Reiner aponta como
tal visão reafirma uma noção idílica da polícia como “uma espécie de serviço social prestando
bons trabalhos para uma comunidade harmoniosa de clientes satisfeitos” (REINER, 2004, p.
162), quando na verdade trata-se de uma força do Estado que visa ao controle social.
A necessidade de reforma das polícias também alcançou proporções internacionais, atin-
gindo a política externa dos Estados Unidos. Bayley (2001), influente estudioso da área, pro-
punha que os Estados Unidos democratizassem as polícias estrangeiras, marcadas por práticas
de tortura e violação de direitos humanos. A proposta é apresentada pelo autor em um relatório
apresentado ao Departamento de Justiça, em 2001, intitulado “Democratizing the police abroad:
what to do and how to do it” (“Democratizando a polícia no estrangeiro: o que fazer e como
fazê-lo”, em português). Em seus trabalhos, Bayley (2005) identifica que os programas de as-
sistência às polícias estrangeiras conduzidos pelos Estados Unidos deveriam mirar o combate
ao crime, mas também o desenvolvimento de uma polícia democrática.
Como o caso evidencia, as polícias tendem a ser estudadas a partir de uma visão norma-
tiva e jurídica. Isso significa dizer que muitos estudiosos dedicam suas pesquisas a debater for-
mas mais adequadas de a polícia exercer seu papel de controle do crime e aplicação da lei, com
30
isso, naturalizando sua própria existência e função (NEOCLEOUS, 2014, p. 10). A polícia pas-
sou a ser assumida, nas sociedades modernas, como um pré-requisito ao funcionamento da or-
dem social, o que estudiosos têm chamado de “fetichismo da polícia” (NEWBURN; REINER,
2007; REINER, 2004). Tal concepção também se reflete nos estudos sobre policiamento trans-
nacional (ver tópico 2.2). Os esforços políticos em transnacionalizar a capacidade coercitiva do
Estado é resultado da expansão da criminalidade transnacional, tornando-a necessária e inques-
tionável, segundo parte da literatura. Tal narrativa também marcou os discursos políticos que,
dessa forma, podiam justificar seus esforços.
As instituições aos moldes do que hoje conhecemos como “polícia” foram uma recente
invenção inglesa consolidada na metade de século dezenove e acompanhou o desenvolvimento
da sociedade urbana e industrial no país (BITTNER, 1970, p. 15; EMSLEY, 2008, p. 73). Nos
Estados Unidos, o primeiro departamento de polícia foi criado no estado de Nova York para a
cidade de Nova York em 1857, espelhado no modelo londrino (BITTNER, 1970, p. 15; NA-
DELMANN, 1993, p. 14). A formação de burocracias policiais profissionalizadas está direta-
mente relacionada às pressões que os concomitantes processos de urbanização e industrializa-
ção geravam sobre os governos desses países, como problemas de coabitação, de circulação e
produção (FOUCAULT, 2008, p.452, 455). Novos problemas sociais que emergiam e ameaça-
vam a ordem social liberal-capitalista precisavam ser controlados (INNES, 2003, p. 35). Isso
não significa que a prática de policiamento não existisse até então. Muitas das funções de con-
trole do crime, hoje tidas como uma das mais centrais à função policial, eram exercidas por
agências privadas contratadas pelo Estado e pela vítima, bem como agências militares ou de-
mais burocracias do Estado (NADELMANN, 1993).
A criação da polícia está intimamente ligada à modernidade, marcada pela emergência do
Estado e a constituição das cidades. Para Foucault (2008, 421), “a partir do século XVII, vai-
se começar a chamar de ‘polícia’ o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do
Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado”. Nesse contexto, a
polícia foi criada com a missão de exercer a soberania do Estado, estabelecendo-se como uma
das instituições através da qual o soberano regular a vida de seus súditos (FOUCAULT, 2008,
p. 450). Os princípios do liberalismo que se instalaram nas sociedades ocidentais, a partir do
século XVIII, redefiniu o papel da polícia. A partir de uma racionalidade da economia polícia,
o papel da polícia tornou-se reprimir possíveis desordens, garantindo a liberdade do comércio
(FOUCAULT, 2008, p. 474; 2009, p. 118).
