UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS — UNESP, UNICAMP E PUC-SP PRISCILA VILLELA A “guerra às drogas” e a transnacionalização do policiamento estadunidense no Brasil: as relações entre a Polícia Federal e a DEA entre os anos 1990 e 2000 São Paulo 2020 PRISCILA VILLELA A “guerra às drogas” e a transnacionalização do policiamento estadunidense no Brasil: as relações entre a Polícia Federal e a DEA nos anos 1990 e 2000 Tese apresentada ao Programa de Pós-gradua- ção em Relações Internacionais San Tiago Dan- tas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Es- tadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Dou- tora em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Inter- nacional”, na linha de pesquisa “Conflitos In- ternacionais e Violência nas Sociedades Con- temporâneas”. Orientador: Prof. Dr. Paulo José dos Reis Pe- reira São Paulo 2020 PRISCILA VILLELA A “guerra às drogas” e a transnacionalização do policiamento estadunidense no Brasil: as relações entre a Polícia Federal e a DEA nos anos 1990 e 2000 Tese apresentada ao Programa de Pós-gradua- ção em Relações Internacionais San Tiago Dan- tas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Es- tadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Dou- tora em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Inter- nacional”, na linha de pesquisa “Conflitos In- ternacionais e Violência nas Sociedades Con- temporâneas”. Orientador: Prof. Dr. Paulo José dos Reis Pereira BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Profa. Dra. Manuela Trindade Viana (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) ______________________________________________ Prof. Dr. Marco Aurélio Chaves Cepik (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) ______________________________________________ Prof. Dr. Reginaldo Mattar Nasser (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) ______________________________________________ Prof. Dr. Tomaz Oliveira Paoliello (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) São Paulo, 04 de março de 2020 Dedico esse trabalho a meus pais, Luiz e Iris. AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001. Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Pereira, agradeço imensamente pela confiança que sempre guiou nossa relação. Foi um processo longo e muito rico que incluiu monitoria, trabalho de conclusão de curso, mestrado e, finalmente, doutorado. Com muito orgulho, hoje tenho o privilégio de ser sua colega de trabalho e amiga. Seus ensinamentos e dedicação foram e sempre serão minhas fontes de inspiração. Ao Prof. Dr. Reginaldo Nasser, agradeço pela confiança e apoio ao longo de toda minha carreira acadêmica. Seus ensinamentos, questionamentos e inquietações sempre guiarão meu olhar de pesquisadora. Aos professores que compõem a banca — Profa. Dra. Manuela Trindade, Prof. Dr. Marco Cepik, Prof. Dr. Reginaldo Nasser e Prof. Dr. Tomaz Paoliello — agradeço pelas oportunidades de conversas e leituras atentas que permitiram o amadurecimento desta pesquisa. Aos professores e funcionários do PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC- SP), agradeço pelo apoio ao longo desses últimos quatro anos. Um agradecimento especial à Graziela, Isabela e Giovana. Gostaria de destacar que é um enorme privilégio poder trabalhar em uma instituição que acredita no valor da pesquisa. Por isso, agradeço à PUC-SP pelo auxílio – capacitação que me viabilizou a dedicação necessária para a conclusão desta tese. Aos professores de Relações Internacionais da PUC-SP, agradeço pela confiança, apoio e convívio diários. Devo um agradecimento especial à Profª Dra. Terra Budini que, como coordenadora do curso, me ofereceu especial suporte para a etapa final de produção da tese. Aos membros do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) e do recém- criado Núcleo de Estudos Transnacionais sobre Segurança (NETS), minha enorme gratidão. Vocês são parte significativa deste produto final que hoje apresento. Dedico um agradecimento especial ao Reginaldo, Paulo, Tomaz, Rodrigo, Bruno e Helena pelas leituras cuidadosas e atentas das várias etapas do meu trabalho. Às pessoas queridas, que me deram todo tipo de acolhimento, força e apoio afetivo durante esse árduo processo, meu agradecimento infinito. Por sorte da vida, essa lista seria imensa, mas dedico um destaque especial à Camilla Villela, Arthur Murta, Laís Azeredo, Rodrigo Amaral, Laura Donadelli, Mari Bernussi, Victoria Perino, Elze Rodrigues, Maria Fernanda, Anna Gontijo e Lucas Amaral. Vocês foram/são incríveis. Um beijo enorme e um abraço quentinho a todos vocês. E, claro, um agradecimento mais que especial a meus pais, Luiz e Iris, a quem dedico este trabalho. De vocês nunca me faltou amor, segurança, acolhimento e apoio incondicional. Graças a vocês, pude avançar em cada passinho que me trouxe até esta importante conquista. Amo vocês! O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – código de financiamento 001. This study was financed in part by the Cordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001. RESUMO A chamada “guerra às drogas” vem desde a década de 1990 impulsionando a transnacionalização de agências de policiamento estadunidenses, como a Drug Enforcement Administration (DEA). Interpretou-se que as lacunas entre as diferentes jurisdições nacionais representavam uma oportunidade à criminalidade transnacional e, ao mesmo tempo, uma barreira à ação policial. Em razão disso, as dinâmicas do policiamento, cuja jurisdição costumou restringir-se às delimitações territoriais nacionais, ganharam alcance transnacional. O Brasil, reconhecido enquanto uma das mais importantes rotas do tráfico internacional de drogas da América Latina, tornou-se importante espaço de atuação da DEA. Entre as décadas de 1990 e 2000, a DEA e a Polícia Federal brasileira estreitaram suas relações visando o combate ao tráfico de drogas. Ao promover programas de assistência, treinamento, financiamento de políticas públicas e operações conjuntas, a DEA logrou influenciar as condutas, diretrizes, objetivos e estratégias da Polícia Federal. Por meio de uma pesquisa documental e de entrevistas, este trabalho buscou descrever as diferentes formas pelas quais a DEA e a Polícia Federal se articularam nesse dado período, destacando a assimetria de poder que marcou essa relação. Palavras-chave: Policiamento Transnacional; Guerra às Drogas; DEA; Polícia Federal. ABSTRACT The so-called “war on drugs” has, since the 1990s, driving the transnationalization of US policing agencies, such as the Drug Enforcement Administration (DEA). It was interpreted that the gaps between the different national jurisdictions represented an opportunity for transnational crime and, at the same time, a barrier to police action. As a result, the dynamics of policing, whose jurisdiction used to be restricted to national territorial boundaries, have gained transnational reach. Brazil, recognized as one of the most important routes for international drug trafficking in Latin America, has become an important area of policing for the DEA. Between the 1990s and 2000s, the DEA and the Brazilian Federal Police strengthened their relations aiming the drug trafficking control. By promoting assistance programs, training, financing of public policies and joint operations, the DEA managed to influence the Federal Police’s conduct, guidelines, objectives and strategies. Through documentary research and interviews, this work sought to describe the different ways in which the DEA and the Federal Police articulated themselves in this given period, highlighting the asymmetry of power that marked this relationship. Keywords: Transnational Policing; War on Drugs; DEA; Brazilian Federal Police RESUMEN La llamada “guerra contra las drogas” ha impulsando, desde la década de 1990, la transnacionalización de las agencias policiales estadounidenses, como la Drug Enforcement Administration (DEA). Se interpretó que las brechas entre las diferentes jurisdicciones nacionales representaban una oportunidad para el crimen transnacional y, al mismo tiempo, una barrera para la acción policial. Como resultado, la dinámica de la policía, cuya jurisdicción solía estar restringida a las fronteras territoriales nacionales, ha ganado alcance transnacional. Brasil, reconocido como una de las rutas más importantes para el tráfico internacional de drogas en América Latina, se ha convertido en un área importante de actividad para la DEA. Entre los años 1990 y 2000, la DEA y la Policía Federal de Brasil fortalecieron sus relaciones con el objetivo de combatir el narcotráfico. Al promover programas de asistencia, capacitación, financiamiento de políticas públicas y operaciones conjuntas, la DEA pudo influir en la conducta, las directrices, los objetivos y las estrategias de la Policía Federal. A través de investigaciones documentales y entrevistas, este trabajo buscó describir las diferentes formas en que la DEA y la Policía Federal se articularon en este período dado, destacando la asimetría de poder que marcó esta relación. Palabras clave: Policiamiento transnacional; Guerra contra las drogas; DEA; Policía federal brasileña. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 Número de escritórios internacionais do FBI (1990-2003) 81 Ilustração 2 Evolução do orçamento total e internacional da DEA (2000-2007) 84 Ilustração 3 Organograma da divisão de operações da DEA 85 Ilustração 4 Agências do Departamento de Justiça que atuam internacionalmente (2018) 87 Ilustração 5 Fontes de financiamento da DEA para treinamento internacional (2005) 99 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ATF Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives BNDD Bureau of Narcotics and Dangerous Drugs CIA Central Intelligence Agency CPI Comissão Parlamentar de Inquérito CSPCCO Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado DARE Drug Abuse Resistance Education DEA Drug Enforcement Administration FBI Federal Bureau of Investigation FBN Federal Bureau of Narcotics GAO Government Accountability Office ICITAP International Criminal Investigative Training Assistance Programam IDEC International Drug Enforcement Conference ILEA International Law Enforcement Agency INCSR International Narcotics Control Strategy Report INL Bureau of International Narcotics and Law Enforcement Affairs INM International Narcotics Matters MDE Memorando de Entendimento NAS Seção de Assuntos de Narcóticos NSS National Security Strategy ONDCP Office of National Drug Control Policy ONU Organização das Nações Unidas OPDAT Office of Overseas Prosecutional Development Assistance and Training OPS Office of Public Safety PROERD Programa Educacional de Resistência às Drogas SIS Special Intelligence Service SIU Sensitive Investigative Unity UNODC United Nations Office on Drugs and Crime SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 11 2 AS DIMENSÕES TRANSNACIONAIS DO POLICIAMENTO 25 2.1 Noções sobre polícia e policiamento: seu papel na manutenção da ordem social local e globalmente 27 2.2 Quando as Relações Internacionais se voltam à polícia: um olhar sobre a transnacionalização de agências estatais 36 2.3 O nexo entre criminalidade transnacional e policiamento transnacional 48 3 TRANSNACIONALIZAÇÃO DO POLICIAMENTO ESTADUNIDENSE: A GUERRA GLOBAL CONTRA AS DROGAS 59 3.1 Da “guerra ao comunismo” à “guerra às drogas”: redefinindo o policiamento transnacional 61 3.2 A construção da guerra global contra as drogas: o novo imperativo do policiamento transnacional 71 3.3 A expansão transnacional das agências policiais estadunidenses no combate às drogas 82 3.4 Assistência e treinamento estadunidense às polícias estrangeiras: a formação de uma elite profissional aliada 88 3.5 A disseminação do policiamento estadunidense: a americanização do combate às drogas. 102 4 AS RELAÇÕES ENTRE A DEA E A POLÍCIA FEDERAL 115 4.1 As relações íntimas entre a DEA e a Polícia Federal: a consolidação do policiamento transnacional contra as drogas no Brasil 119 4.2 Programas de assistência e treinamento estadunidense às polícias brasileiras: a de- finição do problema e da solução para o problema das drogas 133 4.3 DEA e Polícia Federal em ação: a condução de operações conjuntas 142 4.4 A internalização do modelo de “guerra às drogas” estadunidense no Brasil 148 4.5 Dimensões políticas do policiamento estadunidense no Brasil: influência, poder e definição de agenda 156 5 CONCLUSÃO 167 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 176 ANEXOS 194 11 1 INTRODUÇÃO As polícias estão se transnacionalizando e, progressivamente, emergem novos e mais ro- bustos instrumentos jurídicos — leis, tratados e convenções internacionais — que reagem, re- conhecem e endossam essa prática. Nesse mesmo sentido, as concepções, normas e práticas de combate à criminalidade estão cada vez mais compartilhadas transnacionalmente e vêm ocu- pando um lugar de crescente importância na agenda internacional dos mais diversos governos, tornando o policiamento um tema crucial das relações internacionais. O Brasil, reconhecido enquanto rota do tráfico internacional da cocaína produzida na América Latina, tornou-se um dos importantes alvos do policiamento transnacional antidrogas. Por conta da designada “guerra às drogas”, agências policiais estadunidenses disseminaram transnacionalmente seu próprio modelo de repressão à criminalidade e forneceram às agências estrangeiras assistência e treinamento para esse fim. A Drug Enforcement Administration (DEA), agência policial criada nos anos 1970 exclusivamente para combater os crimes relacio- nados às drogas, expandiu suas operações para o estrangeiro e, no Brasil, articulou-se com a Polícia Federal, com quem estabeleceu laços de proximidade significativos, tema abordado por esta pesquisa. A inserção do tema das drogas na agenda da segurança internacional dos Estados Unidos impulsionou esse processo a partir da década de 1990 (PEREIRA, 2015). A justificativa comum para a ação policial fora das fronteiras nacionais é a transnacionalização do crime organizado, que opera o tráfico internacional de drogas, que tornou insuficiente o combate no nível domés- tico. Entende-se que as lacunas entre as diferentes jurisdições nacionais representam uma opor- tunidade ao crime organizado transnacional e, ao mesmo tempo, uma barreira à repressão ao crime. Assim, as agências de policiamento passaram a tomar como ponto de vista a referência ao global, ao transfronteiriço e ao transnacional, constituindo o processo que a literatura acadê- mica denomina de policiamento transnacional (ANDERSON, 1989; ANDREAS; NADELMANN, 2006; BOWLING, 2009; NADELMANN, 1993). As relações de interdependência que são estabelecidas entre as agências de policiamento do mundo, situadas localmente, nacionalmente ou internacionalmente, constituem aquilo que reconhecemos como “transnacional” neste trabalho (BIGO, 2016, p. 398). O termo vem sendo trabalhado pela literatura de Relações Internacional desde a década de 1970, como uma deriva- ção do processo de globalização (NYE; KEOHANE, 1971). Nesse contexto, uma série de 12 eventos e transformações no sistema internacional, como as políticas neoliberais e a intensifi- cação do comércio internacional, a crescente importância do sistema monetário internacional e das corporações multinacionais, assim como a Crise do Petróleo demonstrou que os Estados já não eram as únicas unidades de referência relevantes das relações internacionais, como apon- tavam os teóricos da área até então (KEOHANE; NYE, 2012 [1973]). Os atores e interações transnacionais que se estabeleciam paralelamente às relações interestatais promoviam uma maior sensibilidade entre as sociedades, ganhando tamanha relevância que passaram a afetar as próprias políticas governamentais (NYE; KEOHANE, 1971, p. 336). O transnacional, nesse sentido, foi definido enquanto “contatos, coalisões e interações através das fronteiras estatais que não são controlados pelos órgãos centrais de política externa dos governos” (NYE; KEOHANE, 1971, p. 331). Embora esse seja o caso das agências de policiamento, tais teóricos utilizam o termo ape- nas em referência aos atores não estatais, tais quais “empresas multinacionais, movimentos re- volucionários, sindicatos, redes de cientistas, cartéis de transporte aéreo, atividades de comuni- cação espacial” (NYE; KEOHANE, 1971, p. 331). Assume-se como transnacional aquela enti- dade que não faz parte de uma dada sociedade, como se sua condição global o tornasse estran- geiro ou não-nacional (BIGO, 2016, p. 398). Essa definição pressupõe que as burocracias do Estado não podem ser definidas como transnacionais, dada sua vinculação com o Estado, o que necessariamente as tornariam nacionais (BIGO, 2016, p. 398). Ela acaba por opor, portanto, aquilo que denominam como atores transnacionais (restringindo o conceito a atores não esta- tais) ao estatal (restringindo-o ao nacional ou ao local), impossibilitando a compreensão sobre processos de transnacionalização de burocracias do Estado, como as agências de policiamento (BIGO, 2016, p. 399). Uma segunda abordagem, com a qual trabalhamos nesta pesquisa, compreende que os atores transnacionais agem simultaneamente nos espaços sociais nacional e transnacional, sem que seja possível uma definição essencial de sua natureza (BIGO, 2016, p. 398). Há continui- dades e sobreposições dessas dimensões, que constituem redes de relações permeadas por atores transnacionais estatais e não estatais, como polícias, militares e empresas privadas de segu- rança, que constituem um mesmo campo de ação. Os atores que compõem essa rede de profis- sionais da segurança comportam-se como agentes duplos. Eles mobilizam recursos do Estado nacional para competir no campo internacional, ao mesmo tempo em que capitalizam sua ex- periência internacional para fortalecer seu capital no âmbito nacional (DEZALAY; GARTH, 2011, p. 278). Não é possível defini-los enquanto unicamente “nacionais” ou “transnacionais”. 13 Agências estatais — mesmo aquelas consideradas o núcleo duro do Estado, como as polícias — adquirem um certo nível de autonomia, em razão de seu conhecimento especiali- zado, que os permite atuar transnacionalmente junto de seus pares trabalhando para seus pró- prios fins e prioridades, paralelamente a uma agenda de interesses mais ampla definida pelo governo (BIGO, 2016, p. 398). Isso não significa que o governo esteja completamente alienado e que não haja uma agenda política compartilhada entre ambos, mas implica reconhecer que a ideia de que o Estado se constitui como um ator unitário, comumente sustentada pelas Relações Internacionais, não permite lançar luz sobre uma diversidade de práticas e articulações que se desenrolam a partir das burocracias estatais. Partindo dessa definição, o objetivo deste trabalho é, portanto, compreender as relações transnacionais que se estabelecem entre a DEA e a Polícia Federal no combate ao tráfico de drogas. Em certos períodos, os governos conferem às suas agências policiais especial poder e prerrogativa repressiva, em função de seus próprios interesses. Esse é o caso da “guerra às drogas”, declarada na década de 1970, a partir da qual a DEA foi criada e fortalecida, com o restante do aparato repressivo do Estado, como o FBI, as Forças Armadas e as polícias estadu- ais. Com o passar dos anos, essas burocracias ganham tamanha capacidade que passam a definir suas próprias agendas e interesses, negociando-as com o próprio governo. Há uma ampla literatura que estuda a influência da “guerra às drogas” estadunidense na América Latina e a forma como ela moldou as leis, políticas públicas e a repressão policial nesses países (p.e. DEL OLMO, 1990; RODRIGUES, 2012). Muitos avaliam de maneira mais específica o processo de militarização da “guerra às drogas” pelos Estados Unidos, a partir das intervenções estadunidenses ou do emprego de militares latino-americanos na segurança pú- blica, sob incentivo dos Estados Unidos (p.e. BAGLEY; SALMERÓN CASTRO, 1991; TOKATLIAN, 2015). Apenas alguns desses trabalhos desenvolvem os caminhos pelos quais o modelo de “guerra às drogas” foi disseminado. Há autores que abordaram a importância dos regimes internacionais como instrumento do qual os Estados Unidos fizeram uso para interna- cionalizar suas próprias políticas criminais (p.e. ANDREAS; NADELMANN, 2006; BEWLEY-TAYLOR, 2003), outros se dedicaram a compreender instrumentos mais coercitivos mobilizados pelos Estados Unidos, como as intervenções internacionais e formas de pressão diplomática (GRANDALL, 2002; WALKER III, 1999). Poucos são os autores que deram destaque às relações entre as agências policiais como uma forma de disseminação da “guerra às drogas” estadunidense na América Latina (p.e. 14 NADELMANN, 1993; RICART, 2018). Visando a contribuir com esse campo, esta pesquisa se propõe a compreender o policiamento transnacional como um caminho pelo qual a “guerra às drogas” chegou ao Brasil. A relação entre as polícias, a DEA e a Polícia Federal, é uma importante dimensão desse processo, segundo hipótese trabalhada nesta pesquisa. A relação entre as agências policiais compõe a relação entre os Estados, mas e resumem a ela. Por essa razão, empregamos o termo “transnacional” para designar tais relações. Os termos “polícia” ou “policiamento” foram utilizados para designar formas organizadas de controle voltadas à preservação da segurança de certa ordem social (JONES; NEWBURN, 1998, p. 18). As instituições que são hoje conhecidas como “polícia” concentram parte signifi- cativa dessas funções, sobretudo em sua face repressiva e punitiva, e foram escolhidas como objetos privilegiados desta pesquisa. Contudo, elas não são as únicas. A função do policiamento é tradicionalmente compreendida como um mandato do Estado — entidade que monopoliza para sua capacidade e legitimidade de coerção e a exerce por meio de suas burocracias (WEBER, 1991). Ao longo da história, contudo, essa função foi exercida por uma gama ampla de instituições, que incluem o que chamamos de polícia, as Forças Armadas ou as empresas privadas de segurança, por exemplo (ABRAHAMSEN; WILLIAMS, 2010; JONES; NEWBURN, 1998). O policiamento transnacional é definido como “qualquer forma de manutenção da ordem, aplicação da lei, manutenção da paz, investigação criminal, compartilhamento de inteligência ou outras formas de trabalhos policiais que transcendem ou atravessam as fronteiras nacionais” (BOWLING; SHEPTYCKI, 2012, p. 3). Tal definição envolve uma série de práticas, tais como a cooperação em justiça criminal, a atuação internacional de agências policiais nacionais (fede- rais ou locais), a cooperação entre polícias de diferentes países (federais ou locais), a propaga- ção de conhecimento e tecnologias entre as polícias do mundo por meio do comércio e de trei- namentos conjuntos, desenvolvimento de tecnologias de vigilância e rastreamento e outras prá- ticas que ultrapassam as fronteiras nacionais ou que envolvam atores transnacionais (ANDREAS; NADELMANN, 2006, p. 3). Ainda que essa não seja uma prática nova ou excepcional, conhece-se muito pouco sobre como se opera o policiamento transnacional empiricamente; ou seja, quais são as atividades que as polícias realizam em outros países, quais são as formas pelas quais se articuladas com as polícias estrangeiras, quais são suas agendas e objetivos ou como se articulam com seus 15 governos e governos estrangeiros. Tal lacuna torna esse um tema ainda não explorado no campo das Relações Internacionais no Brasil e sobre o Brasil. As décadas de 1990 e 2000, por sua vez, é um período privilegiado para observar essas relações, dada a sua intensificação. Esse dado contexto é mercado por um investimento dos Estados Unidos após a Guerra Fria, sobretudo a partir do governo de William Clinton, em re- direcionar os esforços de segurança internacional, antes dedicados ao combate ao comunismo, à “guerra às drogas” e ao combate à criminalidade transnacional, de maneira geral (PEREIRA, 2015). Identificamos haver uma intensificação