31
Nesse sentido, se hoje entendemos o controle do desvio e do crime como função central
da instituição policial, uma crescente literatura vem resgatando um sentido mais amplo de po-
lícia que a compreende como uma prática e não como uma única instituição. Para referir-se a
esse conceito, é preferível o emprego do termo policiamento. Nesse caso, entende-se que o
policiamento é exercido por uma ampla gama de instituições estatais que se fragmentaram e se
desenvolveram historicamente. Nas palavras de Innes (2003, p. 64),
a polícia é uma organização específica e moderna, dotada da autoridade legal do
Estado para usar a coerção física ou a ameaça dela, para fazer cumprir a lei em busca
da manutenção da ordem social. Em contraste, o policiamento se refere a uma gama
diversificada de atividades de ordenação e controle, desempenhadas por uma ampla
gama de agências.
A chamada “ciência da polícia”, que se desenvolveu ao final do século dezoito e início
do século dezenove, compreendia a polícia não como uma instituição, mas como uma ampla
gama de práticas sociais que visam a ordenar, controlar, organizar e regular a sociedade
(BOWLING; SHEPTYCKI, 2012, p. 11). Isso significa que o cerne do mandato policial foi
originalmente definido para a garantia da “boa ordem” e, para isso, foram criadas as instituições
governamentais cujas funções definiam-se como muito além do controle do crime (NEOCLE-
OUS, 2000, p. 3-4). Polícia, em suas origens, foi muito mais uma forma de governar que uma
forma de exercer e aplicar a lei (NEOCLEOUS, 2000, p. 4). Esse conceito de policiamento está
intimamente relacionado à noção de controle social: mecanismo por meio do qual se pretende
fabricar e proteger uma ordem social, regulando a conduta dos indivíduos (FOUCAULT, 2008;
INNES, 2003, p. 6).
Conforme supracitado, a Labelling Theory (Teoria da Rotulagem), desenvolvida na dé-
cada de 1960, pensa o policiamento criticamente a partir de sua dimensão política, destacando
o quanto sua atuação volta-se a grupos caracterizados socialmente como nocivos, imorais ou
antissociais. Parte da estratégia de controle sobre esses grupos está na capacidade de o Estado
criminalizá-los (ou rotulá-los como criminosos). Sob esse ponto de vista, não existem ativida-
des que sejam essencialmente criminosas. As categorias legais evoluem e se transformam, de
maneira a ser possível que certos atos sejam criminalizados com base nos grupos sociais (em
geral, marginalizados) que são a eles associados (REINER, 2012, p. 314).
A Labelling Theory influenciou, nas décadas que se sucederam, o desenvolvimento da
chamada escola crítica da criminologia, cujo legado dos estudos marxistas é bastante significa-
tivo. Assumindo o olhar da economia política, essa escola defendeu que o controle social
32
conduzido pelo Estado visa a pacificar os conflitos inerentes à luta de classes e que possam
ameaçar a ordem capitalista (INNES, 2003, p. 28). Assumindo os mesmos pressupostos, Neo-
cleous (2014) rompe com as barreiras disciplinares entre Estudos de Segurança Internacional
nas Relações Internacionais e a Criminologia para pensar o papel da violência inerente ao sis-
tema capitalista liberal. Para o autor, a manutenção da ordem estabelecida pelo Estado capita-
lista pressupõe a violência exercida por meio do poder policial do Estado, que se expressa num
continuum de guerra ao policiamento cotidiano. Assim, Neocleous define esse tal “poder poli-
cial” como uma gama de poderes do Estado, que viabiliza o processo de fabricação, controle e
reprodução da ordem liberal capitalista. Para ele, portanto, desde os seus primórdios, as polícias
estiveram preocupadas com as atividades potencialmente prejudiciais à ordem social e não ne-
cessariamente com o controle do crime (NEOCLEOUS, 2000, p. 4). Compreender o policia-
mento como um mecanismo de controle social nos permite enxergar as instituições policiais
como instrumentos muito mais complexos e com objetivos muito mais amplos do que simples-
mente o controle do crime. A polícia não é apenas uma força reativa à criminalidade ou ao
desvio de maneira geral. Ela é uma força produtiva (NEOCLEOUS, 2000, p. 5).
Na língua inglesa, a polícia é comumente referida como agência de “aplicação da lei”
(law enforcement, em inglês). Ou seja, um instrumento de que o Estado se usa para garantir que
a ordem por ele estabelecida, pelas leis, seja garantida. De maneira inversa, seu poder coerci-
tivo, que inclui a busca, apreensão, prisão, apreensão, vigilância e ações de manutenção da
ordem em geral, também requer ferramentas legais que legitimem tal função. Como apontam
Bowling e Sheptycki (2015, p. 146), muitas das práticas cotidianas da função policial seriam
criminosas se não fossem realizadas sob a proteção da legalidade.