das relações entre a DEA e a Polícia Federal entre as décadas de 1990 e 2000, período marcado pelo adensamento dos programas de finan- ciamento e assistência, treinamento e disseminação de políticas públicas. Sem deixar de levar em consideração as origens históricas da transnacionalização do policiamento estadunidense no Brasil, esse período foi selecionado em razão da redefinição desses programas para o combate às drogas. A DEA e a Polícia Federal foram selecionadas como objeto desta pesquisa pois são elas as responsáveis pelo combate às drogas em seus respectivos países e porque referem-se a elas os acordos bilaterais assinados bilateralmente. Para além da DEA, muitas outras agências de policiamento estadunidenses se transnacionalizaram e passaram a atuar no Brasil na repressão às drogas. Entretanto, a relação entre elas e a Polícia Federal costumam ser mediadas pela DEA, agência com quem os Departamentos de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal mantêm relações mais próximas. O Brasil é um importante parceiro estadunidense no controle do tráfico internacional de drogas, de maneira que ilustra as mais diferentes formas de policiamento transnacional antidro- gas promovidas pelos Estados Unidos. Entrevistas realizadas ao longo da pesquisa sugerem que a relação entre a Polícia Federal e a DEA é recorrente e usual – com dinâmicas muitas vezes informais. Ela se manifesta na promoção de treinamentos e seminários conjuntos, na transfe- rência de informações e evidências, bem como na condução de operações conjuntas. Por exemplo, em 2001 foi realizada uma operação que contou com o escritório da DEA em Bogotá, o exército colombiano e a Polícia Federal do Brasil na captura de Fernando da Costa, mais conhecido como Fernandinho Beira-Mar, importante líder de uma organização cri- minosa no Brasil. Em seguida, o governo da Colômbia o deportou para o Brasil, onde pôde ser julgado e preso por homicídio e tráfico internacional de drogas (DEPARTMENT OF STATE, 2002). Posteriormente, em novembro de 2007, a Unidade Especial de Investigação da Polícia 16 Federal (DPU), sediada no Rio de Janeiro, conduziu uma investigação, apelidada de Operação Fênix, que visava a desmantelar a organização criminosa liderada a partir da prisão por Fernan- dinho Beira-Mar. A operação contou com auxílio financeiro da DEA e da Sessão de Assuntos de Narcóticos (NAS) da Embaixada dos Estados Unidos (WIKILEAKS, 2007). Tais operações estão sustentadas por tratados internacionais acordados entre os dois Es- tados, como o “Acordo de Cooperação Mútua entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para a Redução da Demanda, Prevenção do Uso Indevido e Combate à Produção e ao Tráfico Ilícitos de Entorpecentes” de 1995. Nele são previstas diferentes formas de cooperação que são descritas por meio de “Memorandos de En- tendimento” (MdE), instrumento que estabelece o orçamento da assistência e treinamento. Além das operações conjuntas, o acordo prevê o treinamento de agentes de policiamento, como policiais federais, policiais estaduais, juízes e agentes de alfândega, por exemplo. Os treinamentos são oferecidos nas National Academy, localizadas nos Estados Unidos, na Inter- national Academy, localizada em El Salvador ou no Brasil. Com isso, conseguem penetrar o sistema de policiamento do país e influenciar as ideias, práticas, tecnologias e padrões organi- zacionais de um grupo seleto de policiais que pudesse disseminar em suas instituições (HUGGINS, 1998, p. 22). É essencial considerar, ainda, outras maneiras mais sutis de policiamento transnacional, como os mecanismos de avaliação e recomendação internacionais. Por parte dos Estados Uni- dos, foi criado na década de 1980 o processo de “certificação”, por meio do qual são avaliados anualmente os esforços dos países produtores e de trânsito em controlar o tráfico de drogas. Por meio desse mecanismo, é condicionada a ajuda estadunidense, bem como seus votos nas agên- cias internacionais de ajuda (p.e. Banco Mundial). Além disso, aos países não certificados tam- bém são aplicadas sanções econômicas e negada a assistência militar, por exemplo. A partir da década de 1990, esse dispositivo passou a ser recorrentemente utilizado para pressionar os paí- ses da América Latina (RODRIGUES, 2012). Poucos trabalhos se aprofundam em estudos de casos específicos, de maneira que com- preender a relação entre a DEA e a Polícia Federal pode revelar o que a maior parte da literatura dedicada aos estudos sobre policiamento transnacional só trabalha de maneira teórica e concei- tual (BOWLING; SHEPTYCKI, 2012; GOLDSMITH; SHEPTYCKI, 2007). Trazer essa refle- xão com base em fatos concretos pode revelar concordâncias ou discordâncias com a literatura especializada, de maneira que os ganhos potenciais desta pesquisa possam apresentar-se no 17 sentido de explicitar, complementar, reforçar ou até contradizer as reflexões por ela apresenta- das. Apesar de importantes avanços alcançados por estudiosos nesse campo, ainda existem poucos trabalhos empíricos que se aprofundam em estudos de caso específicos. Dentre esses poucos, podemos citar Ethan Nadelmann (1993), que reconstitui historicamente o processo de transnacionalização do policiamento estadunidense desde a independência e consolidação das próprias polícias no âmbito doméstico. Outra importante referência para este trabalho é Martha Huggins (1998), que se dedicou a compreender o papel da assistência e treinamento estaduni- dense às polícias brasileiras durante o regime militar (1964-1985) no combate aos movimentos de esquerda. E, em um trabalho mais recente, Carlos Ricart (2018) analisa o desenvolvimento de um corpo institucional de repressão às drogas na América Latina a partir da atuação da DEA na região. Uma parte da literatura compreende o policiamento transnacional como resposta, por parte dos Estados, ao crescimento do crime organizado transnacional, um produto do processo de globalização em curso, sobretudo desde a década de 1990 (SHELLEY, 1995; WILLIAMS, 1994). Tal avaliação está alinhada à justificativa de que os atores políticos têm mobilizado para promoverem o policiamento transnacional. O então secretário geral das Nações Unidas, Koffi Annan, no prefácio da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacio- nal, declara que: Se o crime cruza as fronteiras, o mesmo deve acontecer com as autoridades. Se o estado de direito é prejudicado não só em um país, mas em muitos, então aqueles que o defendem não podem se limitar a meios puramente nacionais. Se os inimigos do progresso e dos direitos humanos buscam explorar a abertura e as oportunidades da globalização para seus propósitos, então devemos explorar esses mesmos fatores para defender os direitos humanos e derrotar as forças do crime, da corrupção e do tráfico de seres humanos (ONU, 2000). Autoridades estadunidenses e brasileiras também compartilham dessa interpretação. Em 1993, o presidente William Clinton lançou a Presidential Decision Directive nº 14 (PDD/ NSC- 14), mecanismo do órgão Executivo usado para promulgar as decisões presidenciais sobre ques- tões de segurança nacional, declarando que: Como o tráfico de drogas é um empreendimento criminoso mundial que ofusca as capacidades e os recursos antinarcóticos de qualquer nação, os Estados Unidos lide- rarão um esforço para mobilizar a cooperação e ação internacional contra todos os aspectos do comércio de drogas ilícitas (THE WHITE HOUSE, 1993b). 18 Conforme é descrito no portal online da Polícia Federal, a cooperação internacional é um importante “instrumento para combater de maneira eficaz a criminalidade organizada transna- cional e para preservar a segurança interna. Para tanto, formaliza parcerias com instituições estrangeiras, fomentando a cooperação e assistência mútuas”1. Outro grupo de autores discorda dessa relação funcional. Assim, questionam que o crime organizado transnacional seja um fenômeno novo e que a transnacionalização do policiamento tenha servido unicamente como resposta reativa ao aumento da criminalidade transnacional. Logo, afirmam uma importante transformação nas narrativas políticas que elevaram o tema do crime organizado transnacional ao topo das prioridades da segurança internacional dos Estados Unidos, mobilizando e justificando uma série de respostas políticas no sentido de combatê-la, como a transnacionalização do policiamento (ANDREAS; NADELMANN, 2006; BOWLING; SHEPTYCKI, 2012; EDWARDS; GILL, 2002). Complementarmente, tais autores também reconhecem o policiamento transnacional como prática antiga, apesar de sua crescente disseminação (NADELMANN, 1993). Um olhar histórico revela que o policiamento transnacional não se circunscreve a contextos excepcionais de ameaça, como resposta ao crime transnacional, mas trata-se de uma prática comum que afeta todas as regiões cujas fronteiras sejam permeáveis ao trânsito de bens, pessoas e serviços (BIGO, 2016, p. 403). A “guerra às drogas” apresenta-se, portanto, como mais um imperativo discursivo que justifica e estimula o policiamento transnacional nesse dado período sobre o qual a pesquisa se debruça. A partir disso, torna-se possível interpretar o policiamento transnacional a partir de sua dimensão política, de maneira a colocarmos sob questionamento a premissa básica de que a ação da polícia é reativa, técnica e neutra. As polícias tiveram um papel fundamental na defini- ção das ameaças e das soluções a serem empregadas. Buscando produzir um regime de verdade, as instituições policiais batalham para estabelecerem uma interpretação legítima sobre o pro- blema das drogas. Para isso, a estratégia desses profissionais incluiu articular-se transnacional- mente, de forma que puderam formar alianças que reafirmassem sua autoridade e credibilidade no campo (BIGO, 2008, p. 12). Há, simultaneamente, negociações e disputas que se desdobram entre as agências na definição dos problemas e das soluções de segurança. Essas interações 1 Site da Polícia Federal disponível em: http://www.pf.gov.br/servicos-pf/acordos-de-cooperacao (último acesso: 10/07/2019). 19 perpassam os espaços nacionais — entre as diversas burocracias estatais — e o transnacional — entre burocracias de diferentes Estados. Há uma hierarquia entre elas que define as relações entre as polícias transnacionalmente. Pensar o exercício de poder nesses termos exige um cuidado. Bigo (2016) percebe que existe uma certa “solidariedade a distância” que torna o trabalho cooperativo entre agências policiais transnacionalmente que transcendem a agenda mais ampla da política externa dos Es- tados. Por outro lado, Dezalay e Garth (2011, p. 276) avaliam o policiamento transnacional como uma forma de difusão de conhecimento estatal que, segundo os autores, constitui-se como um elemento-chave para o exercício de poder hegemônico internacional. O processo de importação e exportação de conhecimento especializado entre as agências também reflete a posição em que elas ocupam no nível estatal e internacional. Ou seja, ainda que a DEA dissemine um conhecimento especializado cujos objetivos tenham certa autonomia com relação à agenda governamental estadunidense, sua capacidade de disseminação de conhe- cimento está intimamente relacionada com seu poder no nível estatal — os recursos e prestígio de que dispõe —, bem como a posição hegemônica ocupada pelos Estados Unidos internacio- nalmente. Há, portanto, uma competição internacional entre formas de conhecimento com pre- tensões universais e, também, entre Estados em busca de poder hegemônico por meio dos atores transnacionais (DEZALAY; GARTH, 2011). Assim, é possível intuir que os governos se utili- zam de suas burocracias para exercer poder internacionalmente, mas a interação entre elas não se define ou não se limita às relações interestatais. Ao analisar o papel da DEA na homogeneização das instituições dedicadas ao combate às drogas na América Latina, Ricart (2018, p. 12-14) identificou três mecanismos por meio dos quais ela pôde exercer essa influência, a saber: o coercitivo, o normativo e o de mimetização. No primeiro deles, é possível notar pressões formais e informais para que as organizações locais se adaptem àquelas das quais dependem. Os instrumentos normativos, por outro lado, apresen- tam-se de maneira mais sutil, criando formas de socialização e de formação de redes de profis- sionais especializados no tema, por meio das quais os saberes e expectativas podem ser cons- truídas e compartilhadas. No caso da mimetização, não é necessária nenhuma forma de socia- lização, mas as organizações reproduzem os modelos externos por percebê-los como mais avan- çados ou vantajosos (RICART, 2018, p. 12). Levando em consideração essas diferentes formas de se exercer poder, o caso avaliado nesta pesquisa revela as diferentes formas pelas quais a DEA buscou influenciar a Polícia 20 Federal. Identificamos práticas de pressão e coerção para que o governo brasileiro e suas buro- cracias seguissem as diretrizes postas pelas agências estadunidenses. Por outro lado, destaca- mos os instrumentos pelos quais a DEA logrou moldar as preferências da Polícia Federal, cri- ando redes de confiança, fornecendo conhecimento, tecnologia e recursos. Essa estratégia tam- bém possibilitou que a DEA ganhasse prestígio dentre os policiais federais, fazendo com que eles próprios demandassem essa cooperação e estimulassem a reprodução do modelo estaduni- dense de repressão às drogas. De acordo com Cruz (2017, p. 639), não é possível afirmar que exista uma relação unila- teral de poder. O autor acusa os mais importantes trabalhos sobre o tema de assumirem os países da América Latina — importantes alvos da guerra global contra as drogas — como passivos receptores das pressões estadunidenses. A participação dos governos latino-americanos nos processos de negociação das Nações Unidas em torno do problema das drogas ou a postura ativa deles em definir as drogas como uma ameaça à segurança internacional de seus Estados são expressões do protagonismo desses atores no processo de construção da “guerra às drogas” em seus países. Segundo o autor, tem sido pouco abordado pela literatura o papel “desempe- nhado pelos países latino-americanos na definição do problema global das drogas e na busca de soluções”, pois são considerados “privados de força de vontade ou têm margens insignificantes de autonomia” frente às ações estadunidenses" (CRUZ, 2017, p. 638). Assim, sustenta que fato de as agências estadunidenses serem dominantes não significa que sejam as únicas que deter- minam os rumos da repressão às drogas transnacionalmente (CRUZ, 2017). Levando em conta essa crítica, notamos que a disseminação transnacional do modelo de policiamento contra as drogas permitiu que os importadores fizessem adaptações a depender da forma como esse conhecimento tocou posições e interesses dos atores locais (DEZALAY; GARTH, 2011, p. 722). Há, portanto, um processo de reinterpretação e instrumentalização des- sas noções universais que foram incorporadas a fim de torná-las localmente compreensíveis e aceitáveis (AAS, 2013). Com isso, identificamos no país anfitrião a emergência de modelos híbridos que incorporam lógicas locais e pressões externas (RICART, 2018, p. 14). Esse é um tema fundamental para as Relações Internacionais porque resgata noções sobre Estado, soberania, poder e a maneira como são definidas as prioridades de segurança pública e internacional sobre questões que são tão sensíveis à sociedade, como a criminalidade e suas formas de repressão. De 1990 a 2017, a taxa de homicídios no Brasil – a cada 100 mil habitantes –, evoluiu de 22,22 (32.015 homicídios) para 31,59 (65.602 homicídios), tornando o Brasil o 2º 21 país mais violento da América do Sul2. Parte significativa dessa violência é associada ao crime organizado, que “causou muito mais mortes em todo o mundo do que conflitos armados e ter- rorismo, combinados” (UNODC, 2019, p.1). Ainda, parte desse crescente índice é composto por homicídios cometidos por policiais. Em 2015, a polícia brasileira assassinou 1.599 pessoas, em comparação com 442 nos Estados Unidos (UNODC, 2019, p.74). No mesmo ano, foram mortos no Brasil 80 policiais, comparado com 41 nos Estados Unidos (UNODC, 2019, p.74). Ao mesmo tempo, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. A taxa de encarceramento no Brasil passou de 132 em 2000 (232.755 presos) para 347 em 2016 (726.712 presos)3. Um a cada três destes cumprem pena por tráfico de drogas. Desde a aprova- ção da “Nova Lei de Drogas” em 2006, o percentual de presos por tráfico de drogas passou de 8,7% para 32,6% em 2017 (VELASCO et al., 3 de fevereiro de 2017). O tema da “guerra às drogas” e seus impactos sobre o Brasil – termos de violência policial e encarceramento em massa e violações de direitos humanos no sistema de saúde, por exemplo – são hoje pautas centrais de grupos da sociedade civil. Reagindo a esse cenário, uma série de pesquisadores, com os quais pretendemos dialogar e contribuir, tem procurado compreender esse fenômeno e indagar o que há de novo e excepci- onal nessa prática, que parece estranha aos parâmetros teóricos sobre os quais as ciências da Criminologia e das Relações Internacionais sempre se sustentaram (ANDREAS; NADELMANN, 2006; FRIEDRICHS, 2008). O objeto de pesquisa aqui definido trouxe consigo uma série de dificuldades. A primeira delas foi a escassez trabalhos que explorassem empiricamente o policiamento transnacional, que poderia nos fornecer caminhos sobre como aplicar metodologicamente a literatura teórico- conceitual. Ainda, inexistem trabalhos que se debruçassem sobre as relações entre a DEA e a Polícia Federal, o que nos exigiu construir a pesquisa majoritariamente em cima de documen- tação primária. A segunda dificuldade enfrentada pela pesquisa foi o acesso aos documentos governamentais. Parte deles foram acessados via “lei de acesso à informação”, mas outros não estão disponibilizadas ao público. Essa limitação demandou que recorrêssemos a outras fontes, como os documentos vazados e publicados pelo Wikileaks e reportagens realizadas pela im- prensa. 2 Dados disponíveis no “Atlas da Violência”: 3 Dados disponíveis no “World Prison Brief”: 22 Assim, para realizar esta investigação foram acessados documentos governamentais do Brasil e dos Estados Unidos que descrevem os termos da cooperação entre as duas agências policiais. Da parte estadunidense, foram analisados documentos publicados pelo Departamento de Estado, pelo Departamento de Justiça, pelas próprias agências policiais e pelo Government Accountability Office (GAO), que recorrentemente demanda prestação de contas das atividades da DEA ao governo. Uma das mais importantes fontes da pesquisa foram os International Nar- cotics Control Strategy Report (INCSR), relatórios publicados anualmente pelo Departamento de Estado avaliando as políticas de drogas dos principais países produtores e de trânsito de drogas, bem como seus esforços de cooperação com os Estados Unidos. Da parte brasileira, foram acessados os MdE assinados entre o Brasil e os Estados Unidos de 1992 a 2008. Neles são descritos os recursos materiais, financeiros e humanos necessários à execução dos termos acordados entre os países. Para compreender a informalidade dessas rela- ções, foram utilizadas investigações jornalísticas que denunciam a presença da DEA no Brasil e sua íntima relação com a Polícia Federal. A partir delas, tivemos acesso a relatórios de inves- tigações que se sucederam no governo, como a CPI do Narcotráfico de 2000 e a Audiência Pública da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado em 2003. Para auxiliar na interpretação desses dados, foram realizadas conversas e entrevistas com membros do Ministério de Justiça, da Polícia Federal, do Instituto Sou da Paz e com o próprio jornalista Bob Fernandes, que conduziu as principais investigações jornalísticas sobre o tema. Por fim, conforme concluímos ao longo da pesquisa, parte das atividades rotineiras são informais e muito mais diversificadas que os termos demasiadamente abrangentes previstos nas leis e nos acordos bilaterais. Essa constatação tornou a documentação oficial insuficiente. Para coletarmos as evidências necessárias à sustentação das hipóteses do trabalho, buscamos superar esta dificuldade de diferentes formas. A literatura acadêmica nos forneceu dados e reflexões sobre outros casos estudados (como Colômbia ou México) que permitiram um olhar mais crítico e refinado às poucas evidências que tínhamos em mãos. Além disso, recorremos a muitas in- vestigações e reportagens de qualidade produzidas pela imprensa que buscavam denunciar ca- sos de ingerência, influências e até irregularidades das agências policiais estadunidenses no Brasil. Entrevistas com agentes da Polícia Federal, Ministério da Justiça, da imprensa (Jornalista Bob Fernandes) e do Instituto Sou da Paz (Bruno Langeani) me forneceram direcionamento às minhas perguntas de pesquisas, ao narrarem suas avaliações, eventos e dinâmicas que se 23 revelam a partir de seus trabalhos diários. Esse não foi um investimento significativo do pro- cesso de pesquisa, mas os ganhos foram enormes. Assim, parece imprescindível que pesquisas futuras invistam em pesquisa de campo, etnografia ou outros métodos que se beneficiem de entrevista com o atores que compõem o objeto de estudo. Esta pesquisa nasceu com o propósito de investigar um fenômeno inexplorado pela lite- ratura acadêmica das Relações Internacionais, qual seja, as relações entre a DEA e a Polícia Federal no combate às drogas no Brasil. Concluímos que a ação da DEA influenciou a Polícia Federal, moldando seus objetivos, interesses, diretrizes e capacidades no combate ao tráfico de drogas. De maneira mais específica, compreendemos as formas pelas quais a DEA atuou com a Polícia Federal, trazendo consigo um conjunto de práticas e concepções que foram incorpo- radas às instituições brasileiras para o combate às drogas. O argumento está estruturado a partir de outros quatro capítulos, além desta introdução. A seguir, no Capítulo 2, propomos um debate sobre as dimensões transnacionais do policia- mento, levando em consideração como as polícias exercem seu papel de manutenção de ordem social para além das delimitações territoriais estatais, como tornaram-se atores relevantes do sistema internacional, em resposta ao crescimento da criminalidade transnacional e, a partir disso, como têm sido consideradas objetos de estudo das Relações Internacionais. Nesse capí- tulo, trabalhamos indagações teóricas que sustentam as evidências empíricas apresentadas nos demais capítulos. Em seguida, no Capítulo 3, reconstituímos o processo de transnacionalização das agên- cias de policiamento estadunidenses, dando destaque à DEA. Partindo do pressuposto de que o policiamento transnacional não é uma novidade na história, apresentamos a forma como a “guerra às drogas” tornou-se o novo imperativo desses esforços no Brasil, antes mobilizado pela “guerra ao comunismo”. A partir disso, descrevemos o processo de inserção da “guerra às drogas” no centro da agenda de segurança internacional estadunidense e como o policiamento transnacional tornou-se uma das principais frentes desse empreendimento globalmente. A partir disso, buscamos compreender uma importante dimensão política desse processo, que decorre dos objetivos definidos pela DEA de construir uma rede transnacional de profissionais aliados. No Capítulo 4, aproximamo-nos de nosso objeto de estudo, desenvolvendo em quais ter- mos se expressam as relações entre a DEA e a Polícia Federal durante os anos 1990 e 2000. A partir do estabelecimento de uma rede de confiança entre as duas instituições, dos programas de assistência e treinamento, do financiamento de políticas públicas e das operações conjuntas, 24 identificamos as formas pelas quais a DEA exerceu poder sobre a Polícia Federal, estabelecendo agenda e influenciando suas diretrizes, estratégias e objetivos. Por fim, no capítulo conclusivo, resgatamos os principais resultados alcançados por esta pesquisa, bem como suas lacunas e potenciais agendas de investigação que a partir dela puderam ser abertas. 