Nas palavras de Neocleous (2000, p. xi), “a história da polícia é a história do poder do
Estado”. Criticamente, o autor aponta que as mais diversas teorias do Estado parecem assumir
que a polícia é um conceito que pertence à Criminologia e, assim, acaba por ignorá-la. Da
mesma maneira, a Criminologia pouco assume a discussão sobre a teoria de Estado. Ainda que
o controle do crime seja assumido como função central da polícia, segundo Neocleous (2000,
p. xi-xii), o Estado segue no centro do debate, uma vez que é ele a instituição responsável por
definir o que é crime.
O poder policial é um elemento central na formação do Estado nacional. Ao reconstituir
o processo de formação do Estado europeu, Charles Tilly (1996, p. 75) indica que o governo,
ao consolidar sua autoridade, torna-se um extorsionário: a um certo preço, passou a oferecer
33
proteção à população contra males que eles mesmos podiam perpetrar ou aos quais pudessem
ser permissivos. Esse processo é o que o autor chama de “chantagem protecionista”, a partir da
qual o governo firma sua capacidade de controle e hegemonia sobre a população, criando uma
ameaça — real ou discursiva — para que depois possa oferecer proteção a ela a certo preço
(HUGGINS, 1998, p. 229). Assim são criados os aparelhos dedicados à proteção dos “bons”
cidadãos e ao controle do “mal” socialmente construído (HUGGINS, 1998, p. 230). Uma vez
que consolida sua autoridade, o Estado cria burocracias cujo objetivo é firmar e manter a ordem
social, como juízes, forças policiais e outros aparatos coercitivos que assumem a prerrogativa
de determinar culpa ou inocência de acordo com os códigos postos pela autoridade central
(MOORE, 1990, p. 103).
Na definição de Bittner (apud. REINER, 2004, p. 167), o mandato da polícia define-se
pela manutenção da ordem. Contudo, de maneira mais específica, a instituição policial diferen-
cia-se das demais em razão de ser a única agência que acessa o monopólio estatal do uso legí-
timo da força. Assim, é a capacidade coercitiva que define a polícia. O sociólogo Max Weber
(2003, p. 9) define o Estado como “uma comunidade humana que se atribui (com êxito) o mo-
nopólio legítimo da violência física, nos limites de um território definido”. Assim como outras
organizações políticas que antecederam sua formação, o Estado moderno “é uma relação de
homens que dominam seus iguais pela violência legítima” (Weber, 2003, p. 10). A polícia seria,
nesse sentido, um dos principais aparatos administrativos e burocráticos que dispõem do uso
legítimo da força em nome do Estado (DEFLEM, 2000, p. 740).
As funções de policiamento do Estado foram fragmentadas entre diferentes instituições
burocráticas estatais, cada uma com sua própria lógica de funcionamento (BOWLING; SHEP-
TYCKI, 2012, p. 12). A burocratização do Estado, nos termos weberianos, fez com que as
agências que compõem o maquinário do Estado se tornassem relativamente autônomas do con-
trole popular e político (DEFLEM, 2000, p. 742). A tarefa dessa burocracia é manter a ordem
e exercer o controle social, funções que a permite recorrer ao uso da coerção. Em razão de seu
conhecimento especializado, experiência e capacidade de tomada de decisão, as polícias tor-
nam-se bastante poderosas a ponto de definir politicamente os termos de sua função (DEFLEM,
2000, p. 742). As polícias detêm a autoridade do conhecimento e, portanto, a capacidade de
classificar e priorizar agendas (BIGO, 2008, p. 14).
Se compreendemos o controle social como uma relação de poder entre o Estado e a soci-
edade, quando ampliamos nossa lente de análise para compreender o policiamento
34
transnacional, é possível também estender as relações de poder para essa segunda camada que
transcende as fronteiras nacionais. O policiamento transnacional tem um papel fundamental de
fabricar e manter uma ordem social cujo alcance é também transnacional. Assim, o policia-
mento transnacional levanta questões sobre quais são as leis a serem aplicadas, sob qual auto-
ridade e em nome de quem ela é aplicada. Quem determina qual é a ordem social a ser fabricada
e mantida sob o policiamento transnacional? (BOWLING; SHEPTYCKI, 2012, p. 8).
As polícias mobilizam uma variedade de instrumentos legais disponíveis — leis, tratados,
convenções — para realizarem suas atividades transnacionalmente. Isso significa que os instru-
mentos legais não criam ou nem sempre definem o trabalho das polícias, mas muitas vezes são
operacionalizados por elas (BOWLING; SHEPTYCKI, 2015, p. 142). As polícias buscam os
instrumentos legais para ratificarem suas práticas quando já realizadas, o que indica haver uma
certa discricionariedade em suas ações (BOWLING; SHEPTYCKI, 2015, p. 172). De acordo
com Bowling e Sheptycki (2015, p. 142), a lei é, portanto, uma ferramenta ao poder policial,
legitimando o uso da vigilância e da coerção para garantir a governança do sistema global que
esteja alinhada aos interesses dos atores poderosos, sendo eles estatais ou não estatais.
Há uma multiplicidade de agências policiais pelo mundo que disputam ou cooperam na
definição dessa ordem, mas há uma hierarquia entre elas. Essa relação de poder entre as agên-
cias de policiamento emana, em parte, do Estado de onde pertencem, a partir de onde acessam
recursos tecnológicos, financeiros ou políticos. Nesse sentido, o crescimento do policiamento
transnacional estadunidense na década de 1990 foi possível graças à posição hegemônica que
os Estados Unidos assumiram nesse período.
Isso não significa que o policiamento transacional faça parte ou se expresse como uma
estratégia única da ação internacional dos Estados Unidos. Ainda que as polícias tenham um
papel central no Estado, como instituições capazes de exercer o monopólio do uso da violência,
elas não são meros instrumentos do governo em exercício. Enquanto parte da burocracia estatal,
as polícias definem suas próprias agendas e interesses, podendo articulá-las às agendas gover-
namentais ou até contrapô-las ou influenciá-las (BIGO, 2008, p. 12).
Para Deflem (2000, p. 744), um certo grau de autonomia é uma condição necessária à
cooperação entre polícias de diferentes países. O “coração” do Estado tornou-se transnacional
(BIGO, 2016, p. 401). A imagem da unidade estatal na tomada de decisão foi abalada pela
multiplicidade de atores estatais que atuam transnacionalmente sem que haja, necessariamente,
uma coerência de objetivos e interesses definidos pelo governo (BIGO, 2016, p. 398). A
35
homogeneidade do Estado, como assumido pelas Relações Internacionais, é uma ilusão perfor-
mática e não real, na concepção de Didier Bigo (2016, p. 400).
As polícias podem se beneficiar da posição central que ocupam no Estado, negociando
seus interesses com o governo. Certas agendas governamentais podem conferir mais ou menos
orçamento, prestígio e poder às polícias que, por sua vez, trabalham para justificar ao governo
sua importância. A “guerra às drogas” anunciada por sucessivos governos estadunidenses via-
bilizaram a criação, ascensão e transnacionalização da DEA que, por sua vez, passou a atuar
como um instrumento do governo, mas não só. Seu conhecimento especializado, experiência
no campo e prestígio concedeu a essa instituição poder para definir agendas governamentais e
também instrumentalizar o governo a seu favor.
As autoridades policiais assumiram um papel fundamental na elaboração de leis em nível
nacional internalizando suas experiências transnacionais, assim como influenciam na formula-
ção da legislação de outros países e dos tratados internacionais com base nas suas próprias
concepção, internacionalizando suas experiências locais. Bowling e Sheptycki (2015, p. 150)
trazem um exemplo significativo nesse sentido. Eles descrevem que Jonathan Winer, o subse-
cretário de Estado adjunto dos Estados Unidos para a aplicação da lei internacional (1994-
1999), observou que os padrões legais que sustentam a Convenção das Nações Unidas Contra
o Crime Organizado de 2000 foram elaboradas por tecnocratas nacionais e transnacionais de
nível médio, principalmente da Europa e dos Estados Unidos (BOWLING; SHEPTYCKI,
2015, p. 150).
Assim, entende-se que o policiamento transnacional governa o próprio direito internaci-
onal. Da mesma forma, parte da cooperação entre agentes de policiamento está fora dos meca-
nismos de controle e prestação de contas do Estado (BOWLING; SHEPTYCKI, 2015, p. 149).
Nesse sentido, buscamos não assumir a polícia como mais instrumento da política externa es-
tabelecida pelo governo, mas como um ator que, apesar da posição central no Estado, não se
equivale a ele. Entende-se que as polícias detêm um certo nível de autonomia na condução de
suas funções e na construção de suas agendas políticas, podendo inclusive pautar a agenda go-
vernamental. As polícias reivindicam ter o domínio sobre a “verdade”, que decorre de seu co-
nhecimento especializado e de sua “autoridade estatística”, permitindo-lhes definir o que é ame-
aça, o que deve ser policiado e qual é o seu próprio campo de ação (BIGO, 2008, p. 12).