25 2 AS DIMENSÕES TRANSNACIONAIS DO POLICIAMENTO A transnacionalidade do policiamento não é uma novidade na história. Esforços unilate- rais, bilaterais e multilaterais contra a pirataria, o crime de fronteira, o tráfico ou o contrabando datam da própria definição das fronteiras nacionais. Ao longo do século dezenove, podemos destacar o papel que a Grã-Bretanha assumiu na criminalização e policiamento transnacional contra o tráfico de escravos africanos, por exemplo (ANDREAS; NADELMANN, 2006, p. 4). Contudo, assistimos ao crescimento da importância que o tema tem ganhado na agenda política internacional dos Estados, o que se expressa na disseminação de regimes internacionais desti- nados a proibir atividades transnacionais, no estabelecimento de mecanismos para combatê-las, na circulação cada vez mais frequente de agentes policiais pelo mundo ou na intensificação dos esforços de cooperação entre agências de policiamento. Ao se perguntarem sobre o sentido de tais mudanças, estudiosos identificam que o poli- ciamento transnacional corresponde a mais uma expressão do processo de globalização em curso. De maneira geral, assume-se que as mudanças trazidas pela globalização tornaram turvas as distinções entre os domínios doméstico e internacional, o que permitiu a transnacionalização de diferentes processos sociais, incluindo a criminalidade e seu policiamento (BIGO, 2008; BOWLING; SHEPTYCKI, 2012). Contudo, o policiamento transnacional também deve ser interpretado como resultado da criação dos novos estatutos criminais produzidos pelas autoridades políticas domésticas nas últimas décadas, o que resultou na criminalização de práticas até então não reguladas ou não prioritárias na política criminal (ANDREAS, 2011; ANDREAS; NADELMANN, 2006). Mui- tos dos esforços que marcam o policiamento transnacional na contemporaneidade dizem res- peito a atividades que tampouco eram proibidas há um século ou até há poucas décadas — como as drogas, lavagem de dinheiro, pirataria virtual ou contrabando de armas, para citar alguns exemplos (NADELMANN, 1993, p. 1). Isso significa que o crescimento da criminalidade trans- nacional pode ser explicado pelo crescente esforço dos Estados em controlar certos trânsitos de bens e pessoas, elevando o crime organizado transnacional ao centro da agenda de segurança internacional (ANDREAS; PRICE, 2001). Assim, não assistimos à emergência de um fenô- meno completamente novo e que esteja necessariamente relacionado à globalização, mas à sua ressignificação e, a partir disso, sua intensificação. Os Estados Unidos têm sido um protagonista nesse processo. As agências de policiamento estadunidenses se transnacionalizaram de maneira bastante capilarizada pelo mundo, buscando 26 controlar e reprimir crimes transnacionais que afetem a segurança estadunidense. Como um ator-chave na construção de regimes internacionais de proibição das drogas e na inserção do tema na agenda da segurança internacional, os Estados Unidos tiveram um papel fundamental na formulação e na difusão transnacional do modelo de policiamento contra seu tráfico. A inclusão do tema das drogas na agenda da segurança internacional estadunidense, a crescente disponibilidade de recursos destinados à “guerra às drogas” e a posição hegemônica dos Estados Unidos no sistema internacional, nesse período, conferiu à DEA uma capacidade única de agir, influenciar e exercer poder transnacionalmente. O policiamento transnacional deve ser compreendido não como uma simples resposta lógica e necessária ao crescimento da criminalidade transnacional, mas também como uma forma de exercer poder. Ao transnaciona- lizar o modelo estadunidense de “guerra às drogas”, a DEA pôde construir narrativas e defini- ções em torno do “problema” das drogas, de onde derivaram as “respostas” dadas como ade- quadas e eficientes (EDWARDS; GILL, 2002, p. 247). Isso significa dizer que a concepção de polícia adotada neste trabalho não se limita à sua funcionalidade reativa à criminalidade. Compreendemos o policiamento como um poder pro- dutivo, designado a fabricar e manter a ordem social. Resgatando as definições de polícia tra- balhadas pelo campo da Criminologia, indagamos sobre as especificidades de seu alcance trans- nacional. O papel da polícia perante o Estado doméstico e internacionalmente é uma questão fundamental para compreender suas interações transnacionais. As diferentes interpretações da literatura sobre o processo de transnacionalização do crime e do policiamento nos direciona a diferentes possibilidades de compreensão sobre o caso brasileiro e as contribuições que o presente trabalho pode propor ao campo de estudo. Por essa razão, esse tópico reconstitui o campo de estudos sobre policiamento e sua dimensão transna- cional, buscando identificar as bases conceituais e teóricas, de onde partem as reflexões sobre o tema. Este capítulo está organizado em três subtópicos, além desta introdução. No primeiro de- les (2.1), resgatamos as noções de polícia e policiamento trabalhadas pela Criminologia, desta- cando sua função perante o Estado e suas especificidades enquanto um ator transnacional. No segundo tópico (2.2), mobilizamos a literatura que passa a olhar para as polícias enquanto um fenômeno ou enquanto atores das Relações Internacionais. O objetivo é, nesse sentido, estabe- lecer um diálogo com a literatura que reflete sobre o “policiamento transnacional”, identifi- cando diferentes interpretações sobre suas motivações, causas e realização. A partir disso, no 27 terceiro tópico (2.3), questionamos o nexo estabelecido politicamente entre criminalidade trans- nacional e policiamento transnacional. Assim, questionamos a ideia de que o policiamento tran- sacional seja apenas uma reação à ascensão da criminalidade transnacional. Para além disso, procuramos compreender o papel produtivo das polícias e seu protagonismo, com seus gover- nos, na construção narrativa do “problema” de onde se derivaram as “respostas’ adequadas para resolvê-lo. 2.1 Noções sobre polícia e policiamento: seu papel na manutenção da ordem social local e globalmente Parte significativa dos estudos sobre policiamento volta sua atenção às mais eficientes formas de exercer seu papel definido em termos de aplicação da lei e repressão à criminalidade, entendida como relevante transgressão de normas socialmente definidas. Se há crime, faz-se necessária a criação de uma instituição que o controle, portanto. Contudo, as noções, significa- dos e funções das polícias se constituíram historicamente e nem sempre se restringiram a esse papel funcional e reativo. O objetivo deste tópico é reconstituir o campo de estudos sobre polí- cia e policiamento na Criminologia, destacando os encontros e contraposições entre as mais diversas abordagens desenvolvidas no campo. Assumindo a polícia enquanto um ator transna- cional, este tópico também visa a refletir sobre o papel fundamental que ela exerce no aparelho do Estado. A partir dessa reflexão, é possível pensar sobre quais bases o campo de estudos sobre policiamento transnacional desenvolveu-se. Ainda que a sociologia do controle social já estivesse consolidada academicamente, a área da Criminologia passou a mirar as instituições policiais como objeto de estudos apenas a partir da década de 1960, nos países anglo-saxões (NEWBURN; REINER, 2007). Os primeiros estudos sobre o tema inseriam-se no contexto do debate público sobre os direitos civis nos Estados Unidos e, portanto, avaliavam as polícias a partir de seus problemas, desvios e desfun- cionalidades (BECKER, 2009). De acordo com Newburn e Reiner (2007, p. 910), a chamada Labelling Theory (Teoria da Rotulação da Reação Social) desenvolvida nesse período abriu portas para a chamada criminologia crítica que se desenvolveria posteriormente. Essa teoria inverteu a noção básica sustentada pela Criminologia de que o controle é uma reação ao desvio. Tais teóricos sugeriram que o Estado é o próprio agente a criar o crime, uma vez que detém a capacidade de classificar certos comportamentos como inadequados e, portanto, criminosos. A partir dessa abordagem, os estudos passam a chamar a atenção para o poder discricionário da 28 força policial, autônoma para decidir, interpretar e aplicar códigos normativos e valores domi- nantes na sociedade (MUNIZ; PAES-MACHADO, 2010, p. 437). Na década de 1970, o movimento da “lei e ordem” nesses dois países moldou os estudos sobre polícia que se desenvolveram nesse período. Os trabalhos voltaram-se a pensar formas mais eficientes de controlar os desvios sociais e a criminalidade, assumindo as polícias como forças reativas e necessárias à manutenção da ordem (NEWBURN; REINER, 2007, p. 911). É nesse mesmo contexto que a “guerra às drogas” é anunciada e que os altos índices de crimina- lidade urbana entram no centro da agenda das campanhas presidenciais e do mandato presiden- cial de Richard Nixon. Desde então, as produções acadêmicas assumiram um caráter bastante normativo. Nos termos de Manning (2005, p. 438), foram trabalhos formulados para a polícia e não sobre as polícias, uma vez que se voltavam a pensar e propor melhores políticas públicas e formas mais eficientes de mobilizar o poder policial. Aquilo que Reiner (2004) denomina como “mito da lei e ordem”, inaugurado nesse perí- odo, retrata a polícia como a solução mágica para uma série de problemas de ordem pública. Essa abordagem foi retomada e reforçada na década de 1990, período em que a preocupação com a gestão e medição da performance policial seria expressa nas diretrizes de “tolerância zero”, como a política de segurança pública aplicada pelo então prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani (1994-2001). O policiamento de “tolerância zero” reforça a importância da presença policial e da punição agressiva, inclusive para pequenas contravenções, visando a gerar um efeito dissuador aos que possam estar dispostos a cometer um crime (GREENE, 2014, p. 173). Esse modelo foi inspirado na “tese das janelas quebradas”, desenvolvida por Wilson e Kelling na década de 1980, segundo a qual a tolerância sobre pequenos delitos (como lixo nas ruas, pichações ou prostituição) poderia tornar permissiva ou estimular formas mais graves de crimi- nalidade. A prevenção ao crime, portanto, exige que as janelas sejam consertadas e que peque- nos delitos se tornem intoleráveis às autoridades públicas (AAS, 2013, p. 64). Críticos apontam como as políticas de “tolerância zero” acabaram por se voltar a grupos socialmente marginalizados e às atividades a eles associadas, como as subculturas juvenis, os moradores em situação de rua, imigrantes e minorias éticas, em razão da desordem social que potencialmente poderiam criar (AAS, 2013, p. 64). De maneira reativa, uma gama de estudio- sos, como é o caso de Hancourt (2009), demonstrou a ineficiência das políticas baseadas na teoria das janelas quebradas. 29 Assim, a partir da década de 1990, emerge uma literatura crítica às políticas de “tolerância zero”, levando em conta os exageros e desvios presentes em suas estruturas institucionais e condutas diárias. Tais estudiosos assumem uma concepção liberal, segundo a qual a polícia constitui-se como mais um instrumento de garantia do contrato social, o que pressupõe o con- sentimento daqueles que são governados (BOWLING; SHEPTYCKI, 2012, p. 14). Assumindo a premissa do consentimento, essa abordagem reforça que um trabalho policial eficaz só pode ser baseado na cooperação e legitimidade perante a sociedade (SKOLNICK; BAYLEY, 2002). Concomitantemente, nos anos 1980 uma outra literatura desenvolvia a noção de “polícia comunitária”, criticamente ao recrudescimento da repressão policial que marcaram esse perí- odo. Esse modelo é descrito por Skogan (2008, p. 43) como “uma estratégia organizacional que complementa o combate tradicional ao crime com programas orientados para a resolução de problemas e prevenção que enfatizam novos papéis para o público”. Nesse sentido, tem como objetivo adaptar-se às necessidades e prioridades locais contando com o envolvimento dos ci- dadãos na identificação dos problemas que os atingem (TROJANOWICZ; BUCQUEROUX, 1990). Esse modelo de policiamento surgiu nos Estados Unidos e no Reino Unido em resposta à deterioração das relações entre a polícia e as comunidades locais, particularmente com relação à violência racista (SKOGAN; HARTNETT, 1997). De maneira crítica, Reiner aponta como tal visão reafirma uma noção idílica da polícia como “uma espécie de serviço social prestando bons trabalhos para uma comunidade harmoniosa de clientes satisfeitos” (REINER, 2004, p. 162), quando na verdade trata-se de uma força do Estado que visa ao controle social. A necessidade de reforma das polícias também alcançou proporções internacionais, atin- gindo a política externa dos Estados Unidos. Bayley (2001), influente estudioso da área, pro- punha que os Estados Unidos democratizassem as polícias estrangeiras, marcadas por práticas de tortura e violação de direitos humanos. A proposta é apresentada pelo autor em um relatório apresentado ao Departamento de Justiça, em 2001, intitulado “Democratizing the police abroad: what to do and how to do it” (“Democratizando a polícia no estrangeiro: o que fazer e como fazê-lo”, em português). Em seus trabalhos, Bayley (2005) identifica que os programas de as- sistência às polícias estrangeiras conduzidos pelos Estados Unidos deveriam mirar o combate ao crime, mas também o desenvolvimento de uma polícia democrática. Como o caso evidencia, as polícias tendem a ser estudadas a partir de uma visão norma- tiva e jurídica. Isso significa dizer que muitos estudiosos dedicam suas pesquisas a debater for- mas mais adequadas de a polícia exercer seu papel de controle do crime e aplicação da lei, com 30 isso, naturalizando sua própria existência e função (NEOCLEOUS, 2014, p. 10). A polícia pas- sou a ser assumida, nas sociedades modernas, como um pré-requisito ao funcionamento da or- dem social, o que estudiosos têm chamado de “fetichismo da polícia” (NEWBURN; REINER, 2007; REINER, 2004). Tal concepção também se reflete nos estudos sobre policiamento trans- nacional (ver tópico 2.2). Os esforços políticos em transnacionalizar a capacidade coercitiva do Estado é resultado da expansão da criminalidade transnacional, tornando-a necessária e inques- tionável, segundo parte da literatura. Tal narrativa também marcou os discursos políticos que, dessa forma, podiam justificar seus esforços. As instituições aos moldes do que hoje conhecemos como “polícia” foram uma recente invenção inglesa consolidada na metade de século dezenove e acompanhou o desenvolvimento da sociedade urbana e industrial no país (BITTNER, 1970, p. 15; EMSLEY, 2008, p. 73). Nos Estados Unidos, o primeiro departamento de polícia foi criado no estado de Nova York para a cidade de Nova York em 1857, espelhado no modelo londrino (BITTNER, 1970, p. 15; NA- DELMANN, 1993, p. 14). A formação de burocracias policiais profissionalizadas está direta- mente relacionada às pressões que os concomitantes processos de urbanização e industrializa- ção geravam sobre os governos desses países, como problemas de coabitação, de circulação e produção (FOUCAULT, 2008, p.452, 455). Novos problemas sociais que emergiam e ameaça- vam a ordem social liberal-capitalista precisavam ser controlados (INNES, 2003, p. 35). Isso não significa que a prática de policiamento não existisse até então. Muitas das funções de con- trole do crime, hoje tidas como uma das mais centrais à função policial, eram exercidas por agências privadas contratadas pelo Estado e pela vítima, bem como agências militares ou de- mais burocracias do Estado (NADELMANN, 1993). A criação da polícia está intimamente ligada à modernidade, marcada pela emergência do Estado e a constituição das cidades. Para Foucault (2008, 421), “a partir do século XVII, vai- se começar a chamar de ‘polícia’ o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado”. Nesse contexto, a polícia foi criada com a missão de exercer a soberania do Estado, estabelecendo-se como uma das instituições através da qual o soberano regular a vida de seus súditos (FOUCAULT, 2008, p. 450). Os princípios do liberalismo que se instalaram nas sociedades ocidentais, a partir do século XVIII, redefiniu o papel da polícia. A partir de uma racionalidade da economia polícia, o papel da polícia tornou-se reprimir possíveis desordens, garantindo a liberdade do comércio (FOUCAULT, 2008, p. 474; 2009, p. 118). 31 Nesse sentido, se hoje entendemos o controle do desvio e do crime como função central da instituição policial, uma crescente literatura vem resgatando um sentido mais amplo de po- lícia que a compreende como uma prática e não como uma única instituição. Para referir-se a esse conceito, é preferível o emprego do termo policiamento. Nesse caso, entende-se que o policiamento é exercido por uma ampla gama de instituições estatais que se fragmentaram e se desenvolveram historicamente. Nas palavras de Innes (2003, p. 64), a polícia é uma organização específica e moderna, dotada da autoridade legal do Estado para usar a coerção física ou a ameaça dela, para fazer cumprir a lei em busca da manutenção da ordem social. Em contraste, o policiamento se refere a uma gama diversificada de atividades de ordenação e controle, desempenhadas por uma ampla gama de agências. A chamada “ciência da polícia”, que se desenvolveu ao final do século dezoito e início do século dezenove, compreendia a polícia não como uma instituição, mas como uma ampla gama de práticas sociais que visam a ordenar, controlar, organizar e regular a sociedade (BOWLING; SHEPTYCKI, 2012, p. 11). Isso significa que o cerne do mandato policial foi originalmente definido para a garantia da “boa ordem” e, para isso, foram criadas as instituições governamentais cujas funções definiam-se como muito além do controle do crime (NEOCLE- OUS, 2000, p. 3-4). Polícia, em suas origens, foi muito mais uma forma de governar que uma forma de exercer e aplicar a lei (NEOCLEOUS, 2000, p. 4). Esse conceito de policiamento está intimamente relacionado à noção de controle social: mecanismo por meio do qual se pretende fabricar e proteger uma ordem social, regulando a conduta dos indivíduos (FOUCAULT, 2008; INNES, 2003, p. 6). Conforme supracitado, a Labelling Theory (Teoria da Rotulagem), desenvolvida na dé- cada de 1960, pensa o policiamento criticamente a partir de sua dimensão política, destacando o quanto sua atuação volta-se a grupos caracterizados socialmente como nocivos, imorais ou antissociais. Parte da estratégia de controle sobre esses grupos está na capacidade de o Estado criminalizá-los (ou rotulá-los como criminosos). Sob esse ponto de vista, não existem ativida- des que sejam essencialmente criminosas. As categorias legais evoluem e se transformam, de maneira a ser possível que certos atos sejam criminalizados com base nos grupos sociais (em geral, marginalizados) que são a eles associados (REINER, 2012, p. 314). A Labelling Theory influenciou, nas décadas que se sucederam, o desenvolvimento da chamada escola crítica da criminologia, cujo legado dos estudos marxistas é bastante significa- tivo. Assumindo o olhar da economia política, essa escola defendeu que o controle social 32 conduzido pelo Estado visa a pacificar os conflitos inerentes à luta de classes e que possam ameaçar a ordem capitalista (INNES, 2003, p. 28). Assumindo os mesmos pressupostos, Neo- cleous (2014) rompe com as barreiras disciplinares entre Estudos de Segurança Internacional nas Relações Internacionais e a Criminologia para pensar o papel da violência inerente ao sis- tema capitalista liberal. Para o autor, a manutenção da ordem estabelecida pelo Estado capita- lista pressupõe a violência exercida por meio do poder policial do Estado, que se expressa num continuum de guerra ao policiamento cotidiano. Assim, Neocleous define esse tal “poder poli- cial” como uma gama de poderes do Estado, que viabiliza o processo de fabricação, controle e reprodução da ordem liberal capitalista. Para ele, portanto, desde os seus primórdios, as polícias estiveram preocupadas com as atividades potencialmente prejudiciais à ordem social e não ne- cessariamente com o controle do crime (NEOCLEOUS, 2000, p. 4). Compreender o policia- mento como um mecanismo de controle social nos permite enxergar as instituições policiais como instrumentos muito mais complexos e com objetivos muito mais amplos do que simples- mente o controle do crime. A polícia não é apenas uma força reativa à criminalidade ou ao desvio de maneira geral. Ela é uma força produtiva (NEOCLEOUS, 2000, p. 5). Na língua inglesa, a polícia é comumente referida como agência de “aplicação da lei” (law enforcement, em inglês). Ou seja, um instrumento de que o Estado se usa para garantir que a ordem por ele estabelecida, pelas leis, seja garantida. De maneira inversa, seu poder coerci- tivo, que inclui a busca, apreensão, prisão, apreensão, vigilância e ações de manutenção da ordem em geral, também requer ferramentas legais que legitimem tal função. Como apontam Bowling e Sheptycki (2015, p. 146), muitas das práticas cotidianas da função policial seriam criminosas se não fossem realizadas sob a proteção da legalidade. Nas palavras de Neocleous (2000, p. xi), “a história da polícia é a história do poder do Estado”. Criticamente, o autor aponta que as mais diversas teorias do Estado parecem assumir que a polícia é um conceito que pertence à Criminologia e, assim, acaba por ignorá-la. Da mesma maneira, a Criminologia pouco assume a discussão sobre a teoria de Estado. Ainda que o controle do crime seja assumido como função central da polícia, segundo Neocleous (2000, p. xi-xii), o Estado segue no centro do debate, uma vez que é ele a instituição responsável por definir o que é crime. O poder policial é um elemento central na formação do Estado nacional. Ao reconstituir o processo de formação do Estado europeu, Charles Tilly (1996, p. 75) indica que o governo, ao consolidar sua autoridade, torna-se um extorsionário: a um certo preço, passou a oferecer 33 proteção à população contra males que eles mesmos podiam perpetrar ou aos quais pudessem ser permissivos. Esse processo é o que o autor chama de “chantagem protecionista”, a partir da qual o governo firma sua capacidade de controle e hegemonia sobre a população, criando uma ameaça — real ou discursiva — para que depois possa oferecer proteção a ela a certo preço (HUGGINS, 1998, p. 229). Assim são criados os aparelhos dedicados à proteção dos “bons” cidadãos e ao controle do “mal” socialmente construído (HUGGINS, 1998, p. 230). Uma vez que consolida sua autoridade, o Estado cria burocracias cujo objetivo é firmar e manter a ordem social, como juízes, forças policiais e outros aparatos coercitivos que assumem a prerrogativa de determinar culpa ou inocência de acordo com os códigos postos pela autoridade central (MOORE, 1990, p. 103). Na definição de Bittner (apud. REINER, 2004, p. 167), o mandato da polícia define-se pela manutenção da ordem. Contudo, de maneira mais específica, a instituição policial diferen- cia-se das demais em razão de ser a única agência que acessa o monopólio estatal do uso legí- timo da força. Assim, é a capacidade coercitiva que define a polícia. O sociólogo Max Weber (2003, p. 9) define o Estado como “uma comunidade humana que se atribui (com êxito) o mo- nopólio legítimo da violência física, nos limites de um território definido”. Assim como outras organizações políticas que antecederam sua formação, o Estado moderno “é uma relação de homens que dominam seus iguais pela violência legítima” (Weber, 2003, p. 10). A polícia seria, nesse sentido, um dos principais aparatos administrativos e burocráticos que dispõem do uso legítimo da força em nome do Estado (DEFLEM, 2000, p. 740). As funções de policiamento do Estado foram fragmentadas entre diferentes instituições burocráticas estatais, cada uma com sua própria lógica de funcionamento (BOWLING; SHEP- TYCKI, 2012, p. 12). A burocratização do Estado, nos termos weberianos, fez com que as agências que compõem o maquinário do Estado se tornassem relativamente autônomas do con- trole popular e político (DEFLEM, 2000, p. 742). A tarefa dessa burocracia é manter a ordem e exercer o controle social, funções que a permite recorrer ao uso da coerção. Em razão de seu conhecimento especializado, experiência e capacidade de tomada de decisão, as polícias tor- nam-se bastante poderosas a ponto de definir politicamente os termos de sua função (DEFLEM, 2000, p. 742). As polícias detêm a autoridade do conhecimento e, portanto, a capacidade de classificar e priorizar agendas (BIGO, 2008, p. 14). Se compreendemos o controle social como uma relação de poder entre o Estado e a soci- edade, quando ampliamos nossa lente de análise para compreender o policiamento 34 transnacional, é possível também estender as relações de poder para essa segunda camada que transcende as fronteiras nacionais. O policiamento transnacional tem um papel fundamental de fabricar e manter uma ordem social cujo alcance é também transnacional. Assim, o policia- mento transnacional levanta questões sobre quais são as leis a serem aplicadas, sob qual auto- ridade e em nome de quem ela é aplicada. Quem determina qual é a ordem social a ser fabricada e mantida sob o policiamento transnacional? (BOWLING; SHEPTYCKI, 2012, p. 8). As polícias mobilizam uma variedade de instrumentos legais disponíveis — leis, tratados, convenções — para realizarem suas atividades transnacionalmente. Isso significa que os instru- mentos legais não criam ou nem sempre definem o trabalho das polícias, mas muitas vezes são operacionalizados por elas (BOWLING; SHEPTYCKI, 2015, p. 142). As polícias buscam os instrumentos legais para ratificarem suas práticas quando já realizadas, o que indica haver uma certa discricionariedade em suas ações (BOWLING; SHEPTYCKI, 2015, p. 172). De acordo com Bowling e Sheptycki (2015, p. 142), a lei é, portanto, uma ferramenta ao poder policial, legitimando o uso da vigilância e da coerção para garantir a governança do sistema global que esteja alinhada aos interesses dos atores poderosos, sendo eles estatais ou não estatais. Há uma multiplicidade de agências policiais pelo mundo que disputam ou cooperam na definição dessa ordem, mas há uma hierarquia entre elas. Essa relação de poder entre as agên- cias de policiamento emana, em parte, do Estado de onde pertencem, a partir de onde acessam recursos tecnológicos, financeiros ou políticos. Nesse sentido, o crescimento do policiamento transnacional estadunidense na década de 1990 foi possível graças à posição hegemônica que os Estados Unidos assumiram nesse período. Isso não significa que o policiamento transacional faça parte ou se expresse como uma estratégia única da ação internacional dos Estados Unidos. Ainda que as polícias tenham um papel central no Estado, como instituições capazes de exercer o monopólio do uso da violência, elas não são meros instrumentos do governo em exercício. Enquanto parte da burocracia estatal, as polícias definem suas próprias agendas e interesses, podendo articulá-las às agendas gover- namentais ou até contrapô-las ou influenciá-las (BIGO, 2008, p. 12). Para Deflem (2000, p. 744), um certo grau de autonomia é uma condição necessária à cooperação entre polícias de diferentes países. O “coração” do Estado tornou-se transnacional (BIGO, 2016, p. 401). A imagem da unidade estatal na tomada de decisão foi abalada pela multiplicidade de atores estatais que atuam transnacionalmente sem que haja, necessariamente, uma coerência de objetivos e interesses definidos pelo governo (BIGO, 2016, p. 398). A 35 homogeneidade do Estado, como assumido pelas Relações Internacionais, é uma ilusão perfor- mática e não real, na concepção de Didier Bigo (2016, p. 400). As polícias podem se beneficiar da posição central que ocupam no Estado, negociando seus interesses com o governo. Certas agendas governamentais podem conferir mais ou menos orçamento, prestígio e poder às polícias que, por sua vez, trabalham para justificar ao governo sua importância. A “guerra às drogas” anunciada por sucessivos governos estadunidenses via- bilizaram a criação, ascensão e transnacionalização da DEA que, por sua vez, passou a atuar como um instrumento do governo, mas não só. Seu conhecimento especializado, experiência no campo e prestígio concedeu a essa instituição poder para definir agendas governamentais e também instrumentalizar o governo a seu favor. As autoridades policiais assumiram um papel fundamental na elaboração de leis em nível nacional internalizando suas experiências transnacionais, assim como influenciam na formula- ção da legislação de outros países e dos tratados internacionais com base nas suas próprias concepção, internacionalizando suas experiências locais. Bowling e Sheptycki (2015, p. 150) trazem um exemplo significativo nesse sentido. Eles descrevem que Jonathan Winer, o subse- cretário de Estado adjunto dos Estados Unidos para a aplicação da lei internacional (1994- 1999), observou que os padrões legais que sustentam a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado de 2000 foram elaboradas por tecnocratas nacionais e transnacionais de nível médio, principalmente da Europa e dos Estados Unidos (BOWLING; SHEPTYCKI, 2015, p. 150). Assim, entende-se que o policiamento transnacional governa o próprio direito internaci- onal. Da mesma forma, parte da cooperação entre agentes de policiamento está fora dos meca- nismos de controle e prestação de contas do Estado (BOWLING; SHEPTYCKI, 2015, p. 149). Nesse sentido, buscamos não assumir a polícia como mais instrumento da política externa es- tabelecida pelo governo, mas como um ator que, apesar da posição central no Estado, não se equivale a ele. Entende-se que as polícias detêm um certo nível de autonomia na condução de suas funções e na construção de suas agendas políticas, podendo inclusive pautar a agenda go- vernamental. As polícias reivindicam ter o domínio sobre a “verdade”, que decorre de seu co- nhecimento especializado e de sua “autoridade estatística”, permitindo-lhes definir o que é ame- aça, o que deve ser policiado e qual é o seu próprio campo de ação (BIGO, 2008, p. 12). Nesse sentido, buscamos compreender a atuação transnacional da DEA e da Polícia Fe- deral para além de uma relação entre Estados Unidos e Brasil e para além de sua dimensão 36 reativa ao aumento do tráfico internacional de drogas. As polícias, nesse caso, são compreen- didas mais como atores interessados que contribuem na definição do que deve ser criminalizado e reprimido, na construção de redes transnacionais de polícias, na disseminação de diretrizes de policiamento e repressão às drogas, bem como no exercício do poder em nome de seus Estados, quando articuladas com seus respectivos governos. 2.2 Quando as Relações Internacionais se voltam às polícias: olhares sobre a transnacio- nalização de agências estatais A polícia é um objeto de estudo estranho às Relações Internacionais. Compreendidas como instituições limitadas à aplicação das leis nacionais e mantenedoras da segurança pública, não foram reconhecidas como atores do sistema internacional. A visão estadocêntrica que pre- domina na disciplina também dificulta o olhar sobre a atuação internacional de agências esta- tais, sem que necessariamente sejam simples expressão de uma atuação uníssona daquilo que compreendemos como Estado. A Criminologia e as Relações Internacionais desenvolveram-se enquanto áreas de conhe- cimento voltadas a fenômenos distintos: o crime e a guerra, respectivamente. Transformações empíricas e também epistemológicas em ambas as áreas criaram convergências entre elas, per- mitindo que a polícia ganhasse destaque no campo de Estudos da Segurança Internacional. A ascensão da variável da globalização nos estudos de Relações Internacionais e, especificamente de Segurança Internacional, acompanhado das considerações sobre o papel dos atores não es- tatais no sistema internacional, pautam esse avanço. De maneira mais abrangente, as definições dos domínios doméstico e o internacional se tornaram cada vez menos claras, permitindo que fosse pensada a transnacionalidade dos processos e dos atores governamentais. Essa virada epistemológica não emergiu num vazio, mas respondeu a importantes trans- formações que se desenvolviam na sociedade. A partir da década de 1980, a criminalidade pas- sou a tomar o centro da agenda de segurança internacional de países como os Estados Unidos, que a partir de então foi disseminada transnacionalmente por meio das organizações intergo- vernamentais, de suas relações bilaterais e por meio das suas agências de policiamento. O di- agnóstico sobre as crescentes ameaças representadas pela criminalidade transnacional deman- dou um esforço em torno da transnacionalização do policiamento, consequentemente, conforme debateremos no subsequente tópico (2.3). 37 Autores da Criminologia passam a identificar uma homogeneidade de linguagens e prá- ticas nas formas de combate ao crime que atravessam as fronteiras (GARLAND, 2001; NEWBURN; SPARKS, 2004). A criminologia e a justiça criminal como áreas de estudo terão que lidar com a inter- secção tensa e contraditória entre 'o espaço dos fluxos' e 'o espaço dos lugares', pois é aqui que novas formas institucionais emergem e energias políticas são geradas (NEWBURN; SPARKS, 2004, p. 2). Nesse contexto de indefinição entre ameaças domésticas e internacionais, as supostas dis- tinções entre o papel dos militares e dos policiais foram dissolvidas. Em muitas democracias ocidentais, a criminalidade transnacional passou a ocupar o centro da agenda da segurança in- ternacional e tais distinções tornaram-se cada vez menos distinguíveis (ANDREAS; PRICE, 2001). É possível, portanto, identificar uma crescente convergência e transversalidade entre os trabalhos conduzidos pelos profissionais da segurança nacional e da segurança pública, como resultado do processo que Andreas e Price (2001) denominaram como “policialização das for- ças armadas” e “militarização das polícias”. Esse processo diz respeito à transformação das polícias em organizações cada vez mais semelhantes a militares, em termos de conduta, tática, equipamentos ou objetivos, bem como a crescente atuação das forças armadas, juridicamente destinadas exclusivamente à defesa do território nacional, em questões de segurança doméstica. Segundo os autores, muitas das tecnologias, expertises e recursos militares passaram a ser trans- feridos e reutilizados para o combate ao crime. Por exemplo, as operações de paz das Nações Unidas lançadas a partir da década de 1990, em sua maioria, passaram a incluir a reforma do setor de segurança e das polícias locais. Em 2004, a ONU enviou mais de 4 mil policiais da United Nations Civilian Police (UNCIVPOL) a oito missões (SERAFINO, 2004, p. 5). Suas missões passaram a envolver monitoramento, con- sultoria, treinamento, reconstrução e até aplicação da lei (BAYLEY, 2005, p. 206). Da mesma forma, operações de interdição e outras formas de combate à criminalidade transnacional pas- saram a mobilizar policiais em operações internacionais. Já no âmbito doméstico, tornou-se comum o emprego das Forças Armadas em operações de combate à criminalidade. Para Graham (2017, p. 122), assistimos a um novo urbanismo militar, marcado pelo uso de tecnologia militar e civil com a finalidade de vigilância e controle da vida cotidiana. Isso se manifesta, segundo o autor, no uso recorrente da guerra como 38 metáfora para descrever a condição em que vivem as sociedades urbanas, como é o caso da “guerra às drogas” (GRAHAM, 2017, p. 26). No Brasil, os militares têm sido mobilizados em operações de combate à criminalidade nos morros e favelas do Rio de Janeiro, por exemplo. As operações Rio I e Rio II nos anos 1990, bem como as ocupações dos Complexos da Pena e do Alemão em 2010 e dos Complexos de Manguinho, Maré, Cidade de Deus, Muquiço, Chapadão e Pedreira