Nesse sentido, buscamos compreender a atuação transnacional da DEA e da Polícia Fe-
deral para além de uma relação entre Estados Unidos e Brasil e para além de sua dimensão
36
reativa ao aumento do tráfico internacional de drogas. As polícias, nesse caso, são compreen-
didas mais como atores interessados que contribuem na definição do que deve ser criminalizado
e reprimido, na construção de redes transnacionais de polícias, na disseminação de diretrizes de
policiamento e repressão às drogas, bem como no exercício do poder em nome de seus Estados,
quando articuladas com seus respectivos governos.
2.2 Quando as Relações Internacionais se voltam às polícias: olhares sobre a transnacio-
nalização de agências estatais
A polícia é um objeto de estudo estranho às Relações Internacionais. Compreendidas
como instituições limitadas à aplicação das leis nacionais e mantenedoras da segurança pública,
não foram reconhecidas como atores do sistema internacional. A visão estadocêntrica que pre-
domina na disciplina também dificulta o olhar sobre a atuação internacional de agências esta-
tais, sem que necessariamente sejam simples expressão de uma atuação uníssona daquilo que
compreendemos como Estado.
A Criminologia e as Relações Internacionais desenvolveram-se enquanto áreas de conhe-
cimento voltadas a fenômenos distintos: o crime e a guerra, respectivamente. Transformações
empíricas e também epistemológicas em ambas as áreas criaram convergências entre elas, per-
mitindo que a polícia ganhasse destaque no campo de Estudos da Segurança Internacional. A
ascensão da variável da globalização nos estudos de Relações Internacionais e, especificamente
de Segurança Internacional, acompanhado das considerações sobre o papel dos atores não es-
tatais no sistema internacional, pautam esse avanço. De maneira mais abrangente, as definições
dos domínios doméstico e o internacional se tornaram cada vez menos claras, permitindo que
fosse pensada a transnacionalidade dos processos e dos atores governamentais.
Essa virada epistemológica não emergiu num vazio, mas respondeu a importantes trans-
formações que se desenvolviam na sociedade. A partir da década de 1980, a criminalidade pas-
sou a tomar o centro da agenda de segurança internacional de países como os Estados Unidos,
que a partir de então foi disseminada transnacionalmente por meio das organizações intergo-
vernamentais, de suas relações bilaterais e por meio das suas agências de policiamento. O di-
agnóstico sobre as crescentes ameaças representadas pela criminalidade transnacional deman-
dou um esforço em torno da transnacionalização do policiamento, consequentemente, conforme
debateremos no subsequente tópico (2.3).
37
Autores da Criminologia passam a identificar uma homogeneidade de linguagens e prá-
ticas nas formas de combate ao crime que atravessam as fronteiras (GARLAND, 2001;
NEWBURN; SPARKS, 2004).
A criminologia e a justiça criminal como áreas de estudo terão que lidar com a inter-
secção tensa e contraditória entre 'o espaço dos fluxos' e 'o espaço dos lugares', pois
é aqui que novas formas institucionais emergem e energias políticas são geradas
(NEWBURN; SPARKS, 2004, p. 2).
Nesse contexto de indefinição entre ameaças domésticas e internacionais, as supostas dis-
tinções entre o papel dos militares e dos policiais foram dissolvidas. Em muitas democracias
ocidentais, a criminalidade transnacional passou a ocupar o centro da agenda da segurança in-
ternacional e tais distinções tornaram-se cada vez menos distinguíveis (ANDREAS; PRICE,
2001). É possível, portanto, identificar uma crescente convergência e transversalidade entre os
trabalhos conduzidos pelos profissionais da segurança nacional e da segurança pública, como
resultado do processo que Andreas e Price (2001) denominaram como “policialização das for-
ças armadas” e “militarização das polícias”. Esse processo diz respeito à transformação das
polícias em organizações cada vez mais semelhantes a militares, em termos de conduta, tática,
equipamentos ou objetivos, bem como a crescente atuação das forças armadas, juridicamente
destinadas exclusivamente à defesa do território nacional, em questões de segurança doméstica.
Segundo os autores, muitas das tecnologias, expertises e recursos militares passaram a ser trans-
feridos e reutilizados para o combate ao crime.
Por exemplo, as operações de paz das Nações Unidas lançadas a partir da década de 1990,
em sua maioria, passaram a incluir a reforma do setor de segurança e das polícias locais. Em
2004, a ONU enviou mais de 4 mil policiais da United Nations Civilian Police (UNCIVPOL) a
oito missões (SERAFINO, 2004, p. 5). Suas missões passaram a envolver monitoramento, con-
sultoria, treinamento, reconstrução e até aplicação da lei (BAYLEY, 2005, p. 206). Da mesma
forma, operações de interdição e outras formas de combate à criminalidade transnacional pas-
saram a mobilizar policiais em operações internacionais.
Já no âmbito doméstico, tornou-se comum o emprego das Forças Armadas em operações
de combate à criminalidade. Para Graham (2017, p. 122), assistimos a um novo urbanismo
militar, marcado pelo uso de tecnologia militar e civil com a finalidade de vigilância e controle
da vida cotidiana. Isso se manifesta, segundo o autor, no uso recorrente da guerra como
38
metáfora para descrever a condição em que vivem as sociedades urbanas, como é o caso da
“guerra às drogas” (GRAHAM, 2017, p. 26).
No Brasil, os militares têm sido mobilizados em operações de combate à criminalidade
nos morros e favelas do Rio de Janeiro, por exemplo. As operações Rio I e Rio II nos anos
1990, bem como as ocupações dos Complexos da Pena e do Alemão em 2010 e dos Complexos
de Manguinho, Maré, Cidade de Deus, Muquiço, Chapadão e Pedreira durante as Olimpíadas
de 2016 são exemplos dessas transformações. Ações que visavam à “ocupação” e “retomada
do território” assemelharam-se muito a um cenário de guerra ou com operações de paz. Não
por acaso, foram recrutados para tais operações fuzileiros navais com experiência nas missões
da ONU no Haiti, a MINUSTAH. Veículos blindados, helicópteros e armas pesadas compuse-
ram aquele cenário (SOUZA, 2015, p. 208). Ademais, as militarizações também se manifestam
de formas menos espetaculares, como revela a crescente tendência de que militares assumam a
gestão da segurança pública no país, como em secretaria de estados e municípios (SOUZA,
2015, p. 208). Por sua vez, a força de elite da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o Batalhão de
Operações Especiais (BOPE) e a Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) da Polícia Civil
do Rio de Janeiro informalmente enviaram policiais à MINUSTAH para oferecer treinamento
e também observar o uso de novas tecnologias que lá estão sendo empregadas (TOLEDO, 11
de janeiro de 2008).
Se as discussões sobre policiamento e crime estiveram tradicionalmente vinculadas ao
Estado, cujo espaço de atuação se delimitava às fronteiras nacionais, as crescentes configura-
ções subnacionais e transnacionais da criminalidade e do combate ao crime deslocaram o nível
de análise da disciplina para o local e para o global (AAS, 2013, p. 3). Nesse contexto de trans-
formações, as polícias passaram a ganhar atenção das Relações Internacionais. Sua entrada na
disciplina deriva dos debates sobre a transnacionalidade do crime — e, portanto, a necessidade
de também transnacionalizar a repressão — e dos questionamentos sobre a militarização das
polícias e a policização das Forças Armadas — levando em conta o crescente papel das polícias
em ações internacionais que, a priori, seriam de atribuição dos militares, como é o caso das
operações de paz.
Muitas formas de cooperação policial têm sido incentivadas pelas organizações interna-
cionais, como as Nações Unidas, Mercosul ou União Europeia. Em outros casos, os próprios
esforços de cooperação se institucionalizam na forma de organizações internacionais, como a
UNPol, Ameripol, Europol ou a mais antiga Interpol (BIGO, 2000; BOWLING; SHEPTYCKI,
39
2012; DEFLEM, 2000). Tais transformações levantaram, para estudiosos, questões fundamen-
tais que desafiam as premissas das Relações Internacionais em torno das noções sobre Estado,
soberania, autodeterminação ou representação democrática, por exemplo (GREENER, 2009, p.
92; NEWBURN; SPARKS, 2004, p. 2).
O fim da Guerra Fria é considerado um marco de virada importante para esse debate. O
confronto entre as duas grandes potências, Estados Unidos e União Soviética, foi então substi-
tuído por outros, novos e de menor escala. As incertezas frente à nova ordem mundial que se
desenhava chegaram a produzir reações nostálgicas dos atores estatais da segurança nacional
dos Estados Unidos com relação à clareza e simplicidade que definiam o período da bipolari-
dade (BUZAN; HANSEN, 2012, p. 257). Analistas procuravam prever como desenharia a nova
balança de poder internacional e que tipo de ameaça definiria a nova agenda de segurança in-
ternacional (HUNTINGTON, 1997; NYE, 1992; WALTZ, 1993).