durante as Olimpíadas de 2016 são exemplos dessas transformações. Ações que visavam à “ocupação” e “retomada do território” assemelharam-se muito a um cenário de guerra ou com operações de paz. Não por acaso, foram recrutados para tais operações fuzileiros navais com experiência nas missões da ONU no Haiti, a MINUSTAH. Veículos blindados, helicópteros e armas pesadas compuse- ram aquele cenário (SOUZA, 2015, p. 208). Ademais, as militarizações também se manifestam de formas menos espetaculares, como revela a crescente tendência de que militares assumam a gestão da segurança pública no país, como em secretaria de estados e municípios (SOUZA, 2015, p. 208). Por sua vez, a força de elite da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e a Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) da Polícia Civil do Rio de Janeiro informalmente enviaram policiais à MINUSTAH para oferecer treinamento e também observar o uso de novas tecnologias que lá estão sendo empregadas (TOLEDO, 11 de janeiro de 2008). Se as discussões sobre policiamento e crime estiveram tradicionalmente vinculadas ao Estado, cujo espaço de atuação se delimitava às fronteiras nacionais, as crescentes configura- ções subnacionais e transnacionais da criminalidade e do combate ao crime deslocaram o nível de análise da disciplina para o local e para o global (AAS, 2013, p. 3). Nesse contexto de trans- formações, as polícias passaram a ganhar atenção das Relações Internacionais. Sua entrada na disciplina deriva dos debates sobre a transnacionalidade do crime — e, portanto, a necessidade de também transnacionalizar a repressão — e dos questionamentos sobre a militarização das polícias e a policização das Forças Armadas — levando em conta o crescente papel das polícias em ações internacionais que, a priori, seriam de atribuição dos militares, como é o caso das operações de paz. Muitas formas de cooperação policial têm sido incentivadas pelas organizações interna- cionais, como as Nações Unidas, Mercosul ou União Europeia. Em outros casos, os próprios esforços de cooperação se institucionalizam na forma de organizações internacionais, como a UNPol, Ameripol, Europol ou a mais antiga Interpol (BIGO, 2000; BOWLING; SHEPTYCKI, 39 2012; DEFLEM, 2000). Tais transformações levantaram, para estudiosos, questões fundamen- tais que desafiam as premissas das Relações Internacionais em torno das noções sobre Estado, soberania, autodeterminação ou representação democrática, por exemplo (GREENER, 2009, p. 92; NEWBURN; SPARKS, 2004, p. 2). O fim da Guerra Fria é considerado um marco de virada importante para esse debate. O confronto entre as duas grandes potências, Estados Unidos e União Soviética, foi então substi- tuído por outros, novos e de menor escala. As incertezas frente à nova ordem mundial que se desenhava chegaram a produzir reações nostálgicas dos atores estatais da segurança nacional dos Estados Unidos com relação à clareza e simplicidade que definiam o período da bipolari- dade (BUZAN; HANSEN, 2012, p. 257). Analistas procuravam prever como desenharia a nova balança de poder internacional e que tipo de ameaça definiria a nova agenda de segurança in- ternacional (HUNTINGTON, 1997; NYE, 1992; WALTZ, 1993). As chamadas “ameaças não estatais” que ganharam centralidade na agenda da segurança nacional de diversos países do mundo, com destaque aos Estados Unidos, tornaram-se objeto de estudo para uma crescente gama de abordagens no campo dos estudos de segurança interna- cional (BUZAN; HANSEN, 2012, p. 288). O crime transnacional, com especial destaque ao tráfico internacional de drogas, foi um dos temas que se destacaram nos debates políticos e acadêmicos nesse campo. A transnacionalização do policiamento tem sido justificada politica- mente como resposta às ameaças trazidas pela globalização. Autores apontaram um “lado obscuro” da globalização, identificando que “a mesma in- fraestrutura que facilitou o fluxo global de bens, pessoas e capital gerou ameaças à segurança da sociedade”, como o crime organizado transnacional (HELD; MCGREW; GOLDBLATT; PERRATON, 1999, p. 489). Segundo uma ampla literatura, a abertura das fronteiras aos fluxos internacionais transformou o contexto em que as atividades criminosas poderiam operar, enco- rajando a formação do que ficou cunhado como “crime organizado transnacional” (WILLI- AMS, 1994). A globalização tornou-se chave explicativa importante para muitas transformações da so- ciedade ao final do século vinte, tornando difícil sua própria conceptualização. O termo globa- lização assumiu o centro dos debates nas ciências humanas já na década de 1970, em reação às relações de interdependência marcada pelos complexos fluxos econômicos e tecnológicos que permitiram o trânsito cada vez mais intenso de pessoas, bens, capital e informações, sobretudo sociedades ocidentais (NYE; KEOHANE, 1971). Na década de 1990, esse debate ganhou um 40 novo impulso, como elemento destacado dentre as mudanças que o fim da Guerra Fria impôs às relações internacionais (OMAE, 1990; STRANGE, 1996). A vitória estadunidense permitiu que o capitalismo atingisse níveis globais e que reformas neoliberais do mercado internacional impusessem mudanças significativas nos fluxos transnacionais de capital e produtos. Para Saskia Sassen (2010, p 11), o fato de um processo social ou uma entidade estarem localizados nas delimitações do território nacional não mais significa, automaticamente, que eles sejam nacionais ou autorizados pelo Estado, mas podendo ser uma “localização do global”. Assim, a globalização não se limita apenas às suas manifestações explicitamente globais, como as organizações internacionais, os mercados financeiros ou o cosmopolitismo. Ela também pode ser compreendida a partir de práticas localizadas no espaço nacional, mas que conectem redes e entidades transnacionais (Sassen, 2010, p. 11). A partir dessa visão, podemos incluir como expressões da globalização redes transacionais de ativistas preocupados com uma determinada temática, bem como a atuação transnacionalizada de agências policiais nacionais e locais. Para Held e McGrew (2003, p. 3), “a globalização representa uma mudança significativa no alcance espacial das relações sociais e da organização em direção à escala inter-regional ou intercontinental”. Isso não significa dizer, segundo os autores, que o global substitua ou tenha precedência sobre as dinâmicas locais, mas sim que o fenômeno global habita o espaço nacio- nal, permitindo compreender processos que se realizam no espaço territorial nacional como globais (HELD; MCGREW, 2003, p. 3). Segundo a definição de Giddens (2013, p. 64), “a globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais mundiais que ligam as localidades distantes de tal maneira que os eventos locais são moldados por eventos que ocorrem a muitos quilômetros de distância e vice-versa”. Estudiosos sobre globalização nas Relações Internacionais desestabilizaram os pressu- postos estadocêntrico que marcaram a disciplina desde sua criação. Ao questionarem as estan- ques dicotomias entre o espaço doméstico e internacional, introduziram a importância das rela- ções transnacionais e dos atores não estatais no sistema internacional. Ou seja, foram colocadas em xeque as premissas sobre o Estado como centralizador dos processos sociais que se realizam dentro do território nacional (Sassen, 2010, p. 9). A inclusão do referencial global nas Relações Internacionais abriu um amplo leque de possibilidades de agenda de estudos. Isso porque pas- sam a mirar atores e processos até então ignorados, como os negócios transnacionais, os movi- mentos revolucionários, as organizações sindicais, as redes de conhecimento acadêmico-cien- tíficas ou as empresas de transporte e comunicação, grupos criminosos transnacionais ou 41 agências governamentais que passam a atuar transnacionalmente, para citar alguns exemplos (BIGO, 2017; COX, 1971, p. 554; KRAUSE, 1971, p. 523; MORSE, 1971, p. 373). O novo papel da autoridade estatal se tornou um ponto central no debate sobre globaliza- ção. Por um lado, autores como Susan Strange (1996) entendem que a globalização levaria a uma retração do papel do Estado perante o crescimento do mercado global. Já outros, mais céticos, reafirmam a primazia do Estado enquanto locus do poder, do espaço territorial e das fronteiras nacionais, relativizando a importância da globalização como fenômeno transforma- dor da estrutura do sistema internacional (HIRST, 1997). Para eles, as mudanças às quais assis- timos não alteraram a primazia do Estado no sistema internacional (MANN, 1997) porque o processo que denominamos globalização não é uma novidade e está acontecendo por mais de um século, ainda que tenha passado por interrupções pontuais em períodos de crises e guerras, aponta Hirst (1997, p. 410). Já Held et al. (1999) reconhecem que a globalização esteja acontecendo há séculos, mas reafirmam que sua atual versão é genuinamente diferente em escala e em natureza. Avanços tecnológicos têm estimulado o aumento do fluxo de pessoas, bens, ideias e capital há mais de 200 anos e, de alguma maneira, é possível dizer que hoje o Estado está mais preparado do que nunca para responder às decorrentes consequências desse processo (KRASNER, 2001, p. 24). Nesse caso, a globalização está transformando o escopo da autoridade estatal, que se enfraque- ceu em alguns aspectos, mas se fortaleceu em outros (KRASNER, 2001, p. 25). Vale ainda pontuar que os valores da autonomia e soberania, ditos ameaçados pela globalização, jamais foram uma realidade para a maioria dos Estados (KRASNER, 2001, p. 20). Saskia Sassen (2010, p. 31) também discorda de que o poder do Estado esteja erodindo, mas identifica uma rearticulação da sua autoridade. O Estado continua participando do processo de globalização, estabelecendo estruturas que a viabilizam e a promovem. Para a autora, as dimensões da autoridade, do direito e do território estão, em alguns aspectos, desnacionali- zando-se e sendo assumidas por outros atores, locais e transnacionais, públicos e privados. Ainda assim, o alcance na globalização e a forma como ela se manifesta é fundamentalmente distinta nas mais diversas partes do mundo, o que reafirma a importância contextual do local. O termo “transnacional” vem sendo trabalhado pela literatura de Relações Internacionais desde a década de 1970, como derivação do processo de globalização (NYE; KEOHANE, 1971). Contudo, essa literatura assume como transnacional aquele que não faz parte do nacional pelo seu vínculo ao global, o que se aplicaria apenas aos atores não estatais, como as empresas 42 privadas multinacionais ou a grupos terroristas, por exemplo (BIGO, 2016, p. 398). Bigo (2016), por outro lado, defende haver um emaranhamento do local e do global quando agências do próprio Estado passam a atuar transnacionalmente. O Estado está presente nas relações in- ternacionais de forma desagregada, o que também revela um processo de rearticulação da sua autoridade (BIGO, 2016, p. 406; SLAUGHTER, 2004, p. 5). Trabalhamos nesta pesquisa com uma abordagem que define os atores transnacionais como aqueles que interagem simultaneamente nos espaços sociais nacional e transnacional, sem que seja possível uma definição essencial de sua natureza (BIGO, 2016, p. 398). Há continui- dades e sobreposições dessas dimensões, que resultam na formação de uma rede de profissio- nais – compostos por agentes públicos e privados, como as polícias, as forças armadas, as em- presas privadas de segurança – que não pode ser definida a partir da dicotomia nacional/inter- nacional. A terminologia “transnacional” permite a expansão da análise para além dos marcos estadocêntricos tão tradicionalmente estabelecidos pelas Relações Internacionais e acende o questionamento em torno das redes, coalizões, contatos e interações entre atores (estatais e/ou não estatais), através e apesar das fronteiras nacionais que nem sempre ocorre de forma institu- cionalizada, como na diplomacia, por exemplo (BOWLING; SHEPTYCKI, 2012). D