As chamadas “ameaças não estatais” que ganharam centralidade na agenda da segurança
nacional de diversos países do mundo, com destaque aos Estados Unidos, tornaram-se objeto
de estudo para uma crescente gama de abordagens no campo dos estudos de segurança interna-
cional (BUZAN; HANSEN, 2012, p. 288). O crime transnacional, com especial destaque ao
tráfico internacional de drogas, foi um dos temas que se destacaram nos debates políticos e
acadêmicos nesse campo. A transnacionalização do policiamento tem sido justificada politica-
mente como resposta às ameaças trazidas pela globalização.
Autores apontaram um “lado obscuro” da globalização, identificando que “a mesma in-
fraestrutura que facilitou o fluxo global de bens, pessoas e capital gerou ameaças à segurança
da sociedade”, como o crime organizado transnacional (HELD; MCGREW; GOLDBLATT;
PERRATON, 1999, p. 489). Segundo uma ampla literatura, a abertura das fronteiras aos fluxos
internacionais transformou o contexto em que as atividades criminosas poderiam operar, enco-
rajando a formação do que ficou cunhado como “crime organizado transnacional” (WILLI-
AMS, 1994).
A globalização tornou-se chave explicativa importante para muitas transformações da so-
ciedade ao final do século vinte, tornando difícil sua própria conceptualização. O termo globa-
lização assumiu o centro dos debates nas ciências humanas já na década de 1970, em reação às
relações de interdependência marcada pelos complexos fluxos econômicos e tecnológicos que
permitiram o trânsito cada vez mais intenso de pessoas, bens, capital e informações, sobretudo
sociedades ocidentais (NYE; KEOHANE, 1971). Na década de 1990, esse debate ganhou um
40
novo impulso, como elemento destacado dentre as mudanças que o fim da Guerra Fria impôs
às relações internacionais (OMAE, 1990; STRANGE, 1996). A vitória estadunidense permitiu
que o capitalismo atingisse níveis globais e que reformas neoliberais do mercado internacional
impusessem mudanças significativas nos fluxos transnacionais de capital e produtos.
Para Saskia Sassen (2010, p 11), o fato de um processo social ou uma entidade estarem
localizados nas delimitações do território nacional não mais significa, automaticamente, que
eles sejam nacionais ou autorizados pelo Estado, mas podendo ser uma “localização do global”.
Assim, a globalização não se limita apenas às suas manifestações explicitamente globais, como
as organizações internacionais, os mercados financeiros ou o cosmopolitismo. Ela também pode
ser compreendida a partir de práticas localizadas no espaço nacional, mas que conectem redes
e entidades transnacionais (Sassen, 2010, p. 11). A partir dessa visão, podemos incluir como
expressões da globalização redes transacionais de ativistas preocupados com uma determinada
temática, bem como a atuação transnacionalizada de agências policiais nacionais e locais.
Para Held e McGrew (2003, p. 3), “a globalização representa uma mudança significativa
no alcance espacial das relações sociais e da organização em direção à escala inter-regional ou
intercontinental”. Isso não significa dizer, segundo os autores, que o global substitua ou tenha
precedência sobre as dinâmicas locais, mas sim que o fenômeno global habita o espaço nacio-
nal, permitindo compreender processos que se realizam no espaço territorial nacional como
globais (HELD; MCGREW, 2003, p. 3). Segundo a definição de Giddens (2013, p. 64), “a
globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais mundiais que
ligam as localidades distantes de tal maneira que os eventos locais são moldados por eventos
que ocorrem a muitos quilômetros de distância e vice-versa”.
Estudiosos sobre globalização nas Relações Internacionais desestabilizaram os pressu-
postos estadocêntrico que marcaram a disciplina desde sua criação. Ao questionarem as estan-
ques dicotomias entre o espaço doméstico e internacional, introduziram a importância das rela-
ções transnacionais e dos atores não estatais no sistema internacional. Ou seja, foram colocadas
em xeque as premissas sobre o Estado como centralizador dos processos sociais que se realizam
dentro do território nacional (Sassen, 2010, p. 9). A inclusão do referencial global nas Relações
Internacionais abriu um amplo leque de possibilidades de agenda de estudos. Isso porque pas-
sam a mirar atores e processos até então ignorados, como os negócios transnacionais, os movi-
mentos revolucionários, as organizações sindicais, as redes de conhecimento acadêmico-cien-
tíficas ou as empresas de transporte e comunicação, grupos criminosos transnacionais ou
41
agências governamentais que passam a atuar transnacionalmente, para citar alguns exemplos
(BIGO, 2017; COX, 1971, p. 554; KRAUSE, 1971, p. 523; MORSE, 1971, p. 373).
O novo papel da autoridade estatal se tornou um ponto central no debate sobre globaliza-
ção. Por um lado, autores como Susan Strange (1996) entendem que a globalização levaria a
uma retração do papel do Estado perante o crescimento do mercado global. Já outros, mais
céticos, reafirmam a primazia do Estado enquanto locus do poder, do espaço territorial e das
fronteiras nacionais, relativizando a importância da globalização como fenômeno transforma-
dor da estrutura do sistema internacional (HIRST, 1997). Para eles, as mudanças às quais assis-
timos não alteraram a primazia do Estado no sistema internacional (MANN, 1997) porque o
processo que denominamos globalização não é uma novidade e está acontecendo por mais de
um século, ainda que tenha passado por interrupções pontuais em períodos de crises e guerras,
aponta Hirst (1997, p. 410).
Já Held et al. (1999) reconhecem que a globalização esteja acontecendo há séculos, mas
reafirmam que sua atual versão é genuinamente diferente em escala e em natureza. Avanços
tecnológicos têm estimulado o aumento do fluxo de pessoas, bens, ideias e capital há mais de
200 anos e, de alguma maneira, é possível dizer que hoje o Estado está mais preparado do que
nunca para responder às decorrentes consequências desse processo (KRASNER, 2001, p. 24).
Nesse caso, a globalização está transformando o escopo da autoridade estatal, que se enfraque-
ceu em alguns aspectos, mas se fortaleceu em outros (KRASNER, 2001, p. 25). Vale ainda
pontuar que os valores da autonomia e soberania, ditos ameaçados pela globalização, jamais
foram uma realidade para a maioria dos Estados (KRASNER, 2001, p. 20).
Saskia Sassen (2010, p. 31) também discorda de que o poder do Estado esteja erodindo,
mas identifica uma rearticulação da sua autoridade. O Estado continua participando do processo
de globalização, estabelecendo estruturas que a viabilizam e a promovem. Para a autora, as
dimensões da autoridade, do direito e do território estão, em alguns aspectos, desnacionali-
zando-se e sendo assumidas por outros atores, locais e transnacionais, públicos e privados.
Ainda assim, o alcance na globalização e a forma como ela se manifesta é fundamentalmente
distinta nas mais diversas partes do mundo, o que reafirma a importância contextual do local.
O termo “transnacional” vem sendo trabalhado pela literatura de Relações Internacionais
desde a década de 1970, como derivação do processo de globalização (NYE; KEOHANE,
1971). Contudo, essa literatura assume como transnacional aquele que não faz parte do nacional
pelo seu vínculo ao global, o que se aplicaria apenas aos atores não estatais, como as empresas
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privadas multinacionais ou a grupos terroristas, por exemplo (BIGO, 2016, p. 398). Bigo
(2016), por outro lado, defende haver um emaranhamento do local e do global quando agências
do próprio Estado passam a atuar transnacionalmente. O Estado está presente nas relações in-
ternacionais de forma desagregada, o que também revela um processo de rearticulação da sua
autoridade (BIGO, 2016, p. 406; SLAUGHTER, 2004, p. 5).
Trabalhamos nesta pesquisa com uma abordagem que define os atores transnacionais
como aqueles que interagem simultaneamente nos espaços sociais nacional e transnacional, sem
que seja possível uma definição essencial de sua natureza (BIGO, 2016, p. 398). Há continui-
dades e sobreposições dessas dimensões, que resultam na formação de uma rede de profissio-
nais – compostos por agentes públicos e privados, como as polícias, as forças armadas, as em-
presas privadas de segurança – que não pode ser definida a partir da dicotomia nacional/inter-
nacional. A terminologia “transnacional” permite a expansão da análise para além dos marcos
estadocêntricos tão tradicionalmente estabelecidos pelas Relações Internacionais e acende o
questionamento em torno das redes, coalizões, contatos e interações entre atores (estatais e/ou
não estatais), através e apesar das fronteiras nacionais que nem sempre ocorre de forma institu-
cionalizada, como na diplomacia, por exemplo (BOWLING; SHEPTYCKI, 